Enterrados no Jardim

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Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho


    • May 7, 2025 LATEST EPISODE
    • weekly NEW EPISODES
    • 3h 22m AVG DURATION
    • 100 EPISODES


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    Uma sinfonia de chumbo nos 100 anos do Pacheco. Em conversa com João Pedro George

    Play Episode Listen Later May 7, 2025 268:27


    Para se ser um homem deste tempo ou até de outros, e variar, cumular, não basta estar vivo, como estamos todos, mais ou menos, tantos sem grande proveito, para si mesmos ou para a época, não basta isso, ainda é preciso ter ouvido, escutar a música que faz cada um, que fazemos todos, os que sabem arrancar notas ao seu instrumento, seja este qual for, ouvir como tudo isso depois se eleva, que sinfonia ou caos se gera... Se não se consegue uma harmonia de jeito, mas anda tudo aos encontrões, a produzir ruído, e se, muitas vezes, desencorajados, caímos no silêncio, acabamos sufocados debaixo do que cospe a telefonia. Ser de algum tempo é ser capaz de escutar e, ainda melhor que acompanhar, é achar a sua diferença, esse a mais capaz de impor uma inflexão, até valores próprios, chegar a conduzir num movimento ou noutro, disputar a batuta, ou desmoralizar o maestro, criar a sua escola, mesmo que pela calada, clandestina, sem horários, sem burocracia, só de impulso, paixão. Regatear com a época, dar-lhe o golpe, isso, sim, é tomar posição, extrair um sentido da geral, e compor mais que uma rima, uma solução, ou devotar-se à querela, aos embates, não conter na raiva, não se deixar abafar, mas explicar a liberdade por extenso, nos gestos, em actos. Inventar o seu carácter, produzi-lo na relação com os demais, como uma resposta, tendo em atenção aquilo que falta, tudo quanto nos sonegam, anulam. E aqui faça-se notar que a maior violência de todas pode ser o silêncio, apagar os outros, fingir que não se viu, distribuir a morte antes de tempo, vir aí fazer a sua justiça que passa apenas por cultivar relações, chegar aos lugares, e decretar o vazio, ainda lhe pôr em cima uma gente decorativa para irritar mais. Substitui-se com isto a vida por um desenho animado desses que passam só nos lares da terceira tentando empurrar de vez os velhos, neste país que se quer um imenso lar-fossa onde atirar quem nunca viveu. Esses que, por isso, muitas vezes mesmo que quisessem ir-se, acabar com isto, não sabem para que lado fica a morte. O combate está dificultado, hoje, mesmo por aqueles que lêem. O afastamento paga-se, a falta de um convívio sincero, truculento, animador já por si deixa as almas aí a criarem musgo, em vez de lhes arrancar as teias de aranha, as intrigas alimentadas em estado de paranóia, reforça-se a tibieza do carácter, a infantilidade nas convições. Ora, se a história da Cultura nos ensina alguma coisa "é a resolução das antinomias numa luta sem tréguas, é o combate implacável entre credos opostos", vinca Luiz Pacheco. Estão mal as coisas para quem veio para a literatura em busca de sinais dessa refrega. Estão pessimamente aqueles que, como ele, escolheram a literatura como um modo mais empenhado de superar o estilo gago da existência, e pôr algum sentido na trama dos dias. "Porque a minha vida, o meu trabalho (chamem-lhe ou não assim, pouco me importa) é escrever. Ler, para escrever. Ver, para escrever. E o que não sair em letras, está-me escrito na pele. Vida dura? acho que se percebe, tenho a pele curtida e colada aos ossos, mordida, alegrias, dores, frios e miséria." Estamos sobre o centenário daquele que mais intensa e empenhadamente zurziu no enredo que veio falsificar esta relação entre a vida e a literatura, todos esses modos de aliciamento e convite ao imobilismo, as estratégias de inibição e que trocam uma condição dinâmica e aberta a "um espontâneo movimento de polémica, de antagonismos inconciliáveis em riste", por um quadro de acomodação amorfa. Vimos assinalar aqui esta data, a intervenção e a coragem daquele que, como reconheceu muitas vezes, foi um tipo bera, um sacana, tendo sido capaz do pior, mas alguém que fez o que fez por se querer um tipo livre, "livre até à abjecção, que é o resultado de querer ser livre em português". Assim, em vez de cerimónias o que temos é um grande bolo onde afundar a tromba de uns quantos, e quisemos tomar de novo o pulso a um meio literário cujas imposturas ele não se cansou de expor e atacar. De resto, prova da condição moribunda deste são os silêncios falaciosos que permitiram que no ano passado viesse a lume uma obra inteiramente inédita e ninguém lhe pegasse, mesmo se os seus livros continuam a ser traficados a alto preço nos alfarrabistas, e se lhe vai sendo rendido um culto que não anda longe daquela forma de exploração sistemática póstuma do maldito, como pôde antecipar, falando no "aproveitamento do seu caso humano (deturpando-o) ou da obra por ele legada (amputando-a mesmo assim; colhendo nela apenas o que convém aos tempos que correm) manipulada por seres mesquinhos e gulosos que a serem contemporâneos do maldito, seriam (eram, está-se mesmo a ver, a perceber) os seus mais ferozes inimigos". Para discutir o seu exemplo e os textos que nos legou, chamámos o tipo (João Pedro George) que mais atenção lhe deu, que mais contribuiu para que à volta da sua obra se pudesse gerar um debate sério, não forçando a hagiografia, mas discutindo os elementos mais espinhosos, entre eles a forma como a sua lenda em muitos aspectos se tornou um adorno do próprio enredo que ele tanto combateu.  

    Uma escatologia política: do mal à emancipação. Conversa com Tiago Mota Saraiva

    Play Episode Listen Later May 2, 2025 263:06


    A um político nos nossos dias aquilo que deveríamos exigir antes de qualquer outra coisa é que tenha a disposição de acumular "um cadastro de prodígios", que o seu discurso se liberte do horizonte do provável, procurando formular uma profecia obscena e que passe pelo triunfo de uma voz maldita, de tal modo que aqueles que o oiçam se sintam já de certo modo culpados, capazes de vislumbrar essa realidade alternativa com uma precisão quase alucinante. Talvez não se possa resgatar a política sem uma boa dose de delírio, algo que não nos sujeite apenas à revelação do imediato. A voz deveria ser um modo de nos fazer ver o que está em falta, sobretudo tendo em conta que o quadro mediático tende a tornar irreal o próprio mundo. Como assinalava Steiner, "a televisão pode mostrar todos os massacres, todas as torturas e todos os acontecimentos de uma tal maneira que o imediato se torna para nós remoto, estranho e monstruoso, como se fôssemos crianças assustadas com o cair da noite". Talvez só restem como capazes de afectar a mudança aqueles discursos que possam aliciar-nos a mergulhar nesse território nocturno, reclamar de novo a heresia de viver a presença da queda. Aquele crítico recorda o exemplo de Claudel, acusado pelos seus detractores de uma heresia muito perigosa e grave: "acreditar não no céu, mas no inferno, acreditar no Mal, mas não no Bem". E Steiner tributava à sua época o conhecimento e o fascínio que sentia pelo mal. A verdade é que se pressente a impotência da política ou a sua profunda desonestidade por se limitar a falar em nome de uma inocência ou ingenuidade, e essa é a razão por que estamos desertos por ouvir vozes de outra ordem, que arrisquem suspender esse tom pastoso e cheio de boas intenções. "O papel que o artista desempenha na sociedade é o seguinte: redespertar os instintos anárquicos, primitivos, crucificados à ilusão de uma vida confortável", escreve Henry Miller. Fugindo ao ruído, a esse que domina o mercado como objecto de consumo indispensável, a arte surge como a possibilidade de uma paragem, uma intriga que encoraja em nós os actos que levem à destruição das condições úteis e necessárias ao dispositivo social. Há quem se satisfaça e regozije toda a vida com o mundo como ele se organizou, com o tempo como este ritmo que se infiltra nos corpos e soa tão alto que não deixa que quase ninguém escute os próprios pensamentos. Então, o que pedimos a uma suspensão abrupta? Que seja generosa, que cancele o ruído pelo tempo suficiente para que alguns possam voltar a reconhecer a voz que lhes é própria. Se alguns têm insistido que é preciso "organizar o pessimismo", "preparar-nos para sobreviver à cultura", há quem reconheça também como a cultura é precisamente aquilo que nos desmotiva, a tal coisa que vai embebendo o espírito, tornando-o pesado e impotente, sendo que, diante de uma ameaça terrífica, devemos apelar àquela vitalidade primitiva que age por impulso, com raiva, com uma ânsia absurda de esgotar em si todas as forças que lhe chegam como uma inspiração malévola. "De tanto viver nas trevas, acabámos por assinar um pacto com os monstros e as larvas que aí encontram abrigo. Esse pacto, temos agora de o romper e de nos atrever a olhar o dia, a fitar o nosso sol da Barbárie de frente" (Mohammed Dib). Deverá chegar um momento em que estejamos à altura de viver sem que tudo esteja já previsto de antemão, sem assumirmos que a melhor forma de se viver é com a captura total do dia de amanhã, sem margem para alguma dose de incerteza. Ao contrário do que se vem dizendo, talvez a nossa salvação tenha estado mais na hostilidade, e o bem seja uma província cercada pelo mal. Uma espécie de trégua entre adversários que aprenderam a temer-se. Neste episódio, vamos andar de volta das questões da habitação, e dos constrangimentos que o mercado tem imposto às cidades, ao ponto de, como um todo, as comunidades se terem visto expropriadas do espaço público, sendo-lhes retirada a capacidade de definir verdadeiras políticas de urbanismo. Quem nos veio dar algumas noções, algumas colheres de sopa numa ira que, às vezes, se fica pela saliva, foi o arquitecto e urbanista Tiago Mota Saraiva, um tipo que tem sabido aliar a sua acção profissional e enquanto professor a uma componente de intervenção e militância no sentido de combater a desigualdade e os vícios de um país que cada vez mais se divide entre os senhorios e os inquilinos de corda ao pescoço, entre outros ao deus-dará.    

    Pornografia, kidfluencing e iogurtes com pernas. Uma conversa com Maria João Faustino

    Play Episode Listen Later Apr 24, 2025 266:10


    O que é decisivo transformar permanece quase sempre em segredo, leva o tempo necessário, não se apressa, mas, aos poucos, vai chegando à sua plenitude devastadora. Não leva tanto tempo como imaginam aqueles que preferem não pensar nisso, mas muitas vezes não chega a tempo de socorrer os que começam a sentir-se desesperados. Ainda assim há que aprender com essa espera, crescer com ela. Podemos ler sobre este movimento surdo no conto de duas cidades de Dickens, ouvir um diálogo entre esses que exigem que o tremor de terra cresça a ponto de engolir uma cidade. "Mas quanto tempo é preciso para que se dê um terramoto desses?", pergunta um deles. "Muitas vezes, leva bastante tempo. Mas quando chega a altura, quando ele vem, não demora muito a engolir a cidade, e faz em pedaços tudo o que encontra à sua frente. Entretanto, está sempre a preparar-se, embora não se veja nem se ouça. Esta é a vossa consolação. Guarda-a." É uma esperança diabólica. Algumas mulheres foram-se agarrando a isto, e quando falavam entre si, depois de dispensadas as ilusões de ordem romântica, detestavam ver-se vestidas por outros, envolvidas na miserável farpela que lhes foi destinada. Preferiam bater-se pela sua autonomia, pelas suas reivindicações profundas, mesmo que as expressassem desajeitadamente. "Na nossa época, para um espírito agudo, o ridículo, 'ser ridicularizado', é qualquer coisa de sublime. Sublime e inquietante", diz-nos Françoise Sagan. A partir do momento em que se reconhece que tudo isso que eles consideram “natural” não passa de uma grande impostura, necessária para a manutenção de uma determinada ordem simbólica, só existe uma razão para cada homem ou mulher que aprenda a desenvolver a inteligência da sua sensibilidade. "E nesta posição desequilibrada, procurando a queda como quem procura um repouso, encontram-se muitos dos nossos contemporâneos", adianta a escritora francesa. "Ou por uma pata, e esqueçamos os loucos de amor, os que caem numa armadilha, os doentes graves e alguns poetas." O delírio tem mais a ver com fazer outra coisa da vida. Alguns só dão por si mesmos em intrigas mirabolantes, só por meio de alguma lenda acham uma forma de alívio face à linguagem e às instruções do inimigo, e dos seus constantes desafios para a luta, que podem fazer-nos alhearmo-nos das nossas próprias vidas, do caminho que deve ser traçado à parte. Mas então, como quem desenvolve interiormente um órgão capaz dos mais discretos milagres, a tristeza transforma-se em alegria, o luto em festa. Muitas vezes foi essa a trama de que se ocupavam as mulheres. Havia avisos contra isto e aquilo, prescrições para que levassem uma vida tão doméstica quanto possível, não exagerando os períodos de tempo entregues a actividades mais ambiciosas, intelectuais, sobretudo que houvesse o cuidado de não serem vistas com a caneta na mão, a redigir missivas demasiado extensas e sem um destinatário óbvio. "Pode-se saber tudo e, no fundo, recusar aceitar que a aniquilação das mulheres é a fonte de sentido e de identidade dos homens. Pode-se saber tudo e ainda assim querer desesperadamente não saber nada, porque enfrentar o que sabemos é questionar se a vida vale alguma coisa", escreve Andrea Dworkin. Não podemos substituir-nos, mas podemos ler-nos em voz alta, descrever os ritmos, os tons, o enredo ao nosso redor. As diferentes formas de pornografia, o seu elemento comum... "Há uma mensagem básica e transversal a todos os tipos de pornografia, desde o esterco que nos atiram à cara, até à pornografia artística, o tipo de pornografia que os intelectuais classificam como erostismo, passando pela pornografia infantil de baixo calão, e as revistas de 'entretenimento' masculino. A única mensagem que é transmitida em toda a pornografia a toda a hora é esta: ela quer; ela quer ser espancada; ela quer ser forçada; ela quer ser violada; ela quer ser brutalizada; ela quer ser magoada, ela quer ser ferida. Esta é a premissa, o elemento principal, de toda a pornografia. Ela quer que lhe façam estas coisas desprezíveis. Ela gosta. Ela gosta. Ela gosta de ser atingida e gosta de ser magoada e gosta de ser forçada." Como dela não há nada publicado entre nós, vale bem a pena dar-lhe alguma folga nesta língua: "Os pornógrafos, modernos e antigos, visuais e literários, vulgares e aristocráticos, apresentam uma proposta consistente: o prazer erótico para os homens deriva da destruição selvagem das mulheres e baseia-se nela. Como o pomógrafo mais honrado do mundo, o Marquês de Sade (apelidado por alguns académicos de 'O Divino Marquês'), escreveu num dos seus momentos mais contidos e bem-comportados: 'Não haveria uma mulher na terra a quem eu desse alguma vez motivo para se queixar dos meus serviços tivesse eu a certeza de a poder matar depois.' A erotização do assassínio é a essência da pornografia, como é a essência da vida. O torturador pode ser um polícia a arrancar as unhas à vítima numa cela de prisão ou um homem dito normal empenhado no projecto de tentar foder uma mulher até à morte. O facto é que o processo de matar (e tanto a violação como a agressão são etapas desse processo) é o principal acto sexual dos homens na realidade e/ou na imaginação. As mulheres, enquanto classe, têm de permanecer em cativeiro, sujeitas à vontade sexual dos homens, porque o conhecimento de um direito imperial de matar, seja ele exercido em toda a sua extensão ou apenas parcialmente, é necessário para alimentar o apetite e o comportamento sexuais. Sem as mulheres como vítimas potenciais ou reais, os homens são, no actual jargão higienizado, “sexualmente disfuncionais”. (...) A coisa mais terrível da pornografia é que ela diz a verdade masculina. A coisa mais insidiosa da pornografia é que ela conta a verdade masculina como se fosse uma verdade universal. Aquelas representações de mulheres acorrentadas a serem torturadas são supostamente representativas das nossas aspirações eróticas mais profundas. E algumas de nós acreditam nisso, não é verdade? O mais importante na pornografia é o facto de os valores nela contidos serem os valores comuns dos homens. Este é o facto crucial que tanto a direita masculina como a esquerda masculina, nas suas formas diferentes mas que se reforçam mutuamente, querem esconder das mulheres. A direita masculina quer esconder a pornografia, e a esquerda masculina quer esconder o seu significado. Ambas querem ter acesso à pornografia para que os homens possam ser encorajados e energizados por ela. Mas, quer vejamos a pornografia ou não, os valores nela expressos são os valores expressos nos actos de violação e de espancamento das mulheres, no sistema legal, na religião, na arte e na literatura, na discriminação económica sistemática contra as mulheres, nas academias moribundas, e pelos bons e sábios e amáveis e iluminados em todos estes campos e áreas. A pornografia não é um género de expressão separado e diferente do resto da vida; é um género de expressão em plena harmonia com qualquer cultura em que floresça. Isto é assim quer seja legal ou ilegal. E, em qualquer dos casos, a pornografia funciona para perpetuar a supremacia masculina e os crimes de violência contra as mulheres porque condiciona, treina, educa e inspira os homens a desprezarem as mulheres, a usarem as mulheres, a magoarem as mulheres. A pornografia existe porque os homens desprezam as mulheres, e os homens desprezam as mulheres em parte porque a pornografia existe." Já aqui fica qualquer coisa, e serve como um bom balanço para a conversa com Maria João Faustino, feminista da linha dura, o que quer apenas dizer que tem já um longo percurso feito no estudo da violência sexual, e está a par, não do discurso cheio de boas intenções, bons sentimentos, mas do que outras antes, igualmente empenhadas, foram escrevendo e manifestando, sempre com risco, sempre pagando o preço, e, além de saber ler os indíces, tem desenvolvido várias das questões que ainda só começam agora a ser tratadas superficialmente na comunicação social, como o tema do consentimento sexual. Além disso, o trabalho crítico pauta-se ainda pela colaboração com associações feministas e de apoio a vítimas e sobreviventes de violência sexual.

    Déspotas, caudilhos e ditadores de bairro. Uma conversa com alguns fantasmas

    Play Episode Listen Later Apr 18, 2025 215:56


    Já só se pode contar com os brutos para levar isto ou aquilo por diante, seja o que for, uma vez que, pelos seus próprios modos, estão familiarizados com o estrago, e não os tolhe a falta de um nexo óbvio, estão habituados a pegar por onde der, e ajudam-nos a partir do momento em que nos assumimos também como monstros folhetinescos, desses que dão corda a uma intriga qualquer, até porque se nos calamos logo mergulhamos num silêncio predador, assim, repetindo os mesmos tiques, tomamos balanço no que houver, mesmo em semanas como esta em que parece mais fácil apontar aqueles que nos falham, em que vamos de ausência em ausência, e, numa altura em que a terra já vai parecendo escassa para enterrar tantos, fica-nos a sensação de que, deste lado, a própria luz parece arquivada, uma "luz-mortalha", para nos servirmos de uma expressão de Rui Nunes, um dos poucos que continuam a dar com o isqueiro nalgum cano e a transmitir o seu morse exasperado que soa pelo edifício e por trás do solene e displicente papel de parede. Diante do desconchavo de tudo, em vez de milagres, suplicamos por desastres que tomem conta de tudo, engulam a vida, façam um pouco de justiça, dando cabo dos planos a quem tem a arrogância de fazê-los, e que são, na sua maioria, os safardanas responsáveis pelo estado das coisas. Mas voltando a um desses impulsos plagiados, desta vez a partir do Vargas Llosa, já ia sendo altura de um romance arrancar por estas bandas questionando-se em que momento preciso é que Portugal se fodeu de vez, e isto homenageando também o coronel que tantas vezes deu trela a essa indagação, e apontou algumas datas, algumas hipóteses bastante firmes, fazendo-nos espreitar as coisas por uma brecha, ver como se deu cabo de um período de suspensão, de quase irrealidade e sonho, que se viveu por aqui durante uns quantos meses, tendo sido talvez a última possibilidade antes de sermos engolidos pela vertigem. Alguém nos avisou: "Quando o tempo for apenas velocidade, instantaneidade e simultaneidade, e quando o temporal, entendido como esse acontecer histórico, houver desaparecido da existência de todos os povos, então, precisamente, as perguntas: para quê? para onde? e depois?, começarão a assombrar-nos como fantasmas"... E aí está, "esse motor de aceleração que comprime séculos em segundos", escreve Rui Nunes. “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, proclamava Valéry naquele célebre texto sobre a “crise do espírito” no final da Primeira Guerra, e agora o que nos diz o escritor português é que a ruína se tornou o próprio material de construção deste tempo, adiantando que a ruína exprime hoje a intimidade das civilizações. De resto, à volta, por toda a parte, ouve-se um zumbido e vêem-se as luzes dos monitores ligados, sente-se essa fetidez constante "do silencioso arquivo dos computadores, essa vala comum da modernidade". Por estes dias são as nossas próprias consciências que já arrastam e fazem alastrar esse mesmo sinal doentio, essa condenação que trazemos misturada no hálito. "Os noticiários tornam-se tão poderosos que já não precisam de televisão nem de jornais. Existem na percepção das pessoas. Elas próprias inventam as notícias, suficientemente poderosas para parecerem genuínas. São os noticiários sem os media", escreve DeLillo. Mas se não podemos sentir um verdadeiro ânimo, podemos ter vergonha de termos também caído nisto, e assim vimos pedir muitíssimas desculpas, e então damo-nos conta do motivo porque fazemos isto, porque insistimos em pôr uma frase à frente da outra, ultrapassando o desgosto, buscando o que vem depois, e desde logo também porque, como vincava Georges Perec nas últimas linhas de um dos seus livros… “Escrever: tratar de reter algo meticulosamente, de conseguir que algo sobreviva: arrancar umas migalhas precisas ao vazio que se escava continuamente, deixar nalgum lugar um sulco, um rastro, uma marca ou alguns sinais.” Aqui está o motivo por que quando não se tem mais nada ao menos podemos virar-nos para os nossos fantasmas, que não nos deixam falar sozinhos.

    O cheque-prenda das funerárias e outros saldos. Uma conversa com Vasco Santos

    Play Episode Listen Later Apr 10, 2025 219:42


    O homem não se reproduz numa grande gargalhada, e é pena. Daria outro sentido às coisas, e seria já por si uma filosofia de impulso quando as coisas não parecem ser capazes de rastejar mais baixo. Já se sabe que os chefes de família em nada acreditam, mas que grande fé colocam no seu cinismo. A situação da nossa fragmentada e precária civilização é cada vez mais grave, lê-se em toda a parte. E as luzes que ainda nos restam parecem cada vez mais íngremes. Todo este desgaste, estes milhões diariamente condenados à frustração, deve ser aqui o limbo. Mas se todos os desertos são falsos, este também o será. Fitamos o dorso dos livros que se arquejam, buscamos passagens, e nisto estamos próximos de tantos que se dedicaram a viciar a lógica, deturpar os estilos, misturar os séculos, suprimir as escolas. No fundo, e pelos fundos, nascem esses magos da quinquilharia, capazes de extrair alguma múmia de uma serapilheira. O pó é comum, as imagens é que se admiram da imensidão dos seus usos. Resta-nos a amizade que se tece de forma estreita com os que já não estão, com um Santos Fernando, com um Giorgio Manganelli, que nos deixava esta senha pessoal: "Amo a companhia, entre todas discretíssima, dos mortos." Aprendemos a trocar as posses pelas possessões. O som da nossa voz parece-se mais com uma cicatriz. "À medida que a civilização caminha para o seu zénite, ou para o seu zero absoluto, avançamos na técnica, renovamos as artes, modernizamos os hábitos e reajustamos os mobiliários, tendemos simultâneamente para o passado, enfeudados a um chiquismo, a uma presunção, recheando o lar progressivo de móveis carunchosos. Mais do que se faz com os vinhos, a divisa é envelhecer as peças. A pátina vence, a porcaria prevalece. Dão-se tiros com a arma caçadeira em escrivaninhas de embutidos. Pintam-se tábuas podres ao domingo, para que pareçam obras do tempo dos Descobrimentos. Tudo très ancien. É moda ter coisas velhas", anota Santos Fernando. faz parte desta natureza de náufragos temporais, coleccionadores diluvianos. Há muito que uns tantos, não vendo forma de dar um jeito a isto, foram conspirando no sentido mais limitado de se porem à margem, tornando-se especialistas da simulação, compendiadores de pequenos males, com a sua capacidade de empunharem a doença, tornaram-se os seus subtis artífices. Compendiam-nas, submetem-se aos efeitos, e deram-se conta de que era um dos talentos mais úteis, essas doenças que se pode aprimorar e que substituem vantajosamente outros géneros, desde a balada ao soneto, ou mesmo a epopeia, para não falar do poema sem pés nem cabeças que hoje se usa, entre outros registos igualmente caducos. E, assim, alguns levaram adiante as suas investigações, desde que alguém se perguntou: "Com a ajuda de que artifícios encontraríamos a força da ilusão para irmos à procura de outra vida, de uma vida nova?" Agora que excisaram o futuro de entre as ambições e os territórios batidos pelos literatos, estes mergulharam nesses cemitérios subterrâneos das espécies desaparecidas, e os melhores escrevem como os primeiros inventores da arte, na parede das cavernas, a palma das suas mãos como uma cintilante extensão de sóis. Assim, a linguagem recupera alguma da sua força de murmúrio, esse apelo doloroso de quem, à noite, por uma nesga qualquer se põe a medir distâncias entre as estrelas. A poesia estaria mais próxima desses gestos, uma vez que imita "uma realidade da qual o nosso mundo possui apenas a intuição" (Cocteau). Neste episódio, depois de tanta insistência, fomos enfim visitados pelo Vasco Santos, pelo menos por um deles, uma vez que o verdadeiro é um ser que paira como uma nuvem e se ligou há muito à descontinuidade essencial do tempo. Um ser esquivo, que habita o vai-vem, mas comparece sobretudo para ver essas ilhas que passam desligadas da corrente, como navios, mas muito mais vastos, sendo um devoto desses rigores ébrios, da delicada interdependência dos homens, quando o pasmo lhes desacelera os impulsos, e captam essas longas e sacras noites perfumadas que passam devagar, suaves como sonhos. Ao longo dos anos tem-se persignado em alimentar o contacto mútuo, astuto, absorvidamente crítico, animoso, alimentando um microcosmos da comunhão, sendo ele mesmo um sobrevivente dessas outras aspirações, um exemplo vivo e real desse alto objectivo que antes era próprio dos seres com alguma capacidade de êxtase.    

    Misoginia, linchamentos e a economia do ressentimento. Outra conversa com Maria Lis

    Play Episode Listen Later Apr 4, 2025 257:38


    “Quero conhecer a puta./ A puta da cidade. A única./ A fornecedora./ Na rua de Baixo/ Onde é proibido passar./ Onde o ar é vidro ardendo/ E labaredas torram a língua/ De quem disser: Eu quero/ A puta/ Quero a puta quero a puta.// Ela arreganha dentes largos/ De longe. Na mata do cabelo/ Se abre toda, chupante/ Boca de mina amanteigada/ Quente. A puta quente.// É preciso crescer/ esta noite inteira sem parar (…)” Não é uma provocação, é Drummond de Andrade, o mais canalha dos anjos, o mais encarnado dessa hierarquia que se some pelo tecto da criação, o homem que envelheceu ainda de mochila às costas, indo sem querer para a escola, levando porrada no recreio, pedindo namoro à facção do outro lado, resumindo séculos de engate em bilhetinhos, que terminavam em escolha múltipla: “Sim”, “Não” ou “A gente logo vê”. Não estamos a querer simplificar, mas o fracasso amoroso implica ir batendo às portas, ir descendo, até ganhar coragem de atravessar a rua de baixo, onde nos cruzamos com essa “guardiã do limiar”, a prostituta que, segundo Benjamin, é essa figura sagrada e profana ao mesmo tempo, que guarda a passagem entre a cidade diurna e nocturna, entre o alto e o baixo. Hoje, só a vertigem ainda nos desperta. Por isso, dos anjos tudo o que nos resta é a queda, o desastre cumprido de forma ritual, que implica assumir uma escolha, muitas vezes a pior possível, até para não se entregar ao impasse como parece ser a regra entre os demais. Conhecem-se as delícias de não pensar, de não prever e acatar as obscuras transformações que devem fazer de nós homens novos, purificados, os nativos que invocam esse mundo novo, dissociado da realidade, fazendo por esquecer os cruzamentos da história e da cultura, emprestados a esse imenso coral eufórico, a uma sujeição constante da actividade individual aos imperativos da virtualidade. “O espaço social transformou-se num sistema mundial de ligações automáticas em que os indivíduos não podem experimentar a conjunção, mas apenas a ligação funcional. (…) A vida social prossegue, mais frenética do que nunca: o organismo vivo e consciente deixa-se invadir por funções matemáticas mortas e inconscientes”, vinca Franco ‘Bifo' Berardi. Há hoje uma docilidade a um futuro que renunciamos a forjar e que nos limitamos a augurar, e mesmo se contrariados, colaboramos, dominados por desejos narcísicos e impulsos manipulados. Ninguém encontra saída, mas afundamo-nos e temos cada vez mais dificuldade em estabelecer uma fronteira entre o que pensamos ou sentimos e aquilo que não passa de uma resposta induzida a uma cadeia insuperável de estímulos, a um regime de programação dos circuitos neuronais. Não nos reconhecemos uns nos outros, mas falamos a mesma língua quando exprimimos este intenso mal-estar. “Este clima de asfixia que impregna os pulmões/ de uma angústia ofegante de peixe recém-pescado”, escreve Oliverio Girondo. “Este fedor aderente e errabundo,/ que intoxica a vida,/ e nos some em viscosos pesadelos de lodo./ Este miasma corrupto,/ que insufla em nossos poros/ apetites de polvo,/ desejos de um parasita abjecto,/ não surge,/ não surgiu/ destes aglomerados de sórdida hemoglobina,/ cal viva,/ soda cáustica,/ hidrogénio,/ chichi úrico/ que infectam os colchões,/ os tectos,/ as veredas,/ com suas almas cariadas,/ com seus gestos leprosos./ Este olor homicida,/ rasteiro,/ inelutável,/ brota de outras raízes,/ arranca de outras fontes./ Através de anos mortos,/ de crepúsculos com ranço,/ de sepulcros gasosos,/ de cursos subterrâneos de rios,/ foi-se aglutinando com os sucos pestíferos/ os detritos hediondos,/ as corrosivas vísceras,/ as esquírolas pútridas que consentiram o crime,/ a idiotice purulenta,/ a iniquidade sem sexo,/ o gangrenoso engano;/ até surgir o ar,/ expandir-se no vento/ e tornar-se corpóreo;/ para abrir as janelas/ penetrar nos quartos/ agarrar-nos pela nuca,/ empurrar-nos para o nojo,/ enquanto grita seu contágio,/ sua aversão,/ seu desprezo,/ por tudo o que aquieta a aspereza das horas,/ por tudo o que alivia a angústia dos dias.” Neste episódio vamos falar da polémica que opões Madalena Sá Fernandes a João Pedro George, vamos tentar abordar os elementos de uma sanha acicatada em zonas onde se excitam os piores instintos, onde os enredos estão sempre previstos, e oferecem esse jogo em que, sem se apagar a luz, a condição dos números permite essa degradação de todo o discurso, uma exasperação dos elementos conflituantes, mas num grau tal de tensão que se suprime qualquer possibilidade de juízo crítico. “Outrora ainda se fingia respeitar a inteligência, a cultura, as atitudes cívicas e morais”, assinalava num texto já com um quarto de século José Miguel Silva. “Ninguém se atrevia a desdenhar publicamente a cultura ou a ideia de formação intelectual. Havia decerto nisso uma grande dose de hipocrisia. Mas a hipocrisia não é o mais baixo a que se pode descer: pelo menos revela ainda má consciência em relação a algo que no fundo (ainda que de forma meramente supersticiosa) se considera superior: os valores morais, a ideia de justiça, a honorabilidade da inteligência. Quando já nem hipocrisia existe, isso significa que só resta o cinismo. E o cinismo reside na constatação de que o sucesso mundano em nada depende da inteligência e da probidade, e no regozijo perante esse facto, que assume então visos de ‘libertador'.” Neste episódio convocámos a Maria Lis para uma tarefa bastante ingrata com ela nos levou a compreender ao longo desta discussão, explicando os motivos por que a possibilidade de transmitir verdadeiramente certas noções obrigaria a uma transformação tão profunda da condição daquele que escuta, que não teria apenas de o fazer com verdadeira disposição de se reconhecer nesse “outro” que é “a mulher”, mas admitir, ainda que momentaneamente, uma transfiguração profunda dos processos pelos quais nos comunicamos, deixando de lado a mera apreensão racional, para assumir uma verdadeira experiência dessa outra realidade, que, parecendo estar tão próxima, reside num pólo que em grande medida ainda nos é desconhecido.

    A grande guerra à realidade. Outra conversa com Rui Nunes

    Play Episode Listen Later Mar 28, 2025 237:05


    Este tipo masturba-se à sombra de uma árvore de que não sabe o nome, é espiado também desde um ninho qualquer por pássaros sem uma espécie que pudesse distinguir das demais, tem diante de si uns quantos cadáveres, rostos familiares dos filmes, das revistas, corpos que a sua fantasia se entretém a compor e decompor, enquanto procura um ângulo que o satisfaça. Em tempos escrevia umas coisas, foi publicado, tinha boas relações, e não demorou a ver-se como uma pequena vedeta no circuito, mas em breve já lhe parecia que arrastava o seu caixão atrás de si, pelas conversas que tinha, o tipo de preocupações e ansiedades que eram tão comuns, isto naquele país de fechaduras complicadas, com um trajecto que se perde por ali, enquanto tudo enferruja, entre os que tentavam garantir-se e construir a sua zona de privilégio. Cansou-se daquela correria, começando a preferir as páginas dos eruditos, tentando passar à clandestinidade, e, se possível, integrar o grupo dos escritores mais atacados pelos colegas, preparados para divisar, nas florestas dos textos, a sombra ominosa do deus a quem pretendiam barrar o caminho. Dedicou-se a períodos de ausência, cultivou os mistérios, mas já se sabe como é só por breve tempo que suporta o homem a plenitude divina, e voltou-lhe a apetecer que todos tivessem notícia dele. Acontece que, entretanto, se habituara a registar os devaneios, e por mais que se esforçasse não conseguia ele mesmo fazer sentido daquilo que se lhe impunha, acabando sempre as suas derivas ou divagações por se extinguirem demasiado cedo. Como se a escrita o recusasse. Virou-se para os versos, naturalmente. Passou a dormir no tal caixão. “Está-se bem no teu caixão de aço, poeta./ De que é que te escondes. Tens medo dos versos./ Não te preocupes. Ao menos não mentem./ Fazem o trabalho deles como a gente faz o nosso./ E talvez tivesses amor a mais por ti próprio/ E pelo teu trabalho. Eu cá trabalho por dinheiro./ O meu prazer é depois do trabalho, cerveja e mulheres./ Agora trata-se de esquecer o que representavas para eles/ Para cada um deles, poeta. A morte paga a pronto.” Andava cheio de vozes, não sabia onde começava ele ou uns versos de Heiner Müller como esses aí em cima. Dizia a quem estivesse disposto a aturá-lo que andava a semear fantasmas, fingia-se bêbado, meio louco, sempre num transe marado, vagabundo e sei lá que mais, pedia dinheiro para comprar palavras, tinha uma tabela, preços, e de tanto as medir começou a usá-las para fins maliciosos, andava por aí já podre de inimigos, aparecendo à porta duns e dumas, arranjando problemas, fazendo ameaças, deixava-lhes cartas que exibiam um grau de paciência demoníaca, recortando frases, às vezes palavras ou até letras das revistas, já se dizia um fabricante de trovões, em vez de livros queria submergir a cidade numa imensa tempestade… “Mas de mim eles vão dizer Ele/ Fez propostas Não as/ aceitámos. Porque é que havíamos de o fazer./ É isto que deve ficar escrito na minha sepultura e/ Que os pássaros lhe caguem em cima e/ Que as ervas cresçam no meu nome/ Escrito na pedra Por todos/ Quero ser esquecido um rastro na areia.” Mas antes disso, podia despedir-se, armar um estardalhaço como aquela cidade não supunha já que fosse possível de um literato, mesmo um proscrito. Havia de regressar aos jornais do inimigo, uma última vez, antes que fosse tão má ideia nomeá-lo como noticiar suicídios. “Para quem escrevemos/ Senão para os mortos omniscientes no pó”… A imortalidade começava então a parecer-lhe um castigo que não se deve desejar a ninguém. Passou a acreditar que os verdadeiros poetas fazem de tudo para ser esquecidos, para cercar de nojo mesmo os seus mais delirantemente belos tumultos juvenis, e pela aspereza, por confidências venenosas, compram os seus versos mais delicados de volta, garantindo que a sua divina rudeza os torna insuportáveis para a memória dos que só querem encher mais não sei quantas páginas com as suas próprias inanidades sonantes. “Porquê escrevê-lo, apenas porque as massas o querem ler?” É sempre música aquilo que mais se ouve nos períodos de acentuado declínio. “Quando já tudo foi dito, as vozes soam doces”, garante Müller. Mas e se ainda nada foi dito, e se há muito tempo ninguém diz nada, não se desencadeiam então esses períodos em que a coisa mais estranha que pode soar nesta terra seja uma voz humana? Não estamos esquecidos dos elementos que implantam dentro de nós a vertigem, antecipando na carne todos os elementos da queda. Os verdadeiros poetas são perseguidos, a sua atenção torna-os atreitos a depararem-se com acidentes em toda a parte, são esses anjos desditosos, caíram tantas vezes que quebraram todos os ossos dentro da cabeça, e só lhes é dado reconhecer em cada detalhe aquilo que se aproxima, o tal desfecho. Neste episódio Rui Nunes veio incitar-nos a abrirmos mão daquilo que já julgamos saber, veio desequilibrar-nos e à arrogância com que disputamos as ficções do mundo conhecido, para nos devolver à sua outra face, a do desconhecido. Veio lembrar-nos da força do desamparo, do desinteresse pelas tenebrosas sequências ou consequências de uma urdidura que nos precede e sufoca desde sempre. Ele diria apenas: “volto ao trabalho de escrever a deserção, embora me não doa como antigamente (…) lutar com as palavras, progredir/ pelo interior desta guerra até chegar/ à palavra única da perda, esmagá-la/ contra mim, obrigar-me a dizer/ o seu corpo dizimado./ O caos/ Os cacos”.

    A vergonha tem de mudar de lado. Uma conversa com Patrícia Portela

    Play Episode Listen Later Mar 21, 2025 285:06


    Não deveria haver coisa mais suja do que isso de pôr-se a escrever sem um fim claro, ir acerbilhando as frases de modo a gerar um grau qualquer de irrazoabilidade, uma relação suspeita, cujos esforços se tornam um motivo de perturbação à volta. “Começo a escrever. E quando o faço nada de bom se passa já no meu íntimo”, anota Santos Fernando. Na verdade, é essa a inflexão decisiva de uma escrita, quando nos damos conta de que não vem orientada por nenhum princípio edificante, ela impõe-se e nada de bom dali se pode esperar. E tudo nela se torna inquietante, desde logo um certo estilo híbrido, como um estranho ser cuja pele apenas transmitisse reflexos subtilmente distorcidos, e a sua superfície fosse ao mesmo tempo uma espécie de estômago, emaranhando a envolvência numa digestão laborosíssima, e fazendo o seu percurso, despedaçando com um humor algo cáustico tudo aquilo com que se cruza. Passou demasiado tempo desde que uma predisposição artística denunciava uma gente que se entregava a uma errância selvagem, figuras um tanto dissolutas, cujos modos se tornam raros, os gestos um tanto indecorosos, produzindo espontaneamente um cenário de clandestinidade ao seu redor. “Considero que a arte reflecte a moral e que não se pode renová-la sem levar uma vida perigosa e dando azo à mendicância”, escreve Jean Cocteau. Nenhum verdadeiro artista parte para a obra com um desejo de atingir a clareza. Desejáveis são as trevas. E não é uma questão de ser difícil, de se mostrar intratável, mas é a compreensão de que aquilo que nos escapa é o que tem para nós verdadeira gravidade e apelo, pois sinaliza esses mundos abolidos e os firmamentos extintos a partir do momento em que a imaginação já não ousa provocar verdadeiros desastres. “Não se trata de olhar sem compreender e de gozar gratuitamente de um charme decorativo”, insiste Cocteau. “Trata-se de pagar caro e de compreender com um sentido especial: o sentido do maravilhoso.” É preciso considerar o elemento pavoroso de uma ponderação que realmente se mostra disposta a suspender os valores que tomamos como essenciais. A partir de um certo ponto todo o verdadeiro pensamento deve provocar calafrios a quem se esforce por acompanhá-lo. Existe também a utilidade desses crimes que premeditamos longamente mesmo sem fazermos realmente tenção de os levar a cabo, mas apenas para gozar do elemento sinistro, e confessar-se, criando um nível de intimidade e partilha inesperados ao exprimir um ânimo vingativo, admitindo a dimensão de pavor dos desejos que formulamos com aquele gozo de um ser em sentir-se a retorcer, os tais desejos impossíveis por reconhecermos neles um excesso de consequências. Mas, sendo a vida aquilo que é, as fantasias tendem a ir enegrecendo, a assumir um teor cada vez mais perverso. E talvez não falte muito para que a arte não se possa já distinguir de uma conduta criminosa. “Noutros tempos, cheguei, por vezes a interrogar-me por que motivo os santos queriam tanto infligir a si próprios tormentos corporais”, escreve Rilke… “só agora compreendo que esse gosto do sofrimento até ao martírio era uma manifestação da urgência, da impaciência de não mais voltarem a ser interrompidos, nem incomodados, inclusivamente pelo que lhes poderia acontecer de pior. Tenho dias em que não aguento ver pessoas, com medo de que rebente nelas uma dor capaz de lhes arrancar gritos, tão forte é a minha angústia de que o corpo, como frequentemente acontece, abuse da alma, que nos animais encontra o seu repouso, mas a segurança só nos anjos a pode encontrar.” Esta segunda parte já não combina com estes dias sobre os quais atiramos ingenuamente pronomes possessivos. Na verdade, parece que em muitos casos aquilo que é preciso é abusar das almas, castigar os corpos o suficiente para que a matéria volte a reunir-se em torno de algum eixo. Entrámos por um caminho que aponta sempre na mesma direcção, e vai ao sabor democrático do baratuncho, assim os próprios poetas são coagidos a darem explicações e a balizarem os seus projectos ainda antes de se lançarem nas investigações que, idealmente, deveriam virar-lhes a vida do avesso, trucidando cada uma das expectativas que traziam. “As pessoas exigem que se lhes explique a poesia”, anota Cocteau. “Não sabem que a poesia é um mundo fechado que recebe muito pouca gente, e que chega mesmo a não receber ninguém.” Anda tudo tão conveniente, mas depois estamos todos fartos, ou apenas entretidos, distraídos, e assim. Idealmente as obras deveriam ser elas mesmas os inimigos daqueles que se viram obrigados a empenhar tudo para as arrancar de entre as partes mais vulneráveis da matéria e de si mesmos. Ora, este episódio cedo se lançou na investigação do descalabro, e convidámos uma especialista, instigadora desses acessos desejantes, alguém a quem parece animar a irresolução de quem não se revê na sua própria condição, alimentando-se da suspeita de que há muita coisa por aqui que não bate certo. Patrícia Portela aliou-se a nós neste esforço de traduzir toda a urgência e crueldade nas piores injúrias de forma a, pelo menos, causarmos alguma comichão que leve a coçar-se este tempo de calmaria podre mesmo estando o abismo em saldos.

    As mais novas cartas portuguesas. Uma conversa com Sara Araújo

    Play Episode Listen Later Mar 14, 2025 298:32


    "A poesia é onde tudo acontece”, escreveu Alejandra Pizarnik. E adiantou que dizer “liberdade” e “verdade” em referência ao mundo em que vivemos (ou não vivemos) é dizer uma mentira. “Só não é mentira quando se atribui estas palavras à poesia: o lugar onde tudo é possível.” Mas há muito que deixou de ser assim entre nós. Por cá a poesia é o lugar onde nada acontece, e são realmente muito poucos aqueles que declaradamente assumem a poesia como fala da insubmissão, e que através dela manifestam desprezo pelas formas do poder. Por essa razão, como já alguns fizeram questão de sublinhar, a poesia deve ser feita contra a poesia, e contra essa noção que hoje se vai tendo do poeta como personagem que se dá ares precisamente para esconder que nada tem a dizer, “e que por isso verseja, com vista a produzir um efeito, um prestígio que influa positivamente nas hierarquias do poder e do dinheiro” (Júlio Henriques). Começa a ser difícil perceber em que momento é que a poesia escapa a ser um desses discursos acomodatícios, alimentando o álibi cultural daqueles que gostam de ser vistos a patrocinar as artes e ver-se cercados dessas criações de estufa. Já a propósito das publicações colectivas que se têm generalizado nos nossos dias, desses almanaques ou antologias sempre a fim do regime celebratório, à boleia de comemorações e efemérides, Alfonso Berardinelli falava na importância de se impor algum critério de objectividade que rompesse com a tendência dos poetas de hoje para se auto-consolarem no seu pequeno gueto, onde nada nem ninguém os contradiz. “Os poetas criaram uma zona protegida para si próprios, contentam-se com pouco, esperam pouco de si próprios, são susceptíveis e vaidosos, mas não têm uma verdadeira ambição. Já não têm as grandes ambições que os poetas sempre tiveram – os quais podiam não alcançar grande repercussão, mas contavam com o valor e o poder dos seus versos. A força dos poetas sempre foi esta.” No ambiente desolador que por cá passa por espaço literário, há muito que se confunde o campo de criação literária com o da circulação dos livros, quando essa forma de proliferação apenas sinaliza como o meio editorial se tornou afim da agenda de consumo que nos vai sendo imposta, dissolvendo a perspectiva crítica nesse favor que promove um consenso ideológico e sem margem para os gestos de recusa e de confronto. À semelhança do que aconteceu com a poesia, e com tantas das categorias artísticas, os próprios movimentos de contestação social viram-se subsumidos às retóricas de reprodução de avatares sociais e identidades digitais, num processo que dá primazia às formas de autorrepresentação. Tudo é uma miragem, uma peça de teatro cujo cenário não tem centro, nem corpo ou geografia. Também o feminismo que assume mais visibilidade é cada vez mais uma forma de auto-indulgência, quase um reflexo de ordem narcisista, como nos diz Jessa Crispin. “Eu defino-me como feminista e por isso tudo o que faço é um acto feminista..." Trata-se de um argumento político de tal modo evidente e poderoso, que a melhor forma de o esvaziar passou por cooptá-lo como uma estética e uma forma de merchandising. No seu manifesto feminista – "Why I am not a feminist" –, Crispin vinca que a história do feminismo tem sido marcada por um “pequeno número de mulheres radicais, muitíssimo empenhadas, e que há custa de um enorme sacrifício fizeram avançar a posição das mulheres, normalmente através de actos e palavras chocantes”, sendo que a “maioria das mulheres, embora tenha beneficiado imensamente do desafio e do empenho dessas poucas, tratavam logo que possível de se dissociar delas”. Esta ensaísta norte-americana que recupera e honra as posições da segunda vaga feminista é implacável na denúncia do individualismo e do capitalismo, sistemas de valores que, segundo ela, distorceram totalmente os propósitos e o alcance do feminismo, encorajando as mulheres a pensar no movimento apenas na medida em que este conduz a ganhos individuais. “As últimas duas décadas dessa forma de feminismo enquanto lifestyle levou tantas mulheres a partirem do princípio que a coerência com o feminismo não significa abdicarem nem recusarem-se seja ao que for. Bastava vestirem o rótulo, e nem era justo que se sentissem pressionadas a renunciar ao casamento, à cultura popular misógina, às roupas de fábrica ou às carreiras corporativas para se alinharem com os princípios feministas – e o facto é que muitos dos nossos ‘intelectuais de proa' feministas se têm dedicado a todas as formas de contorcionismo no sentido de demonstrar como, não só nenhuma destas coisas é anti-feminista, como, na verdade, fortalecem o movimento.” Sara Araújo, a nossa convidada neste episódio, encarna bem esse trabalho árduo e o empenho que é essencial para que seja possível voltar a colocar a tónica no desmantelamento das hierarquias e dos elementos de opressão social que sempre estiveram na mira da crítica feminista. Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra durante quase duas décadas, acabou por cortar com aquela instituição na mesma altura em que vinham a lume as alegações sobre o clima de predação sexual e intimidação ou assédio moral no seio desta. Hoje, é uma das figuras chave no mais significativo acto de insurreição contra as estruturas despóticas que persistem na academia, que, volvidos 50 anos do 25 de Abril, ainda é essa incubadora dos mecanismos de poder e repressão que alimentavam a nossa ditadura tão afeiçoada aos seus pergaminhos catedráticos.

    Jornais, orquestras, tripulações e naufrágios. Uma conversa com João Sedas Nunes

    Play Episode Listen Later Mar 7, 2025 226:09


    Uma boa redacção é um cruzamento entre um navio daqueles do século XVII e uma tremenda orquestra, um sítio que em si mesmo vai a caminho, e transporta um profundo tumulto, esperanças, fúrias, um convívio pouco vigiado, alentado por todo o género de substâncias, quimícas, imaginárias, o raio, é um sítio laborioso, grave, atarefado, às vezes absurdamente tenso, outros explodindo de ânimo, risos, e que está sempre a tremer no ar do dia seguinte. É uma catedral onde buscam refúgio os seres que não estão bem com a vida como ela é, e querem enganá-la, produzir-lhe uma ilusão menos mesquinha. Combinam-se ali todas as influências, planos doentios, os mais ingénuos activismos, tudo num romance agitado, e sempre convencidos de que de uma frase que se escreva ali pode gerar-se alguma convulsão, arrancar um gemido às fundações desta porra. De algum modo, nos jornais tenta-se abrir uma jazida a partir do inexistente, convocar outras relações de ordem. Às vezes até há quem abra um livro da Llansol, e leia alto para acicatar os demais: "Sempre a inexistência tem mais força?" E depois, algum outro assente e prossegue: "No fundo o que existe provou já a sua fraca intensidade. Depois da infância o universo só interessa aos distraídos. Pois bem: acolher o invisível como a única notícia insólita” (Gonçalo M. Tavares). Anda-se ali a trabalhar para que o esforço e o talento combinado daquelas paixões e ódios revezando-se possa dar origem a um órgão para sempre inacabado, como uma força de impulsão que relembre como o momento mais importante é esse em que se admite que o principal ainda não foi feito, que, no fundo, ainda está tudo por fazer. Para lá de uma certa superfície de mundanidade, o mais importante é mergulhar para além dessa censura dissimulada das expectativas, ter a audácia de decepcionar repetida e magnificamente aqueles que só esperam dos jornais que produzam o ruído de fundo que dá a sensação de que tudo segue normalmente. Como se lê numa das casas pardas, “o mau é cada um ao seu, quem não gosta do que há devia ser do toma lá, dá cá”. A propósito da morte de José António Saraiva, lançamo-nos nalgumas considerações sobre aquilo que tem restado por aí, com dificuldade em salvar-se dos interesses e da propaganda, esse vago panteão de figuras enterradas em vida, que resistiram como podiam, alguns virando-se para aquele quixotismo alucinado, outros servindo-se desse handicap de crepúsculo dos deuses nada wagneriano para se entregarem a uma barafustação umas vezes melancólica, outras raivosa, mas apropriada a um animal acossado e já moribundo. Algum do melhor jornalismo degenera num monólogo irado, mas, por estes dias, essas tripulações parecem ter debandado, espalharam-se, adoeceram, estão trancados alguns com os vícios que lhes restaram nalgum buraco, e os vizinhos poderão escutá-los no corredor: "nunca faltei à verdade, mas rais parta a vida que quanto mais abro os olhos mais nojo me dá, que ele não falta aí gente a quem se demoramos o olhar logo lançam em tom de desabafo que isto tem que levar uma volta, ó se tem, mas uma volta?, isto precisa é de um naufrágio de todo o tamanho, para levar daqui a merda dos que nem se agacham para cagar..." O que restou desse ânimo, encontra-se ainda nalguns desses livros que pareciam nascer contagiados como sinfonias daquela convivência toda, livros que parecem estar para ali numa luta consigo próprios, a tentar segurar-se. E o que neles mais nos convence é como mordem a mão que se lhes chega, que abre aquilo ao meio para o olhar logo se ver assaltado por uma frase que, de mangas arregaçadas, num impulso medonho, está ali a digerir uma intriga dos diabos, e mesmo se o largamos, o livro põe-se a pulsar a um canto, e mal te agarra de novo continua louco e amotinado ao fim de tantas páginas, a ponto de o seu ritmo se te meter na corrente. Mas o tão frágeis, o tão desligados que andamos vem de nos assuntar a ideia não só dos jornais como esses livros feitos em comum, não só dessa actividade dos espíritos em que a todo o momento fica claro como os nomes cedem e o que importa são os turnos, como se lida com as vagas também num quadro de sucessão, como este reforça aquele, pega onde o outro deixou a coisa e adianta mais uns metros ou quilómetros. A ambição era essa, gestos em comum, alargados, assumindo maior alcance, outra repercussão, podendo sempre ser retomados, revistos, corridos e transformados. Mas há uma espécie de terror de uma cultura desabrida, e desse efeito de refracção e mutação imparável. "Poderíamos, enfim, ser mais os poetas nados e criados, se não te temeras tanto da corporalidade extrema de toda a mutação, mudança que valha", escreve Maria Velho da Costa. E neste episódio João Sedas Nunes, filho da escritora, ele mesmo um espírito bastante inquieto, que se tem dedicado à sociologia e assume o gosto por explorar temas tantas vezes ingratos, as feridas nas relações sociais, estendendo as interrogações sobre o trabalho e as questões de inserção, a juventude, o desporto, e o futebol em particular, veio para que discutíssemos algumas dificuldades e apreensões, os dilemas da senescência nos nossos dias, do desconjuntamento económico, mas também a nossa admiração a diferentes níveis pela autora de "Maina Mendes".

    O surrealismo e a astúcia popular. Uma conversa com B Fachada

    Play Episode Listen Later Feb 28, 2025 272:00


    Muitos parecem deslumbrados com a época e a sua tolerância, o seu enredo caprichoso, a sua ânsia de tudo deglutir, de acolher todos os deserdados, todos esses que vão sendo empurrados para o amontoado, formando a grande pilha, nessa construção que ganha altura apenas para que tudo fique confinado à sombra que projecta. A imensa variedade de que as comunidades se compunham, as periferias com as suas diferenças, tudo se vê invadido pelo centro, que produz uma lei da gravidade que tudo desfigura. Como assinalava Pasolini, "as estradas, a motorização, etc., uniram estreitamente a periferia ao centro, abolindo qualquer distância material". "Mas a revolução dos meios de informação foi ainda mais radical e decisiva. Por meio da televisão, o centro assimilou o país inteiro, que era historicamente tão diferenciado e rico em culturas originais." Isto significa que, hoje, todos aqueles que provêm de alguma região distante, de um tempo distante, de uma outra relação ou convicção, estão sujeitos a ser acusados de um desvio, um efeito de perturbação. Dentro dos elementos a partir dos quais o centro organiza a sua rede de influência e coação, qualquer diferença é vista como suspeita, e gera sobre o estranho algum tipo de caricatura ou preconceito. As variações culturais, de linguagem, os sotaques, os elementos que são específicos de zonas delimitadas, onde foi possível produzir algum devaneio, oscilações, metamorfoses difíceis de situar ou capturar, tudo isso vem sendo denunciado à medida que o centro os cobre na sua sombra, procurando dar lugar "a uma cultura homogénea, estática, onde a linguagem oral é, agora, semelhante à linguagem escrita - e ambas igualmente pobres, sem exuberância, sem margem para a improdutividade", nota João Oliveira Duarte. "Continua a haver 'cultura popular'. Mas observemos o que se passa hoje sob esse nome um pouco por toda a Europa, os programas de televisão, os concursos, o divertimento para ocupação das horas vazias: onde havia exuberância, mesmo convivendo com a miséria, com violência, há hoje uma igualdade monótona e uma lógica do pastiche." A cultura passou a funcionar como uma forma de arrogância, com as suas sínteses descaradas, procurando nivelar e suprimir todos os elementos que lhe resistam, que lhe ofereçam atrito. O consumo acelerado exige um mesmo regime de processamento, de tal modo que o farisaísmo triunfou em toda a linha, e aquilo que esta feição cultural pretende é gerar esse ser que se contenta com qualquer coisa, que não procura dores de cabeça, antes conciliando a practicidade da vida quotidiana com a incontestabilidade da religião do lucro, limitando-se a dar uma no cravo e outra na ferradura, e, no fim, submete-se. Como lembra Pasolini, a luta progressista pela democratização expressiva e pela liberação sexual foi brutalmente superada e tornada vã pela decisão do poder consumista de conceber uma vasta (e, ao mesmo tempo, falsa) tolerância". Contra o desespero e as formas de desacato, contra a desilusão que hoje se exprime de forma suicidária, os nossos democratas continuam a pregar a moderação, as velhas fantasias hipócritas, a paciência, a tolerância. Mas a cólera tem vindo a contagiar tudo, num esforço comum, ainda que tão desorientado, no sentido de despedaçar este tempo morto. Enquanto isso, vendem-nos um conformismo e um bem-estar que descura inteiramente a génese cultural do desejo: "a liberdade humana é consciência, imaginação, construção linguística na ausência de alicerces ontológicos", diz-nos 'Bifo' Berardi. "É nessa dimensão que se dá a aventura moderna: só em segunda instância tem que ver com liberdade política; em primeiro lugar, tem que ver com indeterminação ontológica, autonomia em relação ao Ser." Mas, hoje, os fascismos são antes de tudo esses programas aspiracionais, esse enredo que procura a dissolução dos elementos de comunhão, de coesão social, instituindo um quadro de competição pelo sucesso, e ligando a realização pessoal ao dramatismo insonso identitário, em que cada um se sujeita a existir num perpétuo casting, tentando provar a genuinidade entre a sua realidade e o personagem que gostaria de representar. Neste episódio, contámos com o ídolo do avesso, um bruxo que fez da música esse ouvido encostado ao chão do mundo como a um peito, a refazer a infinitude plena da imperfeição, do gozo sideral que se obtém por meio da errância. B Fachada gosta dos mundos possíveis, não abdica dos processos falíveis nem vive para as gerais abébias, mas vem praticando uma experimentação comprometida com este tempo e este lugar, e revelando uma consistência crítica e uma habilidade extraordinária para se libertar dessa sórdida tristeza dos que acham que está tudo feito, e só resta ir ensaiando ao espelho uns esgares e expressões de enfado.

    Espantar os limites da visão. Uma conversa com Carlos Vidal

    Play Episode Listen Later Feb 21, 2025 189:34


    Talvez o homem seja esse animal trágico condenado a gerar os predadores que acabarão por lhe dar caça e levá-lo a uma submissão permanente ou, até, à extinção. Mas antes de dar forma a uma razão exterior, fomo-nos desprotegendo, expandindo o elemento sacrificial e degradante dos mais fracos pelos mais fortes, até nos condicionarmos a uma existência em que cada homem é o seu próprio inimigo, deixando-se inocular de um vírus que o destrói a partir de dentro. Pensemos como vivemos presos às imagens, dominados e sem nos podermos libertar do fascínio que estas exercem sobre nós, de tal modo que sacrificámos a nossa linguagem a elas. Num excerto da Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, pode ler-se isto: “Lembra-te amiúde do que diz o Eclesiastes: ‘o olho não se farta de ver nem o ouvido de ouvir'. Procura, pois, desprender o teu coração das coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis, porque os olhos que se entregam à sensualidade mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” Vivemos encerrados, manietados por fantasias cada vez mais espúrias, delirando à beira da inconsciência, e até de forma cada vez mais ignara, sem nem nos sujeitarmos à inspiração e aos desafios que os antigos colocavam tentando alcançar e preencher o último horizonte, essa “orla mítica do mundo”. Cada vez mais inábeis na hora de nos lançarmos naquela exploração de que só uma imaginação treinada para tarefas de batedora dos mais ermos e improváveis terrenos é capaz, ficámos sujeitos a essa forma de câmbio da realidade pelas imagens, incapazes de recuperar uma experiência desta que produza um verdadeiro abalo dos sentidos e da inteligência. Num dos seus ensaios, Wagner lembrava como “nos vastos espaços do anfiteatro grego era a totalidade do povo que participava nas representações. Pelo contrário, nos nossos mais distintos teatros preguiçam apenas os ricos. Os Gregos iam buscar os materiais da sua arte aos produtos mais elevados da cultura comunitária. (…) O embotamento típico da educação contemporânea, na maior parte dos casos meramente orientada na perspectiva do lucro industrial, dá-nos uma satisfação idiota e simultaneamente orgulhosa da nossa inaptidão artística e ensina-nos a procurar os objectos da experiência estética fora de nós, aproximadamente com o mesmo tipo de desejo com que o depravado procura junto de uma prostituta um fugaz prazer amoroso.” Nos nossos dias, fomos abdicando da dificuldade e dos processos de enamoramento e sedução, desistindo desses aspectos de recriação a partir dos quais se funda uma identidade autónoma, sempre em relação com o outro, e traímos a busca do prazer por esse substituto mais certo que é a descarga de adrenalina. Formamo-nos como seres ansiosos, capturados por uma condição generalizada de anestesia na sequência de uma tensão contínua, e o remédio para todas as nossas crises passa por aumentar a dose desta realidade de substituição, acelerar o ritmo, intensificar os estímulos e o efeito de estimulação do sistema nervoso. Estamos sempre ligados, mas num presente que se arreda da vida, consumindo a própria ausência, sequências de imagens fugitivas, um mundo impossível de tocar ou saborear, e nos raros momentos em que nos afastamos, entramos numa espécie de ressaca que torna a realidade que não desapareceu nem foi devastada entretanto ainda mais desagradável para esses sentidos atrofiados pelos fluxos de neuro-estimulação. Uma verdadeira revolução hoje teria de começar por um corte geral dos sistemas de enervação, de modo a que a emoção de sentir um corpo próximo pudesse fazer-nos superar essas inibições que estão a gerar indivíduos cada vez mais isolados e indiferentes. Um dos mistérios mais cativantes do conhecimento que fazemos da realidade, e de que todos os grandes poetas em algum momento se dão conta, foi expresso por Heidegger quando notou que, quanto mais conhecidas se lhes tornam as coisas cognoscíveis, mais estranhas são e permanecem para eles. É como se o mundo preservasse o seu fascínio não admitindo a posse, mas instigando um elemento de errância, de busca incessante. A certa altura, as letras do mundo tornam-se etéreas, essas serifas de mármore, sólidas hastes erguidas nas rochas e postas nos ápices, e que ascendem como as colunas na história… Assim, da mesma forma como nos debruçamos tentando traduzir relevos antigos, também a carne pode beneficiar da mesma atenção minuciosa, fazendo de nós seres que empurram e se descobrem e transformam por meio de uma afeição delirante. Neste episódio, vamo-nos deter sobre as transformações que se têm operado ao nível da biopolítica e que têm constituído a mais severa ameaça que as democracias modernas alguma vez enfrentaram. Seguindo o diagnóstico da mutação antropológica que se tem operado a nível cognitivo, vamos procurar perceber como as imagens são as armas às quais temos vindo a sucumbir. Para nos guiar e expandir a perspectiva crítica sobre a degradação dos nossos contactos e percepções, Carlos Vidal juntou-se a nós. Artista, crítico e professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, tem uma extensa obra teórica que se detêm sobre a falibilidade da visão e tudo aquilo que faz de nós vítimas tão voluntárias das “aparições” espectaculares.

    Mapa para não enlouquecer de vez. Uma conversa com Serena Cacchioli

    Play Episode Listen Later Feb 15, 2025 226:47


    Um tipo passeia-se entre as ilhas e as estantes de uma livraria, abre os livros colocados em destaque, e nem a sensação tem de estar à janela, seguindo figuras em ponto pequeno lá em baixo, muito menos vultos que se deslocam noutra dimensão, antes parece que só vê cortinados. Há quem se delicie com os padrões, os bordados, como há quem prefira olhar para frutos num quadro, em vez de os ter numa cesta, à distância de um impulso. Às vezes, ao fim de umas frases, envelhecemos, a língua fica como um peso morto, incapaz de tocar com a ponta o céu da boca. Não há tédio como aquele que se sente perante um livro invariável, incapaz de deslocar sequer ligeiramente a nossa perspectiva. Ainda somos capazes de perdoar as noções disparatadas, aqueles humores absurdos, mas que um texto seja de tal modo insípido que não nos provoque outra sensação além de cansaço, isso, sim, nos parece imperdoável. Quando abrimos um livro, move-nos sem que o saibamos a imortalidade, e não menos fundamentalmente a insatisfação, essa busca de um sentido inesperado, capaz de mergulhar em aspectos raros da existência, trabalhando nalguma explicação engenhosa. O que menos nos apetece é sermos envolvidos numa toada mais ou menos arfante e indiferenciada, mas antes dar com um percurso que nunca faríamos por nós mesmos, precipitados por uma inteligência que nos faz mergulhar numa outra substância dos dias, subitamente intensificada, dando-nos acesso a elementos de ligação que, sem o sabermos, já existiam em nós próprios, mas não por uma ordem que nos permitisse exprimi-los. Lemos para nos distanciarmos de nós mesmos, para superarmos os vícios e as rotinas do nosso juízo, procurando aprofundar as grandes articulações do mundo. Não é bem a realidade que nos maça, mas esta habituação às nossas ideias, o que nos empurra para uma certa indiferença, cadências desgastantes. Estavas a meio disto, de nada, de ti próprio, quando alguém te ligou e quis saber como andas. Não havia nada que pudesses dizer. Às vezes há diálogos que se repetem uma e outra vez pelos séculos. Soluçaste: "O ócio é fatigante." E do outro lado, ouviste uma frase que em tempos copiaste para um caderno: "Isso acontece, como bem sabes, porque estando os demais ocupados, nos falta companhia; mas se todos fossem ociosos, nunca nos aborreceríamos; passaríamos o tempo a entreter-nos uns aos outros." Cada um deveria ser obrigado a sair de casa com duas ou três páginas de anotações e citações para infiltrar ao logo do dia nas conversas, mesmo que desse a sensação de estarmos a jogar à batalha naval, tentando afundar a frota uns dos outros. Se não for assim, nos dias que correm, não nos deparamos com desafios animadores nem imprevistos de espécie nenhuma. Esta falta de um sentido profundo contaminou tudo, corroeu os fundamentos, deixou o mundo da experiência exposto na sua fragilidade, deslassado, fragmentado. Não demorará muito para que metade da humanidade esteja rendida aos sistemas de inteligência artificial, e estes é que serão transplantados para esses corpos incapazes por si mesmos de sustentar uma conversa que cative, seduza ou faça estremecer seja quem for. Que competição poderemos oferecer a algoritmos afinados a cada interacção para estender ao infinito o loop de informações, sobretudo se as máquinas forem capazes de simular esses sinais de afeição que nós próprios já nem praticamos. Fala-se de uma praga de narcisistas, mas somos mais como seres que perderam o seu reflexo, que não mais se dedicaram a projecções e reinvenções de si mesmos. Parecemos contentes por ser exactamente como somos. Talvez não seja assim tão mau se as máquinas atravessarem esta carne, desde que possam restituir-nos essa dimensão fantasiosa dos reflexos que trocávamos, a trama de engates. Perseguidos até à extinção, nem já cupidos se avistam, e até as flores se tornaram uma forma de insulto, ou, quando em grande número, formando coroas, uma ameaça de morte. Alguns pesquisam e encomendam pacotes de sonhos no Google. Fode-se mais por recomendação dos cardiologistas, e para preservar velhas tradições, ou apenas para benefício das máquinas, uma vez que toda a perversão e os vícios voyeuristas ficaram do lado delas. A nós basta-nos a estimulação por impulsos eléctricos. Trocámos de lugar. Devoram a nossa literatura, os filmes, a música, esforçam os seus circuitos para produzirem ecos capazes de abalar os mortos. São elas que visitam os cemitérios, e choram pelos últimos que foram capazes de algum registo irrepetível. Já nós, não passamos de sequelas, e a tensão mortal continua a dissipar-se. Este episódio ainda é do tempo em que éramos estranhos para nós mesmos, em que tocávamos ao nosso próprio ombro, e repetíamos inseguramente os nossos próprios nomes. A Serena Cacchioli, tradutora para a gaveta, autora de um alfabeto de distâncias cosidas por sussurros, abdicou da noite de Dia de São Valentim para vir descoser a bainha da história que contamos uns aos outros sobre quem somos. Veio falar-nos de ter esquecido finalmente as razões porque trocou Itália pelo nosso país, talvez porque, a 90 dias de receber o cartão do cidadão luso, já não precise de um motivo, e seja tão portuguesa como qualquer um de nós, o que significa estar de algum modo resignada a viver à deriva, neste país que continua a ser só aquilo que o mar não quis.

    Encontrar a nossa partitura física. Uma conversa com Cátia Terrinca

    Play Episode Listen Later Feb 7, 2025 155:29


    Ainda que nos tenhamos tornado imensamente hábeis na hora de produzir diagnósticos da nossa época, aquilo que virá, vem e consegue sempre atingir-nos como um atropelo. O futuro surge sempre como um intruso, que abala as previsões, chega a escarnecer delas. Talvez isso funde o optimismo daqueles que vivem para o futuro como para uma vingança, mesmo que esta não possa ser encenada a seu favor. Pior seria se se acomodassem às coisas tal qual estas estão. Certa vez, enfrentando uma barragem de recriminações da parte da crítica soviética, avessa a qualquer esboço de lirismo e subjectividade, Maiakóvski defendeu-se com estas palavras: "Aqui se diz que no meu poema não se deve colher uma mensagem geral. Em primeiro lugar, li apenas trechos, mas já nesses trechos citados, há um único eixo importante: o viver quotidiano. Aquele viver em que nada muda, aquele viver que se manifesta hoje como o nosso pior inimigo e que faz de nós filisteus." Parecem ser cada vez mais aqueles que se entregam a uma relação fria, bastante cínica, com as noções, as ideias, as leituras que vão fazendo, a todo o momento servem-se de razões contra a acção, formulam sempre os seus conhecimentos de forma a conjugar-se com a rede de determinismos ou conformismos que vão erodindo o campo de possibilidades. Têm demasiada pressa em concluir que não há volta a dar, não há saída. O jornalista e ensaísta francês Vicent Cocquebert identifica uma pulsão difusa que se operou com a omnipresença dos meios digitais para uma forma de narcisismo à medida que, da cultura ao consumo, passando pelos lazeres e mesmo pelas relações sociais, nos transformámos em "grandes organizadores dos nossos mundinhos tecno-domésticos". "Estamos agora encolhidos dentro de nós mesmos e em luta permanente com um mundo que já não queremos mudar colectivamente, mas submeter à nossa vontade", diz-nos ele. "É como se, além de termos integrado as lógicas capitalistas da escolha e da rentabilidade em diversos domínios das nossas existências (sentimental, profissional, política), tivéssemos agora adoptado a postura do 'consumidor-senhor' dos nossos (minúsculos) reinos, nos quais o outro, quando não corresponde inteiramente às nossas expectativas, se torna inevitavelmente um obstáculo." Cocquebert traça aqui um regime de exclusão, a emergência de uma cultura do casulo, a qual tende a fazer-nos ver o exterior como exageradamente hostil, em vez de criar uma ligação dinâmica entre o indivíduo e a sociedade. Cada vez mais o mundo precisa pedir-nos licença, ficando sujeito a um intervalo cada vez mais dilatado, a largos períodos de quarentena, sendo submetido a uma série de actos de inspecção antes que lhe seja admitida qualquer interjeição. Ora, isto é precisamente o contrário da atitude de disponibilidade dos exploradores, daqueles que se alimentam da carne do acaso, desse tipo de criadores que gostam de sujeitar a imaginação às grandes derivas, e se mostram aptos a levar em conta a quantidade fantaástica de sons e formas que a cada passo das nossas vidas podemos captar. Nesse sentido, os poetas são menos os inventores do que espíritos que se acendem pela possibilidade de combinar e recombinar elementos e detalhes, todos os restos, ir investigar rastos, enxames, zumbidos... O motivo porque nos sentimos a desmoronar, incapazes de ser coerentes com nós próprios, de ligar por um fio os nossos gestos, tudo isso que leva a que nos sintamos dominados por uma vontade que nos estranha, aí surge uma patologia própria deste tempo: a sensação dolorosa de que as coisas nos fogem entre as mãos, a sensação de esmagamento provocada pela velocidade, pelo ruído, pela violência, a sensação de ansiedade, pânico, caos mental. Franco "Bifo" Berardi assinala como tudo isto provoca em nós uma crise dolorosa, uma série de sintomas que apontam para essa necessidade de procurar uma ordem para o mundo, um incentivo para construir uma ponte sobre o abismo da entropia, uma ponte entre várias mentes singulares. "É através desta conjugação que o sentido do mundo se vê evocado e posto em prática: semiose partilhada, respiração em consonância." Neste episódio, o guião desfez-se-nos nas mãos, mas demorámo-nos sobre a fragilidade que se sente hoje pela falta de coerência do mundo, ou pelo menos do esforço comum de projecção de um sentido. Cátia Terrinca, que tem desenvolvido um percurso ligado ao teatro e à performance, reivindica para si a condição de intérprete, não o mero abandono a um texto dramatúrgico, mas a sua interrogação, e veio falar connosco e assinalar o efeito da repetição para denunciar o tempo, como a experiência nasce de um cerco que se faz valer menos do que julgamos saber do que dos elementos de resistência que caracterizam um longo processo de digestão. Aí há margem não apenas para a intuição de uma infinitude de possibilidades, mas também para essa deriva que convoca o acaso e desdobra cada oportunidade numa situação de jogo.

    Desamparados frente à noite. Uma conversa com Pedro Levi Bismarck

    Play Episode Listen Later Feb 2, 2025 261:15


    Desta vez, subimos uns galhos para respirar outra coisa, para desoxidar a alma do imobilismo lisboeta, deram-nos margem para uma breve digressão, para ir saber a que distância ainda é possível estender a voz, desenterrar os ossos de alguns ecos, isto sendo certo que o exercício de um discurso crítico ou artístico só pode ter algum papel assim que se desenvencilhe de privilégios. Tende a ficar claro que, hoje, só o que está em fuga permanece, apenas aquilo que não se resolve diante de si mesmo, no sufoco do seu reflexo, só aquilo que absorve os elementos de discórdia ao seu redor, tem alguma possibilidade de se autonomizar face ao presente. Como alertava Heiner Müller, que quisemos arrastar na bagageira, as obras de arte tenderão a ser prisões e as obras-primas cúmplices do poder. Pelo contrário, bebendo a sua água feroz pelas mãos do quotidiano, os grandes textos “trabalham para a liquidação da sua autonomia, produto do deboche com a propriedade privada, trabalham para a expropriação e, em última análise, para o desaparecimento do autor”. Devemos cair nas coisas dos outros, viver a relação mais íntima, ser as pulgas insaciáveis da tradição e dos mortos, retomar-lhes os textos à semelhança deste inclemente montador, atacar os grandes reservatórios, alimentar a distância mais persuasiva, restaurar as propriedades perdidas, inventá-las. A propósito, eis uns versos de Novalis dedicados a um outro poeta que lhe permitiu uma visão de magnífica abertura: “Quando a chave de toda a criatura/ seja mais do que número e figura,/ e quando esses que beijam com os lábios,/ e os cantores, sejam mais que os sábios,/ e quando o mundo inteiro, intenso, vibre/ devolvido ao viver da vida livre,/ e quando luz e sombra, sempre unidas,/ celebrem núpcias íntimas, luzidas,/ quando em lendas e líricas canções/ escreverem a história das nações,/ então, a palavra misteriosa/ destruirá toda a essência mentirosa.” Hoje, e para efeitos de delimitação de zonas exclusivas, o próprio ar do tempo mal circula, vive-se segundo fórmulas de confinamento, e o espaço de comunicação representa cada vez mais uma unidade insonsa, toda uma estrutura putrescente cai sobre nós, e o sentido que este tempo busca resolve-se contra a memória, impregnando de mentiras e vícios a linguagem. A única promessa que se fazem os imbecis é que muito em breve já não haverá quem possa fazer a outro sentir o peso da vergonha, envergonhar-se seja do que for. Até nisso vamos perdendo o sentido do religioso, e mesmo aquela voluptuosidade que Novalis ligava em particular à religião cristã, notando que “o pecado é o maior atractivo do amor divino – quanto mais um homem se sente pecador, mais cristão é”. Mas em breve mesmo o sentido moral cairá inteiramente em desuso, esse sentido que ele nos diz ser contínuo ao poder criador absoluto, o da liberdade produtiva, da personalidade infinita, do microcosmos, da divindade real em nós. Hoje, pelo contrário, só resta a hiena, esse animal alegórico da matemática que, de acordo com Müller, sabe não haver resto e cujo deus é o zero. Em breve, não restará nada, nada a não ser a própria gramática da disputa, daqueles que se fazem a guerra mesmo por ninharias, e já o vemos nos supostos criadores, esse medo persistente dos que esperam fazer valer os seus títulos de propriedade no reino do espírito. Não haverá mais nada senão a própria escassez, o sentido da falta a incitar-nos aos gestos mais rudes e degradantes, a uma convivência ritmada pela agressão, a razão apenas instruída para devorar tudo, submeter tudo, alimentar-se da carne do outro. Não restará nada, nenhum sonho dentro do sonho, nem um sonho nosso para os mortos. Nem haverá grande necessidade de nomes, a linguagem será ela mesma a ilustração de um esmagamento, contracções sucessivas, e nem haverá orações nem túmulos, apenas o gasto inútil de quem se desfaz entre gritos. Ver um bando de homens amatilhados será a pior das imagens de terror para aqueles que estão em desvantagem. Nenhum nome os defenderá, nenhuma súplica será atendida. Neste episódio, além da respiração assistida que nos foi dada por aqueles que estiveram connosco e de um modo ou de outro participaram na discussão, pudemos desenhar em redor do tão instigante e sagaz percurso crítico de Pedro Levi Bismarck uma relação com as transformações que se estão a operar a grande velocidade nos nossos dias, desde logo um apertar do cerco em termos do uso de uma linguagem corrosiva, que constrange o pensamento e pretende esgotar as condições de existência, levar a uma exasperação dos elementos de representação e identificação. Arquitecto, editor do jornal Punkto, Bismarck é, entre nós, um dos mais pujantes e interventivos actores na produção de um discurso cheio de balanço e um fulgor que articula uma série de saberes de forma a interrogar uma cultura e um horizonte devastados pela predação económica e pela financeirização de todos os aspectos da vida social.

    Associações de pastorícia cultural. Uma conversa com João Eça

    Play Episode Listen Later Jan 24, 2025 230:53


    Que lindo cortejo de condenados este que nos é dado apreciar. Neste país todo ele em -inho, como já dizia o outro, também tínhamos de ter os nossos artistas, e as duas ou três agências de promoção, arranjos, prestígios e reputações forjadas do pé para a mão, montras, pódios, esse bando de alminhas condecoradas, sempre com toda a disponibilidade para ir, e depois todos esses aspirantes, como náufragos à espera da manhã, é verdadeiramente uma doçura, e mesmo um orgulho para todos nós. Onde quer que eles estejam, com os seus adereços de intimidade e de sonho, dá a sensação que podemos ir vê-los mesmo a meio das suas trajectórias estelares, de algum modo já nasceram no museu, no cinema, fazem tão bem de si mesmos, e os intelectuais nem se fala. Com aqueles ângulos rectos, aquela postura de embaixadores de nações inteiramente místicas, nunca atraiçoam o personagem, e dá a sensação de que poderiam entreter uma audiência até à morte. Apesar de tudo, há sempre uns que arranjam maneira de ficar desgostados, que se queixam que "a poesia cheira demasiado a poesia, a filosofia cheira demasiado a filosofia..., que uma e outra sofrem de uma redundância abominável (Baudrillard). Queixam-se da afectação do verbo, da afectação da profundidade", mas não percebem puto do grau de exigência com que estão comprometidos os nossos actores. Seria preciso educá-los. Felizmente, até para esses há esperança. O que não nos faltam são "anomalias", "oásis", "milagres", o nosso ecossistema cultural é uma colónia e um laboratório com espaço para as experiências mais arriscadas, um programa de simulação de utopias, revoluções a gosto, servindo-se dos pontos de intersecção entre várias disciplinas artísticas e do cruzamento de referências das mais diversas geografias e contextos para nos colocar diante de máquina de mundos. Tem-se detectado mesmo um efeito de contágio do talento, da inteligência e do ímpeto, e facilmente se pressente que estas visões, como um futuro mais ou menos próximo, fornece uma indemnização da vergonhosa miséria do presente. Por isso mesmo, em estado de delírio, os estudantes, hoje, acorrem à ZDB e outras das nossas instituições da consolação quando sentem necessidade de respirar o perfume desses prestígios ilusórios. É uma alegria sobretudo viver dos balanços do nosso jornalismo cultural, viver da vertigem daqueles filmes rebobinados, e que esteja lá o que estiver, parece sempre dinâmico, naquele ritmo celerado, e com uma fabulosa complacência perante todas as misérias. Os adolescentes portugueses estão nas tintas para o paraíso, eles querem é aparecer nas páginas do Ípsilon e dar largas à sua adorável propensão para consumir alienação beatamente. "Vivemos como crianças perdidas, as nossas aventuras incompletas", notou o Debord. Mas a verdade é que, para nós, isto já se foi tornando difícil. Dada a vasta e desenvolvida infantilização dos públicos, e o generalizado grau de submissão a que os indivíduos aparentemente na posse das suas faculdades mentais e até 'na flor da idade', ninguém se perde, ninguém se aventura, todos se descosem e justificam precisamente devido ao inconveniente de assumir posições arriscadas. Mas confiemos no Evangelho hipster que sai à sexta com o Público, e que nos garante que podemos encontrar bem aqui uma série de soluções de investimento para a nossa vaga inquietação, sendo que afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio, o que importa pois claro é dar tudo de si e andar a "remendos e côdeas", mas não perder as sessões que nos oferece algum desses espaços "entre o tecido institucional e o experimental, potenciadores da produção artística local e nacional, ao mesmo tempo que estabelecem diálogos internacionais". Neste episódio juntou-se a nós João Eça, realizador de fitas malcriadas, amante da técnica de se lançar de pára-quedas em território inimigo e andar por ali a espevitar os ânimos e gerar desacatos, ladrão de pratos, remisturador de sons, empregado de mesa aqui e ali, consumidor médio de porrada, vencedor das últimas três edições do campeonato de devoradores de Natxos.

    Para acabar de vez com a boa-consciência do público. Uma conversa com Margarida David Cardoso

    Play Episode Listen Later Jan 17, 2025 221:43


    Para 2025 não temos grandes planos, apenas a insistência, os gestos que exigem ser lidos na continuação de um tumulto, prosseguimos os esforços, os erros de que ainda somos capazes, com aquela liberdade de já tudo ter sido dito, estando tudo ainda por fazer. Sem nenhum compromisso com a inocência, usamos um relógio morto no pulso, e se o tempo se decompõe, como esse inodoro cadáver, o tique taque soa a uma risada. Só agora começámos a perceber o que é isso da História, como esta faz de nós os seus objectos e, no entanto, nunca nos redime. A sensação de culpa ainda é a glória a que aspiramos. A memória começa a funcionar muito tarde na vida, e apenas para ligar os vestígios de um crime tão repetido, por isso precisamos de uma coisa e do seu contrário para poder falar, sobretudo para escrever e nos movermos entre os diferentes papéis. Também nós nos ouvimos, e é mesmo esse movimento de estranheza aquilo que melhor se aproveita. Dizemos coisas que vão para além do que sabemos, e por isso mesmo nos é tão difícil sermos muito detalhados. É isso o que nos agrada, o fazer companhia a uma outra coisa, sentir como nós próprios invadimos as nossas vidas, aceitamos o risco de se ser e não ser uma coisa, estar do nosso lado e contra nós. Deve ser um risco isto, havendo a possibilidade sempre de nos denunciarmos, de requerermos a nossa condenação. Muitos hoje só conseguem ser solidários consigo mesmos, e isso faz deles os crápulas que se sabe. Mas parece-nos evidente que devemos ser capazes de fazer aquele gesto de renúncia que ensinou Kafka, ao lembrar que no confronto entre nós e o mundo, melhor será que sejamos nós a perecer e que o mundo ofereça a sua esperança a outros. Aquilo que se escreve pertence ao sentido que alguém dará ao texto no momento em que este se torne urgente, e apenas em função disso este terá algum futuro ou não terá nada. Um dos problemas da escrita nos nossos dias, do seu excesso, é o ser notório que é feita com um propósito qualquer, imediato, são coisas que redigem uns tipos sentados, sem oferecer margem ao acaso, a esse esparso ditado… Falta-nos aquele sentido corporal do teatro, uma poética cheia de ardor, que exija os seus corpos, actores que se esquecem de si mesmos e vão até ao limite e ao pavor das circunstâncias dramáticas, sem depois vir receber aplausos nem pedir desculpas ao público. Em vez desses que no final se mostram à boca de cena, acolhendo o louvor, seria necessária uma unidade de tal forma profunda com o sentido que o público tivesse de se defender dos actores, que caíriam sobre ele por ter vindo ali em busca de uma continuação do mesmo enredo e artifício que faz da vida esta coisa sem relação com nada. Abusou-se das convenções, e hoje toma-se as formas por isso mesmo, o hábito desolador do que se vai repetindo numa ênfase cada vez mais estéril. O espectáculo dissociou tudo, e o sentido já não impele a acção. Müller diz-nos às tantas estar absolutamente convencido de que o fim da literatura vem com esta resistência ao teatro, esse regime suspensivo em que se desfiam todas as hipóteses porque não se admite que a vida possa abandonar a sua falta de razão por essa urgência que compele os corpos. O nosso desânimo parte desta fractura, o facto de toda a criação se ter submetido aos ditames da produção, e desde os jornais aos projectos editoriais, abandonou-se todo o vigor, o próprio efeito de um gesto continuado, insistente, pondo-se as obras ao serviço das coisas como são em lugar de contestarem e desenvolverem uma perspectiva desejante. O importante nos escritores significativos era a forma como surgiam como intrusos gerando alguma perturbação. O seu debate com a forma residia nesse efeito de transtorno, e só assim podiam considerar-se poetas ou artistas, actores ou o quer que seja que não se viciou nem está rendido à mera repetição, às nauseantes representações que apenas servem para dilatar o espaço entre aquilo que somos e aquilo que gostaríamos de ser. Para nos servirmos de alguns exemplos, Müller lembra que Artaud nunca partiu de uma separação entre o público e a cena, mas que tentou restituir ao teatro uma função vital, que, na generalidade, este há muito tempo atraiçoou. Não há nada mais amestrado e inconsequente do que este género de actor que admite ser transformado numa celebridade, para dar corda às ilusões de uma audiência que só quer ser reconfortada no seu imobilismo, enquanto alimenta esses afectos à distância. E Müller vinca como também Brecht entendia que a força de uma obra teatral não deve ser aferida pela dramaturgia, mas com a realidade a que se refere. As instâncias de mediação começam por só se referir à realidade através dessa reprodução de imagens e lugares comuns que degradam qualquer possibilidade de que se pense o mundo enquanto uma composição unitária, em que há causas e efeitos, em que vibra em tudo um nexo contínuo. As representações que se dizem realistas começam por opor a matéria ao espírito, e assim condicionam de partida a nossa relação com aquilo que está constantemente a ser transformado pela nossa acção. E não há conspiração mais degradante do que a da impotência, desde logo porque desloca todo os efeitos para a esfera de uma sórdida minoria que se elege a si mesma contra os interesses de todos os outros. Assim, no contexto actual, as democracias conseguiram o que nenhum regime totalitário conseguiu: legitimar as piores formas de exploração fazendo com que a miséria de uns constituísse o tecto das aspirações dos demais. Actualmente, só os mais imbecis não reconhecem como as sociedades industriais modernas têm como eixo da sua ideologia e acção política reprimir a fantasia, instrumentalizá-la a favor dos seus fins e, assim, vulgarizá-la até se reconduzir inteiramente aos aspectos mais imediatos e mais sórdidos da realidade. Em vez de projectos, os homens passam a ser meros agentes viciosos, vítimas dos seus caprichos e apetites. Por esta razão, não pode haver um princípio de organização política, nem muito menos uma acção revolucionária, que passe ao lado dessa necessidade de mobilizar a fantasia. Brecht formulou-o desta maneira: haveria que possibilitar ao espectador que este pudesse a todo o momento desembrulhar aquilo a que é exposto em imagens alternativas, em processos alternativos. Que quando este se viesse diante de uma representação, quando escutasse um diálogo desenrolando-se desta ou daquela maneira, o espectador pudesse reimaginá-lo ou mesmo invertê-lo de forma a que fosse antes o diálogo que ele julga ser mais urgente ou desejável. Neste sentido, Müller rejeita as obras como coisas acabadas e que se dirigem à posteridade ou ao mundo contemporâneo, notando que esse efeito foi abolido no mesmo sentido em que deveria ser a propriedade privada dos meios de produção. "Num mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso", diz-nos Guy Debord, e, se a verdade e a mentira se tornaram reversíveis, se todos os factos estão sujeitos a deturpação, nunca como hoje foi tão decisivo que o jornalismo se submetesse a um profundo exame, de forma a repensar o seu papel e influência, as suas estratégias, a sua relação com o público, a pensar novas formas de subjectividade, capazes de resistência e de crítica, mas não nos moldes do individualismo clássico, liquidado pelo desenvolvimento do capitalismo tardio. Pois, "se o ‘indivíduo' enquanto tal não é nenhuma substância eterna, mas sim uma forma histórica de subjectivação (hoje objectivamente destruída, mesmo que simultaneamente idolatrada pela ideologia do consumo e pela indústria cultural), isso, porém, não implica que devamos desistir da ideia de sujeitos capazes de resistência e liberdade", como vinca Jeanne Marie Gagnebin. Neste episódio e para levar mais longe estas indagações, convidámos Margarida David Cardoso, jornalista integrante do Fumaça, um projecto editorial marcado por uma relação comunitária, horizontal, e que representa bem esse espírito de inquietação e compromisso, aquele empenho dos que são capazes de dedicar-se quotidianamente ao esforço de promover as mudanças de perspectiva que trazem em si visões alternativas.

    Sentir no ar outra coisa além do perfume de adeuses. Outra conversa com Nuno Ramos de Almeida

    Play Episode Listen Later Jan 1, 2025 220:10


    É difícil saber como se atravessa o nada deste arco, essa linha invisível do ano novo. Não há uma porta, talvez só um buraco, de um lado e do outro: o mesmo. Olhamos em volta, e, nas ruas, por toda a parte, menos do que um fantasma, só uma bruma retardada. Desde há um tempo já não há começos, e, deste modo, apoiamo-nos em rituais desgastados, e em todas as nossas manifestações apenas se exprime um cansaço fundamental. “Há no ar como que um perfume de ‘adeuses'”, notava Steiner. “A cronometria íntima, os contratos com o tempo, que em tão larga escala determinam a nossa consciência, indicam o fim da tarde sob formas ontológicas: que se referem à essência, ao tecido do ser. Chegámos tarde. Ou temos pelo menos a impressão de ter chegado tarde. A mesa foi levantada. ‘Vamos fechar, minhas senhoras e meus senhores, vamos fechar.'” E, no entanto, o castigo maior talvez seja precisamente a forma como tudo persiste, se arrasta. Sobre estes ciclos que não assinalam qualquer ímpeto nem um vago ânimo de revitalização, os nossos ‘cronistas' dirão alguma bacorada num tom vagamente sarcástico, reduzindo-se todo o seu arsenal retórico a essa faca romba, mas descontando esses que se especializaram em produzir discursos que dão tudo como natural, e não assumem perplexidade ou espanto, nem muito menos ainda exprimem qualquer repúdio violento ou furor seja pelo que for, podemos socorrer-nos daqueles exemplos cada vez mais distantes dos seres comprometidos com um verdadeiro quadro de regeneração, revoltando-se diante desses elementos cerimoniais que só funcionam como aspectos de uma auto-ilusão. Tendo chegado ao nosso convívio este ano, por meio de uma generosa e instigante antologia, José Emilio Pacheco mediu bem essa estéril fanfarra no poema “O Novo Ano”: “O novo ano não bate à porta, não cumprimenta ninguém, fita-nos com a arrogância de quem nos tem nas mãos. Troça dos nossos intentos de cativá-lo. Pulverizará as boas intenções. Tem gozo no seu poder, sabe-o efémero, conhece as desgraças que sem equidade distribuirá, como sempre./ Na sua jurisdição de vida e morte, o novo ano arrasará tudo, não deixando sequer uma flor seca para o sentimentalismo da lembrança. Atropela com soberba de vencedor a nossa frágil dignidade, nós que o inventámos e que para ele erguemos um altar.” Estas cerimónias, na verdade, são uma convocação, uma dança da chuva tentando vincar o tempo, num esforço para exorcizar os aspectos dolorosos, e resguardar aqueles elementos que seria decisivo para nós preservar. Nesta devoção aos signos da temporalidade, está presente esse anseio constante de se transformar, e que é particularmente agudo nos momentos em que nos domina a impotência, e as circunstâncias nos fazem sentir descartáveis, imemoráveis. Em períodos em que somos forçados a comer as nossas derrotas, em que se não fosse por elas não teríamos mais nada, quando parece que os dias já nascem sujeitos a um efeito de escassez, dissipação, fez-se-nos imperioso sobreviver a uma época que não nos promete outra coisa senão mais do mesmo. Se nos debruçamos sobre os tímidos reflexos que observamos lançando um olhar sobre o futuro, logo o nosso vocabulário parece gasto, demasiado breve, balbuciando palavras como “ausência”, “esquecimento”, “indiferença”, “distância”. “E nunca mais, nunca mais, nunca, nunca”, acrescenta Pacheco. Parece sempre um tanto ridículo o presente que nos carrega, e nos obriga a rir do nosso aspecto. “Quão jovens, quão infantis parecem todos.” E até a morte parece ter mudado, não produzindo grande efeito no modo como interrogamos e convivemos com os nossos mortos. Há a notícia, depois uns vagos clamores, e depois uma incerteza sobre onde se está, quantos somos… “Agora mata-nos a velhice./ Agora entretém-nos/ a doença/ com um tabuleiro de esperança./ Agora por um instante a loucura/ parece mais serena.// Muito descansados, alimentados, vamos/ caindo um a um.” Toda a cultura reverteu em estratégias para maquilhar as expressões de desânimo, tudo tem apenas uma consistência efémera, actuando como uma distracção, sendo que o vício em paliativos começa muito antes de escutarmos a pulsação desse coração negro que acaba por devorar o outro. Neste primeiro episódio de 2025, gravado umas horas antes, não quisemos perder demasiado tempo com esses souvenirs da nossa dissolução nem com os brinquedos cuja função é estender essa segunda e desgraçada infância. Preferimos vadiar e afinar os instrumentos para espectáculo nenhum, virados para a hipótese de um mundo que de si mesmo nasça, impelido por este “atordoamento múltiplo/ estranheza/ de estar aqui, de ser/ numa hora tão feroz/ que nem sequer tem data”. Continuamos a assumir a nossa fragilidade, a admitir que se perdeu o mundo e não sabemos “quando começa o tempo de começar de novo”. A par de Pacheco, Steiner frisa que “a origem é a excelência maior de todas as coisas, naturais e humanas”. Procurámos atravessar este buraco, sem nos deixarmos absorver por balanços ou saldos que apenas reafirmam a agenda comercial, e, para captar algo da presença muda da luz matutina deste mundo, tivemos uma vez mais connosco Nuno Ramos de Almeida, um homem-feito-de-calos, espinhos, esgares, que conhece demasiado bem esses ecos dos ‘tempos de encerramento dos jardins do Ocidente', mas que nunca abdicou do valor da acção, e de se expor ao risco que envolve propor-se junto dos inadaptados, daqueles que recusam traçar um caminho no sentido da adaptação dócil a normas idiotas.

    Luigi Mangione, um juiz selvagem em tempos de injustiça. Outra conversa com Luhuna Carvalho

    Play Episode Listen Later Dec 27, 2024 201:44


    Não seria mau se, em vez de João e Maria, na lista dos nomes mais populares dados aos recém-nascidos surgissem nos próximos anos Greta e Luigi, em honra a essas figuras capazes de nos despertar para o escândalo do nosso modo de vida. Antes que nos seja possível reconhecer a necessidade do regresso da vingança como parte activa e meio de restituição do “princípio de coesão íntima do mundo” (Goethe), devemos começar por reconhecer como fomos expropriados dos elementos mediais, como não somos hoje capazes de produzir nem ecos nem reflexos, de obter uma representação da nossa experiência, configurando as virtudes e os modelos de existência humana que nos parecem adequados a habitarmos a terra de forma digna. “Há uma razão para vivermos encarnados”, como assinala a poeta Jorie Graham. “Aquilo  que identificamos como o entorpecimento da vida quotidiana talvez não seja mais da nossa sensação de incapacidade de formarmos experiências a partir das vidas que levamos, uma vez que estas em grande medida contornam o uso da panóplia de sentidos a que chamamos corpo, viciados como estamos nos ecrãs e nos atalhos sensoriais, nessas simplificações excessivas e que são próprias da realidade virtual. Não há nenhuma ideia cuja veracidade possa ser aferida se não passar pelos sentidos. Referimo-nos amiúde àquilo que mais nos une numa experiência partilhada como o nosso “senso comum”. Este era ou foi o nosso detector de mentiras.” Hoje sentimo-nos a viver existências degradadas ou demasiado parciais porque passamos a vida a tentar filtrar presunções fraudulentas, simulacros que induzem em nós esse estado de confusão e compram a nossa passividade por meio de vantagens materiais. Neste contexto, a própria moral é uma falsificação, pelo que aquilo que se exige de nós são todos os actos possíveis e imaginários de traição, em que cada instante significa um instante fatal, uma contradição activa no sentido que lhe dá Sarte, e que institui o tempo do rapto, da passagem, desse movimento do que se recusa a criar uma imagem fixa da vida. “Trair deriva do termo latim Tradere, que significa entregar, fazer passar, que, por acréscimo, veio a designar: abandonar, denunciar, desertar. Uma deslocação que implica uma fractura na ordem de pertença, uma ruptura no tempo.” Quando tudo ao nosso redor contribui para a estigmatização de actos de rebeldia, até de autodefesa, cumpre-nos corporizar essa expressão monstruosa que manifesta um repúdio inequívoco pelos aparelhos repressivos cada vez mais omnipresentes, e desde logo por superar todos esses impedimentos feitos de inércia, tabus e conformismo, recuperando a dignidade e a memória das lutas passadas, ao mesmo tempo que criamos “as nossas próprias leituras e narrativas, independentes daquelas ditadas pelas instituições e pelos meios de comunicação” (Rolando D'Alessandro). A partir do momento em que constatamos que vivemos hoje subjugados a esse impiedoso estado de excepção regulado de acordo com as necessidades dos mercados, num processo de financeirização coerciva de todos os planos da existência, somos levados a reconhecer que as situações político-morais que enfrentamos foram inteiramente deslegitimadas. E, como nos diz Sloterdjik, chegado esse momento, o que se chama existente deve ser sujeito a uma profunda revisão e, eventualmente, demolição. “Assim sendo, haveria que traduzir algo diferentemente a fórmula militante de Sartre para o século XX, ‘on a raison de se révolter': quem tem razão não é aquele que se revolta contra a ordem existente, mas o que se vinga dela.” “No que diz respeito às implicações dos estados de excepção vingadores, o nosso estudo deve começar pela questão de saber de que maneira se pode pensar a transformação da cólera agura em vingança aplicada”, adianta o filósofo alemão. Agora sim era preciso que cada um de nós se solidarizasse com Magione no momento em este apertou o gatilho para sacudir deste mundo o CEO da UnitedHealthcare. “Os nossos carrascos  criaram-nos maus costumes”, eis uma constatação desgostosa de Grachus Babeus de que se serve Simone de Beauvoir parareconhecer o elemento de degradação moral a que os franceses se viram conduzidos durante o período da ocupação. “Também nós, em face dos traidores que eram seus cúmplices, vimos brotar nos nossos corações sentimentos venenosos, de que nunca tínhamos saboreado o gosto. No ensaio “Olho por olho”, ela frisa que a partir do momento em que um homem se aplica a degradar de forma deliberada outro, tratando-o como uma coisa, e fazendo-o para seu proveito, “faz rebentar na terra um escândalo que nada pode compensar; é o único pecado contra o homem, mas desde que se cometeu nenhuma indulgência é permitida e pertence a qualquer homem o direito de o punir”. E noutro momento, acrescenta: “É necessário punir sem ódio, dizem-nos. Mas eu creio que é precisamente aí que reside o erra da justiça oficial. A morte é um acontecimento real e concreto e não a realização de um rito. (…) Renunciando à vingança, a sociedade renuncia a ligar por um liame concreto o crime ao castigo e este só aparece então como um tributo arbitrariamente imposto.” Neste episódio, Luhuna Carvalho abandonou o seu retiro na montanha para se juntar a nós num esforço de forma a reconhecermos como este velho mundo voltou a rasgar os seus caminhos para a cólera, devolvendo-nos um exemplo que denunciar a forma como continuamos a defender-nos do culto dos heróis à antiga, servindo-nos do efeito esterilizador das aspas da cultura histórica.

    Da missa de galo à cabidela do costume. Uma conversa com Cristina Carvalho

    Play Episode Listen Later Dec 24, 2024 182:41


    Àqueles a quem o Natal diz muito pouco ou mesmo nada, o avesso das expectativas, esse sentido que nasce de tanto se tocar o mundo de fora, de interpretar um elemento de desordem, um modo de alegria tão apropriada à realidade como uma traição, seria embaraçoso tentar falar dessa sensação absurda de paz de que gozámos alguns enquanto crianças, estando entregues à espera, a uma difusa ansiedade, enquanto numa sala ao lado os adultos, em grande número, falavam entre si, defendendo essa mística da possibilidade de se crescer com este mundo, e de isso significar uma expansão dos elementos de fantasia, quando a própria infância se confundia com um território defendido e em cujos limites, a imaginação se permitia todo o tipo de exageros. Mas não ficava tão longe assim do momento em que tantos mestres acabam por revelar-se meros vigaristas. Depois ainda há um outro lado, e uma outra realidade onde os adultos são eles mesmos seres roídos, e a quem agrada impor a sua experiência misturando em cada conhecimento que se transmite uma dose de crueldade. Esses não atardam aquela sabedoria que vem a degradar-nos, mas trabalham-na eles mesmos para os seus fins. Neste quadro em que uma criança se pode tornar a presa de um ser imensamente frágil e que sobre ela exerce a sua infecta potência, Tove Ditlevsen descreveu a infância dizendo-nos que esta é comprida e estreita como um caixão, e não se pode escapar dela sem ajuda. “Ninguém escapa à infância, que se cola a cada pessoa como um odor.  Pode-se nota-la nas outras crianças – e cada infância tem o seu próprio cheiro. Não se conhece o próprio cheiro, e por vezes teme-se que seja pior do que os outros. Fala-se com uma rapariga cuja infância fede a cinzas e carvão e, de súbito, dá-se um passo atrás quando se sente o fedor da própria infância. Observa-se, à socapa, os adultos (…). À vista desarmada, não se nota que tenham tido, outrora, uma infância, e não há quem se atreva a perguntar-lhes como conseguiram ultrapassá-la sem que ela lhes marcasse o rosto com cicatrizes profundas. Assim, facilmente se suspeita de que se tenham servido de um atalho secreto e adoptado a sua forma adulta muitos anos antes de chegar o momento certo. Fizeram-no num dia em que estavam sozinhos em casa, quando a infância lhes oprimia o coração.” É quase certo que, se a muitos lhes fosse dada a possibilidade de regressarem, veriam já tudo de forma diferente, e mesmo que reconhecessem o esforço dos mais velhos para não se tornar aparente como a vida chega a parecer-se com uma cerimónia em que tudo parece desmoronar-se perpetuamente enquanto aqueles que dão por isso se empenham para que alguns possam gozar o intervalo dessa consciência. De algum modo, a muitos de nós já não escaparia a forma como os próprios pais viviam refugiados nessa capacidade de editar o mundo para os filhos. Vimos desse castigo suave, brando, benigno. Mas só fomos felizes enquanto alguma coisa nos era escondida. A verdade é que nenhum prazer neste mundo deixa de impor um custo, nada do que nos foi dado emergiu de forma espontânea, e de graça. Há um peso que fica e vai corroendo aquele que segurou os indícios de uma desolação que nos cerca desde a primeira hora. Não há aqui uma negatividade, mas o reconhecimento de que todo o abrigo e consolação teve um preço. Pode demorar uns bons anos, mas mais tarde ou mais cedo damo-nos conta de o ritmo da existência é o da perda. E para muitos pode mesmo ser difícil conciliar esse avanço que nos foi dado, essa margem da alegria que nos foi permitida por esses que preservaram para nós um território inexpugnável, para que o mundo não aplicasse sobre nós os seus métodos de extorsão. Esse precioso equívoco conferiu-nos essa facilidade de nos destacarmos da realidade, sermos bichos de outro mundo, produzindo essa orla que mais tarde nos parece que veio a ser apropriada para efeitos de publicidade. Os tons garridos que agora tomam conta dos anúncios, tudo isso devolve a sinceridade daqueles devaneios na sua forma mais destituída, podre. Como se todo aquele vagar, que fez de nós seres para quem o tédio chegava a ser a pior das ameaças, tudo esse programa que subsidiou em nós o espírito, viria depois a projectar-se como uma radiografia revelando o lado vazio, o motivo porque havia nos adultos sempre um silêncio, uma espécie de reserva, como se não nos pudessem dizer demasiado, como se a partir de certos limites houvesse um risco de a lógica animosa que nos nutria se virar contra si própria. Os mais hábeis em traçar essa fronteira, e defendê-la, reconhecem que teremos tempo para atingir o esqueleto cinzento e eterno que está por baixo. Para alguns, o resto dos dias poderá muitas vezes trazer a sensação de se estar tomado pela sufocação, enquanto, desde a infância, vamos escavando a constatação do nosso cadáver. Mas, assim mesmo, o Natal regressa muito mais tarde, nessa possibilidade de observarmos os adultos, à socapa. Já não os revisitaremos com aquele sentimento de promessa, mas os laços ainda se reforçam, nuns casos apenas a compreensão, mas, noutros, a clareza de que nos deram pontos de referência fora do mundo, de tal modo que continuamos pela vida fora, mesmo que só por hábito, a variar, a desejar desobrigarmo-nos, a persistir, mesmo que de forma discreta, nessa perpétua revolta contra a mesquinhez dos dias-de-depois. Continuamos a ouvi-los nessa outra divisão, e o que importa, sabemos agora, não foi o que se terão dito, mas esse clamor que se mantém vivo, com as cores, a composição dos cheiros e dos gestos, todos esses contornos que marcam uma alegria electiva e reordenadora. E, então, parece claro que pouco importa o que acontece, mas as sensações que alimentam essa possibilidade de fuga, essa desordem posterior, nasce ali. Pelo resto dos dias, alguns movem essa luta – a fundo perdido – contra o tal esqueleto cinzento que tantos se esforçam por confirmar. Trazem-nos ossos, e para cada um deles temos nós outras figuras, imagens e hipóteses que ruminámos e contemplámos, de tal modo que nos demos o tempo para reproduzi-las nalguma transfiguração satisfatória. Pode-se dizer que falsificámos o mundo, que pássamos de seres que gozavam de um certo privilégio para o assumir na forma de desacatos, rompendo com as convenções e tudo aquilo que garante a estabilidade social. Pode-se dizer que vimos tudo mal, e que transportamos esse exercício maníaco desde a infância, forçando o mundo ao exagero de uma galeria de gestos de força ou prazer que levariam a realidade ao absurdo. Mas depois é fácil deste lado devolver a pergunta: Mais absurdo do que isto? Talvez não possamos justificar inteiramente este mal-estar, esta radiância dolorosa, este nascer a partir de uma graça que nos foi conferida por aqueles que tiveram a decência de não nos contar a verdade. Essa miséria, se a transportamos no nosso íntimo, significa que ficaremos sempre do lado do mundo contra nós próprios. Talvez haja uma medida de delírio que se torna intolerável, e é sempre necessário impor-lhe limites. Mas não certamente a favor das coisas como elas, hoje, se nos apresentam. O que este tempo nos pede é algo dessa paixão capaz de revirar o espectáculo da existência, não para nos forçar a roer algum dos ossos da realidade, mas para dar cabo deste mero esquema de inversão, em que aqueles que não tiveram a infância senão como um recreio para a crueldade dos adultos, depois escapam desta apenas para descobrir que se tornaram ilhas cercadas de filhos da mãe por todos os lados. Neste episódio não propriamente especial, mas gravado de antemão e disponibilizado entre quem menos quererá ouvir falar do Natal, tivemos connosco a escritora Cristina Carvalho, filha de Natália Nunes e de Rómulo de Carvalho (António Gedeão), alguém para quem esta quadra nunca teve grande significado, eque viveu sempre noutra medida de projecção das faculdades de conhecimento, de invenção e de crítica, e que veio assim dar-nos algum balanço para esta missa em que demos cabo do galo para vos servirmos a cabidela do costume.  

    A época que roeu a juventude até ao osso. Uma conversa com António Guerreiro

    Play Episode Listen Later Dec 20, 2024 226:09


    A cultura hoje é essa espelunca onde o espírito entra e sai como e quando quer, ficando sempre incólume. É mais um dos tantos instrumentos de prostituição ao dispor. Mas cada vez fica mais difícil ir da medida à desmesura, ou do cálculo ao delírio. A coragem, naquele sentido de uma forte declinação do nosso nome, há muito que se perdeu. Ninguém exige novas formas de sentir, novas formas de pensar, e não podíamos estar mais longe de cumprir o projecto de Nietzsche, que passava por fazer da cultura (fosse só isto de ler, ou mesmo escrever, tocar, cantar, pintar, desenhar, viver) uma experiência radical. Já ninguém toma por porcos esses que abdicaram do esforço de dizer o essencial, sem hesitações, sem desculpas. Cada um para seu lado busca patentear algum drama insosso que lhe sirva de ingresso.  Mais valia que aparecesse por aí uma geração sem esta ganância de delimitar fosse o que fosse, antes preferisse servir-se da escrita para misturar tudo, focando-se nesse labor contínuo de nos misturarmos mais e mais, criando um caos pela primeira vez sem medo, como propôs alguém. Edmond Jabès admite que qualquer palavra dita em voz alta se mostra subversiva em relação àquelas que são silenciadas. A nossa época pouco mais tem inventado além de ruídos, sendo que só na gestão dos seus silêncios se mostra verdadeiramente estratégica. Em vez de uma recusa, apenas cautelosas retiradas. Incapaz de fazer verdadeiras escolhas, limita-se a resignar-se face ao estado de coisas, tentando tirar dali algum proveito. è um tempo de algemas, em que a toda a hora nos cruzamos com seres que morreram prematuramente. Tudo são mostradores, folhas de calendários, ampulhetas, medidores de toda a espécie. O relógio é quem dá aulas de música e ritma o sangue. A ter uma especialidade, aquilo que este tempo sabe como fazer melhor que qualquer outro é criar ausências, como notou Ailton Krenak, alimenta as ilusões apenas para desgastar e mastigar cada um,  para depois vir pregar o fim do mundo. Mesmo entre os que insistem em falar de poesia, há sempre aquele esforço de degradar o elemento de paixão que esta comporta. Pronunciam-se e escrevem sobre poesia como se esta fosse uma tarefa, vinca Borges. "Todas as vezes que mergulhei em livros de estética tive a sensação desconfortável de ter estado a ler livros de astrónomos que nunca olharam para as estrelas." Se em tempos os poetas lembravam que deve esperar-se de tudo por parte do futuro, hoje, há um género particularmente sinistro de tipos que, em vez de repudiar esses entusiasmos, se dedica a escrever versos, numa espécie de excreção que, de tanto se publicitar como poesia, dá uma péssima ideia da coisa. Também uma certa ideia de juventude que se empenhava em realizar uma redenção da cultura moderna, e tinha uma aspiração anarquista e romântica, se vê por estes dias alvo de constantes campanhas de desmoralização e de bloqueio por parte dessa mesma categoria de usurpadores. Nestas figuras ilustradas, tudo é adiposidade, que lhes dá aquela convicção daqueles que se limitam a prever o pior. Ora, nada é mais fácil, como assinala Canetti, pois quanto mais terrível for a previsão, tanto mais será verdadeira. Mas admirável seria prever algo positivo, uma vez que só isso é que se mostra improvável. Nada pior do que dar por si em minoria face a este tipo de canalhas. A partir de um certo ponto, nem são realistas nem sequer pessimistas, tendo começado a apostar no pior resultado com uma convicção tal que o seu orgulho passa a depender disso. Rapidamente se colocam ao serviço desses cenários paranóicos, e tudo fazem no sentido de impossibilitar a alternativa. Imaginam-se dotados de uma frieza que lhes permite desmascarar todos esses subversores que ameaçam levar mais fundo a infecção delirante, e, no entanto, eles é que impõem um final para o qual não há saída. Querem extirpar e perseguir até ao último cada um dos mitos românticos de outros tempos, esta gente que morreu velha sem alguma vez ter beijado nos lábios qualquer reflexo da sua juventude, e, assim, servem-nos os velhos trastes do costume, como para justificar o seu reinado de múmias. Depois de uma certa idade, para eles ler Rimbaud é como saltar um muro ao fim-de-semana para cheirar linhas de coca nos lavabos do nosso antigo liceu. Já Artaud é simplesmente uma tremenda falta de educação, como quem coça a alma com a mesma mão com que pouco antes coçara o rabo. Nem se vê como possa a literatura ser mais que uma justificação airosa para passar a vida sentado, e só um louco para colocar em cima do escritor, do poeta, algum tipo de dever. Pois Artaud garantia que não lhe cabe ir encerrar-se cobardemente num texto, num livro, numa revista de onde nunca mais sairá, mas, pelo contrário, deve sair, andar cá fora, para agitar, para atacar o espírito público... Mas os nossos intelectuais que só saem de casa para ir ao restaurante ou aos festivais, nem estão bem a ver o que possa querer dizer isso de "cá fora". Neste episódio, quisemos confrontar os modos dessa ideologia reactiva e atávica que tem dominado os processos culturais, e para este exercício contámos com o navio fantasma do nosso Oh-captain-my-captain, António Guerreiro, durante décadas crítico de plantão nas urgências literárias, e uma referência de todos os que saíram à rua empunhando uma caneta e desejosos de realizar cirurgias estéticas com os pacientes deitados em cima das páginas de jornais, e hoje controlador áereo numa torre com vista para as zonas de baixa pressão, onde vai traçando diagnósticos selvagens sem perder de vista as patologias principais da época.

    As listas, os algoritmos e os espantalhos. Uma conversa com Patrícia Soares Martins

    Play Episode Listen Later Dec 14, 2024 258:53


    Mais tarde, talvez façamos outra leitura do que significaram estes ensaios, como se em nós buscássemos o inimaginável, uma hipótese de romper com a cadência que nos leva a sentir que os dias se sucedem no sentido de uma constante subtracção. Talvez um dia as derivas que acumulámos possam permitir outra leitura, como um esforço que fizemos para nos mantermos num estado de perfeita disponibilidade de forma a que um tempo que sufocava entre impossibilidades por fim se oferecesse margem para romper com esta música desgastante que nos cerca e nos domina até ao enjoo. Nem há quem nos belisque, e é tão raro ouvir articulada com uma respiração nervosa e vibrante alguma conjugação de palavras que seja capaz de nos perturbar ou sacudir. Muitas vezes esbarramos com nós próprios, cumprimentamo-nos com menos que um aceno, um olhar que nos poupa àquelas palavras que, de tão circunstanciais, quase dão cabo de nós, e parece que estamos de volta a algum desses convívios cada vez mais desnecessários e onde temos dificuldade em saber quantos somos, e porquê este infeliz número, de tal modo que receamos estar a subdividirmo-nos... Não seremos meras réplicas, sequelas num enredo sem saída?, e parece-nos que cada tipo aqui presente, chegando a sua vez, tem o cuidado de dizer apenas o que for mais previsível, de fazer unicamente os mais breves comentários banais e de aparentar ter aceitado aquele convite formal e passado porventura meio dia em viagem para vir dizer ou ouvir tão-só o que não seja de todo consequente. Nem sei se não li já isto algures. O Breton diz que, em matéria de revolta, nenhum de nós deveria precisar de antepassados. Mas este é o ponto que parece mais difícil, antes mesmo de as coisas sucederem, de os acontecimentos se precipitarem, quando ainda parecia que estava ao nosso alcance desencadear alguma ruptura decisiva. Alguns, mais tarde, irão fantasiar-se nos seus relatos ao ponto de dizer que, por estes dias, viviam já como se retirados do mundo. Em breve irá emergir toda uma literatura de auto-exoneração, mas ser-nos-á difícil acompanhar essas inversões, a dizermos alguma coisa a seu respeito, se nos parecia que o objectivo de cada um deles foi nada dizer ou fazer que seja digno de nota. "A vida de algumas pessoas pode ser tão sucintamente resumida que não passa de uma porta que bate ou de alguém que tosse numa rua escura a meio da noite", notava Bradbury. "Olha-se pela janela, a rua está vazia. Quem quer que tenha tossido já desapareceu." A consciência parece ter-se tornado mais um dos aspectos do negócio. Fomos perdendo o chão, nós para quem essa foi a nossa primeira leitura. Foi com esse olhar perdido que aprendemos as primeiras letras. Era uma espécie de deficiência que nos defendia da coisa seguinte. Íamos, mas sempre como por acaso, como se por distracção ou empurrados. Talvez venha a ser possível fazer uma história dos diferentes caminhos que levam à literatura, desde logo uma história que passe bem longe do mercado. Uma narrativa sobre gente que se despenhou ou precisou desesperadamente virar-se para outras épocas, outros lugares. Mas uns anos mais tarde, quando viemos à superfície, éramos nós os grandes iletrados, não percebíamos patavina da realidade em que estávamos metidos. As filas continuam a avançar, continuam a não ter fim. Caminhamos na sonolência de mundos contrários, como diria o outro. Cada vez teríamos mais dificuldade em reconhecermo-nos mesmo se esbarrássemos contra nós próprios num destes ajuntamentos. Vamos sendo corpos sem eco, isto numa sociedade em que, há mínima perturbação, se é alvo de um processo, disciplinar ou não, e muitas vezes o pior é não ser clara a natureza. Até podem obrigar-nos a aguardar aqui ou ali enquanto nos martirizamos apenas para acabarmos o dia levando para casa a notícia de que fomos promovidos. Mas nem para nós é muito certo aquilo em que andamos metidos. É difícil chegar aos 35 ou aos 40 anos se se for demasiado directo, sem que isso se torne para nós um motivo constante de luta. Começamos a ser interrompidos e interrogados, e ficamos a dever explicações a meio mundo. Talvez, por isso, tantos se preservem na absoluta sensaboria dos ditos e expressões que não levam a coisa nenhuma. "Todo o bom raciocínio ofende", como notou Stendhal, sublinhado por Beauvoir, que prossegue a ideia, adiantando que, perante uma opinião peremptória, uma verdade definitiva, as pessoas amedrontam-se. "Tal é vaidoso, egoísta, mau, cúpido; enunciar-vos-ão com complacência os seus defeitos; mas se vós concluís: 'É um homem mau', o vosso interlocutor protesta: 'Eu não disse isso'; e acrescenta, talvez: 'Apesar de tudo, o fundo é bom'. Assim, o homem aceita ser pintado com pequenas pinceladas cruéis, mas, se o forçais a recuar para contemplar o seu retrato em corpo inteiro, fraqueja, não quer resumir, não quer concluir (...) repugna-lhe tomar partido: Deus sabe até que consequências poderia arrastá-lo uma lógica muito rigorosa; agrada-lhe ouvir-se falar, sentir-se pensar (...) mas com a condição de os seus pensamentos não o comprometerem, de permanecerem numa penumbra propícia. De facto, os homens não acreditam no que dizem, e é isso o que lhes permite saltar com desembaraço de um plano de verdade para outro"... E se acreditassem? Sem a busca de um alto grau de exigência as palavras são menos do que nada. Tornam-se uma das piores formas de sujeira. Algures, Blanchot anotava: "Todo o escritor que, pelo acto em si de escrever, não é conduzido a pensar: 'Eu sou a revolução'... na realidade, não escreveu nada." Neste episódio, e com o ruído azucrinante dos balanços de final de ano que logo se convertem em listas de sugestões para consumos natalícios, pudemos contar com a atenção e o exercício reflexivo de Patrícia Soares Martins que, depois de uma década como crítica literária nas páginas do Expresso, e um longo percurso a dar aulas na Faculdade de Letras, não perdeu o entusiasmo pelos textos e autores que persistem como grandes instigadores, mesmo se não esconde um certo desânimo num momento em que, mais do que se proibirem ou queimarem livros, o verdadeiro crime contra a literatura, e aquele contra o qual somos impotentes, é a não leitura dos livros. "Esse crime, uma pessoa paga-o com toda a sua vida; se o criminoso é uma nação, paga-o com a sua história", vincava Brodsky.

    Empregados da própria visibilidade. Uma conversa com Guilherme Henriques

    Play Episode Listen Later Dec 6, 2024 206:53


    Aqui estamos entre todos os caprichos que nos dão a volta às ideias nas íntimas mudanças de cada dia e, muitas vezes, até por cansaço de nós próprios, acabamos invariavelmente por falar de política, e por decidir o que fazer com o país, especialmente se não sabemos o que fazer de nós próprios. Da mesa ali ao fundo, o Macedonio Fernández sugere que o problema se impõe pelo facto inescapável de que cada um de nós sabe profundamente duas ou três verdades complexas, mas os nossos contactos com a vida são de mil aspectos mais, de modo que fazemos quase todas as partes da nossa vida às escuras. O que nos agarra são uns quantos hábitos, em que insistimos, e que fazem o favor de afiar por nós aquilo que passa por uma personalidade, mas, cá dentro, para a maioria dos que se indagam, a sensação mais comum é de que escorrem pelos dias, e dependemos de alguns vícios para nos conciliar com a realidade. Para tantos, a sua própria natureza alienada é pressuposto da grandeza. Seja como for, por desconsolo, estamos a transformar-nos numa geração de tipos infrequentáveis, gente que troça de tudo, que balança entre a compaixão e o sarcasmo. E quanto ao bando que trabalhava a solidão através da arte, esses que partilhavam os seus juízos como quem prega uma partida aos demais, à moral e até a Deus, os chamados literatos, vivem hoje nessa imbecilidade auto-absorvida das suas conspirações que, sem a menor capacidade de efabular, se ficam pelo ressentimento. A falta de reconhecimento dos pares ou sequer de uns poucos leitores, compensam-na com uma dolorosa e insistente vanglória. E surgem-nos por aí cantando loas a si mesmos. Os egos deixam no ar um fedor a mortos-vivos. Vivem para as exéquias fúnebres, e não se cansam de nos maçar com a forma como gostariam de ser recordados. A peça é sempre a mesma, já a sabemos de cor, mas temos de aturar este tipo de actores que vivem embalsamados nos seus próprios maneirismos e exuberâncias desmioladas. Em lugar deste género de mártires constantes, antes são de preferir aqueles terríveis optimistas que não nos maçam com as suas desgostosas fantasias. "A vida é bela e assombrosa!", terá exclamado Maiakovski na véspera de se suicidar. Ao menos que a literatura nos pudesse servir ainda como vingança, escapando à frivolidade inconsequente desses dramas através da incrível densidade e heterogeneidade do material narrativo que nos é oferecido. Mil vezes os brutos que são capazes de enterrar as esporas no caprichoso murmúrio do mundo e impor-lhe os seus delírios, esses que se mostram de tal modo empenhados em produzir desvios vertiginosos que os lemos de corpo perdido, voltados para aquela luz, suspensos dela. Temos boas razões para estarmos fartos de queixumes e lamúrias, para não aguentarmos mais esses tipos esforçados, vulgarmente honestos, por vezes até competentes. Antes preferíamos ser trapaceados, levados por batoteiros, ilusionistas, magníficos vigaristas, gente que da nossa atenção fizesse uma autêntica feira, algum antro de perdição. "De que riem os homens que um dia irão morrer? Riem, porquê?", interrogava Prado Coelho... "Porque tudo é frágil, indeciso, e, no entanto, único. Erguem-se, sustentam-se, entreajudam-se, empurram-se no escuro, escorregam, tombam, ferem-se, movidos sempre por esta paixão do único." Evidentemente, esta malta perdeu a fé nessa instância autónoma, nessa reserva do espírito, nessa barricada onde nos multiplicamos e nos entregamos a inumeráveis transmigrações. Perderam a fé nesse "indício clandestinamente transmitido, morse obstinado, de que é preciso estar atento, mobilizado como um exército face ao inimigo". Merecem-nos muita pena todos esses que nunca tiveram a paixão ou a coragem para deixarem de ser apenas um. Existir-se agarrado à convicção de si próprio merecia ser levado em conta como uma aflição seríssima. Já outros, sentem-se infectados por tanto daquilo com que contactam. Assim, adoecidos desde tantos do tal, o problema não será reconhecer este estado de desagregação íntima, nem se temos escolha. A partir do momento em que se admite o princípio fraudulento que liga os dias entre si, suspende-se em nós aquele ritmo regular, congeminado por uma crença qualquer no curso do tempo, nas evidências do progresso e no valor de justiça, que, inerentemente, deveria indemnizar-nos pelo esforço, compensar todo o labor e sacrifício. O problema, na verdade, passa a ser outro: como melhorar o nível dessa patologia de que sofremos. Temos de elevar o grau daquilo de que sofremos, melhorar a doença. Neste episódio, raptámos um jovem crítico que ia ter uma sessão de padel e fingindo que tínhamos isco, puxámo-lo para o desaire que já se sabe. O Guilherme tem aquela amabilidade própria dos que têm ainda muito tempo, e aquela confiança de quem parece imbuído de uma serenidade aérea e musical, sendo um dos poucos que entendeu começar cedo a dar conta das suas leituras, das suas admirações, afastando-se do género mais comum entre nós, esses literatos que só falam de si próprios e conseguem sempre chegar lá a pretexto de falarem de generalidades ocas.

    Serenata de três vadios sob a chuva do futuro. Uma conversa com Bruno Peixe Dias

    Play Episode Listen Later Nov 29, 2024 199:11


    O mundo tornou-se novamente exterior, absurdamente exterior, ao ponto de nos causar arrepios, mas a nós, hoje, tudo nos faz mossa. Nestas transfusões de sangue amarelo recebidas dos sistemas digitais, estamos cada vez mais uns bichos de aviário. E dividimos tudo em categorias, e temos infinitos protocolos de segurança, de desinfecção. Cá dentro, aquilo que nos provoca cócegas são as luzes, os sons, todas essas cores a pintalgar o cenário, e os ecrãs com as suas informações habituais. "Superfícies, superfícies, não há perigo se as atravessarmos, se estivermos nelas ou elas em vós. Fazei por continuardes superficiais, com as vossas emissões superficiais para receptores superficiais", aconselha Michaux. Lá fora chove, bátegas d'água, e tudo isso perturba o sinal. Nós mesmos somos afectados, o ambiente torna-se malsão. O espírito, o mecanismo cerebral tropeça, manobrando com dificuldade. Mas o que se há-de fazer? São cada vez mais constantes os temporais. Às vezes acordamos com a sensação de ter engolido uns baldes, e tudo isso nos subiu à cabeça. Esta, meio vacilante, começa a pregar-nos partidas, às vezes dolorosas. Estas nossas consciências subornadas pelo consumo até à letargia têm-se revelado bastante frágeis, escondemo-nos nessas superfícies, e as nossas ideias foram-se adaptando a meros reflexos, sem verdadeira profundidade. Quando falha a luz é uma autêntica catástrofe. E o pior é que sem essas meditações guiadas pela fiada de projectores, o vazio com o seu rumor de penas coloca-se a nosso lado e põe-se a devorar-nos o fígado. De resto, a companhia é terrível. Estamos cercados de toda a espécie de canalhas cuja obra são as suas infindáveis justificações. “Há muitos que, deixando cair um amigo, um amor ou o peso de um dever, se desculpam, a seus próprios olhos, evocando a obrigação de fidelidade para consigo mesmos — que é, muitas vezes, apenas o modo mais cómodo e cobarde de se enganarem a si mesmos. Pois quantas pessoas existirão capazes de conhecer tão exactamente as leis da sua própria evolução para poderem saber se essa infidelidade em relação a uma pessoa ou a uma coisa não era, ao mesmo tempo, o pior que cometeram em relação a si próprios?” Assim o viu Arthur Schnitzler. Vivemos cobardemente encerrados nas mais podres fantasias, sendo evidente como as crenças actuais se mostram cada vez mais débeis. "Aqui o limbo além o paraíso além o inferno/ que cheiro a despegado meu general". Tivemos a ambição de sair a investigar o nunca visto, derrotando cada um dos nossos caprichos, até sentirmos de novo algo que se pareça com um ímpeto famélico, fazendo desabrochar em nós um vício urgente, que nos sustente para o resto dos dias, confiando-nos à desgraça mais certa. Mas nisto tudo, de tanto nos tirarmos o pulso, levarmos em conta os indicadores deste evidente desgaste, que diagnóstico se pode fazer? Alguém ali levantou a mão... Talvez uma pergunta nos pudesse transportar noutra direcção. Mas esse é um dos dramas do nosso tempo. Quem é que ainda formula perguntas com real empenho em que lhe respondam? Descontando as crianças, quase ninguém. De tanto nos cuspirem em cima essa música que faz as vezes da consciência, já não sabemos exactamente onde começa ou acaba a nossa própria cabeça. Desfizeram o nosso juízo de tanto o mexerem com a colher de pau do senso comum. Seria terrível se falhasse a luz, mas talvez, passados uns meses, os pensamentos autónomos ressuscitassem. Estou outra vez a tremer, e sinto a falta de um braço que possa apertar. Deixa-me ler-te uma coisa do avô Teodoro: “Num dos seus ensaios, Aldous Huxley levantou a questão de quem, num lugar de diversão, estará realmente a divertir-se. Com a mesma justiça, pode perguntar-se quem é que a música para entretenimento ainda entretém. Na verdade, parece complementar a redução das pessoas ao silêncio, o desaparecimento da fala como expressão, a incapacidade de se comunicar de todo. Habita as bolsas de silêncio que se desenvolvem entre pessoas moldadas pela ansiedade, pelo trabalho e por uma docilidade pouco exigente. Por todo o lado, assume, sem dar nas vistas, o papel mortalmente triste que lhe coube no tempo e na situação específica dos filmes mudos. É apercebida apenas como música de fundo. Se já ninguém consegue falar, certamente já ninguém consegue ouvir." Já era muito tarde, desta vez. Esta tendência de formarmos bandas de três, andando à chuva, cobrindo distâncias com o vento a soprar e encher as velas do improviso é o que ainda assegura esta noivadiagem. Desta feita, foi o Bruno Peixe Dias quem exumou a estrela sextavada que há no corpo do rio, e trouxe o seu embalo profano habituado a carregar aos ombros filósofos completamente derramados e a soluçar dos prostíbulos até às moradas familiares, inventando pelo caminho as aventuras mais cativantes, de tal modo que as mulheres os acolhem como heróis épicos nesta Ulisseia à deriva. Hoje, não houve festa. Estivemos ali debaixo do telheiro a ouvir o piano ronceiro da chuva, e lá fomos do gargarejo para aclarar a garganta até à serenata que, se não serve para pagar as contas, pelo menos acalora.

    Heroísmos não, por favor. Uma conversa com Vítor Belanciano

    Play Episode Listen Later Nov 22, 2024 194:01


    É preciso passarmos bem longe do heroísmo para irmos um pouco além das noções de superfície, desde logo a essas zonas turvas onde o nome sem glória aguarda a sua ocasião, mas para isso, para mergulharmos naquela experiência dos homens infames, não tanto por infamados, mas antes por não gozarem o prestígio e a fama que, aparentemente, todos não conseguem, hoje, deixar de ambicionar, para isso, como dizia o outro (mas qual deles?), para isso o indivíduo com um nome glorioso, o autor como proprietário da "sua" escrita, em suma o sujeito como o mais próprio da experiência, têm de ser abalados. Já seria alguma coisa se pudéssemos libertar-nos dos nomes. Todos temos um, e desfiamos de tanto andar à sua roda, a fazer esse esforço absurdo por nos mostrarmos coerentes com nós próprios. A identidade é esse prego, a mais desoladora e incapacitante das ficções. "Havia, haverá talvez que redescobrir o rasto instantâneo e fulgurante que nos deixam esses que se precipitaram para uma obscuridade, nessas zonas onde todo o 'renome' se perde"... Mas quem foi que disse isto? E se o não tiver dito exactamente assim, como fazemos? E se houver um desvio, uma deriva substancial, como se divide a coisa? Em Nietzsche já é mais difícil alterar uma vírgula que seja, e em Ecce Homo fez notar que "a minha sabedoria consiste em ter sido muitas coisas e ter estado em muitos lugares, para poder chegar a ser um, para poder tornar-me um". Mas Foucault adianta que este Um é radicalizado. Segundo Erígenes, segundo Borges, Deus não sabe quem é nem o que é porque não é um nem um quem. Isto faz dele o oposto preciso de uma imagem de marca. Mas nós colocámo-nos uns aos outros de castigo. Menos que homens, somos marcas, e devemos encontrar o nosso fundamento, hoje, nas mais fundas raízes do negotius, da privação e do desejo, aspirar a essa imanência das grandes pioneiras da indústria. Se é certo que o gosto de não citar pode conduzir-nos a insuspeitados pântanos, e que há formas de apropriação sacana, formas de trespasse, que sinalizam uma tremenda descortesia, é preciso também ter em conta o que disse Goethe numa das suas conversas com Eckerman: "Há na história de toda a arte uma filiação. Quando nos apercebemos de um grande mestre, verificamos sempre que se aproveitou do que os seus antecessores tinham de bom e que é isso precisamente que o torna grande. Homens como Rafael não nascem do solo espontaneamente. Têm as suas raízes na antiguidade, no melhor do que foi feito antes deles. Se não se tivessem aproveitado de todas as vantagens da sua época, não haveria muita coisa a dizer deles." Neste episódio, iremos fazer referência a outros casos, outros exemplos e autores que nos fazem relativizar a ideia de que o plágio é uma ofensa capital entre criadores, sendo que mesmo os grandes, aqueles que realmente admiramos, quase todos praticaram esses raptos ou roubos. Já temos tocado algumas vezes este tema, mas o horror persiste. Quase ninguém reconhece esse pudor maior daquele que preenche uns linguados de prosa, de forma ocasional e sem margem nem para grandes lucros nem grandes transtornos, e que mais do que recear ser acusado de rapinar os ovos de outras aves, receia sobretudo ser vulgar, vir por aí montado no rumor dessas banalidades de base que ninguém verifica se já outro antes disse, porque a todo o momento todos as repetem. A verdadeira sensibilidade muitas vezes está disposta a esse efeito de abertura em que uma outra escrita consegue escrever fragmentos da nossa própria quotidianidade, quando um dito transmigra para a nossa vida. Estou a copiar por cima do ombro de Barthes e ao mesmo tempo a adulterar certas frases de modo a fazer valer aqui um argumento que bem pode perder-se nos arquivos. Não seria de preferir essa selvajaria inspirada, divina, a de receber do texto, qualquer que ele seja, uma espécie de ordem fantasmática, e saborear essa distância, essa suspensão do seu ponto de vista, ou de qualquer outro, antes procurando tecer um tempo interior que represente não um indíviduo mas uma forma de co-existência? "O autor que sai do seu texto e entra na nossa vida não tem unidade", garante Barthes. E acrescenta: "é um simples plural de 'encantos'". Mas, hoje, nem mesmo na literatura se tem direito de passagem, tudo deve ser publicitado por lotes, obras enfileiradas nas estantes, ou jazigos num cemitério. Esta gente não vê a vantagem na dispersão, num canto descontínuo, de amabilidades, acenos, numa incessante troca de correspondências. Não os anima a proposta de um texto que seja destrutor de qualquer sujeito, um frémito que nos dispa dessas miseráveis fantasias neste baile cada vez mais inóspito. Seria melhor que ardesse de vez esta impostura, que o sujeito se dispersasse, que pudéssemos deambular fora de qualquer destino, um pouco como as cinzas que se lançam ao vento depois da morte, mas fazê-lo antes de morrermos, de modo a que se pudesse renascer tantas vezes quantas se desejasse, e contagiar o ambiente, "como átomos voluptuosos, contagiar algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão". Mas preferem os títulos, reconduzir a porcaria da escrita a mais um regime de negociantes. Para confrontarmos este quadro de pressão limitadora, de vigilância e de denúncia, essa chibaria que é um dos traços que reforça o nosso irremediável provincianismo, para falarmos de plágio, mas também das tantas formas de iliteracia que, hoje, pretendem ditar como devem ser saboreadas e traficadas as ideias e o saber, contámos desta vez com Vítor Belanciano, um jornalista e escritor cheio de vícios, desde logo esse de alimentar quem o lia com a sua curiosidade excitada por uma rede de autores, projectos, vivências, num tu-cá-tu-lá, sem receio de violar as fronteiras disciplinares, saboreando música e leituras, esforçando-se por ajudar a instaurar essa ordem fantasmática, e que pagou caro quando supôs que podia escolher não integrar os elencos dos heróis. Acabou atirado para o molhe dos vilões. Assim, cá o recebemos.

    Em breve toda a literatura vai saber a frango. Uma conversa com Guilherme Pires

    Play Episode Listen Later Nov 15, 2024 201:16


    O descarado elogio que hoje é feito das humanidades serve-se amiúde de oposições bastante patéticas face ao regime tecnológico, mas a verdade é que os clássicos tendem a ser dissolvidos em soluções ácidas até deles só restarem esses elementos ou citações mais célebres que podem ser instrumentalizados, como slogans, circulando hoje nas redes sociais como moeda de troca de uma sabedoria proverbial, cada vez mais distante do contexto e da tensão que lhe é própria, até ser possível utilizá-las para se dizer tudo e o seu contrário. Num exame implacável desse exercício de ir para as praias homéricas à cata da conquilha, o escritor Christian Salmon mostra-nos como, tantas dessas frases, desgarradas do seu contexto histórico e da obra de que foram extraídas, escapam inteiramente à intenção do autor, tornando-se signos permutáveis, máximas e até chavões, que engrossam o grande caudal de clichés em que se banha a nossa época. Publicado no mais recente número da revista Electra, Salmon recupera a célebre frase de Charles Péguy onde este nos fez notar que "Homero é novo esta manhã e talvez nada seja tão velho como o jornal de hoje". Para Salmon este regresso dos Antigos indicia uma tentativa de recuperar um quadro de referências num mundo onde esses pontos se estão a perder, e no qual todas as autoridades se acham desacreditadas, convocando-se Homero num esforço de satisfazer a nossa busca por um narrador fiável e incontestado. Nos nossos dias, e depois de Kasparov ter sido batido pelo Deep Blue, poderia recriar-se esse enfrentamento num território muito mais poroso e complexo, onde os padrões maquínicos até aqui estavam claramente em desvantagem. Mas, se fosse hoje encenada uma batalha opondo Homero ao Google, o problema não seria saber se o primeiro esmagaria o motor de pesquisa, mas antes, e não havendo métodos analíticos que pudessem decidir de forma objectiva quem ganhou ou perdeu, se não seria o público, ignorando as epopeias, a preferir a mistela que a Google confeccionasse seguindo ponto por ponto as suas preferências, e devolvendo-lhe assim uma espécie de auto-retrato adequadamente filtrado. A questão dos nossos dias não é saber se os clássicos mantêm o seu vigor face aos enredos costumizados para cada um de nós com base nas nossas preferências, mas simplesmente se nós não degradámos o nosso aparelho cognitivo ao ponto de os clássicos estarem a tornar-se demasiado incivilizados e desordeiros ou exigentes para o nosso gosto. O consumidor segue os seus caprichos até à alienação, e aquilo a que confere o valor "humano" assemelha-se cada vez mais a um reflexo distorcido pela máquina. As provas estão aí, e numa notícia que por estes dias circula nos nossos órgãos de informação, ficámos a saber que já foi realizado um estudo de uma universidade norte-americana que concluiu que os leitores estão convencidos de que, se lhes for dado a escolher, preferem a poesia escrita por humanos, mas que, se esta lhes for servida a par daquela gerada por Inteligência Artificial, a partir do momento em que a sua origem lhes seja ocultada, preferem o produto sintético, considerando-o “mais fácil de compreender”, e sendo levados a acreditar que isso significará que foi escrito por um humano e não por uma máquina. A inteligência que nasce do confronto com as dificuldades está a levar uma abada face a todos esses produtos que se reproduzem de acordo com padrões de consumo, e a deixar claro que a cultura de massas foi uma forma de nos deixar tenrinhos para o desbaste maquínico. Se nos esforçássemos por abandonar a perspectiva da eficácia, as projecções trimestrais, as expectativas de lucro e o regime utilitarista que guia as nossas escolhas, se seguíssemos uma matriz de análise histórica, como sugere Fredric Jameson, talvez nos déssemos conta de que a História que ainda somos capazes de imaginar a partir destas métricas é uma forma de agonia, e só conhece um movimento terminal. Se o futuro hoje é tão mais pobre do que foi no passado, é porque não o conseguimos representar de outra forma senão como uma repetição monótona do passado. A ideia consoladora de nos transferirmos para uma realidade onde sejamos imunes face aos perigos, transfere-no depressa para quadros virtuais. Como assinala António Guerreiro recentemente, essa tentação de estarmos ao abrigo das catástrofes responde a uma tendência paranóica e está constantemente a atravessar fronteiras que deviam ser intransponíveis. "É habitada pelo fantasma da protecção absoluta e da prevenção, tornando-se assim um obstáculo à liberdade, inclusivamente à liberdade de correr riscos." A humanidade poderia ser definida precisamente como essa espécie que corre riscos desnecessários, pois vive enfebrecida pela possibilidade de superar aquilo que já antes foi alcançado. Steiner aponta o milagre que se dá pelo simples facto das nossas gramáticas engendrarem continuamente proposições contrafactuais, 'e se...', e sobretudo tempos futuros, sendo isso o que deu à nossa espécie os seus meios de esperar e de ir muito para além da extinção da espécie. "Duramos, duramos criadoramente devido à nossa capacidade imperativa de dizer 'não' à realidade, de construir ficções de alteridade, de um 'outra coisa' sonhado, querido ou esperado que a nossa consciência possa habitar." Hoje, esta dimensão humana está em clara perda, e Baudrillard fala de um “hedonismo ligado”, em que o corpo não passa de um roteiro cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inúmeros ginásios e os consultórios de cirurgia plástica e que descrevem uma obsessão colectiva assexuada. Assim, vai caracterizando uma sociedade fóbica, que responde a esse imperativo de tudo proteger, tudo captar, tudo circunscrever… “Tudo recensear, tudo armazenar, tudo memorizar.” Ele adianta como ali tudo merece protecção, embalsamamento, restauração. “Tudo é objecto de um segundo nascimento, o eterno do simulacro." O problema é então como localizar a diferença radical, essa que faz renascer o espírito insubmisso e que, diante das dificuldades o torna cada vez mais engenhoso, mais hábil e desafiador... "Como ligar de novo a ignição ao sentido da História para que ela comece uma vez mais a transmitir sinais, por mais débeis que sejam, do tempo, esse que segue adiante, essa margem de alteridade, de mudança, de Utopia", questiona Jameson. É uma questão de privação, de divórcio das máquinas, reconhecendo que aquilo que estas nos oferecem como futuro vai no sentido da nossa substituição. O passo seguinte no quadro evolutivo em que estamos presentemente lançados, passa por fazer do humano apenas o elemento de ligação para esse "sucedâneo maquinal". Neste episódio, e para discutir as implicações e as ameaças que hoje se colocam ao sector editorial, esse que nos últimos séculos têm estado no eixo dos esforços de transmissão de um legado cultural de séculos, contámos com a experiência desse subtil operador que tem sido Guilherme Pires, nas suas funções enquanto organizador de jogo, editor e conselheiro, tradutor, revisor, e tapa-buracos em toda a linha, alguém que conhece de cor a planta do edifício, e trabalhou em todos os pisos, desde aqueles submersos e que estão escondidos dos leitores e do público em geral, até aos andares modelo e às operações de charme e todos os esquemas que tanto embevecem os patêgos.

    Enclave, de Maria Lis, na Pó de Vir a Ser, em Évora

    Play Episode Listen Later Nov 11, 2024 77:17


    Registo do lançamento de "Enclave", de Maria Lis, no dia 9 de novembro, em Évora, com apresentação de António Guerreiro   Maria Lis foi à procura de objectos sem uso, remetidos aos dias passados, uma peneira, uma caixa de comprimidos, uma balança para cartas, um limpador de espingardas, algumas pedras, uma goteira e outras miudezas e entregou-os a várias crianças para lhes perguntar: e com estas coisas que já temos, também podemos fazer outro mundo? Uma geografia de entrelinhas, de silêncios e de mãos-na-massa, as imagens de Ana Filipa Correia, os objectos à espera de ânimo e o texto escrito no contexto da residência artística da poeta Maria Lis, ENCLAVE, editado agora pela Língua Morta, poderão ser vistos, ouvidos e mexidos na Pó de Vir a Ser, como promessas de outro modo, no dia 9 de novembro, pelas 15h00. Será também ocasião para lançamento em Évora da edição de ENCLAVE. Fotografias: Ana Filipa Correia A residência artística da poeta Maria Lis integrou as actividades do programa bienal da Pó de Vir a Ser, “A Condição do Campo”. A Pó de Vir a Ser é uma estrutura financiada pelo Ministério da Cultura / Direcção Geral das Artes e tem o apoio do Município de Évora, Município de Montemor-o-Novo, Assimagra, Formas de Pedra. Integra a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea.

    O Apocalipse Alegre (Remix). Uma conversa com Ana Maria Pereirinha

    Play Episode Listen Later Nov 1, 2024 198:34


    A morte não é mistério nenhum, já o facto de os vivos hoje terem tornado a vida tão insípida que os espíritos do passado se recusam a renascer, isso sim deve angustiar-nos. Perdemos o direito às repetições capazes de produzir alguma harmonia a partir da textura do quotidiano. O próprio tempo parece ter visto a sua natureza mudar, e a duração deixou de ser sentida como no estado normal das coisas. Hoje somos existências em suspenso, e mesmo os eventos mais drásticos não chegam para nos transtornar verdadeiramente. Diante da catástrofe, empanturramo-nos. Paul Valéry, no breve ensaio publicado entre nós com o título "O Governo da Máquina", fala numa crise da Inteligência, uma crise de todas as faculdades do espírito mediano, e instiga-nos a investigarmos em que sentido a vida moderna, os maquinismos obrigatórios desta vida e os hábitos que nos impõe podem modificar, por um lado, a fisiologia do nosso espírito, todas as nossas percepções e, sobretudo, o que fazemos com as nossas percepções ou no que estas se tornam em nós. Ainda pior que o desespero, é o apagamento desses sinais de vida, dessas inversões súbitas, dos gestos que reviram o sentido da história em que vínhamos embalados e produzem o inesperado. Estamos gastos por usos e para fins em relação aos quais nem demos o nosso acordo nem fomos consultados. Limitámo-nos a permitir que o estado de coisas se nos impusesse. Valéry entende que, se o lazer aparente ainda existe, perdemos o lazer interior… “Perdemos esta paz essencial das profundezas do ser, esta ausência inestimável durante a qual os elementos mais delicados da vida se refrescam e se revigoram. Somos banhados pelo esquecimento total; lavamo-nos do passado, do futuro, da consciência clara e premente, da presença implícita e confusa das obrigações suspensas e das expectativas que espreitam.” Um dia destes deixaremos sequer de perguntar quanto ao que podemos fazer para mudar o rumo das coisas. O carácter de um homem diluir-se-á juntamente com o seu destino à medida que deixa de poder afectá-lo. Mas durante muito tempo houve um bom número de canalhas que não se eximiam, ao abandonarem qualquer esperança de transformar o mundo, de pelo menos deixarem um rastro de devastação nesses actos desesperados. “Fugir, sim, mas no momento da fuga empunhar uma arma” (Deleuze). Mas hoje a máquina começa a ser o verdadeiro actor do nosso tempo. Ela mergulhou os seus circuitos em nós e empurrou-nos para uma frequência em que qualquer dos nossos impulsos se vê seduzido e dominado, absorvido por ela. Continuamos a usar termos como resistência ou revolução, mas a iniciativa foi perdida para a máquina. É esta quem programa todos os aspectos das nossas vidas, estende o seu horizonte e articula todos os domínios através da sua eficácia esmagadora. A alma começa a parecer-se cada vez mais com um algoritmo. Perante o efeito de intoxicação pela pressa que Valéry diagnosticou nas nossas sociedades há um século, este poeta-filósofo notou como “das inteligências vivas, umas gastam-se a servir a máquina, outras a construí-la, outras ainda a planear ou a preparar uma mais potente; uma última categoria de espíritos gasta-se a tentar escapar ao domínio da máquina”. E acrescenta que “estas inteligência rebeldes sentem, com horror, que o todo completo e autónomo que era o espírito dos antigos é substituído por um qualquer daimon inferior que só pode colaborar, aglomerar-se, encontrar o seu sossego na dependência, a sua felicidade num sistema fechado que se fechará tanto mais sobre si mesmo quanto mais exactamente criado por nós e para nós”. Mas e podemos lutar ainda por alguma coisa? Para Valéry é preferível recuar e voltar a pensar. Ele entendia que não se trata de resolver estes problemas, porque talvez o grande vício tenha nascido desse abandono, desse pacto estabelecido com as máquinas e que não é substancialmente diferente dos terríveis compromissos que o sistema nervoso faz com os demónios subtis da classe das drogas. “Quanto mais a máquina nos parece útil, mas útil se torna; quanto mais útil se torna, mais nos tornamos incompletos, incapazes de nos privarmos dela.” Não estamos apenas a transformar-nos noutra coisa. Estamos a deixar de ser o que quer que tenhamos sido até aqui, ao ponto desses espectros já nem saberem como exercer alguma pressão sobre nós. O passado está a sentir o sinal perder-se, a tradução a tornar-se cada vez mais débil, como um morse que persistisse já sem ouvidos que o soubessem interpretar. Para falarmos sobre os limites e as dificuldades que a tarefa do tradutor comporta, sobre erosão desta e doutras profissões liberais, sobre a tão ameaçada classe ligada às actividades da inteligência ou do espírito, sobre as ocupações desses indivíduos indefinidos, e cuja acção tem muitas vezes um alcance incomensurável, pedimos a Ana Maria Pereirinha para partilhar connosco as anotações que foi fazendo no seu dossier de pautas, isto ao fim de décadas em que tem estado ligada aos vários momentos e dimensões da vida editorial, estando hoje dedicada à tradução de textos e obras literárias. Colhendo cacos e escolhos, comparando fragmentos, tentando alcançar uns palmos sobre aquilo que se adivinha, começou a ficar claro que tudo aquilo que ainda somos capazes de recordar nos dá uma medida do que já perdemos ou estamos prestes a perder.

    O país em lágrimas no funeral de um autocarro. Outra conversa com o Changuito

    Play Episode Listen Later Oct 26, 2024 256:46


    Quando é que um político ou algum dos nossos banqueiros se indispõe de vez com a mentecapta ironia disto tudo e nos vem ler alguns dos poucos versos realmente espinhosos que Fernando Pessoa nos dirigiu? Quando é que um deles passa realmente ao ataque, e lança em tom ríspido aquele: "Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,/ Sem coragem para ser gente com violência e audácia,/ Com a alma como uma galinha presa por uma perna!" Mas quando é que, em vez desse ar compungido de quem vive os seus dias num perpétuo luto, e agora ergue a voz para fazer a evocação incandescente e delirada de um pobre autocarro, quando é que abandonamos esse "Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República extrema-unção-enxovalho da Desgraça..."? E quando é que se tem direito a uma exaltante "Cena do Ódio" e que não seja apenas um esbaforido desabafo, mas uma incitação contra essa caricatura a todos os títulos porca que pretendem fazer passar de todos nós, falando-se na passividade lusa, no gosto malsão da ordem? Quando é que alguém relembra que a haver uma réstia de patriotismo todo ele residirá no combate a essa ordem panúrgica, para que não sejamos continuamente destinados à impotência e às representações falsas que circulam em nosso nome? Talvez, como aventou Eduardo Lourenço, a nossa crise provenha de uma má leitura de nós mesmos e acaso de um excesso de complacência para com tudo quanto é dos outros. Mas pode bem servir-nos de disfarce essa brandura toda enquanto se engatilha algum tipo de metamorfose diabólica. Pois a alternativa tem sido esta coisa que temos vivido, e então mais vale que cada um tenha numa cábula aqueles versos do Almada: "Futrica-te espantalho engalanado,/ apeia-te das patas de barro,/ larga a espada de matar/ e põe o penacho no rabo!/ Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!/ Espuma-te no chumbo da tua Valentia!/ Agoniza-te Rilhafoles armado!/ Desuniversidatiza-te da doutourança chacina,/ da ciência da matança! (...) Despe-te da farda,/ desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu/ que ficas desempregado!/ Acouraça-te de senso,/ vomita de vez o morticínio,/ enche o pote de raciocínio,/ aprende a ler corações,/ que há muito mais que fazer/ do que fazer revoluções! (...) Põe de parte a guilhotina,/ dá férias ao garrote!/ Não dês língua aos teus canhões,/ nem ecos às pistolas,/ nem vozes às espingardas!/ – São coisas fora de moda!/ Põe-te a fazer uma bomba/ que seja uma bomba tamanha/ que tenha dez raios de Terra./ Põe-lhe dentro a Europa inteira,/ os dois pólos e as Américas,/ a Palestina, a Grécia, o mapa/ e, por favor, Portugal!/ Acaba de vez com este planeta,/ faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!/ (Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!/ e esta gente distraída em guerras!)" Estamos todos gastos pelo uso que nos damos, e, ainda pior, imensamente desmoralizados pelas coisas que nos saem da boca, pelos lugares onde damos por nós, pela companhia, desde logo a desses a quem, na falta de outra gente, chamamos convivas, parceiros, amigos, toda a espécie de canalhas cuja obra são as suas infindáveis justificações. Doentes daquilo que somos, vivemos com o pavor de qualquer outra coisa. Por estes dias, como sempre que ocorre algum acidente que sobressalta as nossas consciências imersas em fantasias cada vez mais vulgares, cada um mente a si mesmo sobre a sua estranheza em relação àquilo de que agora se indigna, procurando desde logo esquivar qualquer responsabilidade quanto ao desenrolar das coisas, que apenas se resolve quando tudo se esquece e se passa à coisa seguinte. "Se já vimos multidões coléricas fazer revoluções, nunca vimos massas indignadas fazer outra coisa que não protestar de forma impotente", como nota o Comité Invisível. E ainda que o reconheçamos, é esta a prescrição que circula e que é acatada quase sem excepções. E depois?... (Mas antes ainda é preciso olhar em volta e confirmar se há ainda alguém que faça essa pergunta.) Bem, depois a burguesia vinga-se ao passo que a pequena-burguesia, já enfadada com a sua indignação, retoma a sua farsa, dormindo para o mesmo lado que até ali. Tudo isto ainda é uma forma de consumo, de segurarmos o único horizonte que acicata e satisfaz os nossos apetites, mesmo que em troca de nos tornar prescindíveis, descartáveis, imemoráveis. Neste episódio, reunimo-nos uma vez mais nessa cripta escavada à unha pelo mais graduado dos nossos almirantes que vivem numa bulha constante com as tempestades em mar alto. Regressámos à Poesia Incompleta pedindo o balanço e os enjoos das sucessivas tripulações que se revezam entre turnos a horas absurdas e que caberiam bem entre estes versos de José Emilio Pacheco, que servem ao mesmo tempo para ilustrar a natureza deste navio que atraca na Lapa como a rir-se da envolvência: "O nosso barco encalhou tantas vezes/ que já não tememos ir ao fundo./ É-nos indiferente a palavra catástrofe./ Rimos de quem pressagia males maiores./ Navegantes fantasmas, prosseguimos/ rumo ao porto espectral que retrocede./ O ponto de partida já se esfumou./ Sabemos há muito que não há regresso.// E se ancorarmos no meio do nada/ seremos devorados pelo sargaço. / O único destino é continuarmos a navegar/ em paz e em calma rumo ao próximo naufrágio."

    Música electrónica, recreios agrícolas e lições de magia. Uma conversa com Mariana Pinho

    Play Episode Listen Later Oct 17, 2024 203:30


    Por uma vez, e contrariando o Bowie, podíamos deixar de ser heróis, ou, pelo menos, de representar a realidade de forma anã para nos fazer sobressair. Contudo, às vezes parece ser esta que se encolhe ou retira, que se esquiva das nossas representações. Neste consumo constante de lendas pessoais, de fanfarronadas e galhardias histriónicas, estamos a perder todo o tesão por esse ideal de vivermos embrulhados uns com outros. "O coração é uma arte difícil", assinalava algures José Amaro Dionísio, adiantando que, tirando essa proximidade conquistada a palmo, "tudo o resto é a crédito". Em tempos, no alfabeto que compôs para a nossa dor comum, ele vincava como "solidão é uma palavra obscena"... "É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo." Este medo vive por estes dias embriagado, numa exuberância ridícula, fazendo um espectáculo de si mesmo. É uma forma de disenteria, e se antes as pessoas estavam sempre a morrer disso, hoje cagam-se até morrer exibindo-o como podem, alguns maçando meio mundo, outros em publicações nas redes sociais. Mirando à volta, qualquer uma dessas manifestações exprimem um estado de dependência, e seria realmente muito extraordinário se dos milhares de emissões que concorrem entre si na esfera virtual resultasse uma harmonia perfeita. Seria espantoso se de tudo isso resultasse uma satisfação qualquer, em vez de ser um modo de cada um se individuar enquanto protagonista de uma telenovela pindérica, quando não se preparou para mais do que fazer trabalhos ocasionais como figurante. Mas continuamos nisto, e com todos estes heroísmos patéticos estamos a dar cabo numa só época do prestígio que a raça foi constituindo para si no cultivo dessas fabulosas injúrias contra nós mesmos. Valeria Luiselli, numa das páginas do seu "Deserto Sonoro", confessa que não tem um diário, que os seus diários são as coisas que sublinha nos livros de outros. "Jamais emprestaria um livro a quem quer que fosse depois de o ler. Sublinho demasiado, às vezes páginas inteiras, às vezes duplamente." Estamos necessitados de gente que viva as suas vidas como um imenso plágio, lendo em voz alta, até ganhar uma tal naturalidade que quem quer que viesse para um debate sem um bom argumento ensaiado ao espelho ou em frente ao gato, aos catos, horrizando a vizinhança, fosse apupado até desaparecer de cena. Por uma vez que deixássemos de ter de aturar esses improvisos tacanhos e simplórios, toda essa gaguez e pigarreio, todo esse visco dos lugares-comuns que andam por aí sempre requentados. Este ajustamento permanente a modas passageiras e aos significantes das redes sociais lembra o aviso de Hannah Arendt: "Os clichés, as frases feitas, a adesão a códigos estereotipados e convencionais de expressão e comportamento têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção que todos os acontecimentos e factos, pela simples razão de existirem, apresentam ao nosso pensamento." Estamos a apagar o mundo com esses solilóquios desgraçados, com essa exibição constante nesta feira de aberrações fastidiantes. Melhor seria dar expressão ao assombro expansivo de um leitor, montando um guião a partir dos materiais mais diversos, tudo mastigado, esse resplendor efémero das coisas que provocaram em nós uma rara emoção, cada frase revista mil vezes, boa parte delas memorizadas, transcritas para todo o lado. Num tempo em que o decoro deu lugar aos derrames e eflúvios mais desgastantes, a espontaneidade deve despontar de um trabalho minucioso, colossal. O elemento essencial que eleva um palco é a exigência de quem quer que esteja a assistir. Não existe teatro sem esse elemento cruel, essa possibilidade de se ser arrasado ao representar uma cena. Devíamos realmente fazer do mundo um palco, em vez desta odiosa sala de espera, este pardieiro onde permanecemos sentados enquanto o nosso rabo incha a caminho da meia-idade, e depois dessa outra onde já nem falamos de outra coisa. E todas estas zonas e regimes da cultura assentam no princípio da inércia. Luiselli diz-nos que também frequentou a universidade, ainda que por pouco tempo. Perdeu a paciência para os professores com a sua "linguagem alimentada a anfetaminas, críptica, rizomática e absolutamente cheia de si". Vivemos enredados entre a selvajaria e estas zonas onde a sofisticação intelectual significa sempre alguma forma de compromisso com vista a neutralizar toda a acção transformadora. Talvez se soubéssemos de cor as palavras que realmente gostaríamos de dizer, e a vida mais não fosse do que buscar a ocasião propícia a cada cena, talvez então não fosse tudo tão inócuo. Neste episódio, Mariana Pinho, entre as aulas de História numa escola no Monte da Caparica, as raves de música electrónica no meio de bosques com bruxaria de ordem química à mistura, e teses sobre a vida das plantas, as florestas e o diabo a sete, veio falar connosco sobre este tempo congelado em que vivemos, e os laços que ainda são possíveis em termos afectivos e solidários, modos de organização colectiva experimental que possam permitir-nos emergir dos destroços em que vivemos imersos.

    Chamar a crítica para a mesa dos canibais. Uma conversa com Carlos Maria Bobone

    Play Episode Listen Later Oct 10, 2024 189:05


    Não se chega a uma noção contemporânea da pergunta "o que é um leitor" sem o medir, avaliando as suas escolhas, diante da proliferação de livros que hoje se publicam. E isto porque, como notou Benjamin, "antes de as pessoas chegarem ao ponto de abrir um livro, já um tão denso turbilhão de letras mutáveis, coloridas, conflituosas caiu sobre os seus olhos, que as possibilidades de penetrar no silêncio arcaico do livro se tornaram escassas". Ele ainda adianta que os enxames de gafanhotos da escrita que hoje encobrem o sol do suposto espírito aos habitantes das grandes cidades, irão tornar-se mais densos de ano para ano". Chegados a este ano algo mirífico e inimaginável sobretudo pelos efeitos da redundância e ruído incessante que obrigaram cada leitor a escavar um buraco tão fundo de tal modo que possa escapulir-se desta época, lendo como um escafandrista a umas boas léguas de profundidade, aquele sol está reduzido a um candeeiro intermitente. Por estes dias, o imaginário aloja-se entre o livro e esse candeeiro, e um bom leitor reconhece-se sobretudo por aquilo que logo rejeita, todos esses livros que apenas cheira e descarta. Numa das suas breves teses sobre a técnica do crítico, o ensaísta alemão diz-nos que "polémica significa arrasar um livro com base em poucas das suas frases. "Quanto menos se examinou o livro, melhor. Só quem é capaz de arrasar pode criticar." Logo a seguir, eleva o tom de provocação, dizendo-nos que "a polémica autêntica ocupa-se de um livro com tanto carinho como um canibal prepara um bebé". Tinha teses maravilhosas este tipo. Tantos desses que fazem dele um solene exegeta, um tão escrupuloso e grave juiz da contemporaneidade, benzem-se perante algumas das suas asserções mais que roçam a blasfémia para esse culto beato que cerca os livros. A ele pareceu-lhe útil relacionar os livros e as prostitutas, começando por notar que desde logo se aproximam por se poder fruir levando-os para a cama. "Os livros e as prostitutas entretecem o tempo. Dominam tanto a noite como o dia e tanto o dia como a noite." Mais? Sim: "Os livros e as prostitutas não dão a entender que os minutos lhes são preciosos. Quando nos envolvemos com eles mais de perto é que notamos a pressa que têm. Vão contando o tempo à medida que nos embrenhamos neles." Quantos desses cursos literários, seja na universidade seja nas abordagens menos sistemáticas, nesse regime de catequese e formação para a caridade promovido pelos festivais, se lembrariam de admitir que a frequência do putedo (o outro, aquele mais prestimoso) poderá ser um trunfo para o judicioso embalo de um crítico literário? Benjamin não duvida de que "os livros e as prostitutas sempre tiveram um amor infeliz uns pelos outros". Só mais uma, e esta tese é fundamental: "Os livros e as prostitutas gostam de contar, com muito prazer e muitas mentiras, como se tornaram no que são. Na verdade, muitas vezes nem eles próprios reparam nisso. Anda-se anos a fio atrás de tudo 'por amor' e, um belo dia, eis na rua a solicitar clientes um corpus avantajado que sempre apenas pairara acima dela, 'por curiosidade científica'." Já sabemos que aliança daria o ponto de partida para um evento literário que realmente quisesse deixar de pautar-se pelo esquematismo enfastiante a que nos vão habituando os nossos programadores culturais. Se a vida não se detém, apesar dos esforços em sentido contrário, das pressões para prever e controlar tudo até aos mais ínfimos detalhes, aquele momento que mais nos cativa é quando esta se separa daquilo que habitualmente se lê, seguindo o seu curso. Num universo saturado de livros, onde tudo está escrito, ficamos com a sensação de que não nos resta outra coisa senão reler, ler de outro modo, ganhar ousadia e persistir nas suas derivas. Não podemos ter criadores exaltantes enquanto não aprendermos a ler de forma digressiva e selvagem. A liberdade no uso dos textos é um aspecto crucial para que o leitor deixe de se sentir submetido à intenção autoral, para que leia desfazendo-se da orientação pré-definida, ajudando assim a que a literatura não se confunda com as refeições pré-cozinhadas que ocupam secções cada vez mais vastas nos supermercados. O melhor leitor é o pior leitor, aquele que não se submete a nenhuma outra disciplina senão o seu próprio interesse, necessidade, apetites, urgências. Como registava Ricardo Piglia, encontraremos os grandes instigadores de uma retomada do ânimo das vanguardas nesses leitores que traçam os seus percursos gozando de "uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossível". No entender deste escritor argentino, a maior invenção de Borges terá sido esse leitor que goza uma autonomia absoluta, e manifesta a sua capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no seu por: "A ficção como uma teoria da leitura." Neste episódio, e para levarmos mais longe as nossas investigações sobre o papel da crítica literária na recomposição de um espaço literário, de modo a que a obra de arte possa uma vez mais funcionar como uma "central de energia", inspirando e desafiando a vida, neste episódio contámos com a participação de Carlos Maria Bobone, alfarrabista, escritor e crítico literário que tem demonstrado uma sagacidade e uma erudição que faz dele um dos elementos decisivos dessa caça às avessas de tudo aquilo que são as tendências e compulsões da época.

    Sessões de casting para as trincheiras. Uma conversa com Maria Brás Ferreira

    Play Episode Listen Later Oct 4, 2024 300:45


    Alguém faz algo que ninguém compreende, um acto que excede a experiência de todos. Esse acto não dura nada, mas tem a qualidade pura da vida, e, não sendo narrativo, é a única coisa que faz sentido narrar. Hoje abundam os narradores, aranhas senis balouçando nas suas teias de tinta, contando uma e outra vez as mesmas histórias. Falam muito das coisas que fizeram, relatam-nos tudo o que os motiva e aquilo que ainda esperam fazer. Nem precisam de se escutar uns aos outros, o seu número apenas exprime uma situação sem saída, uma multiplicação que impõe essa fábrica de relatos na qual vivemos encerrados como num cárcere. O que importa é narrar, mas pouco importa se a história é capaz de instruir ou animar alguém ao ponto de orientar a sua acção. A crise da literatura portuguesa coincide com o ânimo desses funcionários da reprodução do mesmo, que constróem frívolos enredos nos quais não pesam nem conhecimento nem a ânsia exploratória, e é por serem tão crentes na sobrevivência do seu talento que recusam todos os elementos efémeros, sendo incapazes de se actualizarem catando aqueles elementos radiantes de entre a malha de detritos. "O homem moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos — divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes —, entretanto nenhum deles se tornou experiência”, diz-nos Agamben. "Ou seja, o ser humano está repleto de eventos ao longo do dia, mas nenhum se torna experiência. É como se a banalidade da vida virtual não fosse o suficiente para que os dias contassem como bem vividos…" Todos falam de obsessões, mas ninguém é capaz de mergulhar nelas e extrair alguma visão minimamente inspiradora. Estamos a desaparecer engolidos pelo olhar destas pessoas cansadas das infinitas complicações da vida quotidiana, "e para as quais a finalidade da vida se descortina apenas como ponto de fuga longínquo numa infindável perspectiva de meios", adianta Benjamin, esse ensaísta alemão que tem servido de esteio a todo o tipo de derivas. Mas para lá desse plano geral em que todos participam, dessas ilusões para as quais todos contribuem, há que sinalizar como sempre foi suficiente um acontecimento inesperado para nos alterar drasticamente a vida. Infelizmente, na vida da maioria dos jovens a única metamorfose que vemos ocorrer leva-nos a espiá-los apenas até ao momento em que aquela vítima, cansada da sua própria agitação moral, cede e dá os primeiros passos de verdugo. Talvez a ninguém apeteça falar por sentir que mais tarde ou mais cedo acabará por se revelar perante si mesmo, desfazendo a sua própria fantasia. Com a mesma inclinação de Unamuno para nos sentirmos intrigados perante os gestos e as manifestações da nossa juventude intelectual, podemos assinalar que talvez não haja outra forma de estar empenhado no seu tempo que não passe por estar investido nos sinais do assalto que deles esperamos ao ideal. E se tantos dão sinais de uma postura desdenhosa diante daqueles que podem ou não reclamar o vigor de uma acção regenaradora, uma outra atitude era a do grande autor espanhol, que preferia exprimir com uma certa dureza o seu afecto, chegando a demonstrar um gosto por chicotear aqueles de quem esperava algo de transformador. "Para os irredimíveis, para os que se limitam a arrastar-se por uma vida sombria ou uma morte ainda mais sombria, para esses há apenas a apóstrofe florentina: não falemos deles, olhemos e passemos adiante." Unamuno dedicou várias das suas intervenções a confrontar a tendência crescente dos jovens para se exaltarem de uma forma ou de outra, fosse directamente fosse através de elogios mútuos, manifestando um orgulho insuportável sem muitas vezes terem a menor consciência da tradição que procuravam abalar. "Há muito orgulho fingido nos nossos jovens, tal como há pura ficção na hediondez daquele animalzinho inocente a que os naturalistas chamam Moloch horridus, o inofensivo lagarto da Austrália, que, quando é molestado, assume o aspecto de um animal assustador e nocivo, eriçando de medo não sei que espécie de cauda ou gola sobre o pescoço para se fazer maior do que é." O que a seguir nos diz sobre a juventude espanhola do seu tempo pode ser transposto sem grande esforço de adaptação para retratar a nossa juventude intelectual: "A maior parte dos males de que sofre a nossa juventude tem origem na precariedade da nossa vida cultural. A sua fantasia engana-os mais do que nunca, mostrando-lhes o pão sob a forma de glória. Já o disse muitas vezes, e repito-o, e não será a última vez: entre nós, a ganância afoga a ambição. Somos um povo de mendigos arrogantes, que diz 'Deus lhe pague!' a quem nos dá esmola e 'Que pulha' a quem não dá. Um jovem chega a Madrid à procura de uma boa posição, e logo se lança em busca de um tacho, para ter uma vida o mais cómoda possível. E os que se julgam mais independentes são geralmente os que se lançam com maior afinco neste esforço de se fazerem funcionários de uma reputada instituição qualquer. O mais triste nisto tudo é que os jovens estão dispersos e não compreendem que, se ao menos se se unissem, deixariam de ter de obter cunhas e favores, e que marchando numa falange compacta isso lhes daria muito mais força." Na própria literatura vingou o regime da cunha, demasiados pastiches, arranjinhos, esquemas, demasiadas paródias insossas... Antes seria de preferir plágios directos, roubos descarados, desde que se guiassem por essas paixões que são capazes de nos guiar pela vida fora. Falando dos seus velhos amigos, o alter ego de Ricardo Piglia notava que à medida que foram envelhecendo manifestavam a aspiração de se transformarem naquilo que antes odiavam, e que tudo o que antes lhes gerava repulsa agora contava com a sua admiração... "Já que não podemos mudar nada, pensam, mudemos de opinião... E com isso vemos bibliotecas inteiras serem enterradas, e, nos pátios, pilhas de livros incineradas ou vendidas a pataco, mas falta ainda notar que, por mais difícil que resulte para alguns desfazerem-se do conteúdo das suas estantes, a traição mais perfeita está no modo como estes passam a ser lidos, com uma espécie de nostalgia piedosa, como quem se enternece com a sua juventude ao mesmo tempo que deplora as paixões que a animavam. Esses velhos amigos, "leitores dogmáticos, literais, dizem agora coisas distintas com a mesma sabedoria pretensiosa de antes". Antes tinham ao menos a desculpa de acreditarem em si mesmos, ao passo que agora acreditam apenas nos seus álibis e desculpas. Neste episódio, a Maria Brás Ferreira aceitou o convite sem fazer qualquer fita, sem negociar os termos, simplesmente deixou-se levar, e até pôs o telemóvel em modo avião, cortando qualquer sinal de geolocalização. Mantivemo-la refém durante cinco horas. E ao contrário do largarto australiano, dispensou qualquer cauda ou gola e deixou claro que estava disponível para ir dançar descalça no coreto, fosse este nalguma praça da nossa província fosse no coração das trevas.

    A tentação de cair no erro alheio. Uma conversa com Joana Lima

    Play Episode Listen Later Sep 27, 2024 201:33


    Falar-se da vida por estes dias é como falar da corda na casa de um enforcado. Onde é que isso nos pode levar? A frase é do Vaneigem, mas cintilou mais numa das primeiras críticas sobre os Joy Division, alguém que se soube muito cedo condenado ao dar com aquele som de ressaca de anfetaminas de uma cultura que teve o pressentimento de que a vida, na sua totalidade, ficara suspensa numa negatividade que a corrói e a define formalmente. "O mundo e o homem, enquanto representação, cheiram mal como carniça e já não há nenhum deus por perto para transformar os cemitérios em canteiros de lírios", continua Vaneigem. Continuamos pelos mesmos lugares, arrastando alguma melodia ou uns versos como senha para outro mundo. Mas "desde que se perdeu a chave da vontade de viver, deambulamos pelos corredores de um mausoléu sem fim. O diálogo do acaso e o lance de dados já não bastam para justificar a nossa lassidão; aqueles que ainda aceitam viver num cansaço bem mobilado imaginam-se a si próprios como tendo uma existência indolente, sem notar em cada um dos seus gestos quotidianos uma negação viva do seu desespero, uma negação que deveria antes fazê-los desesperar apenas pela pobreza da sua imaginação". Alguns julgam que nos seus apontamentos trazem algum deus desmembrado e que um dia irão ser capazes de lhe recompor os fragmentos, mas outros habituaram-se ao jogo das palavras, a mudar de lados, a gozar a variação... "Espero que os meus auditores compreendam que não sou um erudito nem um filósofo, mas, sim, um longo diálogo", vincava António Maria Lisboa. Depois daquelas pretensões básicas dos jovens idiotas que sonharam apresentar-se a concurso, carregar alguma fita, ser celebrados como misses, e depois de chegarmos à conclusão de que a matéria se acabou, de que não vale a pena exigir mais nenhuma extensão, resta a sensação de se ter o hálito contaminado de fantasmas, de que devemos abrir o espaço entre as zonas ínfimas e desatendidas. Tem-se a ocupação de uma frase para habituar o juízo a expandir a pulsação, criar um remanso de lentura num tempo obcecado com a velocidade. A vantagem do verso é que este se inclina à entoação de tal modo que nos recorda sempre que esta foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda-nos que foi um canto. Foi esse bando de homens misturados na profunda consciência homérica e que insistem que "os deuses tecem as desventuras aos homens para que as gerações vindouras tenham alguma coisa que cantar". E esse canto traduzia a própria fibra da experiência, esta valentia dos que não se importam demasiado com a canalhice da vida, uma vez que se reconhecem feitos para outra medida, outro alcance, outra entoação... Fomos feitos para a memória, para a poesia, ou, em alternativa, para o esquecimento. Se ainda persiste na leitura que se faz de forma solitária, silenciosa, alguma vertigem, essa está no fazer acompanhar-se dessas outras vozes que nos emergem nos lábios, as variações que fazem desse foco uma via para a insubordinação, para uma transformação do mundo. Hoje, a nossa própria natureza torna-se-nos estranha, como se desgostada diante de todo este retraimento, dessa incapacidade "de focar o nosso próprio presente, como se nos tivéssemos tornado incapazes de obter representações estéticas da nossa própria experiência actual", vinca Fredric Jameson, empenhadíssimo e exaltante crítico literário que desapareceu há dias e que nunca se cansou de assinalar como o capitalismo de consumo estava a programar "uma sociedade incapaz de lidar com o tempo e a história". Outro que tocou com a língua o céu da boca e se foi daqui há umas horas, Armando Freitas Filho, poeta que vencia a gaguez apercebendo-se do lucro que nasce com cada dificuldade e que foi passando a limpo toda a desteridade de uma fala mil vezes composta na cabeça antes de se atirar ao mundo, ter-se-á dado conta de que dizer, falar, cantar, ao contrário do que a maioria pensa, não é um modo de expelir algo, mas é sobretudo uma forma de ingestão. Fazemos sons para descobrir os vocábulos que possam fazer o que a saxifraga faz à pedra. É um modo de encantar o mundo e decompô-lo em porções digeríveis. Mesmo o corpo é só uma colher para trazê-lo à boca. E este poeta brasileiro ocupava-se dessas comunicações... "assim, numa transmissão de/ sustos e rangidos,/ veia e voz, ao vivo, sob tanto/ sangue: pantera escarlate/ que passa e pisa// e se espatifa nesse chão:/ pata de lacre,/ grito, pingo/ sobre o alvo/ tão tátil da minha carne,/ nos panos// repentinos do meu espanto,/ nas janelas/ onde me debruço sucessivo/ e vário, sequência de mim,/ em fotonovelas// me desdobro — quadro por quadro,/ nos desenhos/ de dentro do que sou e projeto,/ aos poucos — plano e pausa —/ para fora// com a vida que me veste/ pelo avesso:/ — filmes de sêmen onde publico/ figuras de suor e celulóide,/ numa lâmina// de velocidade e de lembrança,/ em fotogramas/ de esperas e procuras — falha,/ folha de slides-células, sopro/ e pulso,// página de pele em que escrevo/ o uso,/ a articulada letra do meu gesto,/ o rascunho de unhas & rasuras/ feito à unha// nas nuas marcas/ do meu corpo/ no espaço/ e nos lençóis da claridade,/ monograma, silhueta, cadência,/ e a fala// que se imprime nesta fita,/ neste sulco:/ — a linguagem como um fim,/ — a linguagem por um fio,/ e a morte em morse." Fica aqui assim esta frágil lembrança de um irmão que Carlos de Oliveira deixou do outro lado do Atlântico quando se mudou. Quanto a nós, depois de um hiato que se estendeu mais do que queríamos, estamos de volta ao diálogo a três, e pudemos contar desta vez com a orientação de Joana Lima, que escreveu uma das raras monografias dedicadas a António Maria Lisboa ("Eterno Amoroso", Edições Colibri), mas que nos ofereceu sobretudo um pacto de leitura e descodificação cúmplice e encantada da sua tão exígua quanto fulgurante obra. Pedimos-lhe algumas pistas para reiniciar o tal projecto de sucessão.

    A liturgia dos fogos na época de Job

    Play Episode Listen Later Sep 19, 2024 185:10


    Em geral, as notícias que nos chegam da realidade lêem-se como episódios de uma qualquer ficção descontrolada, e depois de nos provocarem alguma indisposição, levam cada um a subscrever e afundar-se nesses canais de inanidades. As pessoas já nem se aferram a um resquício de esperança, simplesmente escavam as suas vidas como buracos, submergem-se nos seus delírios e compulsões. Perdemos o direito à acção, mesmo na sua forma desesperada. As nossas bibliotecas vão florescendo em torno de ruínas, prestando testemunho das muitas realidades que desapareceram para sempre, e deixando em nós a sensação de que, em breve, a realidade em si mesma poderá desaparecer. Nas livrarias, ao lado dos relatos mais pessimistas temos esses mastigadores de palavras brandas e as suas ficções edulcoradas ou as autobiografias soluçantes e complacentes. Não vivemos sujeitos apenas a uma crise da imaginação, mas a uma fé negativa, a programas que dinamitam o infinito, as forças daquilo que deveria empurrar-nos para outro tempo. Prescindimos desse saber essencial que nos lembrava que somos habitantes de um mundo rigoroso, e que está inscrito em tudo uma ordem. Hoje tudo o que emerge tem de forçar o caminho, tudo o que nasce, nasce de imediato para a guerra, toda a esperança chega-nos aos ouvidos como um cântico de morte. No discurso daqueles que são sensíveis às novas causas, cada uma das suas palavras surge como um milagre de sobrevivência, como se fosse vegetação nascida do betão. Nas raízes da poesia, como nos lembra Borges, “está a épica e a épica é o género poético primordial, narrativo”. “Na épica está o tempo, na épica existe um antes, um enquanto e um depois”, adianta o majestoso fabulista argentino. Mas o homem que se devotava à imortalidade transmitida pelo canto, da boca de uma geração ao ouvido da seguinte, deixou-se degradar e submeter ao ciclo constante do consumo e à neurose patrocinada pelos efeitos publicitários, que gerou “uma segunda natureza do homem que o liga, libidinal e agressivamente, à forma da mercadoria”, diz-nos Marcuse. “A necessidade de possuir, consumir, manusear e renovar constantemente bugigangas engenhosas, dispositivos, instrumentos, mecanismos, oferecidos e impostos às pessoas para que usem esses produtos mesmo com risco da sua própria destruição, tornou-se numa necessidade ‘biológica'.” Antes, um sinal do espanto nos homens era a forma como resistiam à literalidade, a alimentar cada apetite mal este se lhes impusesse, havia um sentido de que o gosto se educava, e que em lugar de um fruto qualquer, havia a possibilidade de afinar a fome e alcançar aqueles frutos amadurecidos ao longo de milénios, com um sabor enriquecido por migrações e regressos. Era outra coisa aquilo que buscávamos, e ainda persistem uns poucos por aí, que resistem a abdicar do tempo que se rege segundo o ritmo e a disponibilidade humana, alguns que se mostram capazes ainda de colher e remontar outras épocas, “esvaziar uma música como um saco (…) ordenhar um vinhedo como uma vaca/ desarvorar vacas como veleiros/ pentear um veleiro como um cometa/ desembarcar cometas como turistas/ enfeitiçar turistas como serpentes (…) depenar uma bandeira como um galo/ apagar um galo como um incêndio/ vogar em incêndios como em oceanos/ ceifar oceanos como searas/ repicar searas como sinos/ esquartejar sinos como cordeiros (…) tripular crepúsculos como navios/ descalçar um navio como um rei/ pendurar reis como auroras/ crucificar auroras como profetas” (Huidobro)… Não faz muito tempo, os homens ainda falavam entre eles uma linguagem de incêndios, tinham um vigor que se alimentava na natureza de forma a transcendê-la. Hoje, somos incapazes de colher uvas nos espinheiros ou figos nos cardos. Mesmo a literatura deixou de se exercer em flagrante delito. A velocidade substitui o tempo enquanto ordem ou efeito que impedia tudo de suceder em simultâneo e, desse modo, encadear algum tipo de nexo narrativo. Somos projectados na inconsciência pelo ruído de todos esses “acontecimentos que não têm o seu próprio lugar no tempo, os acontecimentos que chegaram tarde demais, quando todo o tempo já foi distribuído, dividido, desmontado, e que ficaram em suspenso, não alinhados, flutuando no ar, sem lar, errantes” (Bruno Schulz). Hoje a própria espécie humana perdeu a ligação com a realidade, e deriva em suspenso, impondo as suas ilusões como uma doença que procura paralisar todos os ciclos.

    Marialvas, beatos, estrategas do armário

    Play Episode Listen Later Sep 12, 2024 172:39


    Ao que parece a maior ambição do português é deixar de o ser. Ele viaja para ir descobrir a sua verdadeira nacionalidade, e adora cumular esses traços admiráveis dos povos como ele os fantasia e reconhecer-se aqui e ali, como quem recolhe diferentes opções num buffet. Portugal é o lugar onde o seu exílio se cumpre, e o país serve apenas para tornar ainda mais pronunciado o contraste, para engrandecê-lo. O herói português tem de ter pelo menos uma costela estrangeira, e fala por referência a este sítio como o lugar onde a aventura do seu sangue encalhou. Se o brasileiro é um feriado, como notou Nelson Rodrigues, por cá o nosso reaça de estimação garante que temos a praia como nossa mitologia. A copiar o estilo MECDonald, o Mexia diz que pouco importa onde fazemos praia, que esse verbo, “fazer”, diz tudo, e faz da praia uma actividade, algo que permite pôr um modo da acção nos momentos em que não se está a fazer puto. É um pouco a condição de todos aqueles que mais fazem por cá, ou seja, o aparecer em público a dizer e fazer o que os outros fazem em privado, isto basta para se elevarem a figuras de relevo, uns autênticos mitos nacionais. É o caso dele, e daqueles amigos que ele nas crónicas insiste que tem, mas só naquelas em que não nos vem falar de traições e intrigalhadas a que ele vai aludindo sem nunca explicitar, sempre que, para vir mandar recados, gosta de se travestir de grande parabolista. Ele garante que a praia não é apenas uma estância, uma experiência, uma temporada, que é também uma memória que nos define, e que ele e os amigos todos falam longamente das praias que frequentam ou frequentaram, as praias da infância e depois aquelas que servem para gastar alguma crónica de verão a vir-nos com os seus hábitos e a sua etiqueta balnear. Felizmente, por este ano já nos livrámos, não só dessas zonas mitológicas, como dessas feitorias. Setembro veio com maus modos, antecipou o frio e deu um encontrão aos nossos capitães da areia. Mas esta ideia de não se fazer nenhum, não se transformar nem introduzir nada de novo tem provado ser uma carreira extraordinária e um regime de cumplicidades fabulosas para aqueles que alargaram a tantos outros campos da nossa vida pública este modelo de laborioso fare niente. Veja-se o humor português que desenvolveu recentemente esta vertente tão proveitosa de copiar tudo tal como está e vir desenhar um bigodinho em horário nobre diante de uma plateia que em vez de marchar está para ali na galhofa, a assistir a uma montagem de excertos da realidade como ela é apercebida pelo olho do cu das nossas estações televisivas. O país já nem se reconhece a não ser que esteja a dar na televisão, e não se ri sem ter um maestro para fazer esses recortes e dar os sinais com a batuta: agora todos. E eles riem-se. Do quê? Do país, claro. Com o qual eles não têm nada a ver, pois no fundo são estrangeiros. O cinismo e a hipocrisia consumiram todas as expressões de reflexão, e a cultura portuguesa apenas se deixa enquadrar num regime anedótico. Enquanto isso, a educação moral e religiosa concebe o seu inferninho mediático e distribui a vergonha, a culpa e, por fim, a redenção, e boa parte dos nossos humoristas não passam de padrecas. A chave burocrática na base deste enredo é a capacidade de se lidar com a chatice, as tristuras e a miséria nacional revertendo-as em motivos de chacota… contra os portugueses, mas nunca contra si mesmo. Este é o grande subterfúgio, a única forma de funcionar eficazmente num ambiente que exclui tudo o que seja vital e humano. De respirar, por assim dizer, sem ar. Esse tédio que noutras partes corrói as pessoas na sua relação com o quotidiano, por cá transforma-se numa estratégia de clivagem e num álibi, e ainda numa ocupação desdenhosa. É uma receita de escabeche para consumir os complexos e falhas de carácter que se imputa sempre aos demais. Assim, e servindo-nos da pista fornecida por Foster Wallace, a chave para criar esta desafeição passa por esta capacidade, inata ou adquirida, de encontrar o outro lado da miséria, da inércia, da ninharia, da mesquinhez, da repetição, da complexidade sem sentido. De ser, em resumo, imune à nossa condição comum. Mas esta forma de imunidade acaba por revestir toda uma formação para a indiferença, e podemos sempre contar com os nossos palhaços cínicos para presidirem em horário nobre à grande homilia em que, em vez de uma hóstia, cada um cospe na pia onde alguma representação nossa é posta a arder. Esta capacidade de se anestesiar face à realidade que nos é comum não seria possível sem um quadro mediático que se especializou em alimentar esses complexos e a ideia de que o riso alarve é o melhor remédio. O limbo foi abolido pelo Vaticano, e uma vez que estava por aí, num desses caixotes dos saldos metafísicos, foi comprado por uns patacos e instalado por aqui enquanto programa de entretenimento e de hemodiálise. Assim, por efeito desse anedotário, vamo-nos apoucando e deixando que esse desdém pelo próximo seja o que nos define, vendo qualquer instinto ou impulso de rebelião ser domesticado e suavizado no trato social de acordo com a etiqueta em vigor.  

    A guerra de tronos e os paquidermes ilhados

    Play Episode Listen Later Sep 4, 2024 161:53


    Antes de partirmos, todos entendemos que as férias poderão elevar a um estatuto lendário as nossas existências neuróticas. Faz parte das fantasias pequeno-burguesas ir tracejando nalgum canhenho as metas secretas da vaga peregrinação que cada um se promete. Para não desiludirmos o quadro que nos envolve, também fomos ver essa coisa do verão, esse negócio familiar que impinge desde há décadas, e com indesmentível sucesso, retratos e molduras que, passados anos, têm essa capacidade de apanhar-nos tão maltratados que nos pomos a remexer no passado e acabamos embevecidos diante de um tempo que se fixou nas leves linhas de um desenho, servindo estas à composição de uma elegante melancolia heráldica. Fomos ver o mar, que não quis engolir-nos, sentindo que o enjoo que trazíamos era demasiado pesado até para ele. Regressamos, assim, a estas lides maldosas como dois enjeitados, com a fenda ou a racha do carácter ainda mais pronunciada. E vimos a fazer aquela fita de quem virara costas, com o desejo de se reformar, limpar a sujeira debaixo das unhas da alma, recolher-se nalgum grupo de canto coral, e logo quando queríamos deixar a carreira de perversidade para trás, eles puxam-nos de volta. Se pensarmos nisso, é curioso como as Histórias da Literatura nos seus anais quase sempre passam ao lado das formas de corrupção mundana que marcam cada um dos períodos, quase nem se acham registos da maledicência, da bisbilhotice, da pretensão ou do calculozinho, não há compêndios que nos permitam relativizar o desgosto diante do ranço que caracteriza estes dias permitindo-nos colher antecedentes escabrosos, exemplos da desonestidade, do fanatismo estúpido ou vingativo de outras épocas. Como assinalou Max Aub, “nos documentos nunca há filhos da puta. E Deus sabe que eles são incontáveis". Por cá, tudo se confunde. Vivemos cercados de uma gente que põe e dispõe segundo as suas conveniências. Já traficam indistintamente a realidade e as superstições, promovem juízos absurdos, sempre subjugados às lógicas do consumo. Qualquer agremiação de nabos tem o seu quartel, e em vez de manter em estado de anarquia o âmbito dos seus desejos, deliram com hierarquias, com esses títulos sempre infinitamente insignificantes. A mesquinhez toma conta das suas performances, entregando-se a uns dramas caricatos na ânsia de se representarem como altas dignidades. Se em tempos podia contar-se com um número apreciável de escribas que não queriam nada com as distinções ou os snobismos bacocos que caracterizam o campo cultural e quem lá anda, que lançavam o seu desafio e se borrifavam nas corridas de lebres, rindo dos que buscam por todos os meios entronizar-se, hoje são estes que se vêem denunciados e sujeitos a isolamento. Certa vez, Pierre Bourdieu exprimiu da forma mais eloquente a sua desilusão diante dos chamados intelectuais... “Quando disse, no início, que esperava que o senhor [Günther Grass] fosse 'abrir a boca', é porque penso que as pessoas consagradas são as únicas capazes, em certo sentido, de 'romper o círculo'. Mas, infelizmente, consagram-nas porque estão quietas e silenciosas e para que assim permaneçam — e há muito poucas que utilizem o capital simbólico conferido pela consagração para falar, falar simplesmente, e também para fazer ouvir as vozes daqueles que não a têm.” Estamos conversados em relação a esses que adoram vir para este território para exibir a exemplaridade dos seus princípios e valores éticos. Na outra margem, está essa ideia da poesia que traz com ela uma forma de sermos compensados das misérias que sofremos. Se durante uns tempos a burguesia estabelecia em favor dos artistas de vanguarda uma procuração no sentido de exprimirem um protesto neste ou naquele sentido, delegando neles essas tarefas de subversão formal, também para se desobrigar de qualquer alteração das regras do jogo, hoje, o mercado tornou-se essa terrível abstracção que permite a qualquer um redigir páginas de argumentação caótica para justificar seja o que for. Em tempos chegou a exigir-se da poesia que viesse decretar o fim do dinheiro. Mas esse tipo de audácias foram perdendo a vez, e introduziu-se essa forma de suspeita automática diante de tudo o que possa vir a cambalear por aí com aquele cheiro das naturezas implausíveis. Chegava a altura de cada um dizer adeus às selecções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, paciências exaustivas, galope das estações, ordem artificial das ideias. Serviram-se de um século inteiro como exemplo para que abdicássemos da rampa do perigo, da ideia de haver tempo para tudo. "Dêem-se ao menos ao trabalho de pôr a poesia em prática", clamava Breton. Acrescentando: "a nós, que vivemos dela, cabe-nos fazer prevalecer o seu mais amplo relato". Mas, entretanto, mesmo o surrealismo já parece ter sido inteiramente neutralizado, sendo alvo das maiores suspeitas, denunciado pela moral dos nossos sindicatos do pragmatismo. Agora, também se espera que o Estado seja transformado numa gigantesca estrutura de cuidados paliativos, uma vez que os espíritos já nascem reformados, tendo abdicado de todas as pretensões de transformar o mundo, mudar de vida. Hoje, todos defendem os apoios à cultura, os subsídios à criação, as verbas para alargar esse imenso cemitério em que a literatura se viu transformada. E, no entanto, esses mesmos que fazem as suas vidas depender de uma suposta resistência aos humores dos mercados, depois nunca reconhecem o fracasso generalizado da cultura que se produz, que prefere entreter a abalar uma vida social cada vez mais imóvel e sem saídas, refocilando nesse dogmatismo das comunidades pequenas, reforçando os mecanismos de vigilância, as repressões, transmitindo apenas amargura e desconforto, responsabilizando os outros por esse inferno que resulta da insuficiência da acção (ou seja, da própria poesia em apontar um caminho) de forma a confrontar uma determinada situação.  

    A guerra para derrubar a Torre de Babel. Uma conversa com Hugo Maia

    Play Episode Listen Later Jul 20, 2024 198:52


    Antes de vos darmos férias por tempo indeterminado, e de nós mesmos irmos por aí fazer figuras nas estâncias balneares ou, simplesmente, como ursos polares que, por serem incapazes de saltar das placas de gelo, desenvolvem essa forma de camuflagem que passa por se disfarçarem de turistas de modo a colherem este ou aquele benefício fiscal, atiramos mais uma vez o bote para vasculhar com os remos a superfície de um naufrágio de tal modo vasto que tem sabido passar desapercebido. E, porque somos teimosos, voltamos às questões da língua, e com a orientação de Hugo Maia, tradutor a partir do árabe, vamos tentar admirar as subtilezas nas diferenças ou semelhanças entre o lado de cá e o de lá, assinalando alguns aspectos perniciosos no movimento de tradução, em que tantas vezes um texto invade o original, decompondo-o em partes lexicais, gramaticais, num regime de dissecação que traz riscos óbvios, desde logo porque há tradutores que, mesmo cheios de boas intenções, acabam por ferir de morte aqueles textos que procuram verter para outro idioma. Mas há outros perigos, como assinala George Steiner, desde logo essa ideia de ir buscar alguma coisa ao estrangeiro e logo regressar a casa: "o trazer de volta do sentido 'capturado' para a língua e solo nativos". "São Jerónimo, um grande tradutor, refere-se precisamente à tradução quando fala do significado caputrado e levado para casa numa espécie de triunfo romano", adianta Steiner. Tantas vezes a língua é essa arma disfarçada, e à medida que esta se alimenta de significados que lhe são estranhos não é raro que produza uma adaptação que funciona como uma carcaça para consumo pela matilha. De resto, como vinca Pascal Quignard, "com-preender é aprender com outros". "Ora, a predação com outros é a matilha. Deste modo, se compreender nunca é mais do que matar, se perceber nunca é mais do que diferenciar silhuetas que dão medo, toda a praedatio é um transporte de morte, todo o narrador é um regressado do mundo dos mortos, toda a narração impõem uma gramática do passado (é um retorno que não pode dizer o ir senão porque o re-torno teve lugar)." Este mesmo autor esclarece como os homens tão raras vezes têm consciência dos seus processos de predação no que toca ao esforço de traduzir de forma compreensiva uma ideia, uma imagem ou uma narrativa que lhes é alheia, sobretudo se a sua estranheza lhes provocar vertigens. "Os homens raramente abrem os olhos para a anarquia aterradora da crónica humana. Qualquer catástrofe se torna aos olhos humanos, isto é, no fundo da sua memória inevitavelmente linguística, uma prova que tem um sentido. Esse sentido é o de uma saciedade, ou seja, uma paz. O narrador social (o mito) defende sempre a reprodução da ordem social que ele inscreve violentamente no lugar contra o 'parasita' que daí desaloja através do sangue e de quem devora a morte violenta e a aparência e até a recordação. Cada povo distribui a si mesmo os seus feitos orientados, as suas associações a posteriori, as suas mentiras, os seus 'facta falsa', de língua para língua, ou seja, de comunidade para comunidade." Tendo isto em conta, e se são evidentes os benefícios em termos de comunicação e até num plano nutritivo para um idioma absorver os recursos de outro, é preciso também reconhecer como a tradução deve ser exercida como uma tarefa crítica, e não apenas norteada segundo princípios de ordem filológica, uma vez que este transporte de um significado acaba por trair algum do ânimo, seja na forma ou no conteúdo, do texto invadido. Nos séculos das grandes explorações marítimas, as manipulações intermináveis a que foram sujeitas as representações ou narrativas míticas de cada povo iam no sentido de servir os interesses de expansão dos poderes europeus. Estes competiam uns com os outros para conquistar ou controlar faixas de terra cada vez maiores, a fim de poderem explorar e monopolizar os valiosos recursos naturais e mercados das outras nações. Mas e o que ocorreu na forma como se operou o trânsito de ordem cultural e linguístico? Sabemos como naquele processo, tantos povos indígenas foram subjugados e destruídos, tantas lendas apropriadas e e reviradas de forma a servirem os impiedosos interesses ou as narrativas heróicas dos descobridores. Não se trata de propor novas grelhas de revisionismo, mas de não encarar a tradução meramente como um processo técnico, e antes reconhecer que as traduções só se fazem tão impunentemente quando não é tido em conta a diferença de perspectiva e de olhar, até de mundos a que corresponde este ou aquele texto. Quignard compara a tradução a esse processo que passa por dar morte, para depois ingerir, digerir e por fim excretar o original: "o mito transporta o seu conteúdo como o caçador carrega ao ombro um transportado que está ligado a um assassínio anterior ao seu próprio retorno, pois é o assassínio do caçado que permite o seu retorno ao grupo que vai trinchar o corpo, distribuir os pedaços, banquetear, por fim". Se cada língua gera e articula uma visão do mundo, uma narrativa do destino humano, não houve incidente mais fortuito para a recreação e a libertação dos homens do que a catástrofe de Babel, que impediu a união e produziu uma manta de retalhos de aproximações, de erros de interpretação, mentiras que nos impedem de existirmpos nois confins de um só idioma unificador que tudo abarque. Steiner incita-nos a encarar aquela catástrofe como uma inaudita promessa. "Fascinado pelo jogo e maravilha das língua, já em criança eu tinha a impressão que a história de Babel era um 'disfarce', que invertia um significado mais antigo e verdadeiro. Querendo celebrar a monarquia cósmica de Deus, as tribos tinham-se juntado para construir um sublime arranha-céus, uma espiral que aproximasse ainda mais o seu culta da omnipotência celestial. Para recompensar este labor religioso, o Senhor tinha, ainda que de uns modos um pouco bruscos e camuflados, concedido ao homem o presente incalculável das várias línguas. Oferecera aos homens e mulheres a luz, a riqueza inesgotável do Pentecostes. Ao invés de uma maldição, a cornucópia das diferentes línguas derramadas sobre a humanidade constituía uma bênção inigualável."

    Os devoradores de épocas. Uma conversa com António Hess

    Play Episode Listen Later Jul 12, 2024 204:05


    "Neste tempo que se tornou uma ciência, um conhecimento criminoso da vida" (André Roy), seria preciso resgatar de novo o sentido original, o ímpeto nascente, junto às fontes, e não ficarmos remetidos a uma cultura de remastigação, e de reproduções inertes, ao ponto de vivermos imersos em ecos de ecos, num ruidoso enredo que, sem a menor clareza de ideias, apenas exprime impotência. Alguém mais vincava como "todos os amantes partilham a sua infância e são donos uns dos outros". Mas se entre nós alguém notou que estava na hora de chamar o amor para a mesa dos canibais, disso só ficou a ideia de que já estaríamos encaminhados no sentido do progresso se os canibais começassem a comer com faca e garfo. Entretanto, afastaram e perseguiram os canibais e todos os famintos, e a cultura ficou-se pelos bons modos a observar à mesa e pelos serviços de loiça e faqueiros. Perdemos o caminho, o ritmo, o assobio que nos instigava, e essas artes de transmissão, de revigoramento dos exemplos que nos precederam, e se rodeamos os clássicos de um culto esterilizante, é natural que a poesia portuguesa dos últimos tempos, sobretudo aquela que mais se faz exibir, não tenha nada para dizer, uma vez que já nasce para se entregar ao luto, imita os bustos e fez da arte do epitáfio outra indústria de slogans. Considerando a forma como o público celebra as suas eucaristias com corpos mortos, os poetas, como notou Ezra Pound, aspiram a ser iguais às ostras: querem ser engolidos vivos. Seria preciso reatar esse sentido que derrota a ridícula noção do tempo como construtor de distâncias ou barreiras intransponíveis. Os clássicos são esses amantes que partilham a sua infância, e são eternos contemporâneos. Mas as crenças que presidem às nossas orientações estéticas são todas de ordem mais ou menos miserabilista, suplicantes, patéticas. Deveríamos recuperar esses "Versos de Guerra" que nos deixou o melhor dos artífices da palavra: "Ó poetas de um tostão, acalmai-vos! –/ Pois vós tendes nove anos em cada dez/ Para andar aos tiros por glória –/ com pistolas de brincar;// Acalmai-vos, deixai os soldados tomar os seus lugares,/ E não tenteis sacar a vossa glória postiça/ Das ruínas de Louvain,/ E muito menos da fumegante Liège." Se vos fazemos a guerra na cultura é precisamente para não termos de a levar para outro lado. Hoje querem fazer da arte mais outro recreio do mercado, emulando as suas dinâmicas especulativas, esse parasitismo inconsequente. Mas diante da ignorância e desinteresse pelas grandes obras do espírito e pelo tumultuoso percurso que foram desenhando as nossas tradições, é preciso uma vez mais reabilitar a própria função da cultura, esse princípio de ordenação do conhecimento de modo a que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com obras ou produtos obsoletos. No fundo, só os amantes têm pressa pois só eles sabem, como notou Esopo, que "há toda a diferença do Mundo entre correr para apanhar algo e correr para salvar a pele". António Hesse, nosso convidado neste episódio, tem tido a crueza de retomar o sentido de urgência de uma literatura exaltante e que se elaborava através de manifestos. Naquele que ele tem distribuído, lembra-nos a importância de "assumir que o desespero continua a ser dínamo impreterível para os grandes transgressores – ladrões, vilões, desgraçados e iluminados". E o amor clássico é tudo menos essa "pressa de moribundo a testamentar antes que o cacem". Nesta conversa, sob o signo ou a configuração astrológica que Pound nos serviu, quisemos refazer esse mapa para as maiores urgências, aceitando que este é um tempo em que o mais difícil é elevar a vida a esse território invisível e imortal onde ainda soam as grandes passadas que foram dadas há séculos ou milénios como há segundos. Com estrondo, gerando sérios confrontos e desacatos. Toda a ordem nasce de um breve momento de tréguas antes de alguma outra coisa nos precipitar de novo numa guerra onde o que mais importa é estar nela com o mais alto grau de discernimento. Esse campo de batalha é-nos oferecido pela grande literatura, que Pound define como os casos em que a linguagem se vê carregada de significado no máximo grau possível. E para nos livrarmos desta cultura de mastigadores ruidosos que quando acabam de deglutir não têm nada mais para acrescentar, para contrariar os efeitos devastadores desta era de ciência e abundância, ele lembra-nos que "o amor e a reverência pelos livros como tais, próprios de uma época em que nenhum livro era duplicado até que alguém se desse ao trabalho de copiá-lo à mão, obviamente, já não respondem 'às necessidades da sociedade ou à preservação do saber". Simplesmente, sufocamos debaixo de todo o lixo que é posto à nossa disposição pelo tipo de ignorantes que, por não terem a menor perspectiva sobre o passado, estão condenados a repetir de forma inane o que já foi dito com um rasgo superior em tempos em que cada gesto era mais difícil e por isso exigia muito mais ímpeto. "Precisa-se com urgência de uma boa poda, se é que o Jardim das Musas pretende continuar a ser um jardim", conclui Pound. E para levar adiante esta prodigiosa memória e o seu desafio, contámos com o entusiasmo deste poeta e tradutor que desceu como um bárbaro à capital, e se apresentou como um "suave menestrel da Beira, atropófago, semiótico, acrópologo da maledicência", e ainda "humano por definição, místico por vocação", alguém que desde 2017 vem instigando um culto intitulado Hopentoten.

    A China e o nosso espectadorismo distante. Uma conversa com Tiago Nabais

    Play Episode Listen Later Jul 5, 2024 209:25


    Hoje o mundo não sabe estar quieto. Em vez de o trânsito ser de ordem cultural, o regime da competição introduziu um elemento de constante disputa, conflitos de influência e poder. As nações procuram extravasar e invadir-se, e é próprio desse quadro a ideia do revisionismo, a forma como o esforço de subsumir o passado leva a que os nossos juízos procurem consumir toda a história anterior. Talvez pior do que o roubo de bens culturais de outras culturas e povos é essa forma de traficar os objectos culturais, sejam eles a iconografia religiosa, a pornografia ou Das Kapital, submetidos a um sistema de equivalência, organizando tudo segundo valores monetários. Aos poucos toda a ideia de cultura reverte para a ideia de museu. Como nos diz Mark Fisher, "se percorrermos o British Museum, onde é possível vermos objectos arrancados aos seus mundos da vida e reunidos como se no convés de uma nave espacial do Predador, ficaremos com uma imagem desse processo em curso". "Com a conversão de práticas e rituais em objectos meramente estéticos, as crenças de culturas anteriores vêem-se objectivamente ironizadas, transformadas em artefactos." Em seu entender, a grande potência do capitalismo é ser essa entidade monstruosa e infinitamente plástica, capaz de metabolizar e absorver tudo com que entre em contacto. Este efeito aplicado à história leva a um tal grau de saturação desses elementos que uma época assume "um perigoso espírito de ironia em relação a si mesma", como escreveu Nietzsche, "e subsequentemente ao espírito ainda mais perigoso do cinismo", no qual, "a palpação cosmopolita", um espectadorismo distante, na formulação de Fisher, vem substituir o empenhamento e o envolvimento. Demasiada realidade adoece-nos os sentidos, uma vez que já não somos capazes de reconhecer as diferenças e as propriedades que conferem autonomia e respeitam a estranheza de umas peças de um puzzle face às de outro. É como se em vez de montar um puzzle de forma paciente, respeitando a integridade da sua vizão e a ordem que lhe é própria, fôssemos usar cola ou argamassa, sem ter em atenção cada uma das peças. Mais valia sentir diante dessas realidades distantes um vago fascínio, apenas impressões algo desconexas, peças desirmanadas, que não nos confortam com a ilusão de uma perspectiva clara e unitária. Mais vale ter aquele sentimento do aldeão de Tonino Guerra, que, no segundo canto do extraordinário álbum de lembranças a que ele chamou "Mel", nos diz isto: "Deitei fogo a páginas de livros, a calendários/ e mapas. Para mim a América/ já não existe, a Austrália igualmente,/ a China na minha cabeça é uma fragrância,/ a Rússia uma alva teia de aranha/ e a África o sonho de um copo com água." Mais vale uma ignorância humilde e respeitosa, do que presumir que se sabe alguma coisa, que se viaja e viu fosse o que fosse porque um tipo se meteu num avião e aterrou lá ansioso, integrando uma dessas expedições famintas por pedaços da História, que vão por ali disparando a objectiva sobre uns quantos monumentos de forma a provarem a si mesmos e, sobretudo, aos outros que estiveram lá. Como nos lembra Pascal Quignard, em latim, vigiar do alto de um lugar um qualquer sinal de morte para até ele se precipitar como uma ave necrófaga diz-se especular. No fundo, é só isso o que servimos aos turistas que nos assediam nestas cidades exaustas: sinais de morte. Cumprimos o nosso papel como parte de um cenário moribundo. Em vez da arrogância de absorver totalidades, mais vale encantar-se por um elemento de composição qualquer, animar-se com esses cacos que nunca nos poderiam servir como indicações para a plenitude seja do que for. Seria mais útil escrever-se uma história apócrifa da porcelana, como fez Ivan Krustev, em lugar de depredar a agonia daqueles que apenas surgem ao fundo, nos postais dos turistas. "A paixão pela porcelana, Europa do século XIX./ Serviços, elefantes e copos./ O mundo é vasto e bom,/ Distinto, frágil, aristocrático./ E há algo para além disto,/ O horizonte ergue-se transparente./ A América é só uma costa./ E a China um gato preto./ Montesquieu continua a redigir/ As suas cartas sobre filósofos./ Os eruditos usam perucas/ E as senhoras - flores./ Os soberanos não são dementes/ E, no entanto, não são grandes inteligências./ Nenhum fantasma persegue a Europa/ E o amor é fantasmagórico./ Infelizmente os poetas são de salão,/ Felizmente os seus poemas não./ E a liberdade, como um jarro,/ Está no centro do pensamento./ A nova história começa/ Com fragmentos de porcelana./ Enterrada em pequenos elefantes brancos/ Deixamos a idade da Razão para trás." Neste episódio fomos beber o que podíamos à experiência de Tiago Nabais, investigador e tradutor de autores chineses como Yu Hua e Yan Lianke, alguém que passou uma década na China, a ensinar português em várias universidades, e que, sem poder levar-nos lá, deu-nos antes uma boleia e fez de guia para nos permitir compreender melhor esse teatro de sombras chinesas que persiste nas suas memórias.

    Fazer do verbo carne. Outra conversa com Luís Filipe Parrado

    Play Episode Listen Later Jun 28, 2024 226:15


    São demasiadas palavras. Parece que nos barricamos atrás delas. E a relação que mantemos com os textos parece cada vez mais da ordem da frieza, do distanciamento, uma forma de se prometer a certas causas e ideias, adiando o momento de deflagração. Escrever não passa assim de integração, legitimação, reconhecimento, academização nos palácios, glória na memória, como nos diz Quignard. Se parece haver mais erudição do que nunca e o nível geral dos literatos até revela uma certa elevação, depois as inspirações revelam-se vazias. A cultura não parece apostada em assumir uma determinação combativa. As figuras que por ela respondem acoitaram-se “numa sageza triste que interioriza como uma tara um saber inutilizável para o ataque”. Como vinca Sloterdijk, “o mal-estar na civilização adquiriu uma nova qualidade: aparece como um cinismo difuso e universal”. Este filósofo alemão nota como o humor crítico por estes dias se volta nostalgicamente para o interior num jardinzinho filológico onde se cultivam as íris benjaminianas, as flores do mal pasolinianas e as beladonas freudianas. “A crítica, em todos os sentidos do termo, vive tempos enfadonhos. Começa de novo uma época da crítica mascarada em que as atitudes críticas estão subordinadas às funções profissionais. Criticismo de responsabilidade limitada, Iluminismo de fancaria como factor de êxito – atitude no ponto de intersecção de novos conformismos e de antigas ambições." Ele aponta para esse vazio de uma crítica que quer cobrir com o seu ruído a própria desilusão. Neste sentido, a escrita torna-se uma ocupação diletante, a transmissão de saberes faz-se sem um empenho sério, sem uma correspondência entre as posições defendidas e as atitudes assumidas na própria vida. Ficamos diante de um teatro de desertores, e toda a representação não passa de uma forma de impostura. Quignard dá-nos o exemplo de Agrippa d'Aubigné, para quem escrever “significava anacorese religiosa face à religião comum, deserto face às cidades, vingança dos seus íntimos que haviam sido executados, fidelidade aos vencidos, aventura, esquecimento”. “É o letrado concebido como o porta-voz dos mortos, desalinhado com a História, malfadado nos dias, engolido pelo silêncio anterior às línguas", acrescenta o escritor francês. Nada disto poderia estar mais distante dessa postura lacónica e enfadada dos escritores contemporâneos, que parecem só sentir algum entusiasmo por ver as suas obrinhas, apesar de tudo singrarem, triunfarem neste ambiente de desagregação. Por toda a parte, vemos as instituições de ensino serem cooptadas pela engenharia da miséria programada, e a cultura e os saberes parecem troçar dessas liturgias que se organizam em seu nome, essa imensa festa sensaborona, entre o tipo de gente que não pretende desencadear qualquer tipo de mudança. Num episódio em que quisemos deter-nos sobre a crise do ensino, da transmissão dos saberes, Steiner serviu-nos algumas pistas… “A maior parte da literatura ocidental, que durante mais de dois mil anos se abriu deliberadamente a uma interacção, na qual a obra ecoava, espelhava, aludia a obras anteriores, pertencentes à tradição, está a afastar-se com uma rapidez cada vez maior do alcance do leitor. Como as galáxias remotas que se estendem para lá do horizonte visível, o núcleo da poesia inglesa do Ovídio de Caxton a Sweeney among the Nightingales, está hoje a passar da presença activa à inércia da conservação universitária. Assentando firmemente numa profunda e ramificada anatomia de referências clássicas e bíblicas, expressando-se numa sintaxe e num vocabulário peculiares, o arco completo da poesia inglesa, do diálogo mútuo que liga Chaucer e Spenser a Tennyson e a Eliot, ultrapassa rapidamente a capacidade de apreensão da leitura natural. Há uma vibração de fundo da consciência e da linguagem que se transforma hoje em material de arquivo.”

    A fábrica de funcionários. Outra conversa com Frederico Neves Parreira

    Play Episode Listen Later Jun 21, 2024 217:03


    “Se a estupidez não se assemelhasse, a ponto de se confundir, com o progresso, o talento, a esperança ou o aperfeiçoamento, ninguém desejaria ser estúpido”, isto foi notado por Musil, mas adiantaríamos que a característica que distingue a estupidez produzida pelo nosso tempo é esta: a sua adequação às próprias noções de sucesso. Afinal, este é um tempo que se destinou ao desastre, e, assim sendo, é natural que as hierarquias nos ponham diante de autênticas conspirações de estúpidos. Só se afirmam esses seres incapazes de uma consciência clara do ridículo das suas existências. Triunfo é uma forma de fanatismo de si mesmo. Essa é a única promessa que o homem contemporâneo é capaz de se fazer, a de que, se o mundo o contrariar, está legitimado para dar cabo dele. Nas promessas que o homem se faz, o mundo foi-se tornando cada vez mais um empecilho, algo inconveniente, e daí que os estúpidos se tenham encarregado de triturá-lo aos poucos, obtendo um lucro fabuloso nessa operação. Olhamos ao nosso redor e toda a existência humana parece estar prometida a este projecto, e todos se mostram imensamente confiantes com o progresso da operação. Na verdade, esta completa falta de noção do ridículo é aquilo que garante que qualquer esforço de crítica seja visto como uma forma de pretensiosismo, uma atitude própria de quem está apostado em perturbar o curso da evolução histórica. No fundo, os estúpidos somos nós. E esta inversão extraordinária garante, pelo caminho, que já ninguém possa ser chamado à razão. O efeito de intimidação é de tal ordem que são cada vez mais escassos os pensamentos que respondem a esta conspiração através da recusa das suas orientações, até porque a linguagem mesma tornou-se imensamente pantanosa, os termos e os conceitos viram-se apropriados pela estupidez, pelos seus valores contagiosos, por essa inversão do sentido, de tal modo que quem questionar seja o que for obriga-se a um exame de tal modo implicante que a maioria se perde, distraindo-se com outra coisa. Qualquer letrado, ao introduzir a suspeita e afastar-se do idiolecto imbecilizante e inteiramente recamado na forma de frases feitas, transforma-se de imediato num ser incómodo, e é ele que atrai sobre si a rejeição dos demais. Hoje, cada escritor que viole esse circuito de noções desastradas vê-se transformado no artista da fome, recusando esse venenoso sustento, apresentando-se na figura do protagonista de um conto de Kafka que exibe como espectáculo o seu jejum prolongado, e que tem de fazer um esforço absurdo para que o público não escolha outro entretenimento. É o próprio destino horroroso que temos diante de nós aquilo que estranhamente nos hipnotiza e atrai. Não conseguimos recusá-lo, pois isso significaria travar uma luta apenas para adiar algo que parece estar inscrito nos sonhos da espécie. Há um desejo cada vez mais desinibido pelo desastre. Como nos diz Pascal Quignard, “matar-se é a paixão específica da espécie homo, fazendo jorrar o seu sangue negro, o seu vírus, a sua virtus, opondo-se às outras feras, nas quais a predação é simplesmente suscitada pela presa que as saciará, e também imediatamente saciada na medida em que a sua fome fora rigorosamente suscitada”. Arrancámo-nos à natureza, e esta dissolveu-se dentro de nós. Agora estamos cativos de uma irresolução permanente, de uma fome insaciável. “As centenas de milhões de ecrãs que cobrem o planeta transformaram-se no novo órgão fascinante, substituindo sacríficos e ritos, multidões peregrinas, massas espezinhantes. É a sedentarização final. É o progrom tornado imóvel. Se o espectáculo não apazigua inteiramente a fruição horrorizada que este suscita, pelo menos crava no lugar o espectador que examina o sangue a escorrer. Faz daqueles que sidera presas com moradas, documentos de identificação, cartões bancários, vítimas numeradas, corpos sentados e petrificados susceptíveis a todas as extorsões e a todas as pilhagens. (…) O ódio, uma vez tornado imóvel a esse ponto, transforma-se em medo. O medo, esse companheiro único do desejo, confinado na sedentariedade e na propriedade fundiária, é reformulado como angústia. Essa angústia procura protecção junto do poder que ela mesma delegou ao pavor para conter o seu assombro, no qual consente como se não lhe pertencesse sob a forma de obediência, de liberdade mortificada, de imobilidade psíquica, de indolência social. Aquilo a que as democracias chamam política, desde o início deste século, olvidando o horror do século que precedeu este novo século, está a cometer o erro de criminalizar a contestação que as fundamenta e que deveria agitá-las até ao tumulto para as manter vivas.”

    A função dos inimputáveis. Uma conversa com Victor Gonçalves

    Play Episode Listen Later Jun 14, 2024 240:52


    “Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista”, dizia há dias Jorge de Sena, um dos últimos que arrancou a voz dos sepulcros e do nosso conformismo para dizer alguma coisa num discurso do 10 de Junho que nos fizesse ferver o sangue. O que é próprio de um bando de filhos da puta é este “desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião.” Não venham cá erguer castelos de areia e falar de quintos impérios bafientos, tudo o que temos diante de nós e que se publicita enquanto espaço literário ou até, de forma mais abrangente, como campo cultural, são repetições do de sempre, modos de refocilar na pasmaceira, nesse rigorismo das fórmulas que melhor se reproduzem, se perpetuam, deixando uma margem ínfima para que algo de outra ordem possa despontar e reclamar posições, fazer ouvir uma outra música. O destino de todos os gestos vigorosos no campo artístico deveria ser o de contrariar a sufocação, produzindo uma dissidência. O verdadeiro apelo que lança o poeta passa por multiplicar os caminhos, defender a diferença de uma poesia que “não se quer mero exercício literário, mas aventura em que a vida se joga por inteiro” (Cesariny). Hoje começamos por não saber nada de mais profundo sobre nós, não sabemos quantos somos, nem o que nos liga aos que vieram antes. Vai triunfando uma forma de psicose em que cada um investe tudo em si mesmo apenas para se dar conta de que, com isso, apenas colabora num regime de passividade, cada um encerrado como uma larva no casulo, prometendo-se metamorfoses radiantes, mas que se fica por isso mesmo, um eterno desfiar de ilusões inconsequentes, uma distracção em linha com a total ausência de reacções perante a guerra que tomou conta de todos os aspectos da vida em sociedade, desse regime de competição que, curiosamente, produz uma forma massiva de “desvirilização” através da qual os homens se transformam numa espécie de “ovelhas conscientes e resignadas ao abate” (Hollier). Perante este quadro, há uma urgência de recomposição num momento em que tudo serve para nos convencer que não nos é possível afectar uma mudança radical das circunstâncias em que vivemos. Vemos como tudo aquilo que se programa, todas as iniciativas e propostas, servem para arruinar qualquer ímpeto colectivo, qualquer comunidade, separando os grupos dos meios de existência e dos saberes a que estão ligados. Assim, damo-nos conta de que é essa a motivação política que está presente em todos os contextos, contagiando as reles formas de agitação que são próprias de uma cultura reificada, sempre disposta a emular a ofensiva da mediação mercantil que se impõe sobre todas as relações. Para sair disto é necessária uma indisposição de todo o tamanho. Para destruir essa forma de reprodução de si mesmo, os discursos que excitam os consumos e nos oferecem essa versão aguada e impotente das antigas mitologias, esse culto de umas celebridades patéticas e indistinguíveis umas das outras. É preciso revirar o consumo, acicatar um ódio nessa vertigem para a qual aponta Deleuze: “Basta que o ódio seja suficientemente vivo para que dele se possa extrair alguma coisa, uma grande alegria, não de ambivalência, não a alegria de odiar, mas a alegria de querer destruir o que mutila a vida.” Também Michaux não dispensava esse modo de se relacionar que cresce a partir de uma repulsa e nos diz tanto sobre o outro como sobre nós, e falava nessa forma de repúdio que afina a insurreição começada cá dentro: “Preciso de ódio, e inveja, é a minha saúde./ Preciso de uma grande cidade./ Um grande consumo de inveja.” Podemos também seguir de perto e exclamativamente Mário de Andrade e a sua ode ao burguês: “Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!/ Oh! purée de batatas morais!/ Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!/ Ódio aos temperamentos regulares!/ Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!/ Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!/ Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,/ sempiternamente as mesmices convencionais! (…) Todos para a Central do meu rancor inebriante/ Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!/ Morte ao burguês de giolhos,/ cheirando religião e que não crê em Deus!/ Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!/ Ódio fundamento, sem perdão!” Neste episódio, e para nos desvirarmos um tanto dos itinerários e leituras onde já fomos escavando as nossas trincheiras, pedimos apoio a esse mestre de armas de longuíssimo alcance, sobretudo morteiros filosofantes. Victor Gonçalves é desses que vão para o espelho e em vez de gritarem três vezes Candyman, gritam Nitzsche, e passam os dias exaltados, assombrados, fervilhantes num debate sem fim. Diz-se uma espécie de “filósofo jornalista”, pois gosta dos dias, dessa bulha, de dar resposta, não levar tudo para sufocar em casa, e além do ensino de adolescentes, anda aí com os filósofos pela mão, como um bando de meninos diabólicos, a desassossegar os bairros e virar a lata contemporânea.

    Os gatos não se olham ao espelho. Uma conversa com Luís Mendes

    Play Episode Listen Later Jun 7, 2024 276:58


    O capitalismo serve-se de uma mão cheia de comprimidos de viagra na hora de falar de erotismo, e prefere discutir as preferências em termos de pornografia ou particularidades sobre a penetração do que se recriar em jogos de sedução. Havia aquele tipo com uma eficiência brutal nas saídas à noite e que se limitava a aproximar-se dos alvos e dizer-lhes “queres foder?” Vendo isto alguém lhe disse: Deves estar sempre a levar estalos… e ele assentiu, que não era infrequente, mas que era o preço que pagava de bom grado sendo que com esta abordagem não deixava de foder todas as noites. O capitalismo não vê a diferença entre ele e o Casanova. Melhor ainda seria Gengis Khan, de quem se diz que cerca de um sexto de todos os homens integram a sua descendência. Aí nem estava em questão obter prazer, mas tão-só submeter as populações conquistadas, inseminar as mulheres à força, esmagar a posteridade com o seu material genético. Também o capitalismo só pensa em reproduzir-se, submeter toda a vida, até ao limite da sua extinção. Este espírito ainda repugna a uns poucos, mas cada vez são menos aqueles que não aderem às comunidades de pregar com pregos, de competir e impor-se aos demais. Entre os burgueses, Cesariny só conseguia admirar uma das suas tantas espécies. "Penso que a questão é esta: a gente –  certa gente – sai para a rua,/ cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glória/ e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!/ Contudo e já agora penso/ que os gatos são os únicos burgueses/ com quem ainda é possível pactuar –/ vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!/ Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a…/ Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato/ mas de gato para cima – nem pensar nisso é bom!/ Propalam não sei que náusea, retira-se-me o estômago só de olhar para eles!/ São criaturas, é verdade, calcule-se,/ gente sensível e às vezes boa/ mas tão recomplicada, tão bielo cosida, tão ininteligível/ que já conseguem chorar, com certa sinceridade,/ lágrimas cem por cento hipócritas.” Hoje pede-se demasiado da política, mas o vazio é sobretudo de ordem cultural, do espírito, das ideias, e, por isso, também das nossas urgências e necessidades, paixões, desejo. Estamos consumidos por necessidades excitadas e produzidas artificialmente. “Posto isto, podemos começar a formar uma concepção de cultura, uma ideia que, antes de mais nada, é um protesto. Um protesto contra o insano constrangimento imposto à ideia de cultura, ao reduzi-la a uma espécie de panteão inconcebível e ao provocar assim uma idolatria em tudo idêntica ao culto das imagens nas religiões que relegam os seus deuses para panteões. Um protesto contra uma concepção de cultura distinta da vida, como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida, como se a verdadeira cultura não fosse um meio requintado de compreender e de exercer a vida” (Artaud). Diante deste cerco impiedoso, destas práticas ridículas, desta competição que dá cabo de todo o sentido da graça, da elegância de quem sempre preferiu escapar de regimes concentracionários, de bulhas intermináveis, esperava-se daqueles que vivem do tráfico das obras culturais um sinal de diferença, uma forma de demarcação. Pois como notou Vitor Silva Tavares, “se a montante e a jusante do fabrico és tu ‘o mercado', como te fazem, então está na tua mão lixá-lo – ou, em mais fina terminologia sociológica – subvertê-lo. Escolhe e torna a escolher, encontra esconsos, busca luminescências (quase) clandestinas, contribui, pela inércia, para a cubicagem dos sarcófagos de invendidos, nega a lógica vampiresca dos conglomerados editoriais. Não embarques quando ouves ou lês que eles garantem empregos e salários e difundem a língua e a cultura e o comércio externo e o equilíbrio da balança de pagamentos e o aumento do produto interno bruto… deste embrutecimento programado. Mete na cabeça que a legião de accionistas do ‘sector' não é de fiar.” Tudo isto serve de balanço para uma conversa em que falámos dos sinais da capitulação deste sector ao mercado, uma rendição eufórica que a cada ano é celebrada nessa liturgia sacrificial que é a Feira do Livro de Lisboa. Para nos acompanhar e impelir nesta reflexão e crítica da forma como o capital se vai espacializando, e subjugando as nossas cidades, “suprimindo as qualidades específicas inerentes aos lugares, os quais já só subsistem em estado de poeiras físicas, como vivências subjectivas e relativas, sem valor nem consistência” (Bruce Bégout), contámos neste episódio com os bons ofícios de Luís Mendes, geógrafo que se tem empenhado particularmente em procurar soluções para a crise da habitação e para a progressiva financeirização das cidades.

    Camões & Taylor Swift. Uma conversa com Hélio Alves

    Play Episode Listen Later May 31, 2024 188:01


    Quando se fala de poesia são aqueles que desatam a brilhar e acham sempre que é com eles que, ao mesmo tempo, se fazem de desentendidos, que nunca sabem bem o que isso seja, até porque lhes convém poder pôr qualquer arrotito lírico nessa conta pela qual ninguém se responsabiliza nem há quem a pague, e lá vão levando fiado e gozando o prestígio dos que elevaram a canção a um modo de provocar um estremeção na realidade. Mas se até um figurão reputadíssimo como Vitor Aguiar e Silva percebeu como os poemas reiventam a linguagem verbal e como nessa reinvenção lêem e dão a ler de modo inédito o homem e o mundo e transformam o homem e o mundo, não deixa de ser estranho que depois os ditos poetas se mostrem sempre tão titubeantes. Dá a sensação que hoje despencam na poesia, como num palco de consolação, aqueles que se frustraram na sua carreira enquanto artistas pop. Estão fascinados por essa regularidade das formas de ruído espectacular, essa mecânica estridente que vive de repetições, cópias, frases sem grumos, reproduzíveis, que ficam no ouvido desses seres mastigados pelo quotidiano massacrante que se nos impõe. Hoje, o rouxinol tornou-se um intruso, uma espécie de imigrante ilegal no reino da canção. Como nota Pierre Alferi, as condições urbanas geraram distúrbios de tal ordem que o ruído no trânsito obriga os rouxinóis a cantarem tão alto que tecnicamente os seus cantos excedem os limites legais. Mas os poetas não, nunca. Só cantam se for conveniente e no volume que se considerar mais agradável. Já o rouxinol poderá causar verdadeira perturbação e obrigar os vizinhos a abaterem-lhe a árvore. São os rouxinóis, hoje, e não os poetas que correm mais risco de serem expulsos da cidade. O que nenhum poeta quer é ser acusado de perturbar a ordem, as consciências ou, em geral, o conforto dos seus contemporâneos. Se pudesse enchia estádios. Mas não podendo, canta por aí nos convívios entre aqueles que acham que a poesia enobrece os seus sentimentos. “Já quase nada surge sem mais nem menos” (Don DeLillo), tudo tem de ser encomendado, convidado, tocam-se as canções mais pedidas. O poeta mais parece uma jukebox, e não tendo êxitos no seu repertório, fica obrigado a fazer imitações daquilo que passa mais na rádio. Para os nossos dias, um tipo como o Camões, esse génio arruaceiro que fervia em pouca água, apesar do ambiente comemorativo nestes seus 500 anos, seria tido certamente como um ser grotesco, um bárbaro face à fraseologia mortuária que ocupou o lugar da língua portuguesa. Hoje seria necessário evadirmo-nos, com Camões e outros da mesma estirpe, esses seres que se agarravam à vida mais pela capacidade de evocar outras visões e mundos, que vão explorando através dessa espécie de arabescos acústicos tecidos à volta das suas experiências, e que compõem canções infinitamente mais convincente e ardorosas do qualquer desses simulacros com que nos divorciamos dos nossos sentidos. Nestes 500 anos, para apreciar a decomposição e o chavascal que se fez à volta da obra de Camões, pedimos a orientação de um dos nossos mais empenhados e audazes camonistas, Hélio Alves, alguém que se tem batido para revitalizar o estudo desta obra, notando que os supostos pedagogos continuam a ignorá-la, “enquanto repetem o mesmo refrão de sempre sobre a valente e mulherenga criatura”.  “A dificuldade em formar o pensamento abstracto nos jovens, isto é, a falta do que devia chamar-se uma escola, deve ter contribuído em muito para não se saber ler”, nota ele. “Seja como for, os poucos críticos ainda dignos desse nome não terão outro remédio, para a nossa saúde, senão voltar, seja por que abordagens e matizes forem, à poesia de Camões”. Este nosso guia frisa ainda como Portugal apostou desde sempre na sua excepcionalidade. “Na vida, na carreira, no génio.” O problema é que na hora de medir e sopesar tudo a tarefa parece ter-se tornado demasiado exigente para os leitores que vamos formando. “Quem louvará Camões que ele não seja?”, questionou Diogo Bernardes logo no primeiro verso da homenagem que lhe prestou… Hélio Alves tem procurado pelo menos que haja condições para que a homenagem não sirva apenas como um estratagema para enterrá-lo mais fundo na nossa ignorância.  

    As musas obscenas. Uma conversa com Pê Feijó

    Play Episode Listen Later May 24, 2024 169:23


    Diante deste regime cultural dos que sempre se recomendam (a si mesmos e uns aos outros), dos que em todas as situações encontram forma de capturar-nos apenas para se mostrarem infinitamente virtuosos, desses que, assim, se servem da sua virtude para masturbar os seus vícios (Michaux), somos levados a pensar no que Flaubert respondia quando lhe perguntavam que espécie de glória ambicionava mais: “A de um desmoralizador.” É um problema de inspiração, das matérias e exemplos para os quais nos voltamos, procurando sempre o teor edificante nas nossas manifestações e comportamentos. Todos se querem subversivos, mas não se livram do ranço dos valores de sempre, e rejeitam tudo o que é mais baixo, tudo isso que, por assim ser, “não pode servir em hipótese alguma para macaquear uma autoridade qualquer”. Como refere Bataille, “a matéria baixa é exterior e estranha às aspirações ideais humanas e recusa-se a deixar-se reduzir às grandes máquinas ontológicas que resultam dessas aspirações”. Os elementos degenerados ainda são apenas tolerados e mantidos sob uma apertada vigilância ou condenados à inexpressão. Todas as ficções depravadas circulam como exemplo de um excesso que se vê aproveitado pelos cursos de catequese das artes, como enunciados a serem replicados em série de forma a derrotar qualquer efeito de choque. Hoje a hipocrisia é o preço que todo o vício se vê obrigado a pagar à virtude. Como nota Claudio Magris, as formas de profanação ostensiva, tão gratas a tantas expressões artísticas, revelam-se amiúde cheias de boas intenções, e os escritores que se tomam por iconoclastas celebram o eros frente à repressão, as posturas rebeldes frente ao autoritarismo dogmático, a revolta dos marginais frente aos tutores das hierarquias sociais, e tudo isto não passa de mais outra profissão de moralidade e de bons sentimentos. Quão raros são aqueles que verdadeiramente mostram um interesse sério pelas catástrofes, por essas depressões tumultuosas e crises de angústia. Falamos tanto do inferno, mas, na verdade, muito poucos são aqueles que realmente se atrevem a fazer mais do que molhar os pés nas suas águas. Bataille nutria o maior desprezo por este tipo de artistas, e não poucas vezes exprimiu o ódio diante de um mundo que, até em presença da morte, impunha a sua pata de funcionário”, reconhecendo nos seus contemporâneos “os seres mais degradantes que jamais existiram”. Hoje o conteúdo da vida em sociedade representa uma perda constante de si, uma degradação do desejo, esse pudor diante dos próprios sonhos. “Talvez um olhar desapiedado seja hoje mais necessário do que nunca, num momento em que se foram desmoronando uma a uma as ilusões das grandes filosofias da história, persuadidas como estavam de que as contradições da realidade permitiriam a sua superação e conduziriam a um progresso ulterior”, refere Magris. E acrescenta que o devir do mundo parece agora à mercê de uma caótica e imprevisível ebulição, indiferente aos grandes projectos e perspectivas. Devemos mergulhar de novo no abismo dos nossos próprios sonhos, recuperar essa condição que ali reside em estado de cativeiro, essas criaturas humilhadas, os condenados dessa outra raça que não nos permitimos mais encarnar, essas peles que escondemos no armário. À vida para a qual nos seduzem, com os seus confortos e luxos ordinários, é preferível esta dolorosa odisseia nas trevas, onde não há repouso, mas através da qual é possível escavar esses túneis e recuperar essa lucidez escabrosa e a fraternidade sórdida entre aqueles que precisaram de se dedicar ao crime e à maldade para chegarem a reconhecer os seus rostos no espelho. Neste episódio, e para nos acompanhar nesta descida e busca desse efeito de monstruosidade e plenitude transgressiva, buscámos a companhia de Pê Feijó, alguém que para falar de si começa pela vulnerabilidade, que encara esse gozo de trabalhar com os géneros como uma forma de ventriloquismo, o qual lhe permite identificar-se não com essas composições genéricas e acomodáveis, mas com o carácter insurrecional do desconhecido.

    E se este país existisse? Uma conversa com Maria Etelvina Santos

    Play Episode Listen Later May 17, 2024 235:10


    Que pavor este de porventura não existirmos, não a ponto de isso significar um abalo na vida dos demais. Insistimos sem saber a favor do quê, sem ficar claro exactamente que resistência é essa que começa por degradar-nos ao adulterar os ecos daquilo que dissemos. Devolvem-nos reflexos mutilados, degradam todas as formas de vida ao serem acolhidas entre as mortíferas hipocrisias do campo cultural. Como refere Owen Sleater, "uma das maneiras de encobrir ou aniquilar uma forma é instituí-la. A metodologia de instituir corresponde a um cisma na forma, a uma separação entre o seu modo de ser e o seu modo de actuar. Assim, toda a instituição é uma Igreja menor, que se separa para se reificar segundo o seu objectivo de persistir para governar na eternidade. Apesar de sermos na maioria filhos do império cristão, isso não é uma fatalidade. A verdadeira fatalidade é a crença nesta percepção de que a vida deve ser regida por um princípio unificador capaz de trazer ordem, aí onde, no entanto, tudo transborda. Todos nós já tivemos a experiência de ver emergir as formas, e até os seus movimentos, quer se trate de um caso amoroso, de um tumulto ou de um bar clandestino. Ver a autonomia das formas não é ser contra a instituição, mas distanciar-se dela, fugir dela constantemente. Isto exige que abandonemos esta percepção truncada do sensível. Ouvir, sentir, ver e tocar a ‘melodia da vida'. A melodia da vida é uma autonomia da forma." Vivemos encarcerados numa realidade irrespirável, sem ligação entre uma coisa e a seguinte. Não parece haver a possibilidade de narração de outra coisa, e, se alguém o faz, logo fica perante o zelo desses pasmosos habitantes que, desde a sua indiferença, vão gerindo o desgaste, sufocando tudo entre os seus costumes, essa prosápia medíocre e hipertrofiada. A cultura tornou-se mesmo o vício e a pretensão de tudo quanto julga ser “gente” num país sem termos de comparação que possam equilibrar essa doce paranóia de grandezas engendradas a meias pelo tédio e pela falta de imaginação. Outrora, o tempo e a posteridade ainda entravam em linha de conta, persistia a possibilidade desse último recurso, e de que estes ainda se prestassem a fazer justiça, corrigindo o triunfo e as suas tabelas. “Mas o tempo já não é capaz dessas cortesias nem de redescobrir a mensagem para lá do meio. Hoje os meios são a mensagem, mudam e apagam a História. A indústria da cultura destruiu a posteridade; não haverá revisões dos triunfos presentes” (Claudio Magris). A hora de muitos dos tantos que se vêem por aí insistentemente ignorados nunca chegará deveras, e talvez só possam contar com o benefício de uma redescoberta frouxa e momentânea por parte de meia dúzia de apreciadores. É isto o que somos, traficantes de cintilâncias e do caos de singularidades incalculáveis no meio desse aparatoso festival que resulta da submissão miserável da época às “linhas imbecis das morais e das eficácias primárias”. Decididamente, tudo quanto é interessante se passa na sombra. Cada vez sabemos menos da verdadeira história dos homens. Somos seres atravessados por este desacerto e esta incerteza descoroçoante. Não temos notícias de quem somos. Talvez por isso já não faça sentido procurar desfiar esse fio de vozes, esse sentimento partilhado, esta repulsa diante da cretinização e abominação da vida. “Quando se é fraco, o que dá forças é conseguirmos despojar os homens que mais tememos de todo e qualquer prestígio que ainda tenhamos tendência em consentir-lhes”, escreve Céline. A nossa obrigação é restabelecer o tumulto, criar zonas onde a paixão possa ser expressa sem complexos, sem os subterfúgios da ironia, lugares onde a errância e o excesso não sejam penalizados, mas acolhidas. Neste episódio, neste desejo de estender uma conversa que já vai longa, de reanimar a sua deriva, convidámos Maria Etelvina Santos a juntar-se a nós. Alguém que, para além do longo convívio com Maria Gabriela Llansol, de que se tem ocupado como ensaísta, mas também trabalhando o espólio, transcrevendo e preparando a sua edição, se tem desdobrado para desencantar esses períodos de imersão num outro mundo, num outro tempo, alargando os veios de irradiação de formas de vida radiosas para que a posteridade possa um dia retomar o fio.

    A evidência do lixo. Uma conversa com Nuno Costa Santos

    Play Episode Listen Later May 10, 2024 208:55


    O ruído assumiu uma preponderância de tal ordem que o seu ritmo se impõe como uma forma de coacção, uma moral que engole e, sem digerir nada, devolve tudo na forma de uma massa de detritos. Com todos esses juízos precipitados, tendenciosos, é raro darmos com um espírito lúcido, capaz de reservar uma relação de espanto e estranheza face ao mundo, repelindo a consciência comum. Quem se confronta realmente com a realidade e a julga pelos seus próprios meios, de acordo com a sua experiência e sensibilidade, acaba ilhado, vendo-se cercado de um imenso mar de ressaca, de toda essa civilização do cliché. Mesmo os artistas, até os escritores depressa se livram da sua diferença, deixam-se subornar. Se os lemos, se a vida deles nos sobe à boca, tem aquele gosto do vómito. Mais do que escrever grandes romances, poemas épicos, ensaios intermináveis e com vontade de abocanhar o mundo, seria necessário operar por meio de uma fantástica depuração, uma eliminação radical dos elementos degradados. “Vivemos num mundo onde há cada vez mais e mais informação, e cada vez menos e menos sentido”, nota Baudrillard. A maioria dos homens já nem dominam qualquer ofício, perderam até a capacidade de efabular, de contar histórias, de dominar a própria força e desejo, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical. Vemo-los revirar as bibliotecas em busca dessas partes íntimas dos mitos, procurando exumar pequenos detalhes, produzir ficções ingénuas e pífias formas monstruosas a partir de cadáveres que, na sua substância, permanecem intocados. Esta fórmula tornou-se um dos grandes desígnios de uma certa literatura que obtém o favor dos leitores, talvez porque lhes vende uma ideia de que o segredo que estamos a perseguir diria o suficiente. Há muito que se reconhece como a cotação da experiência baixou, abrindo caminho à desintegração da realidade, que, doravante, se adapta às imposturas que cada um carrega num esforço de adaptação a sociedades marcadas pela paranoia. Talvez por isso seja difícil encontrar aqueles que são capazes de converter a realidade que lhes é próxima, tão familiar, em algo que seja iluminador, e que possa escapar desse todo despropositado e que vai sendo salvo pela velocidade do naufrágio. Não deixa de ser curioso notar como nessas concisas fórmulas através das quais uma geração procurava passar à outra uma certa experiência, nos provérbios ou nos contos morais, tantas vezes o que exprimem parece um contrassenso, um desafio à lógica. Como se a autoridade que só chega com a idade o que nos conferisse fosse uma capacidade de estar apto a abandonar as nossas expectativas e ilusões de forma a acolher uma lição de vida. Há muito Benjamin questionava-se: “Onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar uma história como deve ser? Haverá ainda moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam como um anel de geração em geração? Um provérbio serve hoje para alguma coisa? Quem é que ainda acha que pode lidar com a juventude invocando a sua experiência?”. Vivemos desolados numa realidade que já não responde a qualquer desejo, a qualquer hipótese por nós formulada e, no entanto, são aqueles que acusam todo este regime em que as ratazanas e a paranóia se impõem aos nossos antigos sonhos e propósitos, são esses que encontram maior resistência. Nos nossos dias, o crítico inspira ódio, porque a sua consciência fere esse enredo indulgente que tantos tecem para si mesmos. “Parece um fantasma no meio dos viventes porque é o único a interrogar a sua noite. Nessa interrogação solitária, que resume a sua vida, dá aos outros a possibilidade de ver, mas ver verdadeiramente. Não lho perdoam” (Ernesto Sampaio). No meio deste regime que nos devolve o mundo em ruínas e submerso nos seus próprios detritos, é urgente escapar desta atmosfera opressiva. Como sinalizava Don DeLillo, a nossa cultura parece estar reduzida a este ditame: “E vai tudo para a lixeira. Produzimos quantidades fabulosas de lixo, depois reagimos ao lixo, não apenas tecnologicamente, mas nas nossas emoções e raciocínios. Deixamos que o lixo nos molde. Deixamos que ele controle os nossos pensamentos.” Neste episódio, procurámos a companhia de um ilhéu, um açoriano nascido em Lisboa, um tipo que tem feito de tudo como escritor, como jornalista literário ou crítico. Nuno Costa Santos já não rejeita mas antes gosta de aparelhar essas naus precárias, jangadas com ânsias de outros mares, nesse esforço de partir à descoberta de uma linguagem cujos elementos não se comportem como restos de naufrágio à superfície de um mar morto.

    Feira Internacional da Miséria Local. Uma conversa com Joana Matos Frias

    Play Episode Listen Later May 3, 2024 232:12


    Essa coisada da literatura, onde é que isso já vai? Era para ter sido um extravagante ensaio geral entre os escombros da realidade, mas acabou como mais um antro para o recital dessas cansadas passagens obrigatórias, e o que nos escondem são esses exaltantes devaneios provocatórios, tudo é feito de forma a soterrar os melhores exemplos de um heroísmo indigesto. Passamos mal, cada vez pior, enquanto vivemos de castigo na sórdida intriga dessas réplicas medíocres, desses serviços de enciclopédia e de arrumação precária de alguns nomes nos balanços e panorâmicas da literatura portuguesa, sempre por ocasião de alguma efeméride, que logo deve sustentar o peso dessa canga. Estamos de tal forma contaminados pela técnica retrospectiva, que só damos mesmos pelos acontecimentos que rimam com o que já se deu, com a reprodução quase nos mesmos termos, como se tudo o que escapasse aos quadros de historicização já definidos devesse ser descartado como implausível. Parece que só o que está a dar, como assinalou Armando Silva Carvalho, é abocanhar a História… “A história da igreja, a história dos terramotos, a história das colónias, a história dos descobridores. Assaltam-se as bibliotecas, com sofreguidão, à cata de segredos, cabalas, diatribes. Toda essa patine seduz as cabeças devolutas e, é claro, não compromete nada nem ninguém.” Pois assim vamos, submergidos em ficções requentando os traumas do costume, como se tudo o que já passou devesse ressurgir, só nos restando dialogar com esse fantasma inexorável. E da poesia a ideia que se faz não é melhor, e continuamos entregues às excelências de um lirismo de obrigação, incapazes de definir outras coordenadas, alguma relação marcial com a época que nos coube, num regime de ataque e de defesa inextricavelmente ligados à expressão do ser vivo. Assim, nos sacudia Cesariny, notando como, “para qualquer lado exterior a nós que olhemos entramos numa zona que mesmo entre os mais novos está contente de ser puríssimo decalque de um momento anterior, um pensamento instalado na repetição (esta julgada muito boa para os efeitos da difusão)”. A questão hoje e sempre ainda deve ser colocado no sentido de perceber se somos capazes de reconhecer um inimigo. Os escritores, e os poetas em particular, vivem por aí nuns amuos, muitos satisfeitos consigo próprios, exigindo a paz para se entregarem ao seu suave degredo. Entretanto, aquilo que se escreve já nem deseja ser lido, dá os pontos, reclama a derrota cada vez mais cedo, não ensaia nem propõe nada, e admite-se até que a literatura está a ceder o lugar ao terror, às notícias sobre o terror, aos gravadores e às câmaras de filmar, aos rádios, a esse zumbido das notícias de catástrofes, umas sucedendo-se às outras, produzindo a única narrativa a que as pessoas reconhecem alguma validade. Há não muito tempo, Don DeLillo ainda teve a audácia de sugerir que há um curioso elo de ligação entre escritores e terroristas. “No Ocidente convertemo-nos em famosas efígies, ao passo que os nossos livros vão perdendo capacidade de dar forma ou de influenciar as pessoas (…). Em tempos acreditei que era possível a um romancista modificar a vida interior da cultura. Esse território, hoje em dia, foi tomado pelos pistoleiros e os fazedores de bombas. Conseguem arremeter contra a consciência dos homens. Isso que os escritores faziam antigamente, antes de terem sido comprados.” Aí está a consciência em termos bastante claros de um esvaziamento do papel do escritor, e, em muitos casos, até de uma certa renúncia a assumir qualquer acção no desconcerto das coisas. Por estes dias, os escritores refugiam-se nessas recriações do seu antigo prestígio, que servem apenas para uso interno, sem nenhum reflexo sério sequer ao nível da balança comercial. Bastam-se com a encenação desses miseráveis concursos de talentos aprovados sem distinção, mas apenas com o louvor que baste à difusão dentro do regime do espectáculo. Para deixar à porta não só as velhas ilusões como essas coroas de louro e a caixa de esmolas da boa consciência, neste episódio procurámos alargar o recreio de distúrbios batendo à porta da Academia, e Joana Matos Frias acedeu a vir falar connosco desse quadro geral da literatura portuguesa, que há muito parece ter ido abaixo, restando apenas uma espécie de culto à luz de velas, entre esses leitores que não se contentam com uma literatura que se cinge à mera transcrição de um mundo já conhecido, mas persistem nesse processo de descoberta das posições avançadas que não se limitam aos territórios do já vistoriado.

    Crise climática e hipocrisia pornográfica. Uma conversa com Leonor Canadas

    Play Episode Listen Later Apr 26, 2024 212:45


    Emergência, crise, desastre, colapso, extinção, palavras, palavras, palavras, o que podem elas fazer ainda se a violência maior reside precisamente nesse encadeamento azucrinante, nesse modo de alimentar um frenesi de cenários catastróficos sobressaltando-nos, instrumentalizando a indignação, até nos entregarem à indiferença e ao cinismo, de tal modo que é isso o que hoje transparece em todas as coisas, à medida que elas perdem a sua imagem, o seu espelho, o seu reflexo, a sua sombra, cada vez mais distantes da sua substância, incapazes de oferecer alguma resistência a essa tradução e aceleração impiedosa, arrastando-nos com elas nesse movimento implacável de contracção e de inércia. Baudrillard põe a hipótese de estarmos sujeitos ao mesmo movimento de expansão do universo, tal como as galáxias, presos num movimento definitivo que nos afasta uns dos outros a uma velocidade prodigiosa. O cenário de desastre e a sua pressão constante faz estremecer a trama da realidade a um ponto em que as coisas já não coincidem consigo mesmas... Sentimo-nos desfigurados face aos nossos reflexos. Como vincava Macedonio Fernandez, “as coisas podem chegar a um estado de descontrole maior do que elas próprias, ou seja, a um grau de alteração em que a sua existência acaba por ter menos valor do que uma existência zero, à medida que o efeito de substituição gera uma distorção de tal ordem que nos revela a sua tentação maléfica”. Por todo o lado é a descrença que assume peso, que impõe o seu signo sobre os quadros que melhor representam a época. Todo o efeito ameaçador, toda a consciência do horror que nos espera parece alimentar mais ainda essa força de inércia, uma imensa indiferença. O maior receio, aquilo que mais nos perturba, é a sensação de vivermos existências desprovidas de qualquer significado, estando submetidos a um efeito de desagregação que nos torna seres abjectos apesar das nossas melhores intenções. Parece ser mais actual do que nunca essa indagação de Pedro Oom, “Que pode fazer um homem desesperado, quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?” O poeta desapareceu faz hoje meio século talvez por não ter reservado no seu organismo margem suficiente para uma retumbante alegria, absorvendo inteiramente essa Primavera magnífica que tomou conta das ruas, um poema demasiado intenso para que ele não embarcasse com todos os seus anjos e demónios, ele que, de tanto destilar o ódio que lhe merecia o reino cadaveroso, sucumbia assim de absoluta comoção. Ao que parece ainda por lá anda, escolheu essa Lisboa e o seu tão inebriante vislumbre de uma outra vida comp paraíso, e ficou ali com um riso esplendente à entrada do restaurante onde combinara almoçar com alguns dos seus companheiros de consciência e sufoco, Vitor Silva Tavares, António José Forte, Virgílio Martinho... E se ele se encantava, só eles sabiam como tinha visto tudo o que queria, tinha ouvido aquela rima que o abalroou da vida, para não ter de engolir nem uma dessas pingas de merda que vão amachucando a nobilíssima visão que uns tantos tinham buscado. Neste episódio procuramos encontrar um ritmo que soe a uma contagem decrescente, no sentido de descongelar a história, recuperar uma perspectiva política, e até uma esperança na nossa capacidade de afectar o tempo, provocar uma necessária mudança de rumo. Pode ser que as palavras que usamos para despertar não queiram fazer outra coisa senão romper com esta sensação de luto entre nós e as palavras, entre as palavras e o mundo. Assim, e ao longo da muralha que habitamos prosseguimos esses exercícios de entoação, como quem anda à caça espreitando nos interstícios entre si e o mundo em busca dessas palavras nocturnas, palavras gemidos, palavras que nos sobem ilegíveis à boca, palavras nunca escritas, palavras inapropriáveis por parte desses empórios da redução do sentido e do alcance, palavras capazes de flanquear este absurdo em que nos fazem chafurdar. Para isso, para reconhecer e reclamar a ameaça existencial que paira sobre todos nós como uma espécie de juízo avassalador, para confrontarmos o desastre climático e as suas múltiplas repercussões, pedimos ajuda a Leonor Canadas, membro do Climáximo, e alguém que tem investido todo o seu tempo a desmontar os novos fascismos que emergiram nas últimas décadas e que nos vão levar a esse ponto a partir do qual mesmo o fim do mundo seria uma forma de clemência, quando o quadro que se desenha para este século é um inferno de tais proporções que fariam Dante queimar a pena.

    Comércio de literatura para cansados. Uma conversa com Gonçalo M. Tavares

    Play Episode Listen Later Apr 19, 2024 219:23


    Consideremos aquilo que se espera hoje do escritor face à vida literária que nos resta, como este está condenado a exibir-se como uma espécie de fantasma em nome de um prestígio ou até de uma função que caiu em desuso, como um defunto que aceita fazer esses papéis de figuração nas cerimónias fúnebres e encomendas das almas que compõem o quadro cultural. Em geral, todos os agentes promotores, incluindo os editores, assumem aquela postura muito compungida, e colaboram com o protocolo dessa infinita despedida, sempre assustados com qualquer coisa que modifique os seus hábitos, receando que um dia deixem de contar com eles para estas liturgias. Dado o imenso desprezo com que se olha hoje para a literatura, tendo esta sido reduzida a esse conteúdo processional, chamando a si essas actrizes que adoram representar o papel das viúvas inconsoláveis do espírito, há muito nos acomodámos a este registo piedoso, que não admite que aconteça algo de inesperado e que nos faça sentir que vai estar outra vez tudo em aberto, tudo ainda por dizer. A começar precisamente por essas coisas que de tão cultuadas há muito deixaram de ser levadas a sério. Foi precisamente o prestígio aquilo que deu cabo da literatura. Morreu dessas honrarias e desse chorume dessas que os foram envenenando para reclamarem os benefícios sociais e a pensão por viuvez. Houve um momento em que o escritor, ao sentir que a lepra do renome se lançava sobre ele e a sua obra, compreendeu que dificilmente se libertaria dessa dignidade imobilizadora, dessa sacralização sufocante, tornando-se uma instituição à medida que o regime o anexava, para poder ignorá-lo em boa consciência. Este processo coincidiu com o momento em que o poder percebeu que a melhor de industriar as consciências seria substituir a realidade pela ficção. Assim, como notava Ballard, se há cem anos, havia "uma distinção clara entre o mundo exterior do trabalho e da agricultura, do comércio e das relações sociais — que era real — e o mundo interior das suas mentes, devaneios e esperanças", hoje essa fronteira parece ter-se apagado, e a ficção e a realidade começaram a tornar-se indistinguíveis. A realidade que não se abatia face às crenças dos indivíduos, começou a ver-se distorcida, e o papel do escritor de inventar uma ficção que condensasse as várias experiências do mundo real e as dramatizasse de uma forma ficcional passou a ser exercido sobretudo por propagandistas e publicitários. "As paisagens exteriores dos anos setenta são quase inteiramente fictícias, criadas pela publicidade, pelo consumismo de massas ... a política é gerida como publicidade", vinca Ballard, adiantando que isto levou a que o escritor ficasse desempregado, e as suas ficções foram-se tornando ilegíveis, uma vez que os leitores estavam agora acostumados a uma leitura bastante supérflua da própria realidade. Alguns, mais danados, ainda se reinventaram através de meios perigosos, como insultos, ventos que cercavam, sacudiam e esbofeteavam os seus leitores, esses resistentes que tinham a capacidade de enfrentar esses processos de denúncia e loucura. Hoje os grandes leitores são como loucos. E, como nos diz Gonçalo M. Tavares, a loucura é como uma pátria à parte, uma raça à parte... "Os loucos mexicanos falam fluentemente com os loucos russos, é tudo gente que se entende". Neste episódio, e no intuito de compreender o estado de decomposição actual do espaço literário, quisemos consultor este homem que dirige há muito esse gabinete de curiosidades, estudos avançados e investigações peculiares nesses bairros abandonados e velhos edifícios ou fábricas desactivadas onde alguns dizem ouvir ainda a imaginação a fazer das suas a altas horas. Em vez de nos vir com as tão comuns e estafadas rotinas desses leitores que se tomam por uma nobreza recolhidas setes quintas do espírito, a sua obra consegue ser instigante sobretudo nos momentos em que desenha e nos enreda em percursos de leitura bastante improváveis e audaciosos. Ele ainda é dos últimos que parece ter claro que "o estilo de um escritor não é o modo como ele penteia os cabelos enquanto escreve".

    Desposar o cadáver. Uma conversa com Ricardo Cabral Fernandes

    Play Episode Listen Later Apr 12, 2024 217:19


    A juventude devia importar-nos? E os jornais? Ou a falta dessas noções que iam abrindo caminho a uma renovação, a uma suspensão das velhas crenças e hábitos, dessa realidade que é usada como um argumento para vivermos sufocados? Talvez as respostas sejam o problema. Talvez as perguntas pudessem ser o suficiente. De tal modo impertinentes, umas atrás das outras, até que os que oferecem sempre as mesmas lérias vissem a sua convicção humilhada. Fazer perguntas para atazanar, para lhes dar cabo da paciência e, enfim, também do esquema. Tão seguros que estão atrás dos seus planos. A crueldade inventa sem parar, e muitas vezes encontra o caminho limitando-se a pressionar com a dúvida até deixar esta gente nervosa. Ao primeiro sinal de que as coisas não estão encaminhadas no sentido com que contavam, e largam tudo, desertam ou mudam de tendência. Como vincou Ivan Ilich, “o simples facto de uma pessoa redescobrir a surpresa pessoal, em vez de se fiar em valores produzidos pelas instituições, é susceptível de abalar a ordem estabelecida”. Entretanto, está dada uma volta em torno do sol desde que iniciámos este podcast, meia centena de episódios, um longo ensaio conspirativo, e assim temos consultado historiadores, pugilistas, ligeiros pianistas, revolucionários orto e heterodoxos, algumas mulheres em meias-noites especiais. Temos pesquisado desvãos, esses gestos fantásticos significando entendimento. Não sabemos exactamente do que se trata, senão que nos importa estudar o assunto com a grande minúcia que ele merece. Também porque estamos claramente perdidos, andando em círculos, atafulhados em papéis e teorias. A nossa necessidade antes de tudo é uma necessidade de nós mesmos. Naturalmente, também temos recorrido a certa gente já bastante ferida pela Terra, e que, depois de convenientemente conduzida a esse transe meditativo, se torna imbatível na arte de abordar problemas insolúveis, passeando ao longo deles horas, até o tempo se revelar essa ilusão que é. Não valeria a pena tentar resumir os melhores achados ou até certas baboseiras em que fomos recaindo, esses falsos rumos temporários ou os tantos desencontros, becos sem saída, investigações falhadas. Servimo-nos de todo o tipo de influências, agora mesmo, o Nuno Bragança vem-nos lembrar como já na Bíblia se fala em determinados anjos que iam pegar profetas, levando-os pelos cabelos a distantes sítios onde daniéis aflitos se rebolam com leões, interminavelmente. Trata-se de manter a conversa viva, dê por onde der, assim, e de tanto insistir, lá toma seu corpo um soltíssimo narrar, e nunca se é mais firme do que embalado por um sentimento de revolta, e, como assinalou Andrea Cavaletti em diálogo com Furio Jesi, “só no instante da revolta os homens vivem verdadeiramente em estado de vigília”. De resto, nesse “quotidiano regulamentado pelo trabalho e pelas pausas obrigatórias, estão sozinhos, cada um mergulhado no seu sono: o seu ‘tempo normal' não é nada mais do que o produto de uma tecnicização contínua, o fruto da ‘manipulação burguesa do tempo'”. Acabaremos por construir alguma perspectiva ou uma nau de outra ordem, para se lançar num curso diferente? É difícil dizer. Talvez seja mais importante desfazer-se da fortaleza de si e confiar-se a algum companheirismo. Buscar gente, nascer uns com os outros numa misturação de respirar completo, afectando a mudança do presente noutras luzes íntimas de uma outra relação com o passado e com uma fome de um futuro para lá daquele que vem nos prospectos. Neste episódio, e nesse ensejo de encontrar pistas de ascensão à realidade, contámos com o apoio de Ricardo Cabral Fernandes, ainda em período de luto depois de ter sido obrigado a despedir-se da sua investida quixotesca, tendo criado uma plataforma "não-tradicional" de jornalismo como foi o Setenta e Quarto nos três anos da sua combativa existência. “Disse alguém que o homem subjectivo não podia tomar-se directamente a si mesmo, senão em relação à resistência que o mundo lhe oferece, senão em relação a essa resistência que ele encontra. E, assim, numa espécie de operação, de acção (Francis Ponge)”. Trata-se da Grande Obra que se exige a qualquer homem empenhado nos nossos dias, o de resgatar as possibilidades de construir sentido, de resgatar a matéria do mundo de todos esses insidiosos condicionamentos, dessa maldição desoladora que nos afasta uns dos outros.

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