A fendamel é uma revista online cultural de língua portuguesa. Este podcast é o braço sonoro para as leituras e entrevistas que vamos publicando
Música: Sad Romance Classical de scottyroth1 (youtube) Há uns 10 anos para cá, no dia seguinte ao meu aniversário, levanto-me da cama, tomo banho, lavo os dentes, visto-me, como e saio de casa. Apanho o autocarro das 9h que segue vazio. Grudado à janela, de olhos postos no asfalto, vou deslizando até ter o pescoço encostado ao banco. O motorista não olha para mim, o rapaz que vai atrás de mim não olha para mim, a mulher suada a meu lado não olha para mim. Os mesmos pensamentos de sempre, sem descanso nem misericórdia, desfazem a realidade que me rodeia. Oiço um estrondo, vejo os estilhaçar de vidros, sinto todos à minha volta a rodopiar impotentes. Deflagra um incêndio, o motorista foge a arder, e o asfalto continua a acelerar, a abrandar, a arrancar, a parar, a escurecer, a ensanguentar-se. Eu sei que nada disto está acontecer. Sei que só eu posso sentir emoções. Sei que os outros não passam de robots a querer passar por algo parecido comigo. Sei que o motorista nunca fugiria do autocarro, nem que estivesse a arder. A mulher ao meu lado, suada, com os sacos de compras aos pés, olhar incompreensível para alguém como eu; esta mulher que não me olha e que eu não olho, não fugiria se caíssemos num rio. Ficaria sentada, calma, e os seus pulmões encher-se-iam de água até que o último suspiro saísse da sua boca cansada. Sei que o autocarro nunca chegará ao seu destino e a mim resta apenas ir saindo nas paragens que não quero. Se o rapaz sentado atrás de mim fosse algo de humano galgaria em dois saltos até ao volante e impedia o motorista de nos matar. Mas ele também não me olha e eu não o oiço. Vou sozinho. O motorista vai sozinho. A mulher vai sozinha. O rapaz vai sozinho. Mas não vamos todos sozinhos. Não vamos, porque não há todos. Eu nunca serei parte de um todos, nem o será o motorista. Esse, cordialmente, ignora os passageiros que acenam ao autocarro e o asfalto já não abranda. Eu sei para onde vou, porque eu existo e tenho sentimentos. Por isso mesmo tenho pena do motorista, da mulher, do rapaz. O que eles sentem não existe, porque ninguém os olha, tal como ninguém me olha, nem ouve. Sei que o hoje não existe e o amanhã é uma construção abstracta de quem se pensou olhado. Sei que Outubro não é diferente de Janeiro e este autocarro não é diferente de mim, da minha carne. Se dois olhos entrassem, por aquela porta que o motorista não abre, chorariam e talvez o rapaz também chorasse. A mulher levanta-se e abraça o rapaz, abraça-me a mim e eu afasto-a entediado, abraça o motorista e sai na paragem que não quer, desaparecendo como o asfalto. O rapaz começa a falar comigo, a implorar que o olhe, que o oiça, mas os meus olhos fogem dos seus. Preparo-me para sair. O autocarro pára. Saio na paragem de outra pessoa que deve ter roubado a minha paragem. Empoleiro-me na ponte e espero que me salvem do suicídio. Depois internam-me num hospital para pessoas que não páram de olhar para os outros. Guilherme Dias
Escrito por Daniel Filipe Sonoplastia por MAGO aka Mário Oliveira O inicio deste verão Está uma noite linda. Festas por todo o lado. Vontades a toda a prova. - Para os mais conjunturais - É inicio do mês. Havendo poucas certezas, barulhos e outras miudezas. Não me sinto em conformidade. Até me posso interrogar, qual filosofo pós tecnologico, em doces perspectivas, amantes de mil intrigas, Fazer do verão um começo Mas não há ponta que me console. Não há riso que me traga vida. Pedra dura em vida mole, Da água salgada mais querida. E está um a noite linda Em poses de derreado. Festas de lingua em lingua. - Para os mais que são demais - É verão outra vez. Havendo tantas belezas, festinhas e delicadezas. Não me sinto em conformidade. Deixo até de me indignar, qual vidente não teológico, Aspirante conspirativo. Rompante e criativo. Fazer do verão um pretexto. Mas não há ponta que me console. Não há riso que me traga vida. Pedra dura em vida mole, Da água salgada mais querida.
Escrito por Almada Negreiros, declamado por Mário Viegas e sonoplastia por MAGO. Tu, que te dizes Homem! Tu, que te alfaiatas em modas e fazes cartazes dos fatos que vestes p'ra que se não vejam as nódoas de baixo! Tu, qu'inventaste as Ciências e as Filosofias, as Políticas, as Artes e as Leis, e outros quebra-cabeças de sala e outros dramas de grande espectáculo Tu, que aperfeiçoas sabiamente a arte de matar. Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperança e o Caminho Marítimo da índia e as duas Grandes Américas, e que levaste a chatice a estas Terras e que trouxeste de lá mais gente p'raqui e qu'inda por cima cantaste estes Feitos... Tu, qu'inventaste a chatice e o balão, e que farto de te chateares no chão te foste chatear no ar, e qu'inda foste inventar submarinos p'ra te chateares também por debaixo d'água, Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas e que nunca descobriste que eras bruto, e que nunca inventaste a maneira de o não seres Tu consegues ser cada vez mais besta e a este progresso chamas Civilização! Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos, vai inchando a tua ambição-toiro 'té que a barriga te rebente rã. Serei Vitória um dia -Hegemonia de Mim! e tu nem derrota, nem morto, nem nada. O Século-dos-Séculos virá um dia e a burguesia será escravatura se for capaz de sair de Cavalgadura! Hei-de, entretanto, gastar a garganta a insultar-te, ó besta! Hei-de morder-te a ponta do rabo e por-te as mãos no chão, no seu lugar! Ahi! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos! Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade! Ahi! Espelho-aleijão do Sentimento, macaco-intruja do Alma-realejo! Ahi! macrelle da Ignorância! Silenceur do Génio-Tempestade! Spleen da Indigestão! Ahi! meia-tigela, travão das Ascensões! Ahi! povo judeu dos Cristos mais que Cristo! Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno Ó ideal ricócó dos Mendes e Possidonios Ó cofre d'indigentes Cuja personalidade é a moral de todos! Ó geral da mediocridade! Ó claque ignóbil do Vulgar, protagonista do normal! Ó Catitismo das lindezas d'estalo! Ahi! lucro do fácil, cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos! Ai! dique-impecilho do Canal da Luz! Ó coito d'impotentes a corar ao sol no riacho da Estupidez! Ahi! Zero-barómetro da Convicção! bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais! Ahi! Plebeísmo Aristocratizado no preço do panamá! erudição de calça de xadrez! competência de relógio d'oiro e correntes com suores do Brasil, e berloques de cornos de búfalo! E eu vivo aqui desterrado e Job da Vida-gémea d'Eu ser feliz! E eu vivo aqui sepultado vivo na Verdade de nunca ser Eu! Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio, órfão da Virgem do meu sentir. E como queres que eu faça fortuna se Deus, por escárnio, me deu Inteligência, e não tenho sequer, irmãs bonitas nem uma mãe que se venda para mim? (Pesam quilos no Meu querer as salas de espera de Mim. Tu chegas sempre primeiro... Eu volto sempre amanhã... Agora vou esperar que morras. Mas tu és tantos que não morres... Vou deixar d'esp'rar que morras - Vou deixar d'esp'rar por mim!) Ah! que eu sinto, claramente, que nasci de uma praga de ciúmes! Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a alma dos Bórgias a penar! E tu, também, vieille-roche, castelo medieval fechado por dentro das tuas ruínas! Fiel epitáfio das crónicas aduladoras! E tu também ó sangue azul antigo que já nasceste co'a biografia feita! Ó pajem loiro das cortesias-avozinhas! Ó pergaminho amarelo-múmia das grandes galas brancas das paradas e das Vitórias dos torneios-lotarias com donzelas-glórias! Ó resto de cetros, fumo de cinzas! Ó lavas frias do Vulcão pirotécnico com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas! Ó estilhacos heráldicos de Vitrais despegados lentamente sobre o tanque do silêncio! Ó Cedro secular debruçado no muro da Quinta sobre a estrada a estorvar o caminho da Mala-posta! E vós também, ó Gentes de Pensamento, ó Personalidades, ó Homens! Artistas de todas as partes, cristãos sem pátria, Cristos vencidos por serem só Um! E vós, ó Génios da Expressão, e vós também, ó Génios sem Voz! ó além-infinito sem regressos, sem nostalgias, Espectadores gratuitos do Drama-Imenso de Vós-Mesmos! Profetas clandestinos do Naufrágio de Vossos Destinos! E vós também, teóricos-irmãos-gémeos do meu sentir internacional! Ó escravos da Independência! Vós que não tendes prémios por se ter passado a vez de os ganhardes, e famintos e covardes entreteis a fome em revoltas do Mau-Génio no boémia da bomba e da pólvora! E tu também, ó Beleza Canalha Co'a sensibilidade manchada de vinho! Ó lírio bravo da Floresta-Ardida à meia-porta da tua Miséria! Ó Fado da Má-Sina com ilustrações a giz e letra da Maldição! Ó fera vadia das vielas açaimada na Lei! Ó xale e lenço a resguardar a tísica! Ó franzinas do fanico co'a sífilis ao colo por essas esquinas! Ó nu d'aluguer na meia-luz dos cortinados corridos! Ó oratório da meretriz a mendigar gorjetas p'rá sua Senhora da Boa-Sorte! Ó gentes tatuadas do calão! carro vendado da Penitenciária! E tu também, ó Humilde, ó Simples! enjaulados na vossa ignorância! Ó pé descalço a calejar o cérebro! Ó músculos da saúde de ter fechada a casa de pensar! Ó alguidar de açorda fria na ceia-fadiga da dor-candeia! Ó esteiras duras pra dormir e fazer filhos! Ó carretas da Voz do Operário com gente de preto a pé e filarmónica atrás! Ó campas rasas, engrinaldadas, com chapões de ferro e balões de vidro! Ó bota rota de mendigo abandonada no pó do caminho! Ó metamorfose-selvagem das feras da cidade! Ó geração de bons ladrões crucificados na Estupidez! Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos! Ó pampilho das Lezírias inundadas de Cidade! ó trouxa d'aba larga da minha lavadeira, Ó rodopio azul da saia azul de Loures! E vós varinas que sabeis a sal as Naus da Fenícia ainda não voltaram?! E vós também, ó moças da Província que trazeis o verde dos campos no vermelho das faces pintadas! E tu também, ó mau gosto co'a saia de baixo a ver-se e a falta d'educação! Ó oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos) a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita! Ó tédio do domingo com botas novas e música n'Avenida! Ó santa Virgindade a garantir a falta de lindeza! Ó bilhete postal ilustrado com aparições de beijos ao lado! E vós ó gentes que tendes patrões, autómatos do dono a funcionar barato! Ó criadas novas chegadas de fora p'ra todo o serviço! Ó costureiras mirradas, emaranhadas na vossa dor! Ó reles caixeiros, pederastas do balcão, a quem o patrão exige modos lisonjeiros e maneiras agradáveis pròs fregueses! Ó Arsenal fadista de ganga azul e coco socialista! Ó saídas pôr-do-sol das Fábricas d'Agonia! E vós também, ó toda a gente, que todos tendes patrões! E vós também, nojentos da Política que explorais eleitos o Patriotismo! Macrots da Pátria que vos pariu ingénuos e vos amortalha infames! E vós também, pindéricos jornalistas que fazeis cócegas e outras coisas à opinião pública! E tu também roberto fardado: Futrica-te espantalho engalonado, apoia-te das patas de barro, Larga a espada de matar e põe o penacho no rabo! Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade! Espuma-te no chumbo da tua Valentia! Agoniza-te Rilhafoles armado! Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina, da ciencia da matança! Groom fardado da Negra, pária da Velha! Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera! Despe-te da farda, desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu que ficas desempregado! Acouraça-te de senso, vomita de vez o morticínio, enche o pote de raciocínio, aprende a ler corações, que há muito mais que fazer do que fazer revoluções! Ruína com tuas próprias peças-colossos as tuas próprias peças colossais, que de 42 a 1 é meio-caminho andado! Rebusca no seres selvagem no teu cofre do extermínio o teu calibre máximo! Põe de parte a guilhotina, dá férias ao garrote! Não dês língua aos teus canhões, nem ecos às pistolas, nem vozes às espingardas! – São coisas fora de moda! Põe-te a fazer uma bomba que seja uma bomba tamanha que tenha dez raios da Terra. Põe-lhe dentro a Europa inteira, os dois pólos e as Américas, a Palestina, a Grécia, o mapa e, por favor, Portugal! Acaba de vez com este planeta, faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim! (Há tanta coisa que fazer, Meu Deus! e esta gente distraída em guerras!) Eu creio na transmigração das almas por isto de Eu viver aqui em Portugal. Mas eu não me lembro o mal que fiz durante o Meu avatar de burguês. Oh! Se eu soubesse que o Inferno não era como os padres mo diziam: uma fornalha de nunca se morrer... mas sim um Jardim da Europa à beira-mar plantado... Eu teria tido certamente mais juízo, teria sido até o mártir São Sebastião! E inda há quem faça propaganda disto: a pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões! Se ao menos isto tudo se passasse numa Terra de mulheres bonitas! Mas as mulheres portuguesas são a minha impotência! E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo, meu desacreditado burguês apinocado da rua dos bacalhoeiros do meu ódio co'a Felicidade em casa a servir aos dias! Tu tens em teu favor a glória fácil igual à de outros tantos teus pedaços que andam desajuntados neste Mundo, desde a invenção do mau cheiro, a estorvar o asseio geral. Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio que Deus perdeu de vista o Adão de barro e com pena fez outro de bosta de boi por lhe faltar o barro e a inspiração! E enquanto este Adão dormia os ratos roeram-lhe os miolos,
...o que me consome no vagar dos dias assim aos solavancos devagarinho és tu que me ouves de entremeio pelas palavras sem sequer entenderes que o que se esconde agora aí por detrás do véu que nos cobre na imensidão do saber e do sentir é o silencio que nos tolhe e cansa a alma fragmentada de velocidades intempestuosas a tombar assim aos solavancos devagarinho na fúria dos dias onde finda a história que lemos nos livros de fel em resquícios de cetim resgatado nas montras de louvores passados golpes em fá sustenido e solfejos de maiores sonhos na memória promíscuas linhas em esboços de futuros entendimentos cala cala o louco grito de ti em mim devassado pelas escolhas e esperas intermináveis fecha fecha a porta sem trinco que te acolha no vulto do negro vazio o quarto o copo o mundo sentado naquele banco à beira-mar que tu e eu tu e eu corremos no sal das pegadas que deixámos para trás em certezas de fulgores despidos do nada nada antros de gloriosas loucuras ao pôr do sol ânimos de consortes a embalarem-nos os sonhos mas assim como quem diz preciso de ti e tu de mim e dos dias a correr sem saber que seria assim o que me consome no vagar dos dias assim aos solavancos devagarinho és tu. Autoria - Inês Guerreiro Instrumental - Cláudio Pinto
Olha. Ouve. Sente. Fecha os olhos. Já nem sabes quem és. Viste e ouviste demais. A dor que sentes não é minha nem tua. É de quem morreu, De quem sentiu um dia e deixou de sentir, Nos braços de alguém que nem conhecia. Voa, sonha, dorme. Pode ser a última noite. Mas esta noite nunca mais acaba! Não consegues escapar ao frio, Ele invade a tua mente. Foge! O teu coração parou de bater. Ri! Finge que és a mesma pessoa que se despediu dos seus. Finge! E sorri, Ainda que essa dor não cesse, Ainda que te perguntes: O que faço aqui? Quem sou com esta arma na mão? Atirador, coveiro, Criador de viúvas e órfãos? Criador?! Mãe… eu apenas queria ser poeta. Ser cientista de palavras. Sonhar por desejo e não por necessidade… Pesadelo! Sim, o fim da vida envolve-me, A sua música também. Sinfonia real, divina e demoníaca. E tu, estranho, quem te dará a morte, Essa Oferenda dos deuses, A clara manhã por que tanto esperas? Amo o sofrimento, ainda quero esperar A lua que ilumina o sufocante manto. A réstia de esperança. Espero viver moribundo, Carregando o sofrimento alheio no meu peito. E, agora, espera. Deixa aquela lágrima que guardaste dentro de ti Cair. Ergue-te! Sente o sangue a correr, uma última vez… Psiquedelicous