Um podcast que marca o ritmo da vida, através da liturgia dominical.

Há realidades da vida religiosa e da vida crente que facilmente se deixam olhar de modo idealizado, perfeccionista e até idílico, como se vivessem num plano sem rugosidades nem chão. A família é um desses lugares onde a tentação do ideal é forte: imagina-se uma “família cristã” como molde rígido ao qual todas as famílias e todas as histórias deveriam caber. Não é esse o caminho. Quando se contempla a família de Nazaré, não se recebe um modelo estreito para reproduzir, mas uma forma de viver: uma familiaridade que pode existir na família nuclear, na família alargada, nas famílias recompostas, e também em comunidades como a “família hospitaleira”, onde homens e mulheres se encontram e, por diversas circunstâncias, constroem uma casa comum.O que se entende, então, por “família” e por “familiaridade” em sentido cristão? Antes de mais, a consciência de que todos derivam do mesmo Pai, Deus, e que, por serem filhos, se devem tratar como irmãos. As primeiras comunidades cristãs diziam-no com naturalidade; hoje, por vezes, reserva-se a palavra “irmão” para contextos religiosos, esquecendo que o estilo cristão é, todo ele, um modo de viver como família de Deus. É nesse horizonte que ganha relevo o apelo paulino: suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se alguém tiver razão de queixa contra outro; como o Senhor perdoou, assim também vós. A consequência concreta de vestir o “traje” da misericórdia é um perdão real, praticado, que não fica em teoria. E, acima de tudo, como toque final, revesti-vos de caridade, vínculo da perfeição: a caridade é o elo que une de forma plena e madura.Há, porém, uma tensão que se sente no quotidiano: também se escolhe roupa para “estar na moda”, para não destoar, para se sentir integrado. Revestir-se de misericórdia e caridade pode não ser a “moda” de muitos ambientes; pode até parecer um fato antigo, como algo ultrapassado. Por isso é importante a comunidade cristã, onde, pelo menos ao domingo, se volta a ver que esse traje não está fora de tempo: há outros homens e mulheres que o vestem, e nele encontram alegria e vida plena. Ainda assim, isto exige aprendizagem; pede tempo, pede que estas atitudes se entranhem, que se tornem “carne” em quem crê.Aqui se percebe a importância insubstituível da família biológica. É nela, com o pai e a mãe, com irmãos, tios, avós, primos, que surgem as primeiras relações significativas; é aí que, idealmente, se aprende a experiência fundamental de ser amado de forma incondicional. Sem essa base, educar na fé torna-se mais difícil: se, lá atrás, não houve a experiência de amor recebido e oferecido sem cálculo, a relação com Deus pode ficar mais árdua e inquieta. Quando essa experiência existe, a receção de Deus tende a fazer-se com maior serenidade e confiança. E, a partir daí, a família cristã e a comunidade tornam-se lugar onde se exercitam, de modo continuado, laços de misericórdia, humildade, mansidão, paciência e caridade. “Suportar” uns aos outros, no sentido pleno da palavra, aprende-se também em situações concretas: quando alguém adoece, quando a fragilidade cresce, quando a mente enfraquece e o ritmo abranda, nasce o respeito e a delicadeza que permitem a paz, sustentadas pelo perdão.A Escritura, aliás, ajuda a purificar equívocos: não é legítimo invocar a religião para privilegiar homens ou mulheres. Há uma beleza particular naquela afirmação: Deus quis honrar os pais nos filhos e firmou sobre eles a autoridade, incluindo a autoridade da mãe. A complementaridade, o lugar próprio e a imprescindibilidade de cada um não se opõem; sustentam-se. Assim se aprende a viver em família com alegria, presença inteira e confiança.

Festa da Sagrada Família - Segunda Leitura

Festa da Sagrada Família - Primeira Leitura

No Evangelho que acabámos de escutar, o prólogo do Evangelho segundo São João, encontramos uma afirmação verdadeiramente bombástica: *“O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.”* Este é o centro, o essencial daquilo que hoje celebramos no dia de Natal. Não se trata de uma frase acessória, mas do coração da nossa fé cristã.Esta verdade é tão importante que, cada vez que recitamos o Credo na Eucaristia, quando dizemos *“e encarnou”*, somos convidados a fazer um gesto especial de reverência. No dia de Natal, aqueles que puderem ajoelham-se nesse momento, para mostrar com o próprio corpo o quanto esta verdade é fundamental para nós: Deus fez-Se homem.Aqui começa a revelar-se uma tensão que muitas vezes marca a celebração do Natal. Por um lado, celebramos uma realidade profunda, central e decisiva para a vida de todos nós: Deus fez-Se carne e habitou entre nós. Por outro lado, a forma como o Natal é vivido nas famílias, nas cidades e nas vilas pode facilmente parecer uma festa infantil, ou até infantilizante. Esta tensão mostra-nos como a religião pode, por vezes, ser mal vivida ou mal compreendida, levando a uma experiência que não assume plenamente aquilo que somos enquanto homens e mulheres adultos, capazes de profundidade, de pensamento e de responsabilidade.Contudo, quando afirmamos que o Verbo Se fez carne e habitou entre nós, estamos a dizer algo imensamente profundo e exigente. Deus podia ter vindo ao mundo apenas como Deus: apresentando-Se, falando, realizando milagres. Mas não foi assim que escolheu vir. Deus veio ao mundo assumindo a nossa condição humana. Não está apenas diante de nós; está em nós. Assumiu aquilo que somos, a nossa fragilidade, os nossos limites, a nossa história.Ao assumir a condição humana, Deus passa a falar connosco a partir da nossa própria experiência. O Verbo eterno diz Deus através das nossas emoções, dos nossos sentimentos, da nossa forma humana de pensar e de compreender o mundo. Por isso, o dia de Natal é, de certa forma, o dia da sabedoria: o dia em que, a partir da nossa própria vida concreta, temos legitimidade para fazer experiência de Deus, para pensar quem Ele é e reconhecer a Sua presença no nosso quotidiano.Esta experiência não tem nada de infantil. Pelo contrário, humaniza-nos profundamente. Quando vivemos atentos à nossa vida, às nossas ações, aos nossos sentimentos e emoções, começamos a pressentir a presença de Deus. E, sem nos darmos conta, percebemos que aquilo que desejamos no mais fundo de nós — aquilo que queremos, pensamos e procuramos — é sempre uma vida plena, uma plenitude que nos transcende. Todos nós desejamos “ser como deuses”, isto é, desejamos plenitude. Podemos procurar esse desejo pela transgressão ou pela obediência.Em Jesus Cristo, Deus fala-nos em linguagem humana e mostra-nos que fomos criados à Sua imagem e semelhança. No Natal, celebramos precisamente isto: um Deus que se faz próximo, que entra na nossa história, para que, na nossa humanidade, possamos descobrir o caminho da verdadeira plenitude.

Neste quarto domingo do Advento, a liturgia conduz-nos ao mistério da concepção de Jesus no seio de Maria e, com ele, à pedagogia da história da salvação: Deus vai educando o seu povo para que reconheça a sua presença e o seu modo de salvar. A primeira leitura, do livro de Isaías, situa-se num tempo politicamente difícil. Para sustentar o rei Acaz e assegurar o seu povo, Deus convida-o a pedir um sinal; Acaz recusa, invocando uma espécie de prudência religiosa. À primeira vista, a resposta parece correcta; porém, pode esconder uma atitude de fachada: dizer o que soa bem, sem se deixar verdadeiramente interpelar por Deus. É também aqui que a Palavra nos toca, porque a tentação de “respostas certas” sem verdade atravessa a nossa vida: na relação com os outros, connosco mesmos e com Deus. Deus não pede fórmulas impecáveis; pede sinceridade, porque a verdade é sempre luminosa, mesmo quando custa.O Evangelho segundo Mateus oferece-nos uma anunciação marcada pela interioridade. Maria aparece grávida antes de viver com José. Ele tinha o direito de a expor publicamente e, desse modo, destruir-lhe a vida; contudo, porque a amava e era justo, decide repudiá-la em segredo. Em vez de vingança, escolhe proteger; em vez de humilhar, preserva. E, enquanto pensa nisto, não o vemos a discutir nem a procurar culpados; vemo-lo a meditar e a dar tempo ao acontecimento. Durante a noite, em sonho, recebe a luz de Deus: o que em Maria foi gerado vem do Espírito Santo, e José não deve temer acolhê-la. O sonho, na linguagem bíblica, indica precisamente este lugar interior onde a vida é trabalhada por Deus e onde o coração aprende a escutar.O nome é decisivo: Jesus significa “Deus salva”. José confia e compromete-se: acolhe Maria e aceita ser pai adoptivo de Jesus, dando corpo à obediência que nasce da fé. Mateus liga esta história à promessa antiga e proclama o seu sentido último: Emanuel, “Deus connosco”. O essencial permanece: Deus não salva à distância; aproxima-se, entra na nossa história e permanece connosco. Nesta última semana do Advento, importa aprender com José a criar espaço interior, apresentando ao Senhor as dúvidas e inquietações sem máscaras. Confiar não é um enfeite espiritual nem um optimismo vago: é abrir-se à palavra de Deus e comprometer-se com o caminho que ela traça, para que o Natal aconteça em nós como presença real de Deus connosco.

IV Domingo do Advento - Segunda Leitura

IV Domingo do Advento - Primeira Leitura

Na caminhada do Advento, à medida que nos aproximamos do Natal, a Igreja convida-nos a viver a espera com alegria. O terceiro domingo é, por isso, chamado Domingo da Alegria: a cor litúrgica poderia ser roxa, mas surge o rosa, como um roxo aligeirado, para indicar que já começamos a saborear a vinda do Senhor. Seria fácil fazer depender esta alegria de circunstâncias exteriores — por exemplo, de um fim de semana de sol depois de dias de chuva —, mas esse seria o mesmo equívoco que atravessa o Evangelho de hoje. João Baptista, preso e afastado, ouve falar das obras de Jesus e manda perguntar: «És Tu Aquele que há de vir ou devemos esperar outro?». Na sua expectativa, o Messias viria como juiz severo, a castigar o pecado e a fazer justiça pela via do castigo; e, no entanto, os sinais que lhe chegam revelam um Messias misericordioso. Daí a perplexidade: não é Jesus que falha, é a imagem do Messias que precisa de ser purificada.A primeira leitura, tirada de Isaías, aprofunda esta conversão através de uma aparente contradição: «Alegre-se o deserto e o descampado… floresça a terra árida… exultem e soltem brados de alegria». Como pode alegrar-se o deserto, lugar de hostilidade e de prova? Precisamente porque a alegria cristã não nasce do conforto, nem de a vida “correr bem”; nasce da confiança no Senhor, colocado no centro. Há alegrias passageiras e alegrias duradouras, conforme aquilo que, de facto, amamos. Santo Agostinho exprime-o de forma incisiva: a alegria é possuir o bem amado. Se o bem amado for apenas o êxito, a saúde ou a tranquilidade, a alegria torna-se frágil; se o bem amado for Deus, a alegria pode atravessar o luto, a perda e a adversidade. E aqui importa distinguir: euforia é exaltação momentânea; alegria é a certeza de comunhão com o Senhor, que reconfigura por dentro a maneira de viver.É por isso que Jesus não responde a João com uma definição abstracta, mas com sinais: «os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a boa nova é anunciada aos pobres». João conhecia estes sinais e reconhece, com humildade, que precisa de deixar cair a imagem que construíra na sua cabeça para acolher o Messias que Deus revela; e muitos dos seus discípulos tornar-se-ão discípulos de Jesus. O Advento coloca-nos, então, um desafio muito concreto: passamos por este tempo como quem apenas percorre um calendário, ou deixamos que ele nos converta por dentro — nos desejos, nas expectativas, naquilo que esperamos da vinda do Senhor?Esta história não terminou há dois mil anos. O anúncio do Messias continua quando, em nome de Cristo, abrimos os olhos a quem não vê, devolvemos esperança a quem está abatido e restituímos dignidade a quem foi diminuído. Também por isso vale a pena pensar nos “presentes” que oferecemos e recebemos. Um presente não é apenas um objecto: é uma oferta que nos torna presentes junto do outro; mesmo um postal, um telefonema ou uma mensagem podem transportar atenção, afecto e esperança. O Natal é isto: a vinda do Messias até nós e, ao mesmo tempo, o encargo de, como cristãos, sermos “outro Cristo”, levando o Senhor aos ambientes onde vivemos. Mas isso não é instantâneo; pede tempo e pede paciência. Santiago recorda-nos a paciência do agricultor: semeia, cuida, confia e espera. Esperar não é ficar parado nem triste; é esperar activamente, com confiança, deixando que a graça do Senhor faça florescer, mesmo em terreno árido, sinais de vida. Por isso, mesmo quando a vida parece deserto e descampado, podemos alegrar-nos: já vimos sinais de que o Senhor vem, e vem para salvar.

III Domingo do Advento - Segunda Leitura

III Domingo do Advento - Primeira Leitura

Para além de estarmos no tempo do Advento, em que a Igreja nos convida a preparar a vinda do Senhor, celebramos hoje também a solenidade da Imaculada Conceição. As duas coisas ajudam-nos a perguntar: por que é que Deus enviou Jesus Cristo ao mundo, assumindo a nossa condição humana? Fê-lo para nos salvar, para nos tornar capazes de uma vida plena, daquela felicidade que, aos olhos de Deus, é promessa universal para todos.Quando falamos de felicidade e de alegria não ignoramos que a nossa vida é muitas vezes atravessada por inquietações, erros, desânimo, más escolhas. Conhecemos bem a nossa fragilidade, os limites e o mau uso da liberdade. Por isso, como cristãos, dizemos muitas vezes que “nos esforçamos para ser santos”. Mas talvez o essencial não seja “esforçarmo-nos para ser bons por nossas forças”, e sim abrir-nos para receber a graça de Deus, que é ela própria que nos transforma, nos torna bons e fiéis.A primeira leitura fala-nos, com imagens fortes, do pecado original como incapacidade de viver totalmente disponíveis para Deus. A serpente, figura do mal, é condenada a rastejar e a comer o pó da terra, e é-nos dada aquela promessa: “Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher; ela esmagar-te-á a cabeça e tu a atingirás no calcanhar”. O mal será derrotado, mas ficamos com o calcanhar ferido. E sabemos como custa caminhar com uma ferida no pé: é mais difícil andar na noite, nas sombras, suportar as consequências do pecado.Contudo, este ferimento não é a última palavra. Deus “do alto dos céus” abençoou-nos “com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo”. À nossa fragilidade, Deus contrapõe a superabundância da graça. É por isso que, no Evangelho, o anjo saúda Maria como “cheia de graça”: toda a sua existência foi transformada pela ação de Deus. Em atenção aos méritos futuros de Cristo, Maria foi preservada das consequências do pecado original e pôde caminhar para Deus com liberdade e paz.Para percebermos melhor, podemos recorrer a duas imagens imperfeitas, mas úteis. A primeira é a de uma mãe que ama profundamente o seu filho e, conhecendo o caminho por onde ele vai passar, cheio de pedras e obstáculos, os vai retirando para que ele possa caminhar sem tropeçar. De certo modo, foi isto que Deus fez com Maria: retirou do seu caminho tudo o que a pudesse afastar do bem. A segunda imagem é a de uma vacina. Quando somos vacinados, não desaparece a possibilidade de adoecer, mas ganhamos defesas para enfrentar a doença e superar as suas consequências mais graves. Assim também a graça de Deus na nossa vida: não nos tira a liberdade, mas dá-nos força interior para resistir ao mal e para recomeçar.Maria e Jesus não deixaram de ser livres. Poderiam ter escolhido o mal, mas, na verdade, permaneceram sempre fiéis ao bem. E aqui se joga também a nossa resposta à graça. Podemos decidir apenas apoiados nas nossas capacidades, fazendo da vida um sacrifício absurdo em que pensamos poder tudo sozinhos, ou podemos acolher o dom da encarnação: o Verbo fez-se carne para que, pela graça, participemos da própria vida de Deus. E, sendo um povo mariano, sabemos que em Maria já se realizou aquilo a que todos somos chamados, se nos deixarmos conduzir pela graça.O dogma da Imaculada Conceição pode ser visto como uma música que embala e uma força que nos empurra a viver na graça de Deus. Quando fazemos o caminho ao ritmo da música, caminhamos mais animados, mais ritmados e até mais unidos. Assim também a graça: aponta-nos o caminho, dá-nos a força para o percorrer e sustenta a nossa fidelidade nas noites escuras e nas nuvens pesadas da vida.Hoje somos convidados a olhar para Maria como ícone da meta que Deus sonha para nós. Ele deu-nos inteligência, liberdade e desejo de felicidade; pela graça, torna-nos capazes de escolher o bem, de perseverar nas decisões justas e de saborear, já neste mundo, a alegria e a paz de quem vive em comunhão com Jesus.

João Batista é uma personagem de fronteira: é o último profeta do Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, já uma figura do Novo. No Evangelho de hoje aparece como grande destaque, batizando e convidando à conversão, isto é, a confessar os pecados e a realizar obras de arrependimento. Converter-se significa deixar para trás formas antigas e desumanas de viver e começar a viver de modo mais digno, mais de acordo com a promessa de salvação de Deus. Por isso, João denuncia com firmeza os fariseus e os saduceus, que cumpriam ritos exteriores, mas não se deixavam tocar no coração, nem se preocupavam com uma verdadeira mudança de vida.Se olharmos para eles e para aquilo que fazemos neste tempo de Advento, temos também de nos interrogar. Todas as práticas com que preparamos a vinda do Senhor estão, de facto, a provocar mudança na nossa vida? Estão a abrir em nós um lugar onde Deus possa acontecer? Ou corremos o risco de viver mais um Advento que passa por nós sem nos transformar, sem nos modificar, sem nos tornar mais disponíveis para o Evangelho?Para que o Advento seja, de verdade, tempo de preparação, São Paulo, escrevendo aos Romanos, oferece-nos uma indicação decisiva: tudo o que foi escrito no passado foi escrito para nossa instrução. A Palavra de Deus não é apenas informação religiosa a acumular; é instrução no sentido mais profundo, é uma força que nos molda por dentro, que nos forma segundo o desejo de Deus. Por isso o apóstolo acrescenta que, pela paciência e consolação que vêm das Escrituras, tenhamos esperança. A escuta da Palavra gera paciência e consolação, e é assim que se acende em nós a verdadeira esperança.Paciência significa aceitar que nem tudo está bem, reconhecer que em nós há coisas que precisam de mudar, sem cair no desespero nem numa agitação frenética. Deus dá, a seu tempo, a graça necessária para a transformação de que precisamos. Consolação significa experimentar já, ainda que de forma imperfeita, algo daquilo que esperamos. Quando aguardamos algo bom, de algum modo começamos a saborear por antecipação o que está para chegar. Assim também no Advento: esperamos a vinda do Senhor com paciência, mas também com consolação, sentindo e desejando em nós essa presença que se aproxima.O profeta Isaías ajuda-nos a reconhecer quem é este Senhor que vem. Fala de um rebento que brota de uma raiz humilde, sobre o qual repousa o Espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de inteligência, de conselho e de fortaleza, de ciência e de temor de Deus. Não julgará pelas aparências, nem decidirá pelo que ouviu dizer, mas julgará os pequenos com justiça e defenderá os humildes do povo. Com o “chicote da sua palavra” atingirá o violento e com o “sopro dos seus lábios” exterminará o ímpio.Estas imagens não falam de um Deus que vem para agredir ou destruir, mas de um Senhor que traz uma paz exigente. O “chicote da palavra” não é um instrumento que fere; é uma Palavra que revela o que está mal e pede correção. E o “sopro dos lábios” não é um vento que arrasa tudo, mas a força subtil do Espírito que varre de nós o que é impuro, aquilo que impede que o Natal aconteça com a intensidade que Deus deseja.Deus vem ao nosso encontro na história concreta da nossa vida. Ele acontece quando nos deixamos purificar pela sua Palavra e pelo seu Espírito. Se, neste Advento, aceitarmos esse trabalho interior de conversão, deixando que a Palavra nos corrija e o Espírito sopre sobre aquilo que em nós é velho, duro ou egoísta, então este não será apenas mais um tempo que passa: será um tempo em que Deus passa por nós e nos renova na fé, na esperança e na caridade.

Estamos a iniciar hoje o tempo do Advento, tempo que, liturgicamente, prepara o Natal. A celebração do Natal pode soar a uma notícia já atrasada, porque, se andarmos pelas ruas – sobretudo à noite – vemos que já está tudo iluminado; quando vamos às lojas, deparamo-nos com as decorações de Natal. Socialmente, o tempo de preparação começa muito mais cedo.Porquê? Porque aí vigora outra lógica – legítima e válida – a lógica do comércio e do consumo, que faz antecipar tudo. E nós vivemos neste mundo, mas com o coração e com os olhos postos em Deus. Este é o grande desafio que o Advento coloca a cada um de nós.No Evangelho, o Senhor convida-nos a estar vigilantes e recorda os dias de Noé: casavam, davam-se em casamento, comiam, bebiam, viviam a sua vida normal, até que veio o dilúvio… e eles não deram por nada. O que é que o Evangelho nos quer dizer?Aquilo que fazemos – o nosso trabalho, a vida familiar, os amigos, as diversões – faz parte da existência e não tem mal nenhum; é bom que assim seja. O que é mau é vivermos tudo isso como distração, sem termos o coração e os olhos postos no Senhor. As ocupações do dia a dia, os filmes que vemos, aquilo que apreciamos, não têm nada de mal; o mal está em nos deixarmos distrair do essencial, em perdermos o desejo de encontrar a Deus.Aqui está o ponto: desejar encontrar Deus em cada circunstância e lugar. E, para isso, precisamos de incorporar em nós esta profecia de Isaías: “Vinde, subamos ao monte do Senhor; Ele nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas.”Este texto não é apenas memória do passado; diz o que, para mim, é essencial e desejável como o melhor que pode acontecer: “Ele nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas. De Sião há-de vir a Lei e de Jerusalém a palavra do Senhor. Converterão as espadas em relhas de arado e as lanças em foices. Não levantará a espada nação contra nação, nem mais se hão-de preparar para a guerra.”Isto mostra a forma como quero estar no mundo: alcançar as coisas não pela violência, não pela guerra, mas pelo compromisso, pelo trabalho, por aceitar aquilo que a terra e o esforço podem dar e viver dignamente. Não levantar a espada nem preparar a guerra, mas ser pacífico, viver de forma harmoniosa, inteira, no nosso convívio humano.Aqui está uma ideia que nos pode ajudar a preparar o Advento: ter prazer em estar com os outros, em viver em ambientes de paz, harmonia e concórdia. Se nos deixarmos conduzir por este desejo de paz e de prazer bom em estar com os outros, havemos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que esses ambientes aconteçam.São Paulo, na segunda leitura, concretiza ainda mais: “A noite vai adiantada e o dia está próximo. Deixemos as obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz.” Quais são as obras das trevas? Orgias e bebedeiras, devassidões e libertinagens, discórdias e ciúmes. Isto podemos fazer e sentir; o problema está em saber se queremos ficar ali ou sair dali.Será que gasto tempo com ciúmes, discórdias, devassidões, libertinagens? Ou procuro viver de tal maneira que aquilo que sou e vivo possa ser mostrado diante da luz? Aquilo que se pode mostrar à luz é o que me significa, organiza e faz de mim um homem ou uma mulher mais autêntico, mais pleno.Por isso, neste tempo de Advento – tempo curto, o Natal chega depressa, mas em que a noite vem mais cedo e temos mais ocasião de recolhimento – talvez fosse bom olharmos para nós mesmos e perguntarmo-nos o que é que realmente desejamos.Por exemplo, podemos pensar: “O que é que eu quero que Jesus me dê?” Está a chegar o tempo dos presentes. Então vamos pedir: eu quero que Jesus me dê uma vida harmoniosa, uma vida serena e uma vida alegre.Uma vida harmoniosa, serena e alegre pode parecer uma coisa simples, mas hoje é difícil de conseguir. No entanto, quando a alcançamos, já não queremos outra coisa, porque, na serenidade, na harmonia e na alegria, fazemos uma experiência de encontro com Deus.

I Domingo do Advento - Segunda Leitura

I Domingo do Advento - Primeira Leitura

O reinado de Cristo convida-nos a desejar um outro estilo de vida. Cristo é a imagem do Deus invisível; quando olhamos para Ele, vemos o rosto do Pai e percebemos como se cumpre o antigo anseio por um rei capaz de oferecer verdade e vida em plenitude, ensinando-nos a viver de modo plenamente humano e conforme os desígnios de Deus. É precisamente por isso que a forma como Jesus Se apresenta como Rei pode desconcertar-nos: não é um rei forte pela força das armas, nem o que põe o mundo “na ordem” pelo poder, mas Aquele que revela uma autoridade totalmente diferente.Em vez de um trono alto, Jesus tem uma cruz. É a partir dela que reina, assumindo a nossa miséria, a nossa fragilidade, a nossa contingência, o nosso pecado e as nossas limitações. Como todo o rei, tem uma coroa, mas não de ouro nem de pedras preciosas: é uma coroa de espinhos, sinal de que Ele entrou nas nossas dores e conheceu por dentro o sofrimento que atravessa a vida de cada pessoa. E o seu ceptro não é uma vara de autoridade imposta, mas o seu próprio corpo entregue na cruz. Assim, Cristo reconfigura a nossa compreensão de poder e de autoridade e ensina-nos que o verdadeiro reinado nasce do amor que se dá.Participamos neste reinado quando somos capazes de reconhecer, aceitar e valorizar a verdade da nossa vida, com o que ela tem de alegre e festivo, mas também de doloroso e sofredor. Jesus não quer que escondamos as nossas fragilidades nem que vivamos na ilusão sobre quem somos. Muitas vezes, o nosso sofrimento nasce da distância entre aquilo que somos e aquilo que gostaríamos de ser. Na sua coroa de espinhos, o Senhor assumiu a nossa dor; por isso, convida-nos a vivê-la unidos a Ele, de forma verdadeira, intensa e autêntica, sem máscaras nem fugas.Esta lógica tem consequências para a vida da Igreja. O corpo de Cristo entregue na cruz faz de nós corpo eclesial chamado a abraçar as cruzes uns dos outros e a ajudar-nos mutuamente a carregá-las. A cruz torna-se lugar de glorificação de Deus e, por isso, lugar de realização humana por excelência. Aceitar o reinado de Cristo é aceitar que a salvação e a vida em Deus se acolhem pelo amor, se vivem pela entrega e pelo serviço, e conduzem à participação no próprio destino de Deus.O Evangelho dos dois malfeitores torna isto visível. Um deles permanece na lógica do poder e da exigência: “Não és Tu o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também.” O outro reconhece a própria culpa, proclama a inocência de Jesus e faz uma oração simples e luminosa: “Jesus, lembra-Te de mim quando vieres com a tua realeza.” Apesar de uma vida marcada pelo pecado, abre-se ao amor de Deus. E Jesus responde imediatamente com misericórdia: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso.”Este “hoje” interroga-nos. Estarei eu, hoje, preparado para acolher o amor de Deus? Desejo, hoje, viver unido a Cristo, assumindo as minhas fragilidades e deixando-me transformar pela sua graça? O paraíso não é apenas uma realidade futura para depois da morte; é todo o lugar onde o reinado de Deus já começa a implantar-se e a manifestar-se. Por isso, neste último domingo do tempo comum, ao celebrarmos Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, peçamos que a Palavra de Deus e as circunstâncias concretas da nossa vida despertem em nós este desejo de viver segundo a lógica do seu reinado: entrar pelo amor, permanecer na entrega e caminhar com a certeza de que Ele nos quer, desde já, com Ele no paraíso.

Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo - Evangelho

Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo - Segunda Leitura

Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo - Primeira Leitura

Ao aproximar-nos do final do ano litúrgico, a Palavra de Deus oferece-nos textos de tonalidade apocalíptica que, à primeira leitura, podem assustar-nos. Parece que tudo piora: guerras, perseguições, catástrofes. Mas, se escutamos com atenção, percebemos a mensagem contrária: apesar de todas as tribulações, Deus triunfará. A primeira leitura fala-nos desse “sol de justiça, trazendo nos seus raios a salvação”; o Evangelho confirma que, no meio do que treme e desaba, o Senhor permanece fiel. Para aqueles que se deixam iluminar e aquecer por Jesus, há salvação, há futuro, há vida eterna.É aqui que aparece a palavra “esperança”, que tantas vezes usamos sem perceber bem o que significa. A esperança na vida eterna pode tornar-se confusa se a reduzirmos a uma ideia. Posso formar na minha cabeça uma imagem da vida eterna, a partir de histórias que ouvi ou li, e depois limitar-me a esperar que isso aconteça. Mas, muitas vezes, o que chamamos esperança mistura-se com um sentimento muito parecido: o medo. Também o medo nasce de um futuro imaginado; só que, em vez de desejar que aconteça, tremo com a possibilidade de que venha a acontecer. A diferença entre esperança e medo não está no mecanismo interior, mas no conteúdo daquilo que projeto.A segunda leitura, da carta de São Paulo aos Tessalonicenses, mostra um modo errado de viver a esperança. Alguns cristãos, convencidos de que a vinda do Senhor era iminente, concluíram que já não valia a pena trabalhar nem assumir responsabilidades. “Se o fim está próximo, para quê cansar-me?”, pensavam. É a caricatura de uma esperança desligada da vida concreta: uma espiritualidade que olha para o céu e esquece a terra, que fala de eternidade, mas foge das tarefas de cada dia. Paulo reage com firmeza: quem não quer trabalhar, também não coma. A verdadeira esperança não desobriga da responsabilidade; torna-nos mais atentos e fiéis no pouco de cada dia.Talvez ajude distinguir entre esperança e desejo. A esperança pode ficar só na cabeça, como ideia que me agrada. O desejo nasce da vida: das experiências, dos encontros, das feridas e alegrias onde vou reconhecendo a passagem de Deus. Eu posso simplesmente esperar que o autocarro chegue; nada depende de mim, limito-me a aguardar. Mas, se desejo encontrar alguém que vem nesse autocarro, a minha espera muda: fico inquieto, atento, desinstalado. O desejo mobiliza o corpo, o tempo e as decisões.Também na fé não basta “esperar” a vida eterna como quem faz contas a um prémio futuro. Somos convidados a desejar a vida eterna, isto é, a deixar que ela se torne força viva no presente. Quando a desejo não apenas porque me falaram dela, mas porque, na luz da Palavra, reconheço que é boa, começo a viver de modo diferente. Procuro que essa vida de Deus cresça em mim e nos outros. A esperança deixa então de ser projeção futura e torna-se confiança ativa, que inspira escolhas concretas.Assim descobrimos algo decisivo: a vida eterna já começou. Não nasce no momento da morte; começa agora, cada vez que acolhemos o amor de Deus e o deixamos transformar o nosso modo de pensar, sentir e agir. Aqui, no tempo frágil, a vida eterna manifesta-se em “centelhas de eternidade”: momentos de graça e alegria em que nos sentimos habitados por um amor maior do que nós. São pequenos sinais de que o “sol de justiça” já se ergueu sobre nós e nos envolve com os seus raios de salvação.Celebramos hoje o Dia Mundial dos Pobres, e a liturgia propõe textos que, à primeira vista, podem parecer assustadores. Deus não nos quer paralisados pelo medo nem distraídos numa esperança vaga. Coloca diante de nós os pobres, os últimos, os que sofrem, para que o desejo de vida eterna se traduza em gestos de partilha, de justiça e de cuidado. Não caminhamos movidos por uma esperança adormecida, mas por um desejo vivo de vida eterna que Deus acende no nosso coração. Esse desejo faz-nos levantar, aproximar, servir e, assim, começar já aqui a viver aquilo que um dia se há de cumprir em plenitude.

XXXIII Domingo do Tempo Comum - Evangelho

XXXIII Domingo do Tempo Comum - Segunda Leitura

XXXIII Domingo do Tempo Comum - Primeira Leitura

Ao celebrarmos hoje a dedicação da Basílica de Latrão, não estamos apenas a recordar um monumento magnífico em Roma. Celebramos sobretudo a Igreja como casa onde o Sucessor de Pedro preside na caridade a todas as comunidades cristãs. A festa convida-nos a perguntar o que significa ser Igreja, viver da sua vida, das suas águas, da graça que dela brota.A primeira leitura apresenta-nos a imagem de uma torrente que sai do templo e que, onde chega, faz nascer vida. Onde esta água passa, tudo ganha frescura, tudo se cura, tudo vive. Esta água representa a graça de Deus, recebida no Batismo. A primeira questão é simples: esta água dá vida em nós? Vivemos a partir da graça recebida? O nosso Batismo faz nascer esperança, alegria, paciência, reconciliação? Ou fica tudo fechado dentro do templo e não transborda para a vida real?Porque o texto é claro: a água não fica dentro das paredes. Corre até ao mar, até aos lugares mais estéreis, para que aí também surja vida. Assim também nós: fomos batizados na Igreja, mas vivemos no mundo. Família, trabalho, amizades, responsabilidades. É aí que a água viva deve correr: não para fazermos mais barulho religioso, mas para darmos frutos. São Paulo lembra-nos que os frutos do Espírito são alegria, sabedoria, conselho, paz, justiça. O mundo tem direito a ver estes frutos. E nós precisamos deles para viver com mais verdade e serenidade.A segunda leitura diz: “Vós sois edifício de Deus”. A Igreja não é apenas um espaço, é uma comunidade de pedras vivas. Cada um de nós é parte deste templo. Não o construímos segundo o nosso projeto individual, mas alicerçados em Cristo. O Espírito habita em nós e faz de nós casa de Deus. A vida cristã não se reduz ao que fazemos no templo, mas ao modo como vivemos como corpo de Cristo no quotidiano.O Evangelho mostra Jesus a expulsar os vendedores do templo. Não o faz por violência gratuita, mas para lembrar a finalidade verdadeira do lugar santo: ali encontra-se a presença de Deus que dá vida, não uma religião de aparência ou comércio espiritual. É legítimo perguntarmo-nos: quando venho à Eucaristia, venho para me alimentar da água viva que dá sentido à vida? Ou venho simplesmente “cumprir um preceito”, para aliviar a consciência?Se a missa for só um rito que faço sem ligação ao que vivo, então é pouco. Mas se a Eucaristia for o ponto de partidapara um modo de viver mais humano, mais reconciliado, mais atento, então participar nela vale tudo. Porque aqui aprendemos a gramática do Reino: acolher, perdoar, servir, amar, viver com esperança.Hoje, Jesus convida-nos a purificar o templo. Não tanto estas paredes, mas o templo que somos nós. Deixar que a graça lave aquilo que endureceu, cure o que está ferido, abra espaço para que a água circule. A Eucaristia que celebramos é fonte viva: dela nasce um modo novo de estar na vida.Peçamos, então, a graça de viver como pedras vivas, como quem deixa a água de Deus correr, transformar e fecundar. Que o mundo reconheça, através de nós, que o templo de Deus está vivo, habitado, em movimento, levando vida onde a vida falta.

XXXII Domingo do Tempo Comum - Evangelho

XXXII Domingo do Tempo Comum - Segunda Leitura

XXXII Domingo do Tempo Comum - Primeira Leitura

Hoje celebramos a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos. Muitas vezes deixamos que este dia invada o Dia de Todos os Santos; deveria ser o contrário: olhar os defuntos à luz da santidade a que todos somos chamados, a felicidade plena para a qual Deus nos destina. Ontem escutámos: “vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar”. Não vemos todos, mas reconhecemos rostos amados nessa multidão.Podemos viver este dia em duas perspetivas. A primeira é a do sufrágio por todos os que partiram para a eternidade: oferecemos a Deus as nossas orações e boas obras, pedindo por quem se encontra no seu tempo de purificação — aquilo a que chamamos, de modo simples, as almas do Purgatório. A segunda é a memória agradecida: recordamos familiares, amigos, vizinhos e tantas pessoas próximas, com os olhos húmidos de saudade e o desejo de falar de novo com elas. E surge a pergunta: “estarão já junto de Deus?” Não o sabemos; e esse não saber abre-nos à esperança vigilante.A primeira leitura, breve e incisiva, põe-nos nos lábios de Jó: “Eu sei que o meu Redentor vive; eu próprio O verei, os meus olhos O contemplarão”. Esta é a base do nosso celebrar hoje: o Redentor está vivo e chama-nos à visão do seu rosto. Se estamos chamados a contemplar a bondade do Senhor, também cremos que os nossos defuntos são chamados à mesma bem-aventurança.Para tal, é necessária purificação. Usando a linguagem do Apocalipse, é preciso branquear a túnica no sangue do Cordeiro. A conversão é acolher a graça e corresponder-lhe; Deus age em nós, mas nem sempre estamos disponíveis, e a túnica fica manchada. A Igreja ensina que, se essa purificação não se completa nesta vida, existe um estado — o Purgatório — onde nos deixamos impregnar pelo amor de Deus, até tudo o que se opõe a esse amor ser queimado.Por isso hoje sufragamos os que partiram. As nossas orações, sacrifícios e obras de caridade, unidas a Cristo, podem ajudá-los no seu caminho de purificação. E acolhemos também o Evangelho: “Vinde a Mim, todos os que andais cansados… Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso”. Jesus nunca recusou ninguém; acolheu a todos e, ao acolher, chamou à transformação. Deu os meios da conversão e mandou celebrar quando o perdido foi encontrado.Convido-vos a viver este dia com serenidade: celebrar a certeza de que os que morreram são chamados à presença de Deus. Isto não seca todas as lágrimas, mas aquece o coração. Ao mesmo tempo, rezar pelos defuntos compromete-nos com a nossa própria conversão. Não faz sentido pedir para os outros aquilo que não desejamos para nós. Cuidemos da vida, preparemos o encontro, ordenemos a casa interior.Sufragar é dever, consolo e responsabilidade: um bem que podemos fazer aos que amamos e um apelo a caminharmos também nós para a visão do Senhor. Preparemos desde já essa festa — o encontro, a alegria, a paz sem ocaso, onde Deus será tudo em todos.

Habitualmente pensamos que ser santo é coisa de uma elite: gente com uma vida muito diferente da nossa, que foi para o mosteiro, que se afastou do mundo, ou mártires que morreram por Jesus. Esses santos são para nós motivo de louvor, grandes intercessores e estímulo para vivermos a fé com radicalidade. Mas é essencial recordar o mais verdadeiro: a santidade é para todos, como insiste o Papa Francisco.Perante esta verdade, caímos muitas vezes em dois erros. Primeiro, colocamos o centro em nós: “eu fiz, eu não fiz, eu sou, eu não sou…”. O santo não se centra em si, mas em Deus; descentra-se de si para se centrar nas coisas de Deus. Segundo, pensamos que ser santo significa nunca cair. Não: ser santo é, cada vez que se cai, levantar-se com a graça de Deus.A primeira leitura ajuda-nos: os anciãos perguntam quem são os que vestem túnicas brancas e de onde vieram. A resposta: “vieram da grande tribulação; lavaram as túnicas e branquearam-nas no sangue do Cordeiro”. O texto não diz que nunca sujaram as túnicas; diz que foram purificados. Ser santo é, antes de mais, um ato de receção: receber a graça, deixar que o Senhor nos purifique, nos liberte, nos diga quem somos e quanto nos ama.O salmo pergunta: “Quem poderá subir à montanha do Senhor? Quem habitará no seu santuário?” Responde: “O que tem as mãos inocentes e o coração puro e não levanta em vão o seu nome.” Esta pureza prática (mãos) e interior (coração) marca os que trazem o selo de Deus. Santidade é identificar-se com Deus, deixar que Ele imprima em nós o seu rosto. Somos santos quando deixamos resplandecer em nós o rosto de Cristo.E como é que esse rosto resplandece? O Evangelho diz: nas Bem-aventuranças. Felizes os pobres de espírito (desprendimento), os que choram (não ignoram as perdas), os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os construtores da paz. Quando vivemos esta lógica, trazemos o rosto de Cristo — muitas vezes frágil, por vezes opaco, porque confiamos só nas nossas forças. Mas, com São Paulo, sabemos: “quando sou fraco, então é que sou forte”. Na fraqueza entende-se melhor que ser santo é deixar-se levantar, purificar e fortalecer por Jesus Cristo.O Apocalipse fala de “uma multidão que ninguém podia contar”. As multidões podem ser incontáveis, mas têm rostos. Olhando para a multidão dos santos, podemos identificar amigos, familiares, vizinhos, pessoas com quem vivemos e que já partiram para a eternidade. Somos desafiados a recordar esses rostos e a reconhecer que, no nosso dia a dia, convivemos com santidade discreta e quotidiana.Concluindo: ser santo não é um prémio por bom comportamento; é pertencer a Cristo. É deixar que Ele lave e branqueie a nossa túnica, tantas vezes manchada pelas tribulações. O Senhor lava, o Senhor branqueia, o Senhor faz-nos santos a partir da sua própria santidade. A nós cabe acolher a graça e, depois, viver concretamente: mãos inocentes, coração puro, misericórdia praticada, justiça desejada e paz construída. Assim, o rosto de Cristo brilha em nós.

Sexta-Feira (Santos e Fiéis Defuntos)

Quando temos a ideia de um juiz vingativo, a imagem do publicano coloca tudo no seu verdadeiro sítio. Deus não nos castiga; Ele é um Pai misericordioso que nos ama e apenas espera que, como o publicano, digamos: "Senhor, sou pecador, tem compaixão de mim."Como diz o Salmo, "não serão castigados os que n'Ele confiam". Mas confiar em Deus não é um salvo-conduto para fazermos o que queremos; é uma atitude cultivada ao longo da vida.Na própria liturgia, o Ato Penitencial não serve apenas para confessar pecados. É, sobretudo, o momento de tomar consciência de que precisamos da Sua misericórdia e de nos deixarmos abraçar pelo Seu amor, que nos restitui a dignidade.Quando nos sentimos amados e perdoados por Deus, a consequência natural é amar, dar e perdoar. Não por obrigação, mas como fruto desse amor recebido. Este amor dá-nos "óculos novos" para ver a vida com esperança, valorizando o que está bem, em vez de apenas criticar o que está mal. É um bom exame de consciência: somos o fariseu que critica ou o publicano que se abre à graça?Como São Paulo, podemos olhar para a nossa história reconhecendo os nossos erros, mas sempre numa perspetiva de esperança. Deus nunca nos abandona, mesmo quando nós O abandonamos.A proposta central é, pois, cultivar a humildade. Deus ama-nos tal como somos, mesmo as partes de nós que não aceitamos. Sentirmo-nos amados por Ele transforma-nos e leva-nos a amar o próximo, especialmente os mais sós e pobres.Mas atenção: humildade não é desprezar-se. Humildade é verdade. É tomar consciência da nossa verdadeira estatura: somos criados à imagem de Deus, imensamente amados por Ele, e, ao mesmo tempo, limitados e frágeis. Quando nos deixamos amar na nossa fragilidade, assumimos a dignidade que o Senhor nos quer dar: a de sermos homens e mulheres libertos, plenos, vivendo em comunhão alegre com Ele.

XXX Domingo do Tempo Comum - Primeira Leitura

XXX Domingo do Tempo Comum - Primeira Leitura

XXX Domingo do Tempo Comum - Primeira Leitura

Ao celebrarmos o Dia Mundial das Missões, o Evangelho deixa-nos uma pergunta exigente: “Quando o Filho do Homem vier, encontrará fé sobre a terra?” Esta interrogação toca-nos a todos e alarga o horizonte das “missões”. Não são apenas os territórios longínquos onde Cristo é desconhecido; hoje, uma grande parte da missão da Igreja é evangelizar de novo as terras de antiga cristandade — os “nossos” territórios — onde muitos se dizem cristãos, mas a fé esmoreceu.Uma coisa é praticar ritos; outra é viver da fé. O ideal é que os ritos brotem da fé e a alimentem, mas nem sempre acontece assim. Ter fé é, antes de tudo, manter uma relação viva com Jesus Cristo: ligar o nosso coração ao coração do Senhor. Por isso, detenhamo-nos na oração, experiência humana decisiva para nos unirmos a Deus num tempo obcecado por produtividade e eficácia.A primeira leitura mostra-nos dois “lugares”: Josué combate no vale, enquanto Moisés sobe ao monte com a vara de Deus. Quando Moisés ergue as mãos, Israel vence; quando as baixa, perde terreno. Dois companheiros colocam-lhe uma pedra para se sentar e sustentam-lhe os braços até ao pôr do sol. A vitória nasce desta oração perseverante e comunitária. Assim é a vida cristã: vale e monte, ação e intercessão, o concreto do dia a dia e a elevação da oração. Precisamos de tempos e espaços que nos recordem que, ao subir “geograficamente”, deixamos o coração elevar-se para Deus. Mas essa subida deve tocar o vale das nossas lutas diárias; não pode haver rutura entre o que rezamos e o que vivemos.Jesus ensinou-nos a rezar o Pai-Nosso. Antes de apresentarmos pedidos (“quero isto, preciso daquilo”), começamos pela relação: “Pai”. Pedimos que o seu Nome seja santificado e que venha o seu Reino. A oração verdadeira alinha o nosso desejo com o desejo de Deus; deixa que Ele converta o nosso coração. Para isso, é essencial a leitura e meditação da Palavra — e também dos grandes textos da tradição —, que nos endireitam por dentro e nos põem na direção do Reino. Como exorta São Paulo a Timóteo, permaneçamos firmes no que aprendemos desde a infância: as Escrituras conduzem-nos à sabedoria que salva.Deus também nos educa na oração. Como um pai que não dá batatas fritas todos os dias à criança, o Senhor nem sempre concede o que pedimos de imediato. Dá-nos, porém, o que verdadeiramente nos faz bem, a médio e longo prazo. Daí a necessidade da perseverança. O Evangelho apresenta a viúva — a mais vulnerável numa sociedade patriarcal — que insiste até obter justiça de um juiz sem coração. Se até um juiz injusto cede, quanto mais Deus fará justiça aos seus eleitos! Muitas vezes desanimamos porque não respeitamos o “tempo de Deus”: ou ficamos só no vale da agitação, sem subir ao monte, ou subimos sem descer ao compromisso. A sabedoria do coração ajuda-nos a esperar o tempo favorável.Neste mês do Rosário, valorizemos uma forma de oração simples e comunitária. Rezar o terço é meditar os mistérios da vida de Jesus. Seria ótimo, sempre que possível, ler o trecho bíblico correspondente a cada mistério: assim, a repetição torna-se contemplação e a contemplação torna-se escola de sabedoria. Rezemos para que a nossa meditação nos faça crescer na fé que salva — não a “salvação” que a nossa cabeça imagina, mas a que Deus oferece, a única que liberta e nos faz verdadeiramente felizes.Que o Senhor nos conceda esta unidade de vida: ritos que brotam da fé, fé que se alimenta da oração, oração que ilumina a missão — no vale e no monte — até que o Reino venha, e Ele nos encontre firmes na fé.

Hoje a Palavra de Deus oferece-nos um fio comum: a cura que Deus realiza para nos devolver a vida inteira. Na primeira leitura, do Segundo Livro dos Reis, vemos o general sírio Naamã, leproso e desesperado, que procura o profeta Eliseu. O homem de Deus não lhe pede façanhas extraordinárias; manda-o apenas mergulhar sete vezes no Jordão. Naamã resiste: “Só isto? E logo nesse rio, tão modesto?” Mas cede ao bom conselho, confia, cumpre a palavra recebida e fica curado: a sua carne torna-se como a de uma criança. Não ganhou apenas pele nova; recebeu um coração novo. O pagão orgulhoso regressa agradecido e crente no Deus verdadeiro. Por isso pede um pouco de terra de Israel: quer, na sua terra, adorar somente o Senhor. É a lógica da graça: não se compra nem se paga; acolhe-se com gratidão e transforma a vida.No Evangelho (Lc 17), Jesus caminha “entre a Samaria e a Galileia”, fronteira simbólica entre quem se julga dentro e quem é tido por fora. Dez leprosos, à distância, gritam: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!”. Ele responde com uma palavra que põe em marcha: “Ide mostrar-vos aos sacerdotes”. A cura acontece a caminho. E um — precisamente um samaritano, o excluído — volta para agradecer e dar glória a Deus. A salvação de Deus destina-se a todos e, tantas vezes, é acolhida primeiro por quem menos esperaríamos.Aqui está a pedagogia da salvação em três verbos: pedir, caminhar e agradecer. Primeiro, pedir: reconhecer a nossa pobreza e suplicar a misericórdia. Depois, caminhar: obedecer à Palavra, pôr os pés na estrada, colaborar com a graça com a nossa decisão, esforço e perseverança. Finalmente, agradecer: não apenas um “obrigado” de cortesia, mas um estilo de vida que dá glória a Deus amando os seus preferidos — todos, e de modo especial os pobres e excluídos.Quando isto acontece, não se cura apenas uma ferida ou um sintoma; cura-se a biografia inteira. O essencial não é só a saúde do corpo: é o sentido renovado da vida. Por isso, amar a Deus e ao próximo não são apêndices devotos; são a forma concreta de acolher a salvação. Uma autêntica vida cristã não se reduz a ritos ou palavras; prolonga o gesto de Jesus: aproximar, perdoar, curar, reintegrar.A segunda leitura recorda: “Se formos infiéis, Ele permanece fiel, porque não pode negar-Se a Si mesmo” (2 Tim 2,13). É esta fidelidade que quebra o círculo do mal e inaugura o círculo do bem: quanto mais acolhemos o seu amor, mais nos deixamos curar por dentro; quanto mais nos sabemos amados, mais nos damos aos irmãos; e quanto mais nos oferecemos, mais experimentamos a alegria de sermos amados e humanizados por Deus.Peçamos, então, a graça de viver estes três passos todos os dias. Pedir com humildade, caminhar com confiança na Palavra, agradecer com a vida inteira. Assim, como Naamã, receberemos um coração novo; e, como o samaritano, voltaremos para dar glória a Deus — não só com os lábios, mas com gestos que levam cura e reconciliação a quem encontramos no caminho.

XXVIII Domingo do Tempo Comum - Evangelho

XXVIII Domingo do Tempo Comum - Segundaa Leitura

XXVIII Domingo do Tempo Comum - Primeira Leitura

“Senhor, aumenta a nossa fé”: dom, tarefa e caminhoNo Evangelho, os Apóstolos pedem: “Aumenta a nossa fé.” Este pedido é também o nosso. A fé é dom de Deus — ninguém a fabrica —, mas é igualmente tarefa: acolhe-se e cultiva-se. Não basta repetir “Senhor, aumenta a minha fé” e cruzar os braços. Jesus lembra que uma fé pequena “como um grão de mostarda” realiza o inesperado: o pouco, vivido com Deus, transforma mais do que imaginamos.A dificuldade nasce quando olhamos o mundo e vemos injustiças, doença, morte, sofrimentos que não entendemos: “Porquê prosperam os malandros e sofrem os justos?” A primeira leitura, do profeta Habacuc, dá-nos um método espiritual para atravessar este escândalo sem desistir: ver, escrever, esperar.1) Ver. A fé não tapa os olhos. Somos chamados a olhar a realidade tal como é, sem cosméticas piedosas. Mas ver “com olhos de fé” significa aprender a olhar como Deus olha: reconhecer o mal e, ao mesmo tempo, discernir o bem possível, o que Deus deseja fazer nascer naquela situação. É um ver que já contém uma semente de transformação.2) Escrever. Diz o Senhor a Habacuc: “Põe por escrito a visão, grava-a em tábuas com clareza.” Escrever é fixar a memória do que Deus nos faz entender, para não perder a orientação quando o tempo se alonga ou a esperança se turva. Diário espiritual, pequenas notas, uma frase bíblica na carteira: marcas de uma visão que nos recentra.3) Esperar. “Se tardar, espera, porque virá e não tardará.” Esperar não é passividade de quem aguarda o autocarro. É espera ativa: comprometer-se com as causas do Evangelho e fazer o que está ao nosso alcance para que o Reino avance. Como quem cuida de uma planta: rega, poda, aduba… e confia no tempo da maturação. A fé trabalha e espera.Este caminho protege-nos de dois enganos: o espiritualismo resignado (“Deus fará tudo sem mim”) e o ativismo impaciente (“eu faço tudo sem Deus”). A fé cristã é aliança destas duas verdades: dom recebido e responsabilidade assumida.E como se cultiva, na prática, a fé-mostarda? Não apenas com gestos “espampanantes”, mas, sobretudo, com pequenas fidelidades quotidianas: uma palavra justa quando é mais fácil calar, um tempo dado a quem precisa, a oração breve mas fiel, a honestidade no escondido, o perdão que desarma um rancor. O Reino cresce assim: discretamente, eficazmente.No fim, Jesus recorda: “Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer.” Não se trata de desvalorizar o bem realizado, mas de reconhecer que os frutos excedem sempre a nossa medida. O pouco que oferecemos, Deus multiplica. E é a leitura crente dos acontecimentos — ver, escrever, esperar — que nos permite reconhecer, na nossa história, a mão de Deus.Peçamos, então: “Senhor, aumenta a nossa fé.” E respondamos com a vida: ver com os teus olhos, escrever para lembrar, esperar trabalhando. Assim, o grão de mostarda da nossa fé moverá amoreiras e mares, isto é, mudará corações e realidades — começando pelo nosso.

XXVII Domingo do Tempo Comum - Evangelho

XXVII Domingo do Tempo Comum - Segunda Leitura

XXVII Domingo do Tempo Comum - Primeira Leitura

Escutando a primeira leitura da profecia de Amós e o Evangelho, percebemos que ambas apresentam um conflito social. De um lado, os ricos, que viviam muitíssimo bem, sem faltar nada, usufruindo de todos os prazeres; do outro, os pobres esquecidos. Em Amós, denuncia-se que os ricos não se afligiam com a ruína de José. No Evangelho, vemos Lázaro mendigar à porta do homem rico sem que este se compadecesse. O fim de ambos é claro: os ricos da leitura foram os primeiros a ser exilados; o homem do Evangelho acabou na perdição.Isto poderia parecer uma condenação da riqueza e um elogio da miséria, mas não é assim. O problema não estava em serem ricos, mas em viverem tranquilos e indiferentes, ignorando os que não tinham o mínimo para viver. O pecado foi não se preocuparem, não ajudarem.E aqui podemos perguntar: afinal, para que serve a Igreja? A Lumen Gentium diz: para ser sacramento universal de salvação. Concretiza-se em três eixos: evangelizar, louvar e cuidar dos pobres.· Evangelizar – anunciar a Boa Nova, propor um projeto de vida mais autêntico, pleno e verdadeiro.· Louvar – a liturgia comunitária, mas também a liturgia doméstica: oração pessoal, em família, recitação do terço, bênção das refeições. Deus não precisa dos nossos louvores, mas nós precisamos de nos deixar moldar pela graça que nos transforma.· Cuidar dos pobres – seguir Jesus implica comprometer-se com a dignidade dos que menos têm.Recordo, da experiência paroquial, como muitas vezes ouvia dizer: “Agora já não há pobres.” É verdade que o Estado Social atenuou necessidades extremas. Contudo, “os pobres sempre os tereis convosco” (cf. Jo 12,8). Sempre haverá alguém mais limitado, mais vulnerável. E o critério de autenticidade da nossa vida cristã é justamente este: cuidar dos pobres, no sentido de ajudar os que têm menos condições do que nós.A pobreza pode ser relativa: os pobres entre nós vivem melhor que muitos povos da Índia, mas isso não nos desobriga. Não podemos pensar: “Tenho o suficiente, não me cabe preocupar-me com os outros.” Isso seria uma visão egoísta e perversa.O mal não está em usufruir dos bens e prazeres da vida – se foram adquiridos com honestidade, são dons de Deus. O mal está em gozar desses bens fechando os olhos a quem não tem as mesmas condições. Por isso, cuidar dos pobres é critério de qualidade da vida cristã.Quem vive o Evangelho compromete-se a construir um mundo mais humano e mais justo, animado pela visão de dignidade que a fé nos inspira. Na liturgia, lugar privilegiado da escuta da Palavra e da celebração dos mistérios, Deus vai “entranhando-se” em nós e moldando-nos como discípulos de Cristo.A maior alegria é encontrá-lo. Quem experimenta a amizade de Jesus sente uma paz e felicidade que nada nem ninguém pode tirar. Daí nasce a evangelização: não por obrigação ou proselitismo, mas porque descobrimos algo tão bom que não conseguimos calar.Todos nós somos chamados a anunciar e testemunhar esta alegria.E termino com uma frase de Miguel Torga, que, apesar de nunca ter dado o salto da fé, era um homem em busca. Ele escreveu: «O que eu dava para me levantar cedo esta manhã, ir à missa, e voltar da igreja com a cara que trazia o meu vizinho!» (segue-se: «Não é que eu tenha verdadeiramente pecados… Queria era sentir-me ligado a um destino extra-biológico…») (“Vila Nova, 16 de Agosto de 1936”, Diário I).Que também sobre nós se possa dizer: “Olha a alegria, olha a paz, olha o entusiasmo dele, porque encontrou Jesus Cristo e fez dele o centro da sua vida.”

XXVI Domingo do Tempo Comum - Evangelho