A Rádio Batuta pediu a artistas e intelectuais que sugerissem livros para o confinamento provocado pela pandemia do coronavÃrus. Não são meras sugestões, mas comentários que iluminam aspectos das obras escolhidas e mostram por que elas são fundamentais.
“Noturno do Chile” é um painel do que foi o país sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973 a 1990), apontando inclusive a conivência de nichos de intelectuais com o regime. A historiadora e pesquisadora Raquel destaca as várias camadas que existem na literatura de Roberto Bolaño (1953-2003), que não se reduz a rótulos como “engajada”.
Giovanni Boccaccio (1313-1375) escreveu Decameron após um surto de peste bubônica na Itália. Os personagens passam dez dias em isolamento. Além da associação com o momento em que vivemos, o escritor e tradutor Daniel Pellizzari, integrante da coordenadoria de internet do IMS, indica o livro por ver nele uma “celebração da vida vencendo a morte”, com humor e sexo.
Uma frase de O segundo sexo ganhou vida própria, tornando-se célebre e quase banal: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. O livro de Simone de Beauvoir é muito mais do que isso, ressalta Carla Rodrigues, professora de filosofia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisadora da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). A obra de 1949 é “o principal fundamento da revolução feminista” e está, hoje, intensamente viva, ganhando novas interpretações.
Este é o último registro gravado da voz do compositor e escritor Aldir Blanc, que morreu em 4 de maio, vítima da Covid-19. da voz. Segundo ele, Tabloide americano, o primeiro romance de uma trilogia de James Ellroy, é perfeito para se entender o que são os Estados Unidos sob a presidência de Donald Trump, O autor passeia da Guerra do Vietnã, nos anos 1960, até o passado recente de seu país, apimentando a narrativa com saborosos detalhes, como um caso entre Rin-Tin-Tin e Lassie. Ellroy foi ladrão, drogado, mas, como diz Blanc, “a literatura policial o salvou”. Ainda há, segundo o compositor, uma lição para o Brasil.
“Escrever é uma maneira de sangrar” é uma frase marcante do conto “A gente combinamos de não morrer”, um dos 15 de Olhos d’água, livro que ganhou um Prêmio Jabuti em 2015. A escritora e pesquisadora em antropologia Juliana Borges diz que jamais conseguira falar dessa obra de Conceição Evaristo, tantas são as personagens que lhe atravessam, como mulher negra. Para ela, os olhos das protagonistas dos contos retratam o presente e projetam o futuro.
Em 1974, aos 32 anos, o cineasta alemão Werner Herzog decidiu ir a pé de Munique até Paris, quase 800 km. O objetivo era fazer com que a amiga Lotte Eisner ficasse esperando-o chegar e, assim, resistisse à doença que a acometia. O diário escrito ao longo da viagem ganhou o título de Caminhando no gelo. É um relato “assombroso”, como classifica Guilherme Freitas, editor-assistente da revista serrote. A solidão, em alta neste período de quarentena, é um dos temas que provocam assombro.
A transformação de Gregor Samsa num inseto monstruoso (não exatamente numa barata, como sempre se diz) é uma das cenas mais conhecidas da literatura. A escritora Carola Saavedra destaca que no clássico A metamorfose, do tcheco Franz Kafka (1883-1924), a transformação também é de um caixeiro viajante produtivo e arrimo de família em alguém que não serve mais para o mundo moderno.
Em Oceânia, país fictício do romance 1984, todos são vigiados por uma entidade que não aparece, o Big Brother, representação do partido único que reprime qualquer forma de liberdade, inclusive o amor. O jornalista Sérgio Augusto ressalta que o livro do britânico George Orwell (1903-1950), lançado em 1949, não fazia alusão apenas à União Soviética, mas a Hitler, Mussolini e à “essência nefasta de qualquer forma de poder totalitário”. A atualidade da obra é clara, como indica sua permanência entre os best-sellers.
Estudiosa das questões indígenas, a antropóloga Aparecida Vilaça escolheu um livro muito distante de sua área de atuação: Só garotos, da poeta e cantora americana Patti Smith. Aparecida e seu filho, o químico Francisco Vilaça Gaspar, comentam os relatos sobre as histórias vividas na Nova York dos anos 1960, especialmente ao lado do fotógrafo Robert Mapplethorpe. Entre os causos estão encontros Allen Ginsberg, Salvador Dalí e Jimi Hendrix.
Para o cientista político Renato Lessa, É isto um homem? se tornou uma obra clássica por não ser um relato testemunhal do ano e meio que Primo Levi passou em campos de concentração, a maior parte do tempo em Auschwitz. O autor italiano refletiu sobre a destruição do que há de humano em alguém naquelas condições e apontou para o fato de que cada época tem o seu fascismo. O mundo de hoje não deixa dúvidas.
Para a diretora teatral Bia Lessa, o momento caótico por que passa o mundo reacende a importância de O homem sem qualidades, do austríaco Robert Musil (1880-1942). No livro que ele escreveu por quase 20 anos e não concluiu, o matemático Ulrich busca, erraticamente, um sentido para a sua vida. “É um enfrentamento entre nós e nós, quase um espelho”, diz ela, que adaptou a obra para o teatro.
Para escrever um livro, o protagonista de Formas de voltar para casa, do chileno Alejandro Zambra, recorda a infância, vivida sob a ditadura de Augusto Pinochet. Além da beleza do romance, o escritor Miguel Del Castillo, curador da biblioteca de fotografia do IMS Paulista, ressalta que o título é sugestivo num momento em que não devemos sair de casa. Ele também lê um trecho.
Em A paixão segundo G.H., a protagonista passa por uma “desorganização”, como diz, após se deparar com um cenário inesperado no quarto da empregada. Sua necessidade de escrever vem daí. Desorganização é algo que aflige a todos hoje. Especialmente por isso, a escritora Veronica Stigger recomenda o romance de Clarice Lispector.
O jornalista e cronista Paulo Barreto, codinome João do Rio, publicou A alma encantadora das ruas em 1908. Para Luiz Antonio Simas, historiador e escritor que tem no Rio de Janeiro a sua mais forte matéria-prima, o livro é atual. Para quem está confinado, sem poder sair de casa, “pensar e ler sobre a rua se torna desafiador”, diz Simas. “Que cidade a gente quer?” No início do século XX, a disputa era entre a cidade que se queria francesa, moldada pela reforma do prefeito Pereira Passos, e a dos africanos e seus descendentes. Esta fascinava e amedrontava João do Rio.
Foi em março de 1920, cem anos antes deste podcast estrear, que Manuel Bandeira (1886-1968) se mudou para Santa Teresa, o bairro alto que paira sobre boa parte do Rio de Janeiro. Foi viver sua “solidão de tuberculoso”, já sem pais e irmã, mortos recentemente. A pesquisadora de literatura brasileira Elvia Bezerra conta que a tristeza dos primeiros momentos foi dando lugar a um humor pungente, como o que se mostra no poema “Comentário musical”, que ele publicou no livro Libertinagem.
Philippe Lançon é um sobrevivente do massacre do Charlie Hebdo. Em 7 de janeiro de 2015, homens entraram atirando na redação do jornal satírico francês. Foi uma reação à publicação de charges que seriam ofensivas ao profeta Maomé. Doze pessoas foram mortas. O jornalista e escritor sobreviveu com o maxilar destruído e ferimentos graves num braço. A reconstrução de seu corpo é um dos eixos de O retalho, que o também jornalista e escritor Paulo Roberto Pires, editor da revista serrote (do IMS), classifica como “longa meditação sobre a fatalidade”. “Nada está sob controle nunca” seria uma conclusão do livro, segundo Pires.
O jornalista Flávio Pinheiro, superintendente executivo do IMS, classifica Vida e destino como um “colosso literário”. Não só por suas mais de 900 páginas, mas pelo painel da Segunda Guerra Mundial que o russo Vasily Grossman (1905-1964) faz, combinando jornalismo e ficção potentes. É uma obra anti-stalinista e antifascista e, sobretudo, humanista, diz Pinheiro, que lê trechos marcantes.
Desde que foi lançado, em 2006, Um defeito de cor vem sendo mais e mais reconhecido como um romance fundamental. Em seu comentário, a poeta e tradutora Stephanie Borges ressalta a importância do livro de Ana Maria Gonçalves, narrado por uma mulher negra que circula por várias partes do Brasil escravista. Segundo Stephanie, a autora soube unir entretenimento e uma pesquisa muito rigorosa.
Rubens Figueiredo, que traduziu Guerra e paz para o português, explica neste episódio como Liev Tolstói estruturou sua obra mais importante. As características de uma epopeia da Antiguidade estão na narrativa da guerra, enquanto as do romance burguês estão na da paz. Na primeira, o homem não domina a sua vida, ficando à mercê dos processos históricos. Na segunda, ele tem seus pensamentos livres, mas enfrenta os obstáculos de um mundo contraditório.