Crônica semanal de geopolítica internacional. Os fatos que são notícia no mundo analisados por Thiago de Aragão, direto dos Estados Unidos, e Flávio Aguiar, da Europa.
Em fevereiro de 2025, a Trump Media & Technology Group e a plataforma Rumble Inc. ingressaram com uma ação judicial na Corte Distrital dos Estados Unidos para o Distrito Médio da Flórida contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, Alexandre de Moraes. Thiago de Aragão, analista políticoA alegação central era de que as ordens emitidas por Moraes, que determinavam a suspensão de contas na plataforma Rumble, violavam a Primeira Emenda da Constituição americana, que protege a liberdade de expressão. As empresas buscavam uma declaração de que tais ordens eram inexequíveis nos Estados Unidos.A ação foi rejeitada pela corte americana com base na falta de jurisdição e na ausência de notificação adequada, conforme exigido pela Lei de Imunidades Soberanas Estrangeiras (FSIA). Segundo a FSIA, Estados estrangeiros e seus representantes gozam de imunidade de jurisdição nos tribunais dos EUA, salvo exceções específicas, como atividades comerciais ou violações de direitos humanos.Além disso, o Departamento de Justiça dos EUA comunicou ao ministro Moraes que suas ordens não eram executáveis em território americano, ressaltando que qualquer tentativa de impor decisões judiciais estrangeiras no país deve seguir os procedimentos legais internacionais apropriados.Tensão entre Brasil e EUAA situação gerou tensões diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos. O governo brasileiro, por meio do Ministério das Relações Exteriores, expressou preocupação com a distorção das decisões judiciais brasileiras e reafirmou a soberania nacional.Paralelamente, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, indicou que sanções contra Moraes estavam sob consideração, com base na Lei Magnitsky, que permite sanções a indivíduos estrangeiros envolvidos em corrupção ou violações de direitos humanos.A recente iniciativa do governo Trump de considerar sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, sob a alegação de censura a plataformas digitais americanas, representa um marco delicado nas relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos.Essa medida, impulsionada por pressões de aliados de Jair Bolsonaro, como seu filho Eduardo Bolsonaro, e por figuras influentes como Elon Musk, sinaliza uma tentativa de intervenção direta em assuntos internos do Brasil, especialmente no que tange à atuação do Supremo Tribunal Federal em defesa da ordem democrática.A possibilidade de sanções, incluindo restrições de visto e congelamento de bens, conforme previsto na Lei Magnitsky, não apenas desafia a soberania brasileira, mas também ameaça desestabilizar uma parceria histórica entre as duas maiores economias do Hemisfério Ocidental.Especialistas alertam que tal ação pode desencadear uma crise diplomática sem precedentes, com o Brasil buscando apoio em outras esferas internacionais e reavaliando suas alianças estratégicas.Recursos significativosEmbora a retórica do governo Trump sugira uma postura firme contra o ministro Alexandre de Moraes, na prática, essa questão não figura entre as prioridades estratégicas da administração. Com desafios mais prementes, como as tensões comerciais com a China e a situação na Ucrânia, é improvável que o governo dedique recursos significativos para impor sanções a um juiz estrangeiro.Além disso, eventuais sanções, como restrições de visto ou bloqueio de ativos nos EUA, teriam impacto limitado na atuação de Moraes, que concentra suas atividades no Brasil e não depende de ativos ou viagens aos Estados Unidos.Portanto, embora a ameaça de sanções possa gerar repercussões políticas e midiáticas, seus efeitos práticos sobre o ministro e sobre as relações bilaterais tendem a ser mais simbólicos do que substanciais.Este caso destaca os desafios legais e diplomáticos em um mundo interconectado, onde ações de autoridades nacionais podem ter repercussões globais. A tentativa de aplicar princípios constitucionais americanos a decisões judiciais brasileiras evidencia as complexidades de conciliar diferentes sistemas jurídicos e valores democráticos.É essencial que os países desenvolvam mecanismos de cooperação jurídica internacional que respeitem as soberanias nacionais e os princípios democráticos, evitando a politização de disputas judiciais e promovendo a estabilidade das relações internacionais.
Um relatório oficial sem provas reativou, na França, a figura do muçulmano como "inimigo interno". A islamofobia, longe de ser um desvio, tornou-se linguagem institucional — e disfarça, sob a ideia de laicidade, um racismo sistêmico. Thomás Zicman de Barros, analista políticoNa França de hoje, o racismo nem sempre aparece de forma explícita. Em vez de falar diretamente sobre raça, ele se disfarça de preocupação com a religião — quase sempre, com o Islã.A figura do muçulmano acaba reunindo, num só alvo, preconceitos franceses ligados tanto à cor da pele, quanto à fé. No Brasil, os debates sobre racismo e sobre a presença da religião na política ganharam força nos últimos anos, mas costumam seguir caminhos separados.Na França, ao contrário, esses temas se misturam. Em nome de uma suposta neutralidade do Estado — o chamado princípio da laicidade —, a exclusão de certos grupos se torna não só tolerada, mas legitimada.Essa lógica ficou escancarada mais uma vez na última semana, com a publicação de um relatório oficial do Ministério do Interior francês que denuncia — sem apresentar nenhuma evidência concreta — uma suposta tentativa de infiltração da Irmandade Muçulmana nas instituições republicanas.A Irmandade é um movimento islâmico fundado no Egito, que defende a organização da sociedade com base em princípios religiosos. Já foi uma força política relevante em alguns países, mas hoje está em franca decadência. Como em qualquer sociedade democrática, grupos fanatizados — de qualquer orientação ideológica ou religiosa — devem ser acompanhados com atenção dentro dos territórios.“Ameaça” internaNo entanto, os dados disponíveis indicam que apenas uma parcela ínfima dos muçulmanos na França se identifica com posições dessa natureza. Mesmo assim, o relatório francês, intitulado “A Irmandade Muçulmana e o islamismo político na França”, mistura suspeitas vagas e insinuações, sugerindo que qualquer cidadão muçulmano poderia ser um agente infiltrado do fanatismo religioso.A rigor, não deveria passar de um panfleto com teorias conspiratórias típicas da extrema direita. Apesar disso, o relatório foi recebido com estardalhaço pela imprensa francesa, pelo próprio governo, e pelo presidente Emmanuel Macron, que decidiu convocar o Conselho de Defesa — uma instância reservada normalmente a discutir guerras e ameaças externas — para tratar da “ameaça” interna.Racismo instrumentalizadoChama atenção o fato de que, hoje em dia, e cada vez mais, o muçulmano ocupa na França o papel que cabia ao judeu há 100, 120 anos. São grupos discriminados, marginalizados, mas aos quais se atribui superpoderes. O "inimigo interno", insidioso, invisível.O muçulmano hoje, como o judeu no passado, estaria por todos os lados, e controlaria — ou tentaria controlar — o país na surdina.É importante lembrar que a islamofobia não é exclusividade da extrema direita. Ela se faz presente por todo o espectro político francês — na direita, no centro e até mesmo em parte da esquerda dita “republicana” — tornando-se compatível com os racistas históricos e até ajudando a normalizá-los.E não se trata aqui de uma mera tática eleitoral para conquistar um eleitorado racista ou para desviar o foco de problemas reais — embora também seja tudo isso —, mas do reflexo de uma hegemonia cultural profundamente enraizada. A islamofobia impregnou alguns dos princípios fundamentais da cultura política francesa.Leia tambémPichações islamofóbicas em centro muçulmano chocam a França dois dias antes do RamadãEla colonizou noções centrais do republicanismo francês, a começar por seu pilar fundante: a laicidade, o princípio da separação entre Estado e religião. A forma como essas ideias são entendidas hoje reproduz em seu cerne a islamofobia. Por isso, o racismo que ela perpetua é sistêmico.Vale lembrar como o princípio da laicidade se instalou como fundamento da república na França. Faz exatos 120 anos, na esteira do caso que criou o antissemitismo moderno: o chamado affaire Dreyfus. A ideia, na época, era proteger o cidadão contra o Estado que quisesse impor uma religião ou perseguir minorias. Uma aspiração mais do que legítima.Ocorre que, na segunda metade do século passado, com a chegada de povos não brancos vindos das antigas colônias à França metropolitana, o que deveria ser uma garantia de liberdade para todos se converteu, na prática, em instrumento de exclusão. Ao invés de proteger o cidadão contra o Estado, a laicidade passou a ser usada pelo Estado para policiar os modos de vida de certos cidadãos.Cerco aos muçulmanosEsse processo se intensificou nas últimas duas décadas, quando o cerco aos muçulmanos se fechou com ainda mais força: leis que proíbem o uso do véu islâmico em escolas públicas, em universidades e, mais recentemente, em competições esportivas; tentativas de impedir mães vestidas com o véu islâmico de acompanharem excursões escolares; polêmicas sobre a comida halal em cantinas e até no supermercado; fechamento administrativo de mesquitas e associações culturais sob o pretexto de “separatismo”; ainda a estigmatização de bairros com forte presença de imigrantes e descendentes como “zonas sem lei” e a criminalização de qualquer discurso antirracista como “comunitarismo”.É claro que, enquanto isso, escolas católicas seguem financiadas pelo Estado, cruzes decoram praças e políticos comparecem a missas sem peso na consciência.Os cidadãos muçulmanos são acusados de não querer se integrar à república universal francesa – e a ideia de um “universalismo” é fundante para o republicanismo francês. O que esse discurso não percebe, ou não quer perceber, é seu próprio particularismo e seu caráter excludente. Ele se diz neutro, mas exclui tudo o que não se parece consigo mesmo.Leia tambémGoverno francês quer modificar lei da laicidade para controlar melhor o islamismoO verdadeiro universalismo, no entanto, não se constrói pela eliminação das diferenças. Ao contrário: ele se realiza na capacidade de integrá-las sem apagá-las.Reconhecer a pluralidade de formas de viver, de crer e de existir não é ameaça à república — é a sua condição de possibilidade. Uma república que não consegue acolher a diversidade de seus próprios cidadãos não é universal — é particular, ainda que finja o contrário.O relatório desta semana não revela uma conspiração. Revela, sim, a profundidade de um racismo que não ousa mais dizer seu nome, mas que age com toda a legitimidade do Estado. Revela o quanto a política francesa ainda está presa a fantasmas coloniais, a uma concepção frágil de si mesma, e à recusa obstinada de ver que o outro já está dentro. Que não há mais fora. E que, se há algo a defender, não é a pureza de uma identidade imaginária, mas a possibilidade real de convivência entre diferentes.
Quando a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC) iniciou a construção de sua fábrica no Arizona, muitos viram isso como um passo ousado para recuperar a liderança dos Estados Unidos na fabricação de semicondutores. No entanto, à medida que o projeto avança, torna-se evidente que estabelecer a produção de chips em solo americano é mais complexo do que simplesmente erguer instalações e ligar máquinas. Thiago de Aragão, analista políticoA iniciativa da TSMC em Phoenix foi concebida como parte fundamental do CHIPS and Science Act — um esforço federal de US$ 280 bilhões para revitalizar a fabricação de chips nos Estados Unidos. Apesar dos subsídios bilionários e do entusiasmo político, o projeto enfrenta atrasos, conflitos culturais e disputas trabalhistas.Originalmente prevista para iniciar a produção em 2024, a fábrica no Arizona teve sua operação adiada para 2025, alegando escassez de mão de obra qualificada e a obstáculos regulatórios. Os EUA carecem da base sólida de engenheiros e técnicos em semicondutores que Taiwan desenvolveu ao longo de décadas. A TSMC precisou trazer trabalhadores de Taiwan para treinar a equipe americana, medida que gerou tensões com sindicatos locais e questionamentos sobre a viabilidade a longo prazo do projeto.Além da lacuna de habilidades, a empreitada da TSMC no Arizona expôs diferenças marcantes na cultura de trabalho. Relatos indicam que funcionários americanos foram submetidos a padrões mais rigorosos do que seus colegas taiwaneses, resultando em alegações de discriminação e ações judiciais. O estilo de gestão da empresa, descrito por alguns como “severo” e “exigente”, conflita com as expectativas laborais americanas, complicando ainda mais a implementação do projeto.Produzir chips nos EUA não é apenas um desafio logístico — é também econômico. A instalação da TSMC no Arizona registrou perdas significativas, com um déficit de aproximadamente US$ 441 milhões em 2024. Embora os custos trabalhistas contribuam, a maioria das despesas decorre de equipamentos e infraestrutura. Mesmo com automação e escalabilidade, estima-se que os chips fabricados nos EUA sejam cerca de 10% mais caros do que os produzidos em Taiwan.Apesar dos contratempos, há sinais de progresso. A fábrica da TSMC no Arizona alcançou um rendimento 4% superior ao de suas instalações em Taiwan, um marco significativo que sugere o potencial competitivo da produção de chips nos EUA. Esse sucesso pode abrir caminho para novos investimentos e expansões, desde que os problemas subjacentes sejam resolvidos.A experiência da TSMC no Arizona destaca as complexidades de repatriar a fabricação de semicondutores. Não se trata apenas de construir fábricas; é necessário desenvolver ecossistemas — força de trabalho, cadeias de suprimentos e culturas — que sustentem a produção de alta tecnologia. Sem um esforço coordenado para formar talentos domésticos e reconciliar diferenças culturais, o sonho de independência americana na produção de chips pode permanecer inalcançável.À medida que os EUA enfrentam esse terreno desafiador, é imperativo reconhecer que trazer a fabricação de chips para casa é uma maratona, não uma corrida. O caminho adiante exigirá paciência, investimento e disposição para se adaptar. Só então o país poderá transformar o mito do silício em uma realidade tangível.
Na Alemanha, França e Romênia, decisões judiciais tentam conter partidos autoritários — mas isso, por si só, talvez não seja suficiente. A última semana marcou mais um capítulo nas tensões entre a extrema-direita e a justiça — desta vez, na Europa. Thomás Zicman de Barros, analista político, especial para a RFIForam dias de decisões e indecisões. Na Alemanha, na segunda-feira (5), o Escritório de Proteção da Constituição declarou o partido AfD, Alternativa para a Alemanha, como um grupo extremista, citando sua proximidade com setores neonazistas e a negação do princípio de igualdade — de acordo com a lógica do partido, imigrantes seriam cidadãos de segunda classe.Essa classificação tem implicações jurídicas importantes: o partido passa a ser monitorado pelos serviços de inteligência e pode, em última instância, ser banido. Mas, diante da reação e da pressão de apoiadores da AfD, o mesmo órgão recuou na quinta-feira (8), afirmando que o caso ainda precisa ser mais bem avaliado.A indefinição gerou surpresa. Afinal, não é evidente que a AfD é um partido de extrema direita? Por que ainda se hesita em chamá-los pelo nome? Parte da resposta está no esforço — hoje quase reflexo — de acadêmicos e políticos de criar tipologias para grupos reacionários, como se a urgência estivesse em classificá-los, e não em enfrentá-los. Cria-se assim uma taxonomia que termina por complexificar o que, no fundo, deveria ser simples."Cinquenta tons de fascismo"No debate acadêmico, costuma-se distinguir diferentes tipos de ultradireita — os chamados "cinquenta tons de fascismo". Nessa tipologia, separa-se a extrema-direita da direita radical. A diferença teórica entre elas seria esta: a extrema-direita se caracteriza por buscar o poder por meio da força. Já a direita radical, embora também antidemocrática em seus valores, opera prioritariamente dentro das regras eleitorais e institucionais.Essa distinção pode ter alguma utilidade no terreno conceitual. Mas, na prática, tem sido usada para relativizar os riscos concretos que esses grupos representam, normalizando-os. No fim, essa taxonomia pouco nos ajuda a compreender o passado, tampouco o presente — e menos ainda a nos preparar para o futuro.Historicamente, a extrema direita recorreu a todos os meios para chegar ao poder. O caso da Alemanha dos anos 1930 é exemplar: a extrema direita ascendeu por vias legais, com apoio decisivo da centro-direita, que a normalizou e acreditou poder controlá-la.O resultado foi a destruição das instituições republicanas por dentro. Mesmo hoje, líderes eleitos não hesitam em flertar com o autogolpe assim que consolidam sua posição. O debate sobre banir ou não a extrema direita da vida política não se restringe à Alemanha, onde o quadro legal prevê explicitamente essa possibilidade.Na França, no mês passado, Marine Le Pen foi declarada inelegível após ser condenada por desvio de verbas do Parlamento Europeu. Se o veredito for mantido, ela estará fora das eleições de 2027, mesmo liderando as pesquisas.Já na Romênia, as conturbadas eleições de dezembro de 2024 — vencidas no primeiro turno pelo então desconhecido candidato de extrema-direita Călin Georgescu — foram anuladas pela Corte Suprema, após denúncias de manipulação da opinião pública por agentes russos nas redes sociais.Esses episódios nos obrigam a fazer uma pergunta difícil: tais medidas são legítimas? Cada caso tem suas especificidades, mas todos podem ser interpretados à luz de uma doutrina conhecida como democracia defensiva — ou democracia militante.O conceito foi formulado nos anos 1930 pelo jurista alemão Karl Loewenstein, exilado nos Estados Unidos após a ascensão do nazismo. A ideia central é que democracias não devem assistir passivamente à ascensão de forças que, uma vez no poder, trabalham para miná-las desde dentro.Como escreveu Karl Popper — filósofo austríaco e liberal convicto — no famoso paradoxo da tolerância: não se pode tolerar o intolerante, porque, ao ganhar espaço, ele destrói o próprio princípio da pluralidade.Vale lembrar: democracia nunca foi apenas uma questão de votos ou de eleições. Historicamente, o sufrágio universal e a escolha de representantes por meio do voto nem sempre foram considerados mecanismos democráticos — pelo contrário, a eleição era muitas vezes vista como um método aristocrático, destinado à seleção dos “melhores”. Medidas para banir extrema direita não bastamO que importa aqui é o núcleo constante da ideia de democracia: a igualdade. É isso o que está em jogo quando forças extremistas tentam capturar o aparato eleitoral para fins autoritários. Mas então essas medidas para banir a extremadireita bastam? Evidentemente, não. Impedir a participação da AfD, de Le Pen ou de candidatos extremistas em eleições pode ser necessário — mas não é suficiente.É preciso perguntar por que esses grupos têm, afinal, tanta força eleitoral. Nesse ponto, os defensores da democracia liberal também precisam fazer sua autocrítica. É preciso entender que a força da extrema-direita vem da crescente insatisfação de cidadãos precarizados, desamparados, angustiados.Cidadãos que percebem que, em sua forma atual, a democracia liberal não tem sido capaz de oferecer respostas convincentes aos dilemas contemporâneos. Nesse sentido, é preciso não apenas conservar a democracia, mas reconstruí-la em novas bases.Se a extrema direita impõe riscos concretos, não basta a democracia defensiva, é preciso uma democracia ofensiva — capaz de agir, disputar, transformar. Uma democracia que recupere e atualize seu princípio mais fundamental: a igualdade.É apenas com mais igualdade — e mais inclusão — que talvez se encontre, enfim, uma resposta à altura.
Marco Rubio, outrora considerado um dos nomes menos resilientes e influentes no início da administração Trump, emergiu como uma figura central no governo. Apelidado de “Pequeno Marco” durante as primárias republicanas de 2016, Rubio agora ocupa simultaneamente quatro cargos de destaque: Secretário de Estado, Conselheiro de Segurança Nacional interino, Administrador interino da USAID e Arquivista interino dos Estados Unidos. Thiago de Aragão, analista políticoEssa concentração de poder é inédita na história recente do país e reflete a confiança que o presidente Trump deposita nele.A ascensão de Rubio não foi apenas uma questão de lealdade. Ele soube se alinhar ao estilo e às prioridades de Trump, adotando uma postura firme em relação à imigração e à política externa. Por exemplo, ele apoiou a proposta de os EUA assumirem o controle da Faixa de Gaza e autorizou um envio de US$ 4 bilhões em armas para Israel, contornando o Congresso.No entanto, essa acumulação de funções levanta preocupações. Senadores como Mark Warner questionam a viabilidade de uma única pessoa desempenhar papéis tão exigentes simultaneamente, alertando para possíveis riscos à segurança nacional. Além disso, a demissão de Mike Waltz, após um incidente envolvendo o compartilhamento acidental de informações confidenciais, levantou questões sobre a estabilidade da equipe de segurança nacional.Apesar das críticas, Rubio continua a consolidar sua posição. Em uma entrevista recente, Trump mencionou Rubio como um possível sucessor, indicando sua significativa influência dentro da administração. Sua capacidade de se adaptar e alinhar-se com as prioridades de Trump tem sido fundamental para sua ascensão.A trajetória de Marco Rubio, de adversário político a figura central na administração Trump, exemplifica a imprevisibilidade da política americana. Sua ascensão destaca a importância da lealdade e adaptabilidade em ambientes políticos voláteis. No entanto, a concentração de poder em uma única figura levanta questões sobre a eficácia e sustentabilidade dessa abordagem, exigindo vigilância contínua e avaliação crítica.
Em sua última contribuição para a redação brasileira da RFI, o analista Flávio Aguiar apresenta uma crônica em tom pessoal, na qual traz suas reflexões e experiências acumuladas ao longo de quase quatro anos dedicados a escrever para nossos leitores e ouvintes. Flávio Aguiar, de BerlimDepois de viver 18 anos em Berlim, retorno definitivamente ao Brasil. Deixo a Alemanha e a Europa com o coração apreensivo. Não se trata apenas da já fartamente comentada ascensão das extremas-direitas anti-democráticas no mundo todo. É que ouço bem perto o também crescente rufar dos tambores de guerraGovernantes e empresas nos vários quadrantes da Europa estão apostando na indústria de armamentos como meio de recuperação econômica. Querem enfrentar assim a crise recessiva desencadeada a partir da guerra na Ucrânia e suas consequências na economia do continente. Mas não se trata apenas da ação de governantes e líderes. Com o argumento de que é necessário defender-se diante da possibilidade de uma invasão russa, vão conquistando corações e mentes para o espírito da guerra. Pessoas que até pouco tempo participavam de marchas pela paz e cantavam “Bella Ciao" e “Where have all the flowers gone” dizem que agora estas canções não têm vez e que falar em paz é perigoso.O currículo pregresso da Europa não é bom. Sempre que os países europeus prepararam-se para a guerra, ela aconteceu. E o continente foi palco das duas guerras que na história ganharam o adjetivo de “mundiais”.Rezo para que meus temores não se concretizem e que se retome o rumo de uma cultura da paz, como defende nosso presidente brasileiro.Nos últimos quatro destes 18 anos fiz parte da equipe da redação brasileira da Rádio França Internacional. Foi uma experiência muito estimulante a que serei sempre grato.Neste momento de despedida e de retorno à terra natal, meu coração se divide. De um lado, lembro-me de algumas palavras de um tango de Carlos Gardel e Alfredo Le Pera:“Volver//Con la frente marchita//Las nieves del tempo//marcaron mi sien//(…)Sentir//Que es un soplo la vida//Que veinte años no es nada//…Em tradução livre:“Voltar//Com as marcas do tempo//no rosto e na prateada cabeça//(…)Sentir//Que a vida é um alento//E que vinte anos são nada//…Por outro lado, meu coração glosa o poema do grande poeta russo Serguei Iessiênin, na tradução de Boris Chnaiderman e Augusto de Campos:“Até logo, até logo, companheiros,Guardo-vos no peito e asseguro: O nosso afastamento passageiro. É sinal de um encontro no futuro. Embora separar-nos seja pesaroso, Não fiquem com esse ar tão preocupado. Se mover-se demasiado é perigoso, tampouco é bom ficar parado.”Até breve e muito obrigado.
Antigamente, guerras comerciais se decidiam em salas de reunião e manchetes de jornal. Hoje, elas também se desenrolam no TikTok, entre vídeos curtos, sátiras e dublagens virais. A disputa entre Estados Unidos e China ganhou uma nova arena: as redes sociais. E o mais curioso é que isso não é apenas entretenimento — é formação de opinião, disputa de narrativa e política econômica em formato de meme. Com o novo pacote de tarifas anunciado por Donald Trump — que chega a até 145% sobre certos produtos chineses —, o TikTok virou um campo de batalha criativo. Usuários chineses e americanos reagiram com humor ácido: vídeos de Trump e seu vice-presidente JD Vance trabalhando em fábricas, sátiras sobre o preço de produtos do dia a dia, e até versões exageradas da vida com tarifas viraram virais. Por trás da piada, há uma crítica clara: essas políticas parecem, para muitos, desconectadas da realidade de quem consome e de quem produz.Ao mesmo tempo, empresários americanos usam o TikTok para mostrar como essas tarifas afetam o dia a dia de seus negócios. A fundadora da Curio Blvd, Chelsey Brown, virou um exemplo disso. Nos vídeos que publica, ela explica como os custos subiram, como fornecedores sumiram, e como isso tudo bagunçou sua operação. O que antes ficava restrito a relatórios técnicos agora aparece na tela do celular de milhões de pessoas, com rosto, emoção e contexto.Do outro lado do mundo, fábricas chinesas também se adaptaram: passaram a usar o TikTok para vender diretamente ao consumidor americano, tentando escapar dos efeitos das tarifas. Os produtos são versões mais baratas de marcas conhecidas — nem sempre com a mesma qualidade, mas com preços mais acessíveis. É uma reação rápida a uma mudança brusca: se o canal tradicional fica mais caro, criam-se novos caminhos.Esse fenômeno revela algo maior: a diplomacia e a política econômica estão cada vez mais digitalizadas. As redes sociais viraram espaço de pressão, denúncia e até marketing geopolítico. O curioso é que muitas vezes são jovens anônimos, pequenos empresários ou criadores de conteúdo que conseguem moldar a percepção pública com mais impacto do que discursos de governo ou editoriais de jornal.Ignorar esse movimento é não enxergar onde as grandes disputas estão acontecendo hoje. A guerra comercial de 2025 não se trava só entre Washington e Pequim — ela acontece também nos comentários, nos reposts, nas piadas que viralizam. E, num cenário assim, quem entende o poder da narrativa digital pode sair na frente — influenciando mercados, políticas e, quem sabe, até resultados eleitorais.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, jogou a Europa numa montanha russa. Não se trata do fato dele se propor a negociar a situação da Ucrânia diretamente com Moscou. Mas sim ao sobe-desce e aos solavancos em que ele atirou o continente com seu "tarifaço" da semana passada, e seu recuo parcial na sequência. Flávio Aguiar, analista políticoTrata-se de um “recuo parcial” porque ele apenas suspendeu a sua aplicação aos países europeus por noventa dias, ao invés de revogar o tarifaço. Ao mesmo tempo, num primeiro momento manteve sua aplicação e elevou-o a 145% para a China.Depois recuou de novo, isentando do "tarifaço" produtos eletrônicos chineses importados pelas big techs dos Estados Unidos. Fica a dúvida sobre o porquê deste último recuo: se foi a pressão das empresas norte-americanas, ou o contra-tarifaço chinês, taxando em 125% produtos dos Estados Unidos."Uma no cravo e uma na ferradura"A presidenta da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, que anunciara a adoção de tarifas suplementares sobre produtos norte-americanos em retaliação, voltou atrás, também suspendendo sua aplicação imediata, embora as taxas extras sobre alumínio, aço e veículos europeus estejam mantidas.Complementando o vai-e-vem, disse que a Europa está pronta para negociar as medidas com os Estados Unidos, mas também está pronta para “defender seus interesses”. Ou seja, deu uma no cravo e outra na ferradura.No domingon, Maros Sefcovic, membro da Comissão Europeia e o seu encarregado da pasta de Comércio e Segurança Econômica, seguiu para Washington a fim de tentar um acordo sobre as tarifas. E von der Leyen acenou com a proposta de reduzir a zero as tarifas mútuas sobre produtos industrializados.Por outro lado, apesar do esforço por parte dos líderes europeus para demonstrarem unidade, a conjuntura voltou a expor algumas de suas diferenças. Ao invés da cautela demonstrada por von der Leyen, o ainda vice-chanceler e ministro da Economia alemão, Roberto Habeck, do Partido Verde, qualificou as medidas de Trump como “absurdas”.Estado de exceçãoBernd Lange, presidente do Comitê para o Comércio Internacional do Parlamento Europeu, qualificou as medidas de “injustas” e ironizou a declaração de Trump, para quem o tarifaço era o “dia da libertação” dos Estados Unidos, dizendo que ele era, na verdade, o “dia da inflação” para os consumidores norte-americanos e europeus.Um conceito que pode ajudar a entender o que está acontecendo é o de “estado de exceção”, estudado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben a partir de sua formulação pelo jurista alemão Carl Schmitt, simpático aos nazistas, nos anos 1920 e 1930 do século passado.O conceito qualifica o comportamento de um governante que chega ao poder obedecendo as regras de um sistema político, mas a seguir as afronta ou suspende, mergulhando a sociedade primeiro num estado caótico de anomia e depois numa situação em que ele dita e aplica novas regras, como fizeram Hitler e Mussolini.VassalosDe certo modo, é o que Trump está tentando fazer dentro e fora dos Estados Unidos. O governante do estado de exceção não tem propriamente aliados. Em seu lugar, acolhe vassalos, que trata bem se lhe obedecem ou agrIde e descarta se a ele se opõem.É como Trump e sua equipe vem tratando a Europa e outros países, querendo mantê-los ou reconduzi-los ao aprisco hegemônico dos Estados Unidos, cujo vetor principal, no momento, é o de conter e reverter a presença chinesa no comércio e na geopolítica internacionais. Também está claro o objetivo de atrair a Rússia, afastando-a da aliança com a China.O anúncio e o recuo parcial do "tarifaço" em relação à Europa cumpre este objetivo: a mão que ameaça é a mesma que acena com a promessa de recompensa por um bom comportamento.Fica por ver se os europeus, com suas convergências e divergências, morderão a isca.
As tarifas anunciadas por Donald Trump estão mexendo com os ânimos dentro do Partido Republicano – e não é pouca coisa. De organizações a congressistas, de estados a doadores e eleitores, cada grupo anda inquieto à sua maneira. O discurso do presidente pode até soar firme para sua base mais fiel, mas as consequências práticas das medidas estão começando a pesar, inclusive entre os aliados. No Congresso, o desconforto é visível. Um grupo de senadores, entre eles Chuck Grassley (R-Iowa) e Maria Cantwell (D-Washington), apresentou um projeto de lei que obriga o Congresso a aprovar qualquer tarifa nova em até 60 dias. A ideia é limitar o poder do Executivo nessas decisões. Para muitos republicanos, não se trata de enfrentar Trump diretamente, mas de proteger a economia americana e evitar que decisões unilaterais acabem custando caro.Ted Cruz, por exemplo, não mediu palavras: disse que as tarifas podem empurrar o país para uma recessão e causar um “banho de sangue” para os republicanos nas eleições de meio de mandato. Ele se apoia em dados concretos – o setor automotivo já prevê um aumento de até US$ 4.500 no preço dos carros, se as tarifas forem mantidas até o meio do ano.Só que, mesmo com essa movimentação no Senado, não vai ser fácil avançar. O presidente da Câmara, Mike Johnson, não parece disposto a peitar a Casa Branca e levar esse tipo de projeto a voto. É o típico dilema republicano dos últimos anos: até onde vai o apoio a Trump, e quando é hora de traçar limites?Nos estados republicanos, o impacto já está batendo na porta. Arkansas, por exemplo, está sentindo o baque na indústria avícola, depois que a China suspendeu compras de frango de grandes fornecedores americanos em resposta às tarifas. É uma reação em cadeia que atinge diretamente empregos, exportações e a economia local – justamente nos estados onde o partido costuma ter força.Do lado dos grandes doadores, a insatisfação também vem crescendo. Empresários que investem pesado em setores como agricultura, indústria e comércio internacional já estão perdendo dinheiro. E, como se sabe, quando os prejuízos aparecem, a disposição para financiar campanhas costuma diminuir. Muitos estão repensando se vale a pena continuar apoiando um projeto político que ameaça seus negócios.Alto custo da briga vale a pena?Na base do partido, os eleitores vivem um dilema semelhante. Parte deles segue leal a Trump e aprova a ideia de enfrentar países como a China e tentar equilibrar a balança comercial. Mas outra parte, especialmente quem já sente o bolso apertar com o aumento dos preços e a instabilidade econômica, começa a questionar se o custo dessa briga toda vale mesmo a pena.A bolsa de valores já perdeu mais de US$ 6 trilhões em valor nos últimos meses, refletindo o nervosismo do mercado com os rumos da política econômica. Economistas têm lembrado, com razão, da Lei Smoot-Hawley, de 1930 — uma onda de tarifas que, segundo muitos, ajudou a aprofundar a Grande Depressão. Ninguém quer ver a história se repetir.E tem mais: pesquisas indicam que políticas comerciais agressivas costumam prejudicar os candidatos republicanos nas urnas. Ou seja, além do risco econômico, há também um risco político real.No fim das contas, o Partido Republicano está numa encruzilhada. Precisa lidar com uma base dividida, doadores irritados, congressistas pressionados e estados afetados. Tudo isso enquanto tenta manter uma aparência de unidade e lealdade ao presidente. A eleição de 2026 já está no horizonte e o partido sabe que os próximos passos podem definir não só os resultados nas urnas, mas também o futuro da sua agenda econômica.
À medida que as pressões inflacionárias se intensificam nos Estados Unidos, cresce a inquietação entre empresas de setores tradicionalmente alinhados ao eleitorado de Donald Trump. A inflação, antes percebida por muitos empresários como um problema distante ou restrito a grandes centros urbanos, passou a ser uma preocupação concreta, sobretudo em regiões do interior e áreas industriais do país. Thiago de Aragão, analista políticoA alta nos preços tem sido impulsionada por uma combinação de fatores: cadeias de suprimentos pressionadas, custos de energia elevados e, principalmente, políticas comerciais adotadas pelo próprio presidente. Em estados como Vermont, produtores locais enfrentam aumentos significativos nos custos de produção devido à imposição de tarifas sobre o aço e o alumínio canadenses.Uma cervejaria da região relatou que a tarifa de 25% sobre o alumínio utilizado nas latas de cerveja não apenas compromete suas margens de lucro, como também impõe reajustes de preços que afetam diretamente o consumidor final.Na Virgínia, empresas do setor da construção civil e de manufatura relatam dificuldades para planejar investimentos de médio e longo prazo. A incerteza sobre tarifas futuras, que podem chegar a 25% sobre materiais importados de parceiros comerciais relevantes como México e Canadá, gera insegurança entre investidores e financiadores. O receio é de que a volatilidade das regras comerciais reduza a competitividade dos produtos norte-americanos no próprio mercado doméstico.Mesmo em setores tradicionalmente resilientes, como o turismo, os efeitos já são sentidos. Em Washington D.C., bares e restaurantes têm reestruturado cardápios e ajustado preços em resposta aos aumentos nos custos de alimentos e bebidas importadas. Alguns estabelecimentos adotaram estratégias de comunicação criativas, como promoções alusivas às tarifas, para manter a clientela e tentar compensar parte das perdas.Confiança do consumidor em baixaParalelamente, a confiança do consumidor apresenta sinais de enfraquecimento. O Índice de Sentimento do Consumidor da Universidade de Michigan caiu para o menor patamar em três anos, refletindo o receio de muitas famílias com a inflação, a estabilidade financeira pessoal e a volatilidade no mercado de trabalho. Essa percepção tende a reduzir o consumo, o que, por sua vez, retroalimenta a desaceleração da economia.É justamente aqui que emerge uma das maiores contradições da atual conjuntura política e econômica dos Estados Unidos. O presidente Trump, que conquistou apoio massivo com o discurso de defesa dos interesses do trabalhador norte-americano e da revitalização da indústria doméstica, vê agora sua base empresarial sofrer com os efeitos diretos das próprias políticas que ajudaram a elegê-lo.Protecionismo encarece insumosA retórica protecionista, vendida como solução para a perda de empregos e o enfraquecimento do setor produtivo, está encarecendo insumos, travando investimentos e, ironicamente, prejudicando a competitividade das empresas locais.Ainda mais emblemático é o fato de que muitos dos empresários que hoje se preocupam com a inflação e a insegurança econômica foram entusiastas das medidas de desregulamentação e nacionalismo econômico promovidas pelo governo. Agora, enfrentam uma realidade em que o intervencionismo tarifário, aliado à pressão inflacionária, impõe obstáculos para os quais nem sempre estavam preparados.Hora de pagar a conta, e com jurosO ambiente atual exige das empresas um grau elevado de adaptação. Estratégias de precificação, revisão de contratos e diversificação de fornecedores tornaram-se questões centrais para a sustentabilidade dos negócios.Mas o pano de fundo é político: há um custo claro nas escolhas feitas por quem hoje ocupa a Casa Branca. E ele está sendo pago, com juros, por setores que acreditaram que poderiam se beneficiar de uma política econômica que, na prática, tem se mostrado incoerente, punitiva e desorganizada.Se Trump pretende manter sua base de apoio unida rumo à eleição legislativa de 2027, terá de oferecer mais do que promessas nacionalistas: precisará explicar como pretende conter a inflação sem sufocar o próprio empresariado que o colocou no poder.
Há sinais de fumaça no horizonte de que os países europeus preparam-se para a guerra. Que guerra? Contra a Rússia. Flávio Aguiar, analista políticoTomemos a Alemanha como exemplo.Primeiro exemplo: a Volkswagen, empresa que há quase um século está vinculada à identidade nacional alemã, vai fechar três de suas fábricas, devido à crise econômica que assola o país e o continente. Mas há uma empresa interessada na compra das três. Qual? A Rheinmetall, uma das principais produtoras de armamentos na Alemanha. Por quê? Porque seus diretores preveem uma margem de lucro considerável, graças ao anúncio, por parte da presidenta da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, de que a União vai investir 800 bilhões de euros em armamentos para incrementar a defesa do continente.Exemplo 2: paradoxalmente, o diretor de uma das agências do serviço secreto alemão, Bruno Kahl, do Bundesnachrichtendienst, manifestou, em entrevista à Deutsche Welle, em 03/03/2025, a preocupação com a possibilidade de que a guerra na Ucrânia tenha um “fim rápido”. Por quê? Segundo ele, porque isto liberaria a Rússia para ameaçar o restante da Europa antes de 2029 ou 2030, isto é, antes que os outros países do continente estejam preparados para enfrentar o “inimigo”. A afirmativa, que provocou indignação em Kiev, mostra que há uma estratégia pensada a respeito da possibilidade e previsão da guerra.E a indústria da guerra parece ser um dos vetores mais importantes para a recuperação econômica da Alemanha e do continente.A Alemanha ocupa o quinto lugar entre os maiores exportadores de armas do mundo. São eles, em ordem crescente, segundo o Instituto Internacional de Investigação para a Paz, sediado em Estocolmo: Coreia do Sul, Espanha, Israel, Reino Unido, Itália, Alemanha, China, França e Rússia praticamente empatadas, e Estados Unidos.Há duas enormes discrepâncias entre estes países. Primeira: de Israel à China, o percentual de participação nas exportações mundiais de armas fica em um dígito, de 1 a 5%. Com Rússia e França, o índice dá um salto, para 10,5 e 10,9%, respectivamente, sendo que a França superou a Rússia porque as exportações desta caíram, graças à guerra com a Ucrânia e os aliados que a apoiam.Com os Estados Unidos, o salto é maior ainda: o índice de sua participação é de 40% do mercado mundial.Segunda discrepância: nos últimos dez anos o valor destas exportações caiu, em oito dos dez países. A duas grandes exceções são a França e os Estados Unidos. No caso destes, o aumento foi de 24%.Das 100 maiores empresas privadas de produção de armamentos, 41 são norte-americanas, e 27 europeias, excluindo-se a Rússia, que tem apenas 2 empresas entre elas.Invertendo-se a perspectiva, verifica-se que o país que mais importa armas no mundo é a Ucrânia, com quase 9% do setor. E seus principais fornecedores são os Estados Unidos, a Alemanha e a Polônia.Assinale-se uma curiosidade: nenhum país da América Latina figura entre os principais exportadores eu importadores de armas.Aqueles números acima mostram que, como no passado, infelizmente a guerra ou sua perspectiva permanecem sendo um bom negócio para afastar o fantasma de recessões econômicas para quem produza armas, não para quem suporte seus efeitos.Como afirmei no começo, há sinais de fumaça no horizonte apontando na direção de uma guerra. Sabe-se que onde há fumaça, há fogo. Sempre que os países da Europa prepararam-se para uma guerra, a guerra aconteceu. E este continente propiciou as duas guerras que em toda a história humana ganharam o triste título de “mundiais”.
A relação entre o presidente Donald Trump e o presidente Xi Jinping foi marcada, na última semana, por tensões econômicas crescentes e movimentos estratégicos de ambos os lados. O governo Trump intensificou sua ofensiva comercial contra a China, aumentando as tarifas existentes em mais 20 pontos percentuais, elevando a tarifa média sobre as importações chinesas para 33%, em comparação com cerca de 3% em 2017. As medidas de Washington visam reduzir a dependência dos Estados Unidos das importações chinesas e combater as práticas econômicas de Pequim. Em resposta, a China adotou uma postura de negociações em pé de igualdade, impondo suas próprias tarifas sobre produtos agrícolas e madeira dos EUA.Essa estratégia reflete as lições aprendidas com a guerra comercial anterior, durante o primeiro mandato de Trump, com Pequim agora enfatizando a cooperação, mas respondendo firmemente a qualquer pressão. O ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, reforçou essa posição, afirmando que os países não podem esperar suprimir a China e, ao mesmo tempo, manter boas relações, destacando que Pequim “responderá com firmeza” a qualquer tentativa de coerção.O governo de Donald Trump também manteve tarifas rigorosas sobre importações do México e do Canadá devido a preocupações com o tráfico de fentanil. O secretário de Comércio dos EUA, Howard Lutnick, reafirmou que essas tarifas de 25% permanecerão em vigor, a menos que haja avanços significativos no combate a esse problema. No entanto, após uma conversa entre Trump e a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, na última quinta-feira, a implementação das sobretaxas foi adiada por mais um mês, passando a valer a partir de 2 de abril.Além disso, há planos para fortalecer a indústria naval americana e penalizar embarcações e guindastes chineses que operam em portos dos EUA, como parte de um esforço mais amplo para conter a influência da China no setor marítimo global.Apesar dessas tensões, Trump afirmou que deseja manter o diálogo e mencionou que já conversou com Xi Jinping desde sua posse, valorizando o relacionamento pessoal entre eles. No entanto, as medidas comerciais cada vez mais agressivas e as respostas estratégicas de Pequim indicam um cenário de grande complexidade e atrito na relação bilateral.Fóruns multilaterais podem servir de plataforma de negociaçãoOlhando para o futuro, a relação entre Trump e Xi está em um momento crucial. Ambos os líderes precisam encontrar um equilíbrio entre seus interesses nacionais e a estabilidade econômica global. Para Trump, uma abordagem pragmática que combine negociações firmes com engajamento estratégico pode gerar resultados mais sustentáveis. Isso inclui reconhecer a interconexão das cadeias globais de suprimentos e os impactos que políticas comerciais agressivas podem ter sobre indústrias e consumidores americanos.Para Xi, demonstrar disposição para abordar preocupações legítimas de parceiros comerciais, como direitos de propriedade intelectual e acesso ao mercado, pode ajudar a reduzir tensões. No entanto, qualquer concessão precisará ser equilibrada com a política doméstica e a necessidade de preservar a soberania nacional.Ambos os líderes devem priorizar canais de comunicação claros para evitar mal-entendidos e gerenciar conflitos de maneira eficaz. O envolvimento em fóruns multilaterais e o uso de instituições internacionais podem servir como plataformas para negociação, reduzindo o risco de ações unilaterais que possam intensificar as disputas.Os próximos passos na relação entre Trump e Xi exigem um equilíbrio delicado entre assertividade e diplomacia. Ao focar no engajamento construtivo e no respeito mútuo, os dois líderes podem trabalhar para um ambiente econômico global mais estável e próspero.
Os efeitos do tsunami político gerado pelo catastrófico encontro no Salão Oval da Casa Branca entre os presidentes Donald Trump, dos Estados Unidos, e Volodymyr Zelensky, da Ucrânia, mais o vice norte-americano James David Vance, podem ir muito além da guerra russo-ucraniana. Um destes efeitos pode ser o naufrágio geopolítico da chamada Europa Ocidental. Flávio Aguiar, analista políticoComecemos pelo começo. A Europa é tida e lida como o berço das chamadas Cultura e Civilização Ocidentais, desde os tempos da Grécia e da Roma antigas.Um dos derivados contemporâneos destes conceitos foi o Bloco Ocidental, criado depois do fim da Segunda Guerra Mundial, liderado pelos Estados Unidos e constituído por seus aliados na Europa Ocidental, o Canadá, e, na sua franja distante, por países como Austrália, Nova Zelândia, a China Nacionalista (Taiwan) e, de certo modo, até pelo ex-inimigo Japão.O Bloco Ocidental confrontava o Mundo Comunista, formado pela hoje extinta União Soviética (URSS) e seus satélites no Leste Europeu, a República Popular da China, o Vietnã do Norte, que acabou incorporando seu co-irmão do Sul em 1975, Cuba a partir de 1959, mais alguns países comunistas, como a hoje também extinta Iugoslávia, a Romênia e a Albânia, que não eram satélites da URSS. Os demais países, na América Latina, na África, na Ásia e na Oceania, eram “áreas em disputa”, com forças políticas pendendo para um ou outro lado.Este Bloco Ocidental tinha e tem um braço armado, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que confrontava o Pacto de Varsóvia, liderado pela URSS. Com a extinção desta, em 1991, o Bloco Ocidental ampliou sua influência para o Leste Europeu.A OTAN estendeu o alcance de sua ação, tornando-se uma espécie de força policial atuante em conflitos como nos Bálcãs Europeus, no Norte da África e até no Oriente Médio. Por fim, passou a ter por alvo a Federação Russa, que herdou da URSS o maior arsenal nuclear mundial.Emergência da União EuropeiaEconomicamente, o Bloco passou a enfrentar também o crescente poderio da China Comunista e sua influência em escala mundial. Paralelamente, a Europa viu a emergência e ampliação da União Europeia, sob a liderança de países da Europa Ocidental, como Alemanha, França e Itália, uma promessa de paz e prosperidade num continente martirizado e destruído por duas guerras mundiais no século 20.O cartão de visitas do Bloco Ocidental compreendia o regime capitalista, a democracia eleitoral, a liberdade cultural e nos costumes sociais, e muitas vezes a proteção econômica da social-democracia europeia. É verdade que nem sempre este cartão correspondia à realidade, dado que os Estados Unidos e seus aliados seguidamente patrocinaram, apoiaram ou conviveram comodamente com ditaduras sanguinárias na América Latina, na África, na Ásia e na Oceania.Mais recentemente, os Estados Unidos e seus aliados se empenharam no apoio ao governo da Ucrânia contra a invasão russa.Mas o encontro da sexta-feira no Salão Oval foi a demonstração de como o Bloco está mudando sua natureza, para dizer o mínimo. Ele não tem mais uma liderança; tem um patrão, Donald Trump, assessorado por um feitor, JD Vance. Dedo em riste, o patrão dita o que os seus ex-aliados, hoje súditos, devem ou não pensar, sentir e fazer. A estes cabe abaixar as orelhas e obedecer às ordens.Surpresa? Nem tanto. Afinal, aquele patrão vem se comportando como os antigos reis europeus ao tempo das grandes navegações. Quer anexar territórios, comprando-os ou ocupando-os, nomear e renomear acidentes geográficos, criar balneários de luxo em terras devastadas por seus auxiliares, como em Gaza, e agora obter concessões comerciais e econômicas explorando as terras raras da Ucrânia como pagamento pelos serviços militares a ela prestados.Quanto ao Zelensky, ficou pendurado no pincel da guerra que está destruindo seu país, com as promessas de apoio por parte de uma União Europeia enfraquecida, acossada por sua extrema direita insuflada por uma das big techs, a de Elon Musk, que apoiam o novo monarca absoluto de Washington. Uma União que se vê ameaçada de afogar-se no redemoinho da irrelevância geopolítica.Este é o novo “design” projetado pelo monarca absoluto da Casa Branca para o antigo Bloco Ocidental, que pode transformar-se em algo parecido com o cercadinho onde um hoje ex-presidente também autoritário fazia prédicas para seus fãs e crentes. .
A abordagem do presidente Donald Trump para a guerra em andamento na Ucrânia representa uma mudança significativa em relação às políticas anteriores dos Estados Unidos, introduzindo uma estratégia que combina esforços rápidos de negociação, interesses econômicos e uma recalibração das alianças internacionais. Ao assumir o cargo em janeiro de 2025, Trump rapidamente iniciou comunicações diretas com o presidente russo Vladimir Putin, buscando negociar um fim para o conflito. Essa abordagem foi reforçada pelas declarações do secretário de Defesa, Pete Hegseth, em 12 de fevereiro, ao sugerir que restaurar as fronteiras da Ucrânia para os limites pré-2014 era “irrealista” e que a adesão do país à OTAN não era um desfecho viável para qualquer acordo negociado. Hegseth enfatizou que a Europa deveria assumir maior responsabilidade pela defesa da Ucrânia, sinalizando uma mudança nas prioridades dos EUA para focar mais em suas próprias preocupações de segurança.Críticos argumentam que essa estratégia apresenta diversas falhas. Primeiramente, iniciar negociações sem a participação direta da Ucrânia enfraquece sua soberania e pode resultar em acordos desalinhados com os interesses do país. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, demonstrou preocupação ao ser deixado de lado, afirmando que “nada pode ser discutido sobre a Ucrânia sem a Ucrânia”.Além disso, as aparentes concessões à Rússia, como descartar a possibilidade de adesão da Ucrânia à OTAN e aceitar a atual realidade territorial, podem encorajar ainda mais a agressão russa. O ex-assessor de Segurança Nacional John Bolton criticou essa postura, sugerindo que ela representa uma rendição antecipada a Putin antes mesmo do início das negociações.A Rússia tem muito a ganhar com essa estratégia. O sinal de que os EUA reduzirão seu comprometimento com a defesa da Ucrânia e a segurança europeia pode enfraquecer a coesão da OTAN, proporcionando à Rússia maior influência regional. Além disso, a possível retirada de sanções e o reconhecimento das conquistas territoriais russas validariam as ações de Putin, estabelecendo um precedente preocupante para as normas internacionais.Um aspecto intrigante da estratégia de Trump envolve interesses econômicos, especialmente no que diz respeito aos recursos naturais da Ucrânia. Relatos indicam que a administração Trump propôs adquirir uma participação de 50% nos recursos minerais e petrolíferos da Ucrânia como “pagamento” pelo apoio dos EUA. Essa proposta foi recebida com resistência por parte do governo ucraniano, e Zelensky teria rejeitado o acordo, afirmando que não poderia “vender a Ucrânia”.Essa abordagem provavelmente tensionará ainda mais as relações transatlânticas. Os aliados europeus, já preocupados com sua exclusão de discussões críticas de segurança, podem interpretar a estratégia de Washington como um recuo nos compromissos de defesa coletiva. Isso pode levar países europeus a buscar alternativas de segurança, distanciando-se da influência americana e gerando divisões dentro da OTAN.A estratégia de Trump para a guerra na Ucrânia reflete uma combinação complexa de esforços rápidos de negociação, interesses econômicos e uma mudança nas alianças tradicionais. Embora seu objetivo seja resolver rapidamente o conflito, essa abordagem levanta preocupações sobre a soberania ucraniana, o fortalecimento da agressão russa e o enfraquecimento das relações transatlânticas. As implicações de longo prazo de priorizar acordos imediatos em detrimento dos princípios internacionais ainda são incertas, mas o potencial de reconfiguração das dinâmicas globais de poder é inegável.
A 75ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, conhecido como Berlinale, começou na quinta-feira (13). A abertura, presidida pela diretora do festival desde o ano passado, a jornalista norte-americana Tricia Tuttle, ocorreu como de costume no Berlinale Palast, em frente à praça Marlene Dietrich. Flávio Aguiar, analista políticoA cerimônia de abertura foi marcada por discretas manifestações políticas por parte de alguns dos figurantes. Um grupo de atrizes e atores alemães seguraram cartazes com fotos do ator israelense David Cunio, refém do Hamas desde o ataque terrorista de 7 de outubro de 2023, pedindo sua libertação, bem como a de seu irmão Ariel e dos demais reféns.A atriz escocesa Tilda Swinton, homenageada com um Urso de Ouro (o prêmio máximo da Berlinale) honorário por sua carreira, fez um breve pronunciamento. Conhecida como crítica da política do governo israelense em relação aos palestinos, ela se absteve de fazer menções diretas à situação no Oriente Médio. Mas condenou em termos veementes políticas de exclusão, perseguição, “colonização”, e “construção de Rivieras particulares”, numa alusão velada à proposta do presidente Donald Trump, elogiada pelo governo de Israel, de evacuar a população palestina da Faixa de Gaza e de construir nela um balneário de luxo.Luisa Neubauer, conhecida ativista sobre a questão do aquecimento global, apresentou-se com uma camiseta branca com os dizeres: “Donald, Elon, Alice, Friedrich?”.A mensagem era uma alusão ao presidente norte-americano, ao bilionário Elon Musk, à líder do partido de extrema-direita alemão Alternative für Deutschland” (AfD), Alice Weidel, e a Friedrich Merz, o líder do partido conservador alemão, a União Democrata Cristã, criticado por fazer uma aliança informal com o AfD para aprovar uma moção em favor de uma maior rigidez nas leis de imigração e concessão de asilo.O filme alemão apresentado na abertura foi “Das Licht” (A Luz), dirigido por Tom Tykwers, que exibe a história de uma família alemã e de sua governanta síria, que se esforça por trazer sua família para a Alemanha.Estas manifestações têm por pano de fundo a presente conjuntura da política alemã, cujas eleições federais, previstas para o domingo de encerramento da Berlinale, 23 de fevereiro, vão se realizar sob fortes impactos emocionais.Às vésperas da abertura do festival, um refugiado afegão, em Munique, investiu com um carro contra uma manifestação sindical de trabalhadores em greve, ferindo 30 pessoas, inclusive crianças, algumas com gravidade. Duas pessoas morreram no fim de semana vítimas do episódio.O repúdio a imigrantes e refugiados, particularmente muçulmanos, tem sido um tema mobilizado eleitoralmente pelo AfD, com forte repercussão junto aos demais partidos.A situação no Oriente Médio também vem agitando a cena política e cultural do país. De um lado, há o repúdio ao ataque do Hamas em 7 de outubro. Do outro, severas críticas à resposta do governo israelense, considerada excessiva e discriminatória em relação à população civil palestina em Gaza e na Cisjordânia ocupada por tropas militares de Israel. Junto, há a preocupação pela sorte dos reféns em poder do Hamas.Muitas e muitos intelectuais, inclusive judias e judeus, têm tido contratos e prêmios cancelados, sob a acusação de antissemitismo, por defenderem a causa e os direitos dos palestinos.Em 2024, o filme “No Other Land” (Nenhuma outra terra, em tradução livre), foi lançado na Berlinale e venceu os prêmios de público e de documentários. Dois de seus quatro diretores, um israelense e outro palestino, fizeram um pronunciamento criticando a política do governo de Israel visando palestinos. O gesto provocou reações furiosas na mídia alemã, acusando os dois e até o festival de antissemitismo.Para a presente edição, a diretora Tricia Tuttle garantiu a liberdade de expressão para tais e outras manifestações políticas, pedindo que fossem feitas com moderação e respeito.Criada em 1950, no começo da Guerra Fria, por sugestão de Oscar Marley, um oficial do setor cinematográfico do exército norte-americano baseado em Berlim Ocidental, a Berlinale foi desde sempre caracterizada por seu envolvimento com a conjuntura política local e internacional. Além disto, sua organização é muito original, tomando conta da cidade inteira durante sua realização, com seções específicas para crianças e adolescentes, além de retrospectivas históricas e seminários dirigidos a jovens cineastas. Sua presença marcante na cidade e na Alemanha ajuda a entender por que, em Berlim, cinema não fecha, nem vira bingo, nem igreja, nem estacionamento.
O ex-presidente norte-americano Donald Trump adotou uma abordagem assertiva em relação ao México, especialmente no que diz respeito à segurança na fronteira e às tarifas comerciais. No entanto, uma análise mais detalhada mostra que as vitórias que ele proclama frequentemente superam os resultados concretos obtidos. Thiago de Aragão, analista políticoEm seu segundo mandato, Trump anunciou tarifas substanciais sobre importações do México, Canadá e China, citando o tráfico de drogas e a imigração ilegal como principais preocupações. Em fevereiro de 2025, ele impôs uma tarifa de 25% sobre todos os produtos vindos do México, com o objetivo de pressionar o governo mexicano a reforçar a segurança na fronteira. Após negociações, o México concordou em mobilizar mais tropas da Guarda Nacional para a fronteira norte, levando Trump a suspender temporariamente as tarifas. Embora isso tenha sido apresentado como uma vitória diplomática, analistas argumentam que as concessões obtidas foram mínimas e poderiam ter sido alcançadas sem a ameaça de tarifas. Críticos sugerem que essas táticas criam tensões desnecessárias e podem minar a confiança entre parceiros comerciais.Trump tem o hábito de declarar grandes vitórias após manobras agressivas de política externa. Por exemplo, ele afirmou que o México havia aceitado medidas significativas para conter a imigração ilegal e o tráfico de drogas em resposta às suas ameaças tarifárias. No entanto, relatórios indicam que muitas dessas medidas já estavam em discussão ou tiveram impacto menor do que ele alegou. Esse padrão sugere uma tendência de exagerar as conquistas, apresentando acordos negociados como mais significativos do que realmente são.A imposição de tarifas tem implicações econômicas amplas, afetando frequentemente consumidores e empresas nos Estados Unidos. Tarifas podem aumentar o custo de bens importados, levando a preços mais altos para os consumidores e a possíveis rupturas nas cadeias de suprimentos. Economistas alertam que tais políticas podem gerar inflação, enfraquecer o comércio global e potencialmente levar a uma recessão. Apesar desses riscos, Trump utilizou tarifas como ferramenta principal em sua estratégia comercial, frequentemente apresentando-as como um meio de garantir acordos favoráveis, mesmo quando os resultados reais não correspondem às suas declarações.Embora o uso assertivo de tarifas e pressões sobre o México e outros parceiros comerciais seja descrito por Trump como uma estratégia eficaz para atingir grandes objetivos políticos, os resultados concretos frequentemente não correspondem às vitórias proclamadas. Essa disparidade revela um padrão de exagero, que pode distorcer a percepção pública e obscurecer os verdadeiros impactos dessas políticas.
Se a política alemã fosse medida pela escala Richter - aquela que calcula a intensidade dos terremotos -, ela certamente teria explodido na semana passada. Flávio Aguiar, analista políticoA semana passada começou com a comemoração na segunda-feira (27) dos 80 anos da libertação do campo de concentração nazista de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, pelo Exército Vermelho da União Soviética, em 1945. O assunto é delicado e sempre deixa os nervos germânicos à flor da pele.Na quarta-feira (29), o parlamento alemão, o Bundestag, aprovou uma moção proposta pelo líder da oposição, Friedrich Merz, da União Democrata Cristã (CDU, na sigla alemã), para que se endurecessem as leis e regras da imigração e concessão de asilo. A moção vinha na esteira bastante emocional de crimes cujos acusados são imigrantes de países predominantemente muçulmanos. O primeiro ocorreu em dezembro do ano passado, quando um imigrante oriundo da Arábia Saudita usou um caminhão para atropelar frequentadores de uma feira de natal, em Magdeburgo, matando 6 pessoas e ferindo mais de 300. O segundo aconteceu no dia 22 de janeiro, quando um imigrante vindo do Afeganistão atacou a facadas várias pessoas em Aschaffenburg, matando duas delas, inclusive um bebê de 2 anos, e ferindo outras três.Tais acontecimentos atiçaram o fantasma do “terrorismo islâmico”, sempre assim chamado pelos xenófobos da extrema direita, embora até o momento tudo indique que tenham sido atos individuais de pessoas com problemas psiquiátricos.A moção recebeu no Bundestag 348 votos a favor, 345 contra, dez abstenções e 30 ausências. Os votos decisivos para aprovar a iniciativa vieram dos deputados do partido Alternative für Deutschland (AfD), Alternativa para a Alemanha, de extrema direita. Alice Weidel, a líder do AfD no Parlamento, comemorou o resultado, dizendo que Merz lançara uma moção que, na verdade, pertenceria ao seu partido. Anteriormente, Merz declarara que faria tudo para que a moção fosse aprovada, mesmo que isto implicasse contar com votos do AfD.Foi aí que o terremoto começou. Desde o fim da Segunda Guerra e do regime nazista firmou-se uma tradição entre os partidos tradicionais de não negociar com a extrema direita. Ela tem até um nome: “Brandmauer”, em referência a uma parede corta-fogo entre dois prédios geminados. E a disposição de Merz foi lida por muita gente como uma ruptura desta tradição.As reações foram rápidas e veementes. Michel Friedman, influente membro da CDU, ex-presidente do Conselho Central de Judeus na Alemanha, anunciou que se desligava do partido. Albrecht Weinberg, de 99 anos, sobrevivente do Holocausto, ex-prisioneiro de Auschwitz, condecorado pelo governo alemão, disse que estava devolvendo a medalha por não aceitar a ruptura daquela tradição no Bundestag.A ex-chanceler Angela Merkel saiu de seu silêncio obsequioso desde que renunciou ao cargo e à liderança do partido, criticando publicamente a atitude de Merz. O atual chanceler Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata (SPD) e políticos de outros partidos também criticaram Merz. Em Berlim, uma gigantesca manifestação com milhares de pessoas repudiou a atitude de Merz e o AfD. Outros manifestantes acorreram à frente da sede da CDU, na Klingenhöferstrasse n° 8, pressionando o partido para rever sua posição.O resultado foi contundente. Na sexta-feira (31), Merz apresentou a proposta de transformar a moção aprovada na quarta-feira em lei, agora com efeito vinculatório. O debate foi descrito na mídia como “acalorado”, “emocional”, “histórico”. E no final da tarde, computados os votos, constatou-se a derrota da proposta por 350 votos contrários, 338 a favor, cinco abstenções e 40 ausências. Apesar do voto ser secreto, ficou evidente que houvera ausências dentro do próprio partido de Merz.Como ler esta sequência de eventos? Aparentemente, Friedrich Merz, candidato a chanceler, lançara um balão de ensaio, a fim de fortalecer sua posição de liderança a três semanas das eleições para o Bundestag. Nas pesquisas de intenção de voto a CDU aparece em primeiro lugar e o AfD em segundo. E outras pesquisas indicam que uma maioria de eleitores favorece uma maior rigidez quanto à imigração e à concessão de asilos. Agora pairam dúvidas sobre como esta semana turbulenta poderá afetar ou não as eleições.
Na primeira semana de seu novo mandato, o presidente Donald Trump retomou rapidamente sua estratégia de remodelar a política comercial dos EUA por meio da aplicação de tarifas. Essas ações, reminiscentes de seu primeiro mandato, têm como objetivo fortalecer as indústrias domésticas e corrigir desequilíbrios comerciais. No entanto, também levantam questões sobre possíveis repercussões econômicas e o futuro das relações comerciais internacionais. Thiago de Aragão, analista políticoNo dia 20 de janeiro de 2025, o presidente Trump anunciou a imposição de uma tarifa de 25% sobre as importações do Canadá e do México, citando preocupações com a imigração ilegal e o tráfico de drogas. Essas tarifas estão programadas para entrar em vigor em 1º de fevereiro de 2025. Além disso, Trump propôs uma tarifa de 10% sobre produtos chineses, acusando Pequim de contribuir para a crise de fentanil nos EUA ao enviar a droga para o México e o Canadá, de onde ela entra nos Estados Unidos.Em outra medida imediata, o governo impôs uma tarifa de 25% sobre todas as importações colombianas depois que a Colômbia recusou aceitar voos de deportação de migrantes colombianos enviados pelos EUA. Essa tarifa deve dobrar para 50% dentro de uma semana, caso a disputa não seja resolvida.A reintrodução de tarifas gerou reações mistas na comunidade empresarial. Alguns líderes da indústria expressaram preocupação com possíveis interrupções nas cadeias de suprimento e aumento dos custos para os consumidores. Empresas como a 3M, que possuem operações significativas com o México e o Canadá, estão avaliando o impacto potencial dessas medidas.Risco de inflaçãoEconomistas alertam que essas tarifas podem levar a preços mais altos para os consumidores e aumentar a inflação. Um relatório do Instituto Peterson de Economia Internacional sugere que essas políticas podem elevar a inflação para entre 6% e 9,3% até 2026, em comparação com uma previsão de 1,9% sem essas medidas.As respostas globais às medidas tarifárias dos EUA têm sido variadas. Alguns países estão buscando reduzir sua dependência do mercado americano, investindo em novos acordos bilaterais e regionais de comércio. Essa mudança pode diminuir a influência dos EUA como potência comercial e enfraquecer sua força econômica a longo prazo.Em resposta às tarifas, a Colômbia criticou as ações dos EUA. O presidente colombiano, Gustavo Petro, enfatizou a necessidade de tratar os migrantes com dignidade e expressou disposição em aceitar os deportados em voos civis.Olhando para o futuro, o governo americano pode considerar várias opções para avançar sua agenda comercial:1. Negociações com parceiros comerciais: Os EUA podem se envolver em discussões com países afetados para abordar questões subjacentes, como imigração e tráfico de drogas, o que poderia levar à redução ou remoção das tarifas.2. Expansão das medidas tarifárias: Se as tarifas iniciais não alcançarem os resultados desejados, o governo pode ampliar seu escopo para incluir mais países ou produtos, visando proteger ainda mais as indústrias domésticas.3. Ajustes econômicos domésticos: Para mitigar impactos negativos em consumidores e empresas, o governo poderia implementar subsídios ou incentivos fiscais para apoiar indústrias afetadas e controlar a pressão inflacionária.4. Ações legais e legislativas: Desafios às tarifas podem surgir no âmbito doméstico ou internacional, levando a disputas legais ou esforços legislativos para limitar a autoridade executiva sobre a política comercial.Enquanto o governo navega por essas dinâmicas comerciais complexas, será necessário equilibrar os objetivos de proteger os interesses domésticos com as possíveis repercussões econômicas globais. As próximas semanas e meses serão cruciais para determinar a eficácia e a sustentabilidade dessas políticas tarifárias.
Nos últimos anos, duas preocupações cresceram entre a maioria dos governantes na Europa, na União e fora dela. A primeira foi a tensão com a Rússia, provocada pela guerra na Ucrânia. Na esteira dos Estados Unidos e da Otan, a maioria dos países europeus alinhou-se ao apoio financeiro e militar do governo de Kiev. Flávio Aguiar, analista políticoA segunda foi a de que, com o crescimento dos partidos de extrema direita, a pauta de quase todos os governantes e partidos europeus, da centro-esquerda à direita tradicional, passou a assimilar de modo mais orgânico o repúdio a imigrantes e refugiados, sobretudo àqueles que vêm do antigo Terceiro Mundo, hoje Sul Global, e aos oriundos dos países muçulmanos.A Rússia, a “invasão” do espaço europeu por aqueles considerados como estranhos a seu universo cultural e até religioso, o suposto terrorismo importado dos países árabes: eis um coquetel explosivo que alimenta alguns dos pesadelos mais aterrorizantes de governantes e governados preocupados em preservar os valores tidos por eles como autenticamente europeus, em torno da democracia liberal e do liberalismo econômico.Agora um novo pesadelo veio se juntar aos já mencionados: a posse, a partir desta segunda-feira (20), de Donald Trump em seu segundo mandato na Casa Branca.Jamais um presidente norte-americano acumulou tantos poderes. Ele tem a seu lado a maioria nas duas casas do Congresso em Washington, uma sólida maioria na Suprema-Corte, que lhe garantiu imunidade criminal enquanto estiver no cargo, e o alinhamento explícito de duas das maiores Big Techs mundiais, lideradas por Elon Musk e Mark Zuckerberg. Outras devem aderir a este verdadeiro consórcio digital, informativo ou des-informativo, conforme o ponto de vista favorável ou crítico a elas.Elon Musk já apontou suas baterias para a Europa, aliando-se explicitamente aos partidos de extrema-direita em alguns países, como o Reino Unido e a Alemanha. Zuckerberg promete suspender o sistema de verificação da credibilidade das informações que circularem na sua Big Tech.Os problemas europeus, entretanto, não têm raízes apenas em fontes definidas como externas. A própria Europa navega num mar de turbulências e incertezas.Os governos da dupla principal da União Europeia, França e Alemanha, estão fragilizados. Em 2024 a França teve quatro primeiros-ministros. O atual, François Bayrou, escapou de um voto de desconfiança na Assembleia Nacional fazendo concessões ao Partido Socialista, entre elas a de rediscutir a proposta de reforma de Previdência Social defendida pelo presidente Emmanuel Macron.Na Alemanha, o primeiro ministro social-democrata, Olaf Scholz, enfrentará uma eleição difícil em fevereiro. De momento, as pesquisas de intenção de voto são amplamente desfavoráveis a seu partido.Partidos de extrema direita estão no poder na Hungria e na Itália, e acossam os governos da Escandinávia, antes um verdadeiro santuário da social-democracia. Na Áustria, o Partido da Liberdade, de extrema direita, foi o mais votado na última eleição e agora tenta formar um governo de coalizão com a direita tradicional.O Acordo de Shengen, que prevê a livre circulação entre os países europeus, está ameaçado, porque vários deles estão restabelecendo controles policiais em suas fronteiras terrestres.Desafios econômicosA economia da União Europeia está fragilizada. O alinhamento da Alemanha, que representa 30% do PIB da Zona do Euro, com o governo de Kiev terminou por provocar a interrupção do fornecimento do gás russo para o país. A indústria alemã entrou em recessão, acossada pela concorrência chinesa na produção de veículos elétricos e prejudicada pela turbulência no comércio mundial, graças à guerra na Ucrânia e o conflito no Oriente Médio. A Alemanha segue sendo a principal exportadora e importadora de produtos europeus. Uma crise nela atinge todo o continente.Até a recente assinatura do Acordo de Parceria entre a União Europeia e o Mercosul é fonte de desavenças, com a Alemanha desejando sua rápida implementação, enquanto o setor agropecuário, da Espanha à Polônia, faz-lhe forte oposição.Trump e seus aliados são imprevisíveis. O que fará ele na Ucrânia? No Oriente Médio? Serão suas afirmações de anexar o Canal do Panamá, a Groenlândia e o Canadá apenas blefes retóricos?Deste quadro complicado extrai-se uma única certeza: a Europa enfrentará dias de profundas incertezas pelos próximos quatro anos do mandato de Trump..
No teatro das absurdidades políticas, as recentes declarações do presidente eleito dos EUA, Donald Trump, sobre o Canal do Panamá merecem aplausos – ainda que irônicos. Sugerir que os EUA deveriam “reassumir” o controle do canal, uma artéria vital para o comércio global, não apenas ignora o contexto histórico de sua transferência para o Panamá, mas também demonstra uma profunda incompreensão da geopolítica moderna. O canal, construído pelos Estados Unidos no início do século XX, foi entregue ao Panamá em 31 de dezembro de 1999, conforme os Tratados Torrijos-Carter assinados em 1977. Essa transição foi um marco monumental para a soberania panamenha, celebrada como uma vitória diplomática e um progresso nas relações entre Washington e a América Latina. Agora, mais de duas décadas depois, sugerir que os EUA deveriam “reassumir” seu controle não é apenas estranho, mas praticamente impossível sem desmontar as regras internacionais estabelecidas.A apreensão de Donald Trump sobre a influência chinesa nas operações do canal até tem uma ponta de verdade. Empresas chinesas investiram estrategicamente em instalações portuárias perto das entradas do canal, levantando preocupações em Washington. Mas aqui está a questão central: se há alguma culpa por esse suposto “avanço” chinês, ela recai inteiramente sobre os próprios Estados Unidos.Durante anos, o engajamento dos EUA com a América Latina – e com o Panamá em particular – tem sido marcado pela inconsistência, negligência e falta de visão estratégica. Enquanto Washington desviava sua atenção para outras regiões ou se via atolada em crises políticas internas, Pequim ocupava o espaço vazio com empréstimos, investimentos e projetos de infraestrutura. Não se trata de a China ter superado os EUA em uma competição justa; trata-se de os EUA simplesmente não terem comparecido ao jogo.As parcerias do Panamá com empresas chinesas não são uma questão de alinhamento ideológico ou de uma grande traição ao Ocidente. Trata-se de pragmatismo. A China ofereceu investimentos em infraestrutura quando Washington só tinha retórica para oferecer. Em vez de fomentar laços mais estreitos com o Panamá e outros países da América Latina, os EUA frequentemente trataram a região como uma reflexão tardia, criando terreno fértil para que outras potências ganhassem influência.Modelo de eficiência e neutralidadeMesmo agora, enquanto Trump reclama, o Panamá mantém total soberania e controle operacional do canal. A Autoridade do Canal do Panamá – um modelo de eficiência e neutralidade – garante que o canal permaneça aberto e acessível a todas as nações. Os investimentos chineses em instalações ao redor podem ser dignos de nota, mas não equivalem a propriedade ou controle do canal em si.A sugestão de Trump de reassumir o controle do canal não apenas ignora os obstáculos legais e diplomáticos, mas também corre o risco de alienar toda a região. Os países da América Latina, incluindo o Panamá, há muito ressentem intervenções pesadas dos EUA. Qualquer discurso sobre “reassumir” o que é legitimamente deles apenas aprofundaria feridas históricas e os empurraria ainda mais para os braços de outras potências globais, como a China.Se os EUA realmente desejam conter a influência chinesa na região, precisam repensar sua abordagem. Em vez de emitir ameaças veladas ou sonhar nostalgicamente com controle imperial, Washington deveria se concentrar em reconstruir a confiança e oferecer benefícios concretos aos seus vizinhos. Investimentos em infraestrutura, parcerias comerciais e intercâmbios culturais podem fazer muito para reafirmar os EUA como um parceiro confiável.As declarações de Trump sobre o Canal do Panamá podem agradar a certos públicos domésticos, mas revelam uma profunda falta de compreensão sobre as complexidades da geopolítica latino-americana. O canal não é apenas uma via de transporte; é um símbolo da soberania panamenha e um lembrete do que a diplomacia eficaz pode alcançar. Se os EUA realmente desejam influenciar o futuro do canal, devem começar refletindo sobre seus erros do passado e traçando um caminho mais inteligente para o futuro das relações com países da América Latina.
Ele está em toda parte, promovendo o que entende por “bem” e combatendo o que entende por “mal”. Sua visão de mundo não reconhece fronteiras. É cidadão norte-americano, mas vê a si mesmo como um “cidadão do mundo”, de alcance planetário, atuando nos cinco continentes habitados. É o Batman? O Capitão América? O Super-Homem? Não! Ele é muito mais do que um super-herói de ficção. Flávio Aguiar, analista políticoEle é real. Ele é Elon Musk, o multibilionário que nasceu na África do Sul, transitou pelo Canadá, naturalizou-se norte-americano e nas últimas semanas habita um chalé de luxo em Mar-a-Lago, a cidadela do ex-presidente e agora de novo presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, em Palm Beach, na Flórida.O referido chalé se situa a algumas centenas de metros da casa principal, ocupada por Trump. Nomeado para ser um dos secretários para a Promoção da Eficiência Governamental, junto com outro empresário de sucesso, Vivek Ramaswamy, hoje Musk é descrito como um dos conselheiros mais influentes de Donald Trump. Não só quanto à administração do governo, mas também sobre todos os assuntos relevantes para um presidente dos Estados Unidos, inclusive a política externa.Elon Musk nasceu em 1971 na cidade de Pretória, sede do Poder Executivo da África do Sul, primogênito de três irmãos e de alguns meio-irmãos, dentro de uma próspera família branca. Entretanto, já descreveu seu pai, Errol Musk, como “um homem violento” de quem sua mãe se divorciou quando ele ainda era criança. Musk começou seus estudos em Pretória, mas ainda jovem mudou-se para o Canadá, onde sua mãe tinha parentes. Depois foram para a Califórnia, nos Estados Unidos.Ele tornou-se um empresário de grande sucesso, agindo em vários ramos, como no setor de comunicações e redes sociais, no automotivo e na produção de energia renovável, sobretudo solar e tem investimentos no mundo inteiro. É considerado o homem mais rico do mundo, com uma fortuna estimada em mais de US$ 450 bilhões.Musk na política mundialO magnata fez uma doação de US$ 250 milhões para a campanha de Donald Trump em 2024, tornando-se seu principal financiador. Por isso há quem diga, ironicamente, que antes de ser nomeado para o governo, foi Musk que empregou Trump como seu político preferido.Politicamente, Musk teve uma atuação oscilante no passado. Fez doações para o Partido Democrata e para o Partido Republicano. Consta que na eleição presidencial de 2016 votou em Hillary Clinton, que concorreu contra Donald Trump. Porém, pouco a pouco sua preferência foi convergindo para políticos de extrema direita, em escala mundial.O empresário interferiu, semeou controvérsia e confusão no Canadá, na Austrália, na França e na União Europeia. Sua rede social X, o antigo Twitter, envolveu-se em controvérsia judicial até no Brasil, chegando a ser fechada por ordem do juiz Alexandre de Moraes, acusada de afrontar a legislação do país. Musk recuou, acatou as regras de Moraes e reativou o X no Brasil, sendo um dos poucos casos em que ele conheceu e reconheceu uma derrota política e judicial.Além de atuar nos Estados Unidos ao lado de Trump, nos últimos tempos voltou-se para o Reino Unido e agora, no apagar das luzes de 2024 e chegada de 2025, aterrissou na política alemã, como de costume, provocando terremotos.Aproximação com a extrema direita europeiaNo Reino Unido aproximou-se de Nigel Farage, líder do partido de extrema direita “Reform UK”, “Reforma o Reino Unido”. Criticou o primeiro-ministro trabalhista Keir Starmer quando este mandou reprimir manifestações e agressões islamofóbicas contra cidadãos muçulmanos.Mais recentemente pressionou o governo de Londres para libertar Tommy Robinson, líder de extrema direita, acusado de incitar a violência contra os muçulmanos.Nas últimas semanas, Musk teceu críticas pesadas ao atual chanceler alemão, Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata, chamando-o de “fool”, que se traduz por “louco”, mas que no contexto significa algo como um “bufão desmiolado”. E literalmente acendeu uma fogueira ao defender o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD, “Alternative für Deutschland”), afirmando que ele é o único que “pode salvar o país” e pedindo que votem nele na eleição prevista para fevereiro.A atitude de Musk levantou polêmicas na mídia alemã, despertando defesas e críticas de políticos e jornalistas. O próprio chanceler deu-lhe uma indireta, dizendo que quem vai decidir o futuro da Alemanha é o povo alemão e não algum dono de rede social.O jornalista Georg Diez escreveu no jornal Zeit um artigo intitulado “O feudalismo está de volta”, dizendo que Musk não se comporta como um empresário, mas sim como um príncipe medieval. Eu diria mais: ele, na verdade, vem se comportando como um papa medievo, que procurava regrar o comportamento das nações e dos estados modernos então emergentes. Um papa arrogante, que se acha eleito não pelo Colégio dos Cardeais, mas pelos bilhões de dólares que possui.
Há exatos 30 anos o regime do Apartheid chegou ao fim na África do Sul. Os principais personagens deste final pacífico para um dos regimes mais odiosos de segregação racial da história humana foram o líder do Congresso Nacional Africano (CNA), o negro Nelson Mandela, e o líder do Partido Nacional da África do Sul (PN), o branco Frederik William De Klerk. Em 1994, na primeira eleição realmente universal e democrática no país, Mandela foi eleito presidente, cargo que ocupou até 1999. Flávio Aguiar, analista políticoO regime do Apartheid foi oficialmente instituído na África do Sul a partir de 1948, quando o Partido Nacional, liderado por Daniel Malan, venceu as eleições comprometendo-se a manter a supremacia política, econômica e cultural da minoria branca, constituída sobretudo pelos então chamados de Boers, descendentes dos colonos holandeses, hoje chamados de Afrikaaners.O regime segregacionista voltado contra a maioria negra tinha antecedentes longínquos, promovidos pelo colonialismo europeu dos portugueses, da Companhia das Índias Orientais e do Império Britânico, que dominou a maior parte da região até quase o começo da Primeira Guerra Mundial. Entretanto, o regime de discriminação racial instituído a partir de 1948 e conhecido com o nome de Apartheid chegou a um requinte cruel raramente vistos na história humana, “aperfeiçoando” as segregações anteriores.O principal arquiteto do regime teria sido Hendrik Verwoerd, que veio a ser primeiro-ministro sul-africano entre 1958 e 1966. Um exemplo do “aperfeiçoamento” do sistema de discriminação foi no chamado “Ato de Imoralidade”, de 1927, que proibia o casamento entre pessoas brancas e negras. O “Ato de Proibição de Casamentos Mistos”, de 1949, proibiu o casamento de pessoas brancas com pessoas de qualquer outra etnia.“Anonimato humano”O Apartheid reconhecia a existência de quatro “raças” no país: os brancos, os asiáticos, inicialmente chamados de indianos, os “coloured”, que no Brasil o IBGE chamaria de “pardos”, e os negros. Curiosamente, os documentos de identidade de brancos, asiáticos e “coloured” registravam a etnia de seu proprietário. Já os documentos dos negros não traziam nenhuma definição, os condenando a uma espécie de anonimato humano.A legislação do Apartheid era vasta e abrangente, e sua violação era considerada um crime contra o Estado, ou lesa-pátria, com punições extremamente severas. Estabelecia a segregação racial em todas as dimensões da vida, da intimidade sexual aos locais de trabalho. Abrangia a licença para o estabelecimento de residência, os locais de trabalho, os serviços públicos, o transporte, a educação, a saúde, o lazer e tudo o mais que a vida pudesse compreender.Apesar da forte resistência interna e internacional, os governos do Apartheid estiveram longe de permanecerem isolados. Devido à Guerra Fria, contaram com fortes apoios entre políticos conservadores, como Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margareth Thatcher na Inglaterra, no sistema bancário e financeiro internacional, na indústria de armamentos e nos serviços de inteligência policial de diversos países em todos os continentes, inclusive africanos.O regime sul-africano se tornou um defensor dos remanescentes do colonialismo europeu na África e um apoiador de políticos de direita nos países que declaravam sua independência.Nelson MandelaPreso em 5 de agosto de 1962, Nelson Mandela tornou-se o principal líder e símbolo da resistência contra o regime, sendo condenado por alta traição algum tempo depois. Passou por algumas prisões durante os mais de 27 anos que ficou no cárcere.Mandela era submetido a um regime duríssimo. Podia escrever apenas duas cartas por ano, cada uma com no máximo 500 palavras, relidas sistematicamente pela censura antes de serem enviadas.Frederik William De Klerk, presidente do país entre 1989 e 1994, foi o político branco que chegou à conclusão de que os dias do Apartheid estavam contados, e se dispôs a apressar o seu fim antes que fosse tarde demais para uma solução negociada.Entre outras providências, apressou a libertação de Mandela, o que aconteceu no começo de fevereiro de 1990. Quatro anos depois, Mandela saia de sua casa no bairro de Soweto, em Johannesburgo, direto e triunfalmente para o Palácio Presidencial.País mais desigual do mundoSe a legislação do Apartheid foi varrida do mapa há 30 anos e hoje o regime é considerado um crime contra a humanidade, as suas cicatrizes estão longe de desaparecer. Um relatório do Banco Mundial de 2022 deu à África do Sul a incômoda posição de ser o país mais desigual do mundo.Por exemplo, os traços remanescentes da divisão de bairros residenciais por etnias são claramente visíveis, além de outros. Organizações não governamentais e agências do governo reconhecem a existência de racismo e de diferenças graves de oportunidades, emprego e serviços em prejuízo da população negra, que perfaz mais de 80% dos 62 milhões de habitantes do país, sendo que quem têm mais de 30 anos conheceu a vida sob o Apartheid.Entretanto, apesar das dificuldades, o sentimento que se percebe no tratamento cotidiano com quase todas as pessoas é de alegria e de um otimismo comedido. Claro: viver sob Apartheid devia ser algo tão horrível que qualquer outra forma de vida é bem-vinda.
O possível retorno do "Schedule F" no segundo governo Donald Trump pode alterar significativamente a estrutura da força de trabalho federal dos Estados Unidos. Introduzido inicialmente em outubro de 2020, o plano tinha como objetivo reclassificar funcionários públicos federais, possibilitando sua contratação e demissão sem proteções trabalhistas. Thiago de Aragão, analista políticoEmbora tenha sido revogado pelo presidente Joe Biden em janeiro de 2021, antes de sua plena implementação, relatórios recentes indicam que Trump planeja restabelecer o "Schedule F" imediatamente ao assumir o cargo.A reintrodução do plano envolveria um processo rápido em duas fases. Primeiro, as agências federais identificariam os cargos que atendem aos critérios de reclassificação, com foco em funções relacionadas à formulação de políticas, tomada de decisões, advocacia e atividades confidenciais. Em seguida, o Escritório de Gestão de Pessoal (OPM) revisaria e aprovaria essas classificações, potencialmente em um prazo de 90 dias, levando a uma rápida transformação da estrutura da força de trabalho federal.As implicações financeiras dessa reclassificação podem ser substanciais. O processo pode envolver custos relacionados a pagamentos de indenizações, despesas administrativas para reclassificação, além de possíveis litígios decorrentes de problemas legais. Os defensores argumentam que, apesar dessas despesas iniciais, economias de longo prazo poderiam ser alcançadas, com maior flexibilidade das equipes de trabalho e redução da ineficiência gerada pela burocracia.Os críticos expressam preocupações sobre a possível erosão do conhecimento institucional e o risco de politização de cargos tradicionalmente apartidários. A reclassificação poderia levar ao deslocamento de servidores experientes, prejudicando o sistema de serviço público baseado no mérito e potencialmente causando interrupções nas operações governamentais. Além disso, há temores de que tais mudanças possam comprometer a precisão de dados governamentais críticos, já que agências como o Bureau of Labor Statistics, que coleta, processa, analisa e divulga dados estatísticos, poderiam ser afetadas pela politização de seus funcionários.As implicações mais amplas da volta do "Schedule F" vão além do emprego federal direto. Contratantes do governo, particularmente em regiões como Washington, Maryland e Virginia, podem precisar ajustar seus modelos de negócios para lidar com o aumento da rotatividade entre seus parceiros federais. Governos estaduais que dependem de orientações e cooperação federal também podem precisar desenvolver planos de contingência para enfrentar possíveis interrupções na coordenação entre os níveis federal e estadual.
Moçambique vive uma crise que se intensificou desde as eleições gerais de outubro. Esse país lusófono da costa leste do continente africano enfrenta tensões políticas e ideológicas complexas, permeadas por elementos históricos que dividem a nação desde a sua independência, em 1975. Flávio Aguiar, analista políticoEm 9 de outubro realizaram-se eleições gerais em Moçambique, para a presidência da República, a Assembleia Nacional e as dez assembleias provinciais. O Conselho Nacional de Eleições proclamou vencedor o candidato Daniel Chapo, da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e do atual presidente, Felipe Nyusi. A FRELIMO é usualmente apontada como um partido de orientação marxista-leninista. Como já de costume, o principal candidato de oposição, Venâncio Mondlane, do Partido Otimista pelo Desenvolvimento de Moçambique (PODEMOS) e pela Aliança Democrática, considerado um político pró-Ocidente, não aceitou o resultado e denunciou a ocorrência de fraudes na votação e na apuração. Na sequência, chamou manifestações contra o governo, que vêm ocorrendo desde então, sobretudo na capital, Maputo. Registram-se cotidianamente choques entre a polícia e unidades militares pró-governo e os manifestantes oposicionistas. O número de mortos nestas manifestações sobe a dezenas, bem como o de detidos pela polícia.Os policiais e as unidades militares envolvidas na repressão aos manifestantes são acusados de usarem violência excessiva. Em contrapartida, alegam que, frequentemente, as manifestações degeneram em atos de vandalismo e depredação.A FRELIMO, fundada em 1962 e líder da campanha e da guerra contra o colonialismo português, está no poder desde a independência, em 1975. Contra ela há acusações de autoritarismo crescente, manipulações eleitorais, e de corrupção, provocada por uma aliança de exercício do poder por oligarquias, inclusive familiares, negócios escusos, e tráfico de influência. Dentre os mais de 200 representantes de organizações internacionais, os da União Europeia apoiaram, ainda que de modo moderado, as denúncias de Mondlane, também apoiadas por outros partidos de oposição.Por sua vez, Mondlane é uma personalidade política bastante controversa. Pastor evangélico, recebeu no passado o apoio de remanescentes da RENAMO, Resistência Nacional Moçambicana, fundada em 1977 por apoiadores do colonialismo europeu na África e defensora do apartheid na África do Sul.Todas as suas ligações internacionais são com partidos e políticos de extrema-direita. Elogia Donald Trump e, no Brasil, se diz aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro e do deputado federal Nikolas Ferreira, do Partido Liberal (PL), de extrema-direita. Em Portugal apoia e tem o apoio do partido CHEGA, fundado em 2019 por André Ventura, também de extrema-direita. Simpatizantes desta tendência afirmam que os problemas de Moçambique decorrem de uma processo de independência mal conduzido pelo “abrileiros” (sic), uma referência à Revolução dos Cravos que em 25 de abril de 1974 derrubou a ditadura salazarista, e sua proximidade em relação à FRELIMO marxista.As manifestações contra o governo e a favor de Mondlane têm tido apoio entre jovens, parcela em que a taxa de desemprego é muito alta, sobretudo nas cidades. A FRELIMO conta com um apoio mais firme em regiões rurais e entre veteranos que viveram o estertor do colonialismo português na África.O escritor angolano José Eduardo Agualusa publicou um artigo com críticas veementes a Mondlane. O escritor moçambicano Mia Couto divulgou uma carta aberta pedindo moderação a todas as partes no tratamento da crise moçambicana, recebendo críticas de oposicionistas que a consideraram omissa em relação às denúncias de violência por parte do governo. Os países africanos vizinhos acompanham atentamente a situação, inclusive a África do Sul, porque Maputo tornou-se um porto importante para o escoamento de seus produtos. Idem a União Europeia, cujos países têm muitos investimentos na região. De toda esta crise, duas conclusões prévias se impõem. A primeira é a de que, como o Brasil, Moçambique não é para principiantes. A segunda é a de que, se a FRELIMO pode ter-se tornado um problema, Mondlane, com suas ligações autoritárias, parece longe de ser uma solução.
As relações comerciais entre os Estados Unidos e o México enfrentam um período de tensão renovada com a recente eleição de Donald Trump à presidência dos EUA e de Claudia Sheinbaum à presidência do México. Trump anunciou a intenção de impor uma tarifa de 25% sobre todas as importações mexicanas, justificando a medida como uma resposta ao fluxo de drogas e à migração ilegal através da fronteira sul dos EUA. Thiago de Aragão, analista políticoEm reação, a presidente Sheinbaum sugeriu que o México poderia retaliar com tarifas próprias, enfatizando que "uma tarifa alfandegária seria seguida por outra em resposta, e assim por diante, até colocarmos em risco negócios comuns". Ela destacou que o tráfico de drogas é uma questão de saúde pública nos EUA e que o México tem enfrentado desafios devido ao contrabando de armas provenientes dos Estados Unidos.A perspectiva de uma guerra tarifária preocupa economistas e líderes empresariais, dado o impacto potencial em setores-chave, como o automotivo e o agrícola, que dependem de cadeias de suprimento integradas entre os dois países. Além disso, consumidores americanos podem enfrentar preços mais altos em produtos como abacates e tequila, enquanto produtores mexicanos temem a perda de acesso ao seu principal mercado de exportação. Apesar das tensões, ambos os líderes expressaram disposição para o diálogo. Após uma conversa telefônica, Trump afirmou que Sheinbaum concordou em "fechar imediatamente a fronteira" para deter a migração e o fluxo de drogas. No entanto, Sheinbaum enfatizou que o México já está "cuidando" das caravanas de migrantes e que a posição do país é "não fechar fronteiras, mas construir pontes entre governos e entre povos". A comunidade internacional observa atentamente, consciente de que uma escalada nas tarifas pode desestabilizar a economia regional e afetar acordos comerciais existentes, como o Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA). Analistas sugerem que uma abordagem colaborativa seria mais eficaz para abordar questões complexas como migração e tráfico de drogas, evitando medidas unilaterais que possam agravar as tensões. As relações comerciais entre os EUA e o México estão em um momento onde dificilmente ambos vencerão. As ações e negociações nos próximos meses serão cruciais para determinar se os dois países podem encontrar um terreno comum ou se seguirão por um caminho de medidas retaliatórias que podem prejudicar ambas as economias.
Um autêntico calafrio percorreu toda a Europa na semana passada. Noticiou-se com destaque que os governos da Suécia e da Finlândia divulgaram para seus cidadãos manuais sobre como proceder no caso de uma guerra contra terceiros. O governo sueco distribuiu pelo correio uma brochura de 32 páginas. O finlandês disponibilizou uma publicação online Flávio Aguiar, de BerlimEmbora o nome não aparecesse, era óbvio que se tratava de uma guerra com a Rússia. A Suécia não tem uma fronteira terrestre com a Rússia. Há uma fronteira marítima entre ela e o enclave russo de Kaliningrado, espremido entre o Mar Báltico, a Lituânia e a Polônia. A Finlândia tem uma fronteira terrestre com a Rússia de 1.343 km.Ambas mensagens abordam outras crises, como a ocorrência de pandemias, desastres naturais e ataques terroristas. Mas o destaque no noticiário foi para a guerra, graças à existência do conflito direto entre a Rússia e a Ucrânia, que tem o apoio da OTAN, de que não faz muito Suécia e Finlândia passaram a integrar..Tanto na Suécia como na Finlândia as instruções envolvem a manutenção de estoques de alimentos, água, remédios e dinheiro, a guarda de cartões de crédito, conselhos sobre como se manter informado através do rádio, a busca de abrigos coletivos no caso de ataques aéreos ou nucleares, como neles se comportar ou onde se proteger caso seja impossível chegar até eles.Logo no começo das instruções suecas, encontra-se a seguinte exortação patriótica: “Se a Suécia for atacada, nós nunca nos renderemos. Qualquer sugestão em contrário é falsa”.Aos poucos surgiram informações complementares. Em ambos os casos, tratava-se de uma atualização de instruções anteriores. Também noticiou-se que outros governos, como os da Dinamarca e da Noruega distribuíam instruções semelhantes. Nada disto atenuou o impacto midiático do clima de preparação para uma guerra.Alemanha pode ser corredor da OTANPara engrossar o caldo, a Alemanha entrou na dança. A mídia do país noticiou a existência de um documento do Exército até então secreto, com mil páginas sobre a possibilidade e os desdobramentos de uma guerra com a Rússia. Entre outras coisas, o documento prevê que a Alemanha se transformaria num imenso corredor por onde passariam centenas de milhares de tropas da OTAN - norte-americanas e outras. O país se transformaria no grande organizador logístico do fluxo de tropas, suprimentos e armas de variada espécie para o conflito.Outras informações vieram à tona. O Exército está disponibilizando instruções específicas para empresários sobre como adequar suas empresas à circunstância de uma guerra, com destaque para a questão dos transportes. Para compreender o impacto destas informações, deve-se levar em conta a moldura em que surgiram e alguns antecedentes.Concomitante a elas noticiava-se uma escalada de fato ou retórica em torno da guerra na Ucrânia e agora também em território russo, com a invasão da região de Kursk por tropas ucranianas.Noticiou-se a presença de tropas norte-coreanas em território russo, em apoio a Moscou. O governo Biden autorizou a utilização pela Ucrânia de mísseis de longo alcance contra território russo, e o fornecimento de minas terrestres contra veículos e pessoas para o governo de Kiev. Este anunciou que a Rússia lançara um míssil de longo alcance, capaz de levar uma ogiva nuclear, contra seu território.Moscou relaxou as normas para utilização se armas nucleares em caso de conflito, sobretudo se atacada por um país que tivesse o apoio de uma potência nuclear. França, Alemanha e Polônia anunciaram estarem aumentando significativamente seus orçamentos militares. O exemplo pode ser seguido por outros países.Os Estados Unidos anunciaram o restabelecimento de mísseis em território europeu. A TV russa divulgou uma reportagem comentando quais cidades europeias poderiam ser alvo de ataques por mísseis de longo alcance. Não faz muito o governo Biden aumentou em 20% a presença de pessoal militar e conexo norte-americano no continente europeu, contingente que hoje passa de 120 mil, maior do que, por exemplo, todo o Exército do Reino Unido. Autoridades civis e militares alemãs já falaram abertamente que é possível haver uma guerra com a Rússia em cinco ou seis anos. Em suma, a Europa se prepara para a possibilidade da guerra.Políticos que admitem o risco usam com frequência o dito popularizado em latim, “si vis pacem para bellum”, “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. Entretanto, lembremos que o currículo europeu na matéria não é bom. Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos.
O presidente eleito Donald Trump está montando um gabinete que reflete uma ênfase significativa na lealdade pessoal e em políticas conservadoras rígidas. Essa composição promete alterar substancialmente a dinâmica do governo dos Estados Unidos em comparação com administrações anteriores. Thiago de Aragão, analista políticoEntre os indicados, destacam-se figuras como o senador Marco Rubio para o cargo de Secretário de Estado, o ex-apresentador da Fox News Pete Hegseth como Secretário de Defesa, e o deputado Matt Gaetz para a Procuradoria-Geral.Além deles, Robert F. Kennedy Jr. foi escolhido para liderar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos, e a ex-congressista Tulsi Gabbard foi nomeada Diretora de Inteligência Nacional.Com o objetivo de reduzir gastos federais e implementar reformas estruturais, Elon Musk e Vivek Ramaswamy foram designados para coliderar o recém-criado Departamento de Eficiência Governamental. A seleção de nomes com fortes laços pessoais com Trump e posições políticas firmes sugere uma administração mais coesa e alinhada com a doutrina “America First” (América em primeiro lugar) do presidente eleito. Essa coesão pode resultar em uma implementação mais eficiente das políticas propostas, evitando as divisões internas que marcaram administrações anteriores.A nomeação de figuras controversas, como Matt Gaetz e Robert F. Kennedy Jr., indica uma disposição para desafiar normas estabelecidas e enfrentar críticas públicas. Essa abordagem pode levar a confrontos com o Congresso e outras instituições, potencialmente resultando em um governo mais polarizado.Possíveis resistênciasA criação do Departamento de Eficiência Governamental, liderado por Musk e Ramaswamy, sinaliza uma ênfase na redução da burocracia e dos gastos governamentais. Se bem-sucedida, essa iniciativa pode aumentar a eficiência governamental, mas também pode enfrentar resistência de setores que dependem de programas federais.A nomeação de Marco Rubio como Secretário de Estado sugere uma política externa mais assertiva, possivelmente com foco na confrontação de adversários como a China e o Irã. Por outro lado, a escolha de Robert F. Kennedy Jr., conhecido por suas posições controversas sobre vacinas, para o Departamento de Saúde, pode influenciar a abordagem do governo em relação à saúde pública e à ciência.O gabinete que o presidente eleito Trump está formando indica uma administração que prioriza lealdade e políticas conservadoras firmes. Essa composição tem o potencial de alterar significativamente a dinâmica do governo dos EUA, promovendo uma implementação mais coesa de sua agenda, mas também enfrentando desafios devido a escolhas controversas e possíveis confrontos institucionais.
Os ingleses têm uma expressão original para descrever o momento em que uma situação negativa se agrava: “the plot”, isto é, o enredo, “thickens”, ou seja, engrossa, ou ainda, se complica. A melhor tradução é: “o caldo engrossa”. É o que está acontecendo na Alemanha. Flávio Aguiar, analista político, de BerlimNa quarta-feira da semana passada, pela manhã um choque elétrico percorreu todo o continente, inclusive a Alemanha: Donald Trump foi eleito pela segunda vez presidente dos Estados Unidos. Os partidos e políticos de extrema-direita exultaram. Os de centro e de esquerda ficaram em estado de choque. À noite, um novo choque elétrico se espalhou: o chanceler Olaf Scholz, do Partido Social Democrata (SPD, na sigla alemã), demitiu o ministro das Finanças, Christian Lindner, do FDP (Freie Democratische Partei, usualmente traduzido por Partido Democrático Liberal). Em consequência, a coalizão que formava o governo, chamada de “Semáforo”, devido às cores representativas dos partidos, se desfez. Aquelas cores eram o vermelho (SPD), o amarelo (FDP) e o verde, da Aliança 90/Verdes.Desde o começo, em 2021, quando Scholz tornou-se o chanceler, a coalizão foi descrita como “instável”. Com três partidos, ela reunia dois descritos na mídia do país, como de “centro-esquerda”, o SPD e os Verdes, e um de “centro-direita”, o FDP. No plano dos direitos humanos ou da política externa não havia grandes divergências entre eles, mas no econômico e administrativo, sim. O SPD e os Verdes queriam investimentos públicos, e Lindner se opunha.A partir de 2022 a economia alemã entrou em queda livre. A adesão do governo de Berlim às sanções econômicas contra a Rússia e ao apoio militar e financeiro à Ucrânia provocaram de imediato a suspensão do fornecimento de gás por parte da Gazprom, a estatal russa. E o gás russo era vital para a indústria alemã. Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia provocou o aumento de preço dos insumos e de produtos agrícolas que vinham daquele país (e em menor escala da Rússia), como fertilizantes e o óleo de girassol. Resultado: inflação subindo, sobretudo no custo da energia e dos alimentos, com reflexos na habitação e na saúde, fechamento de indústrias, o consequente aumento das taxas de desemprego, sobretudo entre os jovens, queda no consumo interno e nas importações e exportações.Popularidade do governo em quedaEfeito imediato: a popularidade do governo despencou. Em sucessivas eleições regionais, SPD, Verdes e o FDP começaram a se sair muito mal. Com as eleições federais previstas para o ano que vem, as oposições de direita começaram a crescer nas intenções de voto. Hoje a União Democrata Cristã (CDU) ocupa o primeiro lugar. O AfD, (de Alternative für Deutschland, Alternativa para a Alemanha), de extrema-direita, ultrapassou o SPD e está em segundo.Uma desavença interna roeu as entranhas da coalizão governamental. O SPD e os Verdes desejavam aumentar os investimentos públicos para socorrer a indústria e a agricultura. O FDP bloqueava a iniciativa, aferrando-se ao princípio da austeridade fiscal.Afinal, na noite de quarta-feira passada o enredo e o caldo engrossaram e a corda rompeu-se. Scholz acusou Lindner de trair a sua confiança, e demitiu-o. Lindner saiu atirando: disse que Scholz levara o país à incerteza. Dois dos outros três ministros do governo que são do FDP se demitiram. O dos Transportes preferiu sair do partido e ficar no governo. Resultado: um ar de Titanic se espalhou pelo governo e pelo país, num momento em que o iceberg Trump aparecia no horizonte.A Alemanha está com um governo fraco, minoritário, e com uma economia à deriva, beirando o naufrágio. Scholz anunciou a realização de um voto de confiança no Bundestag, o Parlamento Federal, para janeiro de 2025, com a possível antecipação das eleições para março. A CDU e o AfD querem que tudo aconteça ainda antes. A Comissão Eleitoral do país alertou que a preparação do pleito exige tempo, e que o Natal está logo ali, paralisando o país por duas semanas, pelo menos. Em resumo, o caldo engrossou mesmo, e ninguém sabe quando a Alemanha sairá do buraco em que se meteu.
Na contagem regressiva para o dia da eleição, os Estados Unidos vivem uma disputa política intensa, com Trump e Harris representando visões diametralmente opostas. As últimas pesquisas mostram uma corrida acirrada nos principais estados decisivos, evidenciando uma profunda divisão entre os eleitores. Ambas as campanhas estão com força total, promovendo comícios de última hora, endossos de alto nível e mensagens direcionadas para conquistar os sempre indecisos eleitores em estados-chave. Thiago de Aragão, analista políticoAs políticas dos candidatos oferecem um contraste marcante, com cada um prometendo reformar os EUA de maneiras que parecem incompatíveis. A abordagem de Trump se baseia em uma visão assertiva, quase nacionalista: tarifas, independência energética através do "perfure, perfure, perfure" e o compromisso de fortalecer as fronteiras dos EUA com deportações sem precedentes.Seu plano econômico—enraizado na crença de que a autossuficiência americana pode combater a inflação—é um reflexo dos valores conservadores tradicionais. No entanto, sua dependência de tarifas e disposição para cortar impostos em detrimento do déficit federal preocupam críticos, que temem os efeitos econômicos a longo prazo.Por outro lado, Harris apresenta uma visão voltada para a reforma social e a inclusão. Suas políticas buscam apoiar compradores de primeira casa, enfrentar custos com saúde e reverter leis restritivas de aborto. Harris também adota reformas ambientais, embora equilibrando entre posições progressistas e moderadas—como se vê em seu apoio ao fracking (técnica de produção de gá e petróleo), apesar de sua oposição anterior.Sua proposta de expandir os créditos fiscais para crianças e restringir a prática de elevação de preços em situações de emergência atrai eleitores de baixa renda, enquanto sua postura sobre os direitos reprodutivos ressoa com aqueles preocupados com o retrocesso do Roe v. Wade, como ficou conhecido o caso que levou a Suprema Corte dos EUA a garantir o direito das mulheres ao aborto.Estudo de caso da política americanaMas, além dos contrastes políticos, o clima ao redor da eleição se tornou um estudo de caso sobre a política americana. A campanha de Trump se apropriou de sua imagem como um combatente populista, desafiando a mídia tradicional e confrontando críticos de maneira que alguns chamam de autêntica e outros consideram perigosa. Seus comentários recentes sobre veículos de mídia, vistos como antagonistas, geraram críticas e preocupações sobre os riscos de tal retórica em um ambiente midiático já polarizado.Enquanto isso, a campanha de Harris manteve o foco nos temas de unidade, mas não evitou pressionar Trump sobre suas controvérsias e, em particular, sobre suas alegações de fraude eleitoral—uma jogada estratégica que agrada sua base, mas eleva o risco caso ocorra alguma agitação pós-eleitoral.Enquanto ambos os candidatos se aproximam da reta final, seus respectivos representantes pintaram a eleição como uma disputa imprevisível, com cada lado insistindo em um resultado otimista.Líderes republicanos como o Senador Tim Scott preveem uma vitória republicana, baseados em pesquisas nos estados decisivos que, segundo eles, refletem a forte posição de Trump. Simultaneamente, democratas como o Senador John Fetterman e a Senadora Catherine Cortez Mastro demonstraram confiança no apelo de Harris, especialmente em estados como a Pensilvânia, onde a vice-presidente supostamente investiu um esforço considerável.Riscos para os republicanos e democratasA conversa política mais ampla se tornou reflexiva, com comentaristas como Chuck Todd, da NBC, ponderando o possível impacto a longo prazo de uma vitória de Trump sobre a cultura política do Partido Republicano. Preocupações sobre cleptocracia e a natureza transacional da política de Trump refletem os temores de quem vê o risco de o partido se afastar de suas raízes conservadoras.Da mesma forma, dentro do Partido Democrata, vozes como a de Jen Psaki levantaram questões sobre o impacto de uma derrota de Harris no futuro das mulheres em cargos políticos de destaque, questionando como o resultado poderia moldar a disposição do partido de apoiar candidatas no futuro.Em uma eleição onde políticas, personalidades e lutas pelo poder estão interligadas, os EUA se encontram em um momento crítico. Com grandes apostas e opiniões divididas, não se trata apenas da escolha entre dois candidatos, mas do que essa escolha diz sobre o rumo que o país quer seguir. Enquanto os últimos anúncios são exibidos, as últimas palavras são ditas e os eleitores se preparam para votar, a verdadeira pergunta talvez seja: o que esta eleição revelará sobre os valores que moldam a sociedade americana?Enquanto o país prende a respiração, uma verdade é certa: a escolha à frente não é apenas sobre Trump ou Harris. Trata-se do futuro de uma América cada vez mais dividida entre visões, valores e verdade. E, em dois dias, veremos qual visão ressoa mais.
A recente revelação de que tropas norte-coreanas estão sendo enviadas para lutar ao lado da Rússia na Ucrânia marca um ponto crítico no conflito em curso, despertando preocupações em todo o mundo. Segundo o Serviço Nacional de Inteligência da Coreia do Sul, aproximadamente 1.500 soldados norte-coreanos já chegaram à Rússia, e há relatos de que esse número pode aumentar significativamente. Com isso, Seul convocou o embaixador russo nesta segunda-feira (21) a fim de denunciar a decisão de Pyongyang, segundo o Ministério das Relações Exteriores. Thiago de Aragão, analista políticoPor sua vez, o embaixador Georgy Zinoviev, durante sua reunião com as autoridades diplomáticas sul-coreanas, “enfatizou que a cooperação entre a Rússia e a Coreia do Norte é conduzida dentro da estrutura do direito internacional e não é dirigida contra os interesses de segurança da República da Coreia”.O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, anunciou na manhã desta segunda-feira que chegará a Kiev, onde demonstrará o apoio dos EUA e terá reuniões com autoridades ucranianas de alto escalão. O chefe do Pentágono também deve conversar com o presidente Volodymyr Zelensky e com o ministro da Defesa da Ucrânia, Rustem Umerov. Espera-se que eles discutam o pedido de adesão da Ucrânia à Otan, o primeiro ponto do “plano de vitória” do presidente Zelensky.Analogia com a Guerra FriaEsse desenvolvimento, se confirmado, pode desestabilizar ainda mais a já volátil situação no Leste Europeu e sinaliza uma mudança geopolítica mais profunda, que lembra as alianças da Guerra Fria. Historicamente, o envolvimento de nações externas em conflitos costuma marcar um ponto de virada. Um paralelo pode ser traçado com a Guerra da Coreia (1950-1953), quando a Coreia do Norte, apoiada pela União Soviética e pela China, travou um conflito prolongado e sangrento com a Coreia do Sul, que foi apoiada pelos Estados Unidos e outras potências ocidentais. Aquela guerra, enraizada em divisões ideológicas, preparou o terreno para décadas de tensão geopolítica entre o Oriente e o Ocidente, com a Coreia como o ponto de discórdia. Hoje, em uma reversão surpreendente, o envolvimento da Coreia do Norte na Ucrânia pode ser visto como uma nova extensão dessas dinâmicas históricas da Guerra Fria. As ramificações dessa aliança entre a Rússia e a Coreia do Norte são profundas. Não apenas sinaliza uma escalada no conflito, mas também destaca a crescente cooperação entre regimes autoritários que se sentem cada vez mais acuados pelas sanções ocidentais e pela pressão militar. Para a Rússia, que tem enfrentado escassez de mão de obra e de suprimentos, as tropas e munições norte-coreanas podem fornecer um reforço necessário. Relatos sugerem que a Coreia do Norte tem oferecido à Rússia quantidades significativas de equipamentos militares, incluindo projéteis e mísseis, que foram recuperados na Ucrânia. Essa assistência militar surge em um momento em que as nações ocidentais estão intensificando o apoio à Ucrânia, criando uma situação assustadoramente semelhante às guerras por procuração da era da Guerra Fria. No entanto, o envolvimento de soldados norte-coreanos apresenta desafios significativos para a Rússia. Integrar tropas estrangeiras a uma força militar exige mais do que apenas fornecer armas; requer coordenação, treinamento e a capacidade de superar barreiras linguísticas. O exército norte-coreano, embora altamente disciplinado, não participa de operações de combate em larga escala há décadas. A possibilidade de falhas de comunicação e logísticas é alta, o que pode limitar a eficácia dessas tropas na linha de frente. Alguns especialistas sugerem que as forças norte-coreanas podem ser relegadas a funções de guarda nas seções da fronteira russo-ucraniana, em vez de participarem de combates ativos. No entanto, a importância simbólica desse desenvolvimento não pode ser subestimada. Ações que sugerem um realinhamento das forças globaisA decisão da Coreia do Norte de enviar tropas reflete uma mudança mais ampla na estrutura de poder global, onde nações antes consideradas isoladas ou periféricas estão agora se tornando peças-chave em conflitos internacionais. A crescente aliança entre Rússia, Coreia do Norte, e até mesmo China e Irã sugere um realinhamento potencial das forças globais que pode remodelar as relações internacionais nos próximos anos. Também é preciso considerar as implicações para a Coreia do Sul e seus aliados ocidentais. Leia tambémCoreia do Norte dinamita trechos de estradas de acesso à Coreia do Sul após anúncio de bloqueio permanenteO presidente sul-coreano, Yoon Suk Yeol, já classificou o envolvimento da Coreia do Norte como uma “grave ameaça à segurança”, e com razão. A possibilidade de que o engajamento militar da Coreia do Norte na Ucrânia possa aumentar as tensões na Península Coreana não pode ser descartada. Historicamente, a Coreia do Norte tem usado conflitos externos para fortalecer sua legitimidade interna e demonstrar seu poder militar. Ao alinhar-se com a Rússia, a Coreia do Norte pode estar buscando solidificar seu status como um jogador global, aumentando assim sua influência em futuras negociações com o Ocidente. A comunidade internacional deve responder de forma rápida e decisiva. Se as tropas norte-coreanas de fato estiverem lutando na Ucrânia, isso representaria uma perigosa escalada do conflito. A Ucrânia, já devastada por anos de guerra, pode encontrar-se enfrentando não apenas a agressão russa, mas também uma nova onda de soldados estrangeiros, complicando ainda mais sua estratégia de defesa. As nações ocidentais, incluindo os Estados Unidos e a Otan, precisarão reavaliar sua abordagem ao conflito, considerando as implicações mais amplas de uma guerra multinacional envolvendo não apenas a Rússia, mas seus aliados cada vez mais próximos na Ásia. O envio de tropas norte-coreanas para a Ucrânia, pode marcar um novo e perigoso capítulo na guerra. Esse movimento não apenas destaca o crescente desespero das forças russas, mas também reflete as alianças em mudança no cenário internacional. Como a história tem mostrado, a intervenção externa em conflitos pode prolongar e agravar a violência, transformando disputas regionais em crises globais. O mundo deve estar atento a esses desenvolvimentos e agir com urgência para evitar que o conflito na Ucrânia se descontrole ainda mais.
Recentemente, o economista e pesquisador ligado ao Deutsche Zentral-Genossenschafts Bank (DZ-Bank), Christoph Swonke, declarou que a Alemanha se tornou “a nova criança-problema entre os países europeus”. Ou seja: para ele, a economia alemã está deixando de ser o carro-chefe da economia europeia, para atravancá-la com seus problemas internos. Flávio Aguiar, analista políticoNa quarta-feira (9), o ministro da Economia e vice-chanceler do governo alemão, Robert Habeck, do Partido Verde, declarou que pelo segundo ano consecutivo a economia do país iria se retrair. Em 2023 ela encolheu 0,3%. Agora a previsão é de que em 2024 ela encolha mais 0,2%.Diante da situação interna adversa, com aumento do custo da energia, dos alimentos, queda no consumo, falta de investimentos, empresas alemãs estão se voltando para o exterior em busca de socorro, às custas de seus ativos. A Deutsche Bahn, empresa ferroviária alemã e outrora uma das meninas-dos-olhos do transporte europeu, enfrenta dificuldades de caixa e desempenho. Em consequência, decidiu vender sua subsidiária de cargas, a rentável Schenker, para a dinamarquesa DSV, por 14 bilhões de euros (cerca de R$ 85 bi), a fim de equilibrar seu caixa.O Comerzbank, segundo maior banco privado do país, vendeu parte de seus ativos para o banco italiano Unicredit. Este manifestou interesse em adquirir todo o banco alemão, e o Banco Central Europeu já deu luz verde para esta possível transação.Basf na ChinaOutras empresas estão pensando em buscar locações mais atraentes. A indústria química BASF decidiu investir € 10 bilhões para montar uma unidade na China. Os proprietários suíços da empresa Techem, do setor energético, considerada de médio porte, pensam vendê-la para a norte-americana TPG.A tradicional Volkswagen anunciou que pretende fechar unidades de produção, em parte devido à concorrência dos carros chineses, e rompeu um acordo salarial com o sindicato de trabalhadores que durava 30 anos, protegendo empregos e salários.Aumento do controle na fronteiraUm problema suplementar surgiu com a decisão alemã de romper parcial e temporariamente com o chamado acordo de Shengen, restabelecendo o controle policial de passaportes e veículos em suas fronteiras terrestres. Empresários cujas empresas localizam-se perto da fronteira com a Polônia e empregam trabalhadores deste país dizem estar apreensivos pela dificuldade de circulação que isto provoca.Como a Alemanha ainda é a maior economia do continente, e a principal importadora e exportadora de produtos, seus problemas internos atingem toda a Europa. O clima geral é de apreensão e expectativa negativa para os próximos tempos.Desburocratizar relação entre governo e empresasPara amenizar a situação, o ministro Habeck previu que a Alemanha voltará a crescer a partir do próximo ano, anunciando a adoção de medidas desburocratizantes na relação entre governo e empresas e a busca de um novo programa de geração de energia elétrica considerado climaticamente neutro.Mas as dificuldades não são pequenas. Desde 1980, sucessivos governos anunciam a intenção de desburocratizar a rotina desta relação, com resultados considerados insatisfatórios.Além disto, o clima geral dos mercados mundiais de comércio, finanças e investimentos produtivos também é de apreensão e cautela, devido à guerra na Ucrânia e aos confrontos no Oriente Médio, com a ação armada de Israel se expandindo na região.Por fim, mas não menos importante, grupos ecológicos manifestam grave preocupação diante das, crescentes resistências, por parte de empresários do setor industrial e de produtores agrícolas, em relação às iniciativas verdes, consideradas pouco rentáveis e prejudiciais diante da concorrência estrangeira. A Alemanha e a Europa como um todo podem passar de líderes no setor a novas "crianças-problemas" no que diz respeito à preservação do planeta.
No dia seguinte à vitória da extrema direita na Áustria, começaram nesta segunda-feira (30) as negociações para a formação de uma coligação, mas o projeto encontra resistência em razão da personalidade do líder do Partido da liberdade (FPÖ). Projeções divulgadas na noite de domingo (29) apontam para a vitória da legenda com um resultado histórico. Para integrar o governo, porém, a extrema direita depende de uma coalizão e o seu líder, o controverso Herbert Kickl, corre o risco de ser excluído do poder. Mesmo que o FPÖ ainda dependa de alianças para se aproximar do poder, o resultado das urnas na Áustria mostra um movimento mais amplo, com partidos radicais que ganham cada vez mais espaço na Europa. Em quase toda a Europa os partidos de extrema direita vêm crescendo em percentual de votos de eleição em eleição.Na Itália a extrema direita está no poder, com o governo de Giorga Meloni e seu partido, o Fratelli d'Italia.Na França, o Rassemblement National, liderado por Marine Le Pen, só não cresceu mais na última eleição antecipada para o Parlamento devido a uma manobra conjunta da Nova Frente Popular, das esquerdas, e de setores do partido Renaissance, do presidente Emmanuel Macron. A NFP e o partido de Macron fizeram frente comum em vários departamentos em favor do candidato que tivesse melhores condições para derrotar o Rassemblement.Na Alemanha o Alternative für Deutschland, Alternativa para a Alemanha, de extrema direita, cresceu significativamente nas recentes eleições regionais em três províncias alemãs. Foi mais votado na Turíngia e o segundo mais votado na Saxônia-Anhalt e em Brandemburgo, a província que circunda Berlim, assim como o estado de Goiás circunda Brasília.Entretanto o maior impacto que este crescimento da extrema direita produz nestes países e no continente não está no sucesso, mesmo que parcial, nas votações. Até o momento os demais partidos de todo o espectro político, das direitas tradicionais ao centro e às esquerdas têm se recusado a fazer coalizão com a extrema direita para governar.O maior impacto provocado pelos partidos de extrema direita é o de puxar a pauta política de quase todos os outros partidos mais para a direita, sobretudo no que se refere aos preconceitos contra refugiados e imigrantes.Por exemplo, na Alemanha o tradicional partido de esquerda, Die Linke, rachou. Uma de suas principais lideranças, a deputada federal Sarah Wagenknecht, formou um novo partido com seu nome. E no que se refere ao tema da imigração e dos refugiados se aproximou da pauta da direita, defendendo um maior controle nesta área para evitar o rebaixamento dos salários e direitos dos trabalhadores alemães. Teve sucesso, saindo-se bem naquelas eleições regionais antes mencionadas.Na França o presidente Emmanuel Macron se recusou a formar um novo governo com a Nova Frente Popular, que foi a mais votada nas eleições parlamentares, e nomeou um primeiro-ministro da direita tradicional, Michel Barnier, do partido Les Republicains (Os Republicanos), conhecido por suas posições em favor de mais restrições para a imigração. O novo ministro do Interior, Bruno Retailleau, conhecido como um político de direita linha dura, anunciou que seu programa é “ter mais ordem, mais ordem nas ruas e mais ordem nas fronteiras”.Entretanto, o movimento de maior impacto nestas guinadas para a direita veio do governo alemão. Este anunciou que está retomando temporariamente o controle sobre suas fronteiras terrestres com os países vizinhos para conter os imigrantes e refugiados que, a partir destes, tentam se mudar para a Alemanha.SchengenNa maior parte da Europa vige um acordo que estabelece a chamada Área de Schengen, prevendo a livre circulação de pessoas e veículos entre os seus países membros. Este acordo começou a ser costurado em 1985, quando cinco dos dez países que então compunham a Comunidade Econômica Europeia: Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Holanda e Luxemburgo concordaram em facilitar o trânsito através de suas fronteiras. O acordo foi assinado na cidade de Schengen, em Luxemburgo, que o batizou. Posteriormente, novos acordos e admissões entraram em vigor, em 1990, mais uma vez com assinatura em Schengen, e em 1999, em Amsterdã, na Holanda. Por este último acordo, a Área de Schengen foi reconhecida como lei internacional pela União Europeia, fazendo com que ele passasse a ser um de seus pilares de sustentação.A medida alemã provocou reações negativas imediatas não só nos países vizinhos, mas no continente todo. Teme-se que a vigência da medida se amplie e provoque medidas semelhantes, de retaliação, em outros países, pondo em risco a existência da Área de Schengen e por tabela a própria União Europeia, pelo menos no seu formato atual.A existência da União sempre foi motivo de críticas por parte dos partidos de extrema direita. Mais recentemente a maioria destes partidos deixou de reivindicar o fim da União. Mas eles continuam a reivindicar a modificação do seu estatuto, em favor de um reforço das soberanias nacionais. E um dos motivos centrais destas reivindicações é o maior controle e até mesmo a repulsa a refugiados e imigrantes, sobretudo àqueles que venham do chamado Sul do mundo, ou dos países muçulmanos. O anúncio do governo alemão é visto como uma concessão diante de tais pressões.Como isto vai afetar a União é algo para se verificar no futuro. O risco de afetar seriamente seu estatuto não é imediato, mas não é desprezível, sobretudo num momento em que, devido à guerra na Ucrânia, crescem as inquietações sociais e econômicas em todo o continente, com guinadas à direita de muitos de seus eleitores e um retorno da valorização das atividades e investimentos militares, com vários países reforçando seus arsenais de guerra e com os Estados Unidos anunciando a reinstalação de mísseis e ogivas nucleares na Europa, além da Rússia estar anunciando mudanças em sua política em relação à contenção das armas nucleares.Em matéria de militarismos o currículo passado da Europa não é dos melhores, sendo que a União Europeia, em parte, foi concebida depois da Segunda Guerra como um antídoto contra o risco de tais conflitos.
A eleição presidencial de 2024 nos Estados Unidos está se mostrando a mais acirrada do século, possivelmente a mais disputada dos últimos 60 anos. Após o debate de 10 de setembro entre Donald Trump e Kamala Harris, as pesquisas indicam uma leve vantagem nacional para a vice-presidente, mas a margem é tão estreita que ainda é impossível prever um vencedor, especialmente considerando o Colégio Eleitoral. Thiago de Aragão, analista políticoAs pesquisas divulgadas no último domingo pela CBS News e NBC News foram algumas das mais favoráveis a Harris até o momento, mostrando-a à frente de Trump por 4 e 5 pontos, respectivamente. No entanto, mesmo esses números estão dentro da margem de erro e são significativamente menores do que as vantagens que os candidatos democratas tiveram em 2016 e 2020 nas mesmas fases da campanha. Isso evidencia a dificuldade que Harris enfrenta para consolidar uma liderança clara nas pesquisas nacionais.Analisando todas as pesquisas nacionais conduzidas desde o debate – incluindo ABC News/Ipsos, Fox News e The New York Times/Siena College – a média mostra Harris liderando por apenas 3 pontos, de acordo com a mais recente CNN Poll of Polls. Esse padrão tem se mantido durante todo o ano, com nenhum dos candidatos abrindo uma vantagem superior a 5 pontos. O fato de nenhum candidato ter liderado por pelo menos 5 pontos neste ciclo é notável, indicando que os eleitores estão altamente polarizados e firmes em suas escolhas.O que torna essa eleição particularmente imprevisível é a dinâmica do Colégio Eleitoral. Trump tende a ter uma posição mais favorável nesse sistema devido à distribuição geográfica de seus eleitores, especialmente entre os brancos sem diploma universitário, que são super-representados em estados decisivos. Estimativas sugerem que Harris precisaria vencer o voto popular por mais de 3 pontos para ser considerada favorita no Colégio Eleitoral, um patamar que ela ainda não alcançou.De acordo com as avaliações atuais da CNN, Harris começa com 225 votos eleitorais contra 219 de Trump, com sete estados e um distrito no Nebraska ainda em disputa. Harris parece ter uma ligeira vantagem em Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, enquanto Trump está um pouco à frente no Arizona e na Geórgia. No entanto, em todos esses estados, a diferença média é de apenas 1 a 2 pontos, colocando-os bem dentro da margem de erro.Estratégia multifacetadaKamala Harris tem adotado uma estratégia multifacetada para tentar superar esses desafios. Diferentemente de Joe Biden em 2020, que frequentemente retratava Trump como uma ameaça direta à democracia, Harris está optando por uma abordagem que busca diminuir Trump aos olhos do público ao mesmo tempo em que alerta sobre os perigos reais de suas políticas. Ela enfatiza tanto o aspecto "não sério" de Trump – destacando suas declarações controversas e comportamentos erráticos – quanto os riscos concretos que sua eleição poderia representar.Assessores e estrategistas da campanha de Kamala explicam que essa abordagem reflete a percepção dos eleitores: eles veem Trump como um indivíduo que não é sério, mas reconhecem a seriedade das consequências de uma possível reeleição do republicano. Harris utiliza momentos estratégicos, como debates e entrevistas, para destacar essas dualidades, tentando criar um contraste nítido entre sua competência e o comportamento de Trump.Além disso, Harris está investindo fortemente em ampliar seu alcance, especialmente entre os eleitores jovens e do sexo masculino, grupos nos quais ela tem enfrentado desafios conforme apontado pelas pesquisas. Reconhecendo a necessidade de se conectar com esses eleitores, a campanha planeja diversificar suas aparições na mídia, incluindo participações em programas e plataformas que tradicionalmente não são frequentados por candidatos democratas. Essa estratégia visa quebrar barreiras e conquistar segmentos do eleitorado que podem ser decisivos nos estados-chave.Outro elemento central da estratégia de Harris é a necessidade de se apresentar ao eleitorado de forma mais pessoal e autêntica. Diferentemente de Biden, que já tinha um reconhecimento significativo antes de sua candidatura, Harris ainda está se apresentando a muitos americanos. A campanha reconhece que, à medida que mais pessoas conhecem sua história e suas propostas, sua popularidade tende a crescer. Nesse sentido, Harris tem enfatizado sua origem de classe média e sua trajetória como filha de mãe trabalhadora. Ao compartilhar suas experiências pessoais, ela busca criar conexões emocionais com eleitores que se sentem desconectados da política tradicional.IndecisosOs desafios, porém, são significativos. A estreita margem nas pesquisas, combinada com a possibilidade de erros históricos nas previsões – como ocorreu em 2016 e 2020 –, significa que nada está garantido. A campanha de Harris está ciente de que precisa não apenas manter sua base de eleitores, mas também persuadir os indecisos e talvez até conquistar alguns eleitores que tradicionalmente votam nos republicanos.Eventos recentes, como revelações controversas sobre figuras políticas alinhadas a Trump, podem influenciar a percepção pública e oferecer oportunidades para Harris fortalecer sua posição nos estados-chave. A campanha está atenta a essas dinâmicas e pretende aproveitá-las ao máximo.A eleição presidencial de 2024 é, sem dúvida, uma das mais intensas e imprevisíveis da história recente dos Estados Unidos. Com os candidatos empatados nas pesquisas e cada voto potencialmente decisivo, as próximas semanas serão cruciais. Kamala Harris está adotando uma estratégia que combina crítica contundente a Donald Trump com esforços para ampliar seu apelo junto a diversos segmentos do eleitorado. Sua capacidade de se conectar com os eleitores, apresentar propostas claras e aproveitar as oportunidades que surgirem poderá ser determinante para o resultado final.Independentemente do resultado, esta eleição servirá como um estudo de caso sobre a eficácia das estratégias de campanha em um ambiente político altamente polarizado e sobre a importância dos estados-chave no sistema eleitoral americano. A trajetória de Kamala Harris e sua abordagem inovadora podem redefinir as estratégias políticas futuras e oferecer insights valiosos sobre como conquistar o eleitorado em tempos de intensa divisão política.
Será a Alemanha uma ameaça para o restante da Europa? Calma: não estou falando de uma guerra, embora graças ao conflito na Ucrânia muitos países do continente, inclusive a Alemanha, estejam aumentando seus orçamentos militares. Estou falando de um outro campo de batalha: a economia. Flavio Aguiar, analista político, de Berlim para a RFINa semana passada uma parte de uma das principais pontes da cidade de Dresden, na província da Saxônia, quebrou-se durante a madrugada e desabou no rio Elba. Equipes de engenharia passaram o fim de semana trabalhando febrilmente para remover os destroços, pois teme-se uma inundação com a cheia do rio, graças a intensas chuvas e neve precoce em sua cabeceira e sobre alguns de seus afluentes.Ouvi no rádio o comentário de um economista dizendo que esta era uma metáfora perfeita para a economia alemã. Esta vem desabando e a queda vem provocando um efeito cascata no continente, devido ao fato de que muitos outros países dependem das importações da e exportações para a Alemanha, cuja economia ainda é a mais forte da Europa.Depois de um longo período de prosperidade no começo do século XXI, os problemas da economia alemã começaram com a pandemia da COVID-19, que afetou seriamente o comércio, os serviços e os transportes. De início pequenos e médios estabelecimentos fecharam suas portas e, em seguida, a crise chegou às grandes lojas de departamentos. Para complicar mais a situação, uma parte dos consumidores acostumou-se a fazer compras pela internet. Os efeitos mais dramáticos da pandemia passaram, mas o hábito de comprar à distância não.Guerra na Ucrânia agravou a situaçãoAté hoje grandes lojas estão fechando filiais pelo país afora. A situação se agravou com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A Alemanha aderiu ao fornecimento de armas, ao apoio financeiro ao governo de Kiev e às sanções econômicas contra a Rússia. Os gasodutos Nord Stream 1 e 2, este último em construção, que traziam o gás russo para a Alemanha foram sabotados em setembro de 2022, num episódio até hoje não esclarecido. Em consequência de todo este processo, o fornecimento do gás russo foi interrompido bruscamente, atingindo seriamente a indústria alemã, que começou a encolher.Insumos agrícolas que vinham da Ucrânia também foram prejudicados pela guerra. O custo da energia subiu vertiginosamente, o dos alimentos também. A economia alemã se retraiu e o país se encontra agora à beira do abismo de uma recessão prolongada.Segundo Franciska Palma, analista da londrina Capital Economics, a queda na economia alemã começou em 2018 e se agravou a partir de 2020 e depois de 2022, e não há sinais de pronta recuperação. Em 2023, a economia do país caiu em 0,3%. A previsão para 2024 é de crescimento zero. Apesar dos esforços do governo, a situação não deve melhorar em 2025.Para responder à crise, Berlim deseja promover a biotecnologia, as tecnologias verdes, a Inteligência Artificial e as indústrias da defesa, isto é, militares. Mas está amarrado pelo princípio de que a dívida pública, ou déficit orçamentário, não pode ultrapassar os 0,35% do Produto Interno Bruto (PIB).Houve uma queda de braço interna à coalizão do governo, formada pelo SPD socialdemocrata, os Verdes e o liberal FDP (de Freie Demokratische Partei). Os Verdes e o SPD queriam aumentar o percentual da dívida pública em relação ao PIB, mas o FDP fechou questão e ganhou a parada: só permaneceria no governo se os 0,35% fossem mantidos.DesindustrializaçãoO resultado de tudo é que a Alemanha entrou num processo acelerado de desindustrialização, arrastando consigo o continente todo. De julho de 2023 a julho de 2024 a produção industrial alemã caiu em 5,45%, índice superado apenas pela queda do setor na Hungria ( -6,4%) e na Estônia ( -5,8%). O recuo global foi de 2,2% na Zona do Euro e de 1,7% na União Europeia.Um sinal agudo da crise apareceu na Volkswagen, empresa culturalmente ligada à identidade alemã. Acossada também pela queda nas importações chinesas e pela concorrência deste país dentro da Europa, pela primeira vez em seus quase 90 anos de existência a empresa anunciou a disposição de fechar unidades de produção para equilibrar as contas. A montadora também anunciou a decisão de romper um acordo trabalhista de 30 anos com o sindicato dos trabalhadores, que protege salários e empregos. Como o sindicato tem uma forte representação no Conselho Diretor da empresa, a batalha promete ser dura. Como também a luta pela recuperação e pelo equilíbrio na economia alemã e europeia promete ser tenaz e longa.
No que promete ser um dos confrontos mais intensos e inesperados da política americana, Donald Trump e Kamala Harris vão finalmente se enfrentar. Com o cenário montado no National Constitution Center, na Filadélfia, a expectativa é alta, não só pelo histórico dos dois candidatos, mas também pelas circunstâncias inusitadas que colocaram Harris na disputa. E se depender do eleitorado, o entusiasmo não poderia ser maior. Thiago de Aragão, analista políticoHá menos de dois meses para as eleições, Harris conseguiu algo que parecia impossível: reverter a vantagem confortável de Trump nas pesquisas após a saída de Joe Biden da corrida presidencial. O atual chefe da Casa Branca, que viu sua campanha desmoronar depois de uma performance desastrosa no debate anterior, passou o bastão para sua vice, mudando completamente o rumo da disputa. Em menos de dois meses, ela foi capaz de transformar um cenário sombrio em uma eleição acirrada.Mas o que está em jogo no próximo debate? E será que Harris, com sua trajetória de promotora, vai conseguir confrontar o ex-presidente no palco?A primeira grande polêmica envolve a ausência de microfones abertos. Harris, cuja habilidade de argumentação afiou nos tribunais, claramente favorece debates com interações mais diretas, e sua campanha já expressou insatisfação com o formato escolhido. Em uma carta enviada à ABC, o time de Harris deixou claro que o formato sem microfones abertos colocaria a vice-presidente em desvantagem, evitando que Trump seja confrontado diretamente.Por outro lado, o time de Trump se mostrou confiante, aceitando as regras impostas pela ABC sem grandes questionamentos. Seria essa a tática de Trump para se esquivar das investidas mais contundentes de Harris? Ele, afinal, tem um histórico de usar interrupções e ataques diretos como estratégia, e a ausência de microfones abertos pode limitar esse estilo combativo.Embora Harris tenha conseguido recuperar pontos nas pesquisas, muitos de seus aliados ainda a consideram a “zebra” neste debate. E com razão. Afinal, Trump tem mais experiência em debates gerais – essa será sua sétima vez em um palco presidencial. Sua equipe, no entanto, parece ter adotado uma abordagem mais tranquila em relação à preparação. O ex-presidente decidiu não utilizar um “sparring” para simular o estilo de Harris, preferindo o seu infame “policy time,” em que ele discute políticas de forma informal com assessores.Já o lado de Harris não deixou nada ao acaso. Sua equipe de preparadores inclui veteranos do Partido Democrata, como Rohini Kosoglu e Karen Dunn. Além disso, ela teve a vantagem de contar com conselhos de peso, como os do próprio Biden e de Hillary Clinton, os únicos dois democratas a enfrentarem Trump diretamente. A pergunta que fica no ar é: será que toda essa preparação vai fazer frente ao estilo imprevisível de Trump?Temas em discussão e desafiosUma das maiores cartas de Trump é sua capacidade de capitalizar em temas econômicos e de imigração, áreas nas quais ele, historicamente, teve vantagem sobre Biden. O desafio de Harris será distanciar-se das falhas da administração Biden e convencer o eleitorado de que ela representa uma alternativa melhor. A boa notícia para a vice-presidente é que suas medidas centristas, como sua promessa de combater os gigantes dos supermercados, têm encontrado ressonância entre eleitores preocupados com a alta dos preços.Mas, ao mesmo tempo, Trump não se cansa de tentar associar Harris às políticas impopulares de Biden, como a retirada caótica das tropas americanas do Afeganistão. Sua tática será tentar fazer com que Harris “carregue” os erros da administração anterior, mesmo que Biden fosse o presidente na época.No entanto, Harris não vai deixar essa narrativa se solidificar facilmente. Ela já atacou Trump por transformar o que deveria ser um tributo aos soldados americanos mortos no Afeganistão em um “espetáculo político,” depois que o ex-presidente gravou vídeos de campanha em um cemitério militar. Essa troca de farpas será provavelmente intensificada no debate.Outro ponto sensível será a forma como Trump abordará Harris no palco. Seus assessores já demonstraram preocupação de que o estilo agressivo de Trump pode soar mal quando confrontado com uma mulher. Em 2020, Harris mostrou que sabe se defender em situações como essa. Quem não se lembra de seu famoso “Senhor Vice-Presidente, eu estou falando” durante o debate com Mike Pence?Trump, no entanto, parece alheio a essa preocupação. Ele já começou a tecer comentários racistas e sexistas sobre Harris, o que pode acabar alienando ainda mais eleitoras – uma demografia com a qual Trump já tem dificuldades. Com 58% de avaliação negativa em uma pesquisa recente da ABC/Ipsos, a questão é se Trump está jogando para sua base ou tentando realmente conquistar eleitores indecisos.Seja qual for o resultado, o debate entre Trump e Harris será um dos mais comentados da história recente dos Estados Unidos. De um lado, um ex-presidente que tenta, a todo custo, manter sua narrativa de “outsider” enquanto ataca sem filtros. Do outro, uma vice-presidente com um histórico de enfrentamentos afiados, pronta para mostrar que pode não só desafiar Trump, mas também se estabelecer como uma figura independente dentro do Partido Democrata.O palco está montado, as estratégias estão em ação. Agora resta ver quem vai conseguir dominar o centro do palco e, com ele, o coração dos eleitores americanos.
O governo alemão decidiu endurecer sua política em relação a refugiados considerados em situação ilegal no país. Na semana passada, já houve a deportação de um primeiro grupo para seu país de origem, o Afeganistão. Flávio Aguiar, analista políticoA decisão aconteceu na sequência de um atentado a facadas na cidade de Solingen, perto de Colônia e Bonn, a antiga capital da Alemanha Ocidental. O atentado deixou um saldo trágico de três mortos e vários feridos, alguns com gravidade. A polícia deteve um suspeito, um cidadão sírio que havia pedido asilo no país, mas foi negado. O acusado desapareceu, só reaparecendo no trágico incidente em Solingen.Ele foi admitido na Bulgária e de lá passou para a Alemanha. O governo alemão aprovou sua deportação para a Bulgária, que concordou com a decisão, mas ela acabou não acontecendo devido ao desaparecimento do acusado.A organização Estado Islâmico divulgou um vídeo em que reivindicava a autoria de atentado como uma “vingança” pelo que estava acontecendo com os palestinos na Faixa de Gaza.Seguiu-se um tumulto político, em que o líder do principal partido de oposição, Friedrich Merz, da União Democrata Cristã, acusou de negligência o governo do chanceler Olaf Scholz, do Partido Social Democrata (SPD, na sigla em alemão), e propôs uma ação conjunta para solucionar o problema.Surpreendentemente o chanceler aceitou a proposta, o que levantou receios de que sua coalizão de governo, formada também pelo Partido Verde e o Partido Liberal Democrático (FDP, na sigla em alemão), rachasse. Isto não aconteceu, pois os líderes deste partido apoiaram a decisão de Scholz.Na Alemanha, há mais de 50 mil ordens de deportação contra refugiados que tiveram seus pedidos de asilo negados. Entretanto, destas, até o momento, somente pouco mais de 20 mil foram efetivadas. A esmagadora maioria delas atinge originários de nações africanas ou do Oriente Médio, muitos dos quais entraram na União Europeia através de outros países, dirigindo-se depois para a Alemanha.Scholz comprometeu-se a restringir essa possibilidade de acesso, além de agilizar as deportações já aprovadas e o julgamento dos casos pendentes.Avanço da oposição tradicional e da extrema direitaO debate e as medidas restritivas ocorrem num momento em que acontecem eleições regionais em estados do antigo Leste alemão, a Turíngia e a Saxônia, e o governo federal se vê acossado pelo crescimento nas intenções de voto da oposição tradicional - a União Democrata Cristã - e da extrema direita, no partido Alternative für Deutschland (AfD), Alternativa para a Alemanha. Este último radicalmente voltado contra imigrantes e refugiados, vem ditando a pauta sobre esta questão no país, assim como acontece em outras nações do continente.Para complicar o cenário, a economia alemã vem se retraindo nos últimos tempos, num processo de desindustrialização, apesar dos esforços por parte do governo de revitalizar a indústria bélica alemã.Neste quadro, à beira do abismo de uma recessão prolongada, a busca de bodes expiatórios prospera. Os candidatos que costumam ser os alvos são os emigrados provenientes do chamado Terceiro Mundo, em particular os muçulmanos, sobre os quais sempre paira a suspeita, na maioria das vezes indevida, de adesão a grupos terroristas.Organizações de defesa dos direitos humanos, como a Caritas, vêm manifestando preocupação de que esta circunstância possa desandar num quadro de discriminação generalizada.Estes últimos episódios na Alemanha se dão em um contexto continental de crescimento das discriminações contra estrangeiros não europeus. Como aconteceu recentemente no Reino Unido, onde um ataque fatal contra crianças, também a facadas, deflagrou uma série de vandalismos contra mesquitas e centros de acolhimento de imigrantes, insuflados por mensagens mentirosas, de extrema direita, sobre a identidade do assaltante, divulgadas na internet.Durante os dez anos e meio do governo da chanceler Angela Merkel, da União Democrata Cristã, a Alemanha destacou-se por uma política generosa de acolhimento de imigrantes e refugiados de todas as partes do mundo. Agora esta abertura vem se fechando gradativamente, em parte por pressões de seu próprio partido, que, em disputa com o Alternative für Deutschland, arrisca voltar-se, também como a coalizão governamental, para políticas que revigoram o fantasma da xenofobia e da discriminação.
As fake news, que se espalharam rapidamente nas redes sociais, estão na origem da onda de violência anti-imigração que sacudiu o Reino Unido no início do mês de agosto. Os protestos aconteceram após o assassinato de três meninas a facadas, no noroeste da Inglaterra. Flávio Aguiar, analista políticoNo último dia 29 de julho, por volta do meio-dia, na cidade de Southport, no noroeste da Inglaterra, um jovem de 17 anos irrompeu numa festa infantil numa escola de dança e ioga, organizada por uma de suas professoras. Armado de faca, o jovem provocou a morte de três crianças, de 6, 7 e 9 anos, feriu outras oito e mais dois adultos que tentaram protegê-las, inclusive a professora que organizara o evento.A polícia e ambulâncias acorreram em minutos. Preso em flagrante, o jovem foi identificado como Axel Rudakubana, de 17 anos, cidadão britânico, filhos de pais vindos de Ruanda, na África. Como se tratava de um menor de idade, por motivos legais a polícia não divulgou imediatamente sua identidade.Na sequência, as especulações mentirosas começaram a circular nas redes sociais.Em 24 horas, proliferaram 27 milhões de acessos a uma mensagem que identificava o suspeito como muçulmano (o que não era verdade) e dava-lhe um falso nome. Outras mensagens o identificavam como um refugiado ilegal, que chegara à Inglaterra de barco, em busca de asilo.“Influencers” e um site identificado como Channel3Now (que depois se desculparia) disseminaram rapidamente tais mensagens. Um destes “influencers” bradava que “a alma do homem ocidental se dilacera quando invasores matam suas filhas”.Uma outra mensagem - gerada por Inteligência Artificial - punha em cena na plataforma X (antigo Twitter), a imagem de alguns homens que vestiam trajes supostamente muçulmanos, armados de facas, perseguindo uma criança, tendo o Parlamento Britânico ao fundo, com os dizeres “precisamos proteger nossas crianças”.Protestos violentos anti-imigrantesDe imediato, em Southport, uma multidão passou a atacar uma mesquita, entrando em confronto com a polícia. Segundo fontes policiais, o protesto foi insuflado por pessoas que não moravam na cidade. Ataques contra mesquitas e centros de acolhimento de refugiados e imigrantes se espalharam por diversas cidades da Inglaterra, inclusive as populosas Londres e Manchester.O caso chamou a atenção de pesquisadores sobre a relação entre grupos extremistas, sobretudo de extrema direita, e o uso da Inteligência Artificial.Pesquisadores do Middle East Media Research, dos Estados Unidos, chamaram a atenção para seu relatório que mapeia dezenas de casos semelhantes. O relatório mostra que tais grupos, valendo-se de ferramentas da Inteligência Artificial, gravam as vozes e as imagens de artistas, políticos e outras pessoas famosas. Depois disseminam mensagens falsas como se fossem deles, afirmando a supremacia branca e atacando negros, muçulmanos e judeus.Segundo o pesquisador do grupo NETLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, grupos extremistas de direita disseminam mensagens com instruções que chegam até a ilustrar a fabricação de armas e explosivos, sempre com o uso de ferramentas da Inteligência Artificial. Na América Latina os alvos preferenciais de tais mensagens têm sido o México, a Colômbia, o Equador e a Argentina.Os pesquisadores do tema chamam a atenção para o fato de que este uso da Inteligência Artificial também se dissemina entre organizações terroristas como o Estado Islâmico e a Al Qaïda.Na Inglaterra, os ataques arrefeceram depois que grandes manifestações antirracistas tomaram as ruas de dezenas de cidades britânicas. Pesquisas mostraram que 85% da população rejeitava a violência. Entretanto, 42% dos entrevistados reconheciam a legitimidade de manifestações com aquelas motivações, desde que fossem pacíficas.
Na sequência da abertura dos Jogos Olímpicos em Paris tivemos a oportunidade de assistir um verdadeiro festival de fanatismo, de intolerância confusa e também de ignorância difusa. Um dos quadros apresentados no desfile inaugural provocou uma enxurrada furiosa de críticas, alegando que ele ofendia sentimentos cristãos ao parodiar o quadro “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci. Flávio Aguiar, analista políticoAs críticas vieram de várias fontes, de vários ângulos, e pelo menos de dois continentes: Europa e América, todas preocupadas em proteger a fé religiosa contra a suposta impiedade sacrílega dos organizadores e atores do festim olímpico.Protagonizaram as falas bispos e arcebispos conservadores da Igreja Católica, políticos da extrema direita francesa, italiana e também da brasileira e até o candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, numa entrevista à Fox News.Um detalhe curioso: na entrevista, Trump não menciona o quadro olímpico. Quem o faz é a jornalista que formula as perguntas. Ele se limita a comentar: “um desastre”, “uma desgraça”, etc. Este detalhe sugere que a jornalista está ansiosa por induzir o comentário, o que, de certo modo, já desqualifica a entrevistadora, a entrevista e a opinião do entrevistado.Os críticos sugeriam que, ao parodiar o famoso quadro, o desfile insultava o evento bíblico que ele representa, a narrativa da última ceia de Jesus Cristo com os apóstolos, logo antes da crucificação. No entanto, os críticos demonstraram que não souberam “ler” nem a pintura de Da Vinci, nem o quadro cênico do desfile.Há diferenças substantivas entre eles. Para começo de conversa, no quadro de Da Vinci há treze figurantes, incluindo o Cristo. No quadro olímpico há um número bem maior de personagens, pelo menos 17 somente no primeiro plano. Neste, se no centro da mesa há um personagem com uma espécie de halo prateado em torno da sua cabeça, quem preside de fato a cena, no primeiríssimo plano, é uma representação de deus do vinho - o Dionísio grego ou o Baco dos romanos - cujo corpo está coberto por uma cor azul, coisa completamente estranha ao quadro de Da Vinci.Neste quadro quem preside a cena é o próprio Cristo, cujo corpo, de braços abertos e caídos, representa um triângulo - imagem alegórica da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo.Também deve-se levar em conta que Da Vinci focaliza um momento específico da Última Ceia, aquele em que Jesus anuncia que um dos apóstolos o trairá. É, portanto, um momento extraordinariamente dramático do evento.Nada disto transparece na representação parisiense. Ela não representa uma ceia, mas um banquete prazeroso e alegre. Não há traição nela. Pelo contrário, há festa e congraçamento.Há um único elemento comum entre ambas as manifestações artísticas: o vinho. Mas em Da Vinci, na sequência do momento focalizado, ele representará o sangue do próprio Cristo. No desfile, ele não é consagrado nem santificado, mas é apresentado pelo deus Dionísio como um símbolo do prazer inebriante.Em resumo, se há uma referência artística por trás do desfile, não se trata da Última Ceia, do quadro “O Festim dos Deuses”, do pintor holandês Jan van Bijlert, do século XVII, hoje no Museu Magnin, em Dijon, na França. Ele representa o banquete do casamento da ninfa ou nereida Tétis com o rei Peleus, pais do guerreiro Aquiles, do poema “A Ilíada”, de Homero. O banquete é presidido pelo deus Apolo, ou Hélios, com um halo luminoso ao redor da cabeça, e tem, no primeiro plano, o deus Dionísio, ou Baco, além de um sátiro dançarino.Convenhamos: este quadro tem mais a ver com a tradição da antiguidade grega, fundadora dos jogos olímpicos clássicos que inspiraram os modernos, do que o quadro de Da Vinci. Porém, o fanatismo religioso dos críticos da extrema direita fundamenta também sua ignorância preconceituosa, comprovando que eles nada entendem de história da arte, nem de jogos olímpicos, muito menos de tradição bíblica.Por último, mas não menos importante, deve-se ressaltar que a fúria dos críticos foi alimentada pelo fato dos atores da representação, na abertura dos jogos, serem personalidades da cena LGBTQIA+ francesa, o que acrescenta ao seu bolo indigesto o fermento do preconceito homofóbico e sexista.
Kamala Harris, vice-presidente dos Estados Unidos, agora é a candidata preferida do Partido Democrata para as eleições presidenciais de 2024. Com Joe Biden fora da corrida, surgem várias questões sobre como Harris pode conquistar a vitória e quem poderia ser seu parceiro ideal como vice. Vamos explorar os caminhos possíveis para sua vitória e os nomes que podem fortalecer sua chapa Thiago de Aragão, analista políticoA vitória de Harris vai depender, como sempre, do desempenho nos "estados-pêndulo" ["swing states", em inglês]. Em 2020, Joe Biden garantiu a Casa Branca vencendo em seis desses estados mais disputados: Michigan, Wisconsin, Pensilvânia, Nevada, Arizona e Geórgia. A exceção foi a Carolina do Norte, que ficou com Trump.Harris tem um desafio específico no Rust Belt (Michigan, Wisconsin e Pensilvânia), onde Biden se deu bem entre os eleitores brancos da classe trabalhadora. Harris pode ter dificuldades com esse grupo, mas tem um trunfo com os eleitores não-brancos, o que abre possibilidades em estados com grandes populações negras (Geórgia e Carolina do Norte) e hispânicas (Arizona e Nevada).Cenários para a VitóriaPerdendo os Três Estados do Rust Belt Se Harris perder Michigan, Wisconsin e Pensilvânia, ela precisa vencer nos quatro estados do Sun Belt (Geórgia, Carolina do Norte, Nevada e Arizona) para alcançar 275 votos no Colégio Eleitoral. Isso exige um aumento significativo no apoio dos eleitores negros e hispânicos.Vitória em Michigan, Perda em Wisconsin e Pensilvânia Com os 15 votos eleitorais de Michigan, Harris teria duas opções: vencer tanto na Geórgia quanto na Carolina do Norte, ou uma combinação de Geórgia, Nevada e Arizona.Vitória em Michigan e Pensilvânia, Perda em WisconsinNesse cenário, Harris ficaria com 260 votos eleitorais e precisaria vencer em um dos estados do Sun Belt (Geórgia, Carolina do Norte ou Arizona) para garantir a vitória.A escolha do vice-presidente é essencial para complementar a chapa e atrair eleitores dos estados-chave. Vários nomes estão sendo considerados, incluindo governadores de estados swing e figuras moderadas que podem ampliar o apelo de Harris.Josh Shapiro, governador da Pensilvânia, é um dos favoritos. A Pensilvânia é um estado crucial, e Shapiro tem uma sólida reputação como moderado pragmático, o que poderia garantir os 19 votos eleitorais do estado, frequentemente decisivos em eleições presidenciais.Outro nome em destaque é Tim Walz, governador de Minnesota. Conhecido por suas políticas progressistas e por atrair eleitores jovens, Walz tem um histórico de sucesso em questões como a legalização da maconha recreativa, controle de armas e direitos LGBTQ+. Sua presença na chapa poderia energizar a base progressista do Partido Democrata e fortalecer o apoio no Centro-Oeste.JB Pritzker, governador de Illinois, também é uma opção viável. Como uma estrela em ascensão dentro do Partido Democrata, Pritzker traz um histórico de sucesso econômico e políticas progressistas que podem atrair uma ampla gama de eleitores.Seu trabalho em fortalecer a economia de Illinois e em políticas de saúde pública pode servir como um poderoso contraponto aos ataques republicanos e ajudar a mobilizar eleitores em estados-chave.Pete Buttigieg, atual secretário de Transporte e ex-prefeito de South Bend, Indiana, tem uma experiência significativa em campanhas presidenciais e é visto como um nome capaz de atrair eleitores moderados e jovens. Buttigieg se destacou nas primárias de 2020, demonstrando uma capacidade notável de comunicação e engajamento com diversos grupos demográficos. Sua inclusão na chapa poderia ajudar a ampliar o apelo de Harris entre eleitores indecisos e reforçar a imagem de renovação e diversidade do Partido Democrata.Finalmente, o senador Mark Kelly do Arizona é outro nome que está sendo considerado para a vice-presidência. Como ex-astronauta e veterano militar, Kelly traz uma narrativa de serviço público e sacrifício que ressoa fortemente com muitos eleitores. Sua eleição para o Senado em um estado tradicionalmente republicano como o Arizona demonstra sua capacidade de conquistar apoio bipartidário. A presença de Kelly na chapa poderia solidificar o apoio no Arizona e em outros estados do Sun Belt, regiões onde Harris precisa performar bem para garantir a vitória.Desde que se tornou a candidata presumível, Harris tem mostrado desempenho superior ao de Biden em estados-chave. Pesquisas recentes indicam que Harris está reduzindo a vantagem de Trump, especialmente em estados do Sun Belt como Geórgia e Arizona. Em comparação com Biden, Harris está conseguindo reconquistar eleitores jovens e minorias, segmentos em que Biden vinha enfrentando dificuldades.A decisão de Biden de sair da corrida parece ter sido bem recebida pela maioria dos eleitores, aumentando o entusiasmo e a coesão dentro do Partido Democrata. A campanha de Harris arrecadou US$ 200 milhões na primeira semana após o anúncio de Biden, com um influxo significativo de novos doadores e voluntários.Kamala Harris enfrenta um caminho desafiador, mas não impossível, para a vitória presidencial. Com múltiplos caminhos para alcançar os 270 votos no Colégio Eleitoral, sua estratégia dependerá de equilibrar a manutenção do apoio nos estados do Rust Belt e expandir seu apelo nos estados do Sun Belt. A escolha de um vice-presidente adequado será crucial para complementar suas forças e cobrir suas fraquezas.As pesquisas iniciais são promissoras e mostram que Harris tem potencial para se sair melhor do que Biden, especialmente entre eleitores não-brancos e jovens. A campanha está apenas começando, mas os sinais iniciais são de uma disputa acirrada e competitiva.
Existe um “Centrão” na Europa? Existe, embora com um sentido diferente do brasileiro. No nosso país a palavra designa um grupo enorme de parlamentares no Congresso Nacional que, entra governo, sai governo, fisiologicamente negociam apoios, favores, verbas e orçamentos em proveito próprio. Mas na Europa a situação é diferente. Flávio Aguiar, analista político, de BerlinO que existe na Europa é um agrupamento de partidos e blocos designados na mídia como centro-direita, centro e centro-esquerda, que, de eleição em eleição, domina o cenário político em diferentes combinações e coalizões.Fazem parte do “Centrão Europeu” partidos considerados conservadores, como o Renaissance de Emmanuel Macron na França ou a União Democrata Cristã na Alemanha, liberais, como o FDP (de Freie Demokratische Partei) na Alemanha, os partidos social-democratas ou até alguns socialistas. Eles governam de acordo com uma cartilha liberal na economia, cultuam uma austeridade fiscal ao lado de programas sociais mais ou menos moderados, manifestam preocupações ambientais, ao lado de um protecionismo agrário em alguns casos, guardam uma fidelidade à OTAN e, mais recentemente, manifestam uma vigorosa hostilidade à Rússia, apoiando vigorosamente o governo de Kiev na guerra contra Moscou.Este bloco central da política europeia sofreu alguns abalos, sobretudo na França e na Alemanha. Do lado francês, o partido do presidente Emmanuel Macron amargou uma derrota contundente para a extrema-direita de Marine Le Pen na eleição para o Parlamento Europeu em junho passado, coisa que fez o chefe do executivo dissolver a Assembleia Nacional, convocando novas eleições. Neste pleito, seu partido demonstrou uma certa recuperação, mas ficou em segundo lugar diante da Nova Frente Popular dos partidos de esquerda, que desta vez atraíram o Partido Socialista. Do lado alemão sucedeu algo semelhante, com o Partido Social Democrata do chanceler Olaf Scholz sendo superado pelo Alternative für Deutschland (AfD), de extrema-direita, embora o partido mais votado, na realidade, tenha sido a tradicional e conservadora União Democrata Cristã. Grande parte da mídia apontou o crescimento da extrema-direita como o fato mais marcante daquelas eleições.Ao mesmo tempo o costume da rotatividade na presidência no Conselho Europeu, órgão que reúne os chefes de estado da União Europeia, fez que ela coubesse agora ao chefe do governo húngaro Viktor Orbán, de extrema-direita. O primeiro-ministro provocou alguns abalos sísmicos na União, fazendo visitas inesperadas a Vladimir Putin (embora precedida por uma ida a Kiev), à China e a Donald Trump nos Estados Unidos. Aquelas balizas consensuais dos blocos dominantes no continente pareciam correr o risco de desmoronar.Mas a reação do que chamamos metaforicamente de “Centrão europeu” não tardou, capitaneada por partidos da direita ou centro-direita convencional. Na semana passada ela propiciou duas vitórias importantes para este grande bloco que, apesar dos pesares, continua hegemônico na União Europeia.A primeira vitória veio com a eleição de Yaël Braun-Pivet para a presidência da Assembleia Nacional francesa. Do mesmo partido do presidente Emmanuel Macron, com 220 votos ela derrotou o comunista André Chassaigne, da Nova Frente Popular, e Sébastien Chenu, do Reunião Nacional de Marine Le Pen, que tiveram, respectivamente, 207 e 141 votos. O partido de Macron conseguiu fazer uma aliança com os conservadores do partido Os Republicanos, preocupados estes em impedir a ascensão das esquerdas ao governo.A segunda vitória veio com a reeleição, no Parlamento Europeu, de Ursula von der Leyen, da União Democrata Cristã alemã, para a presidência da Comissão Europeia, órgão executivo da União. Inicialmente a política alemã ensaiou uma aproximação com a primeira-ministra italiana, Georgia Meloni, de um dos blocos de extrema-direita no Parlamento Europeu. A iniciativa pegou mal. O chanceler alemão, Olaf Scholz, ameaçou retirar seu apoio a ela, caso a aproximação com Meloni prosseguisse. Ursula von der Leyen recuou, e passou a procurar os outros blocos, considerados “democráticos”, incluindo os Verdes, ao lado dos socialistas e social-democratas e os liberais.Ela conseguiu um apoio maciço, se reelegendo com 401 votos favoráveis, bem mais do que os 383 votos que obteve quando de sua primeira eleição, em 2019. Desta vez houve 284 votos contrários a ela, além de 22 votos nulos ou em branco. Mas ela garantiu, portanto, mais cinco anos como presidenta da Comissão Europeia.Entretanto deve-se assinalar que o cenário político da União Europeia está passando por rearranjos significativos. Viktor Orbán está rearticulando a extrema-direita no Parlamento Europeu, demonstrando a pretensão de se tornar uma liderança europeia e mundial.Na França, depois da derrota na disputa pela presidência da Assembleia Nacional, o bloco de esquerda, a Nova Frente Popular, reagiu e na eleição subsequente, para a Mesa Diretora, conseguiu 12 dos 21 postos em disputa. Ou seja, tanto von der Leyen quanto Emmanuel Macron terão de agir com muita cautela e habilidade para continuar seus mandatos com sucesso.
O recente atentado contra Donald Trump nos Estados Unidos não é apenas um choque para a política americana, mas um alerta global sobre a fragilidade das instituições democráticas. Este incidente, que resultou em uma morte e ferimentos no próprio Trump, ecoa momentos sombrios da história política mundial e nos força a refletir sobre os desafios enfrentados pelas democracias modernas. Thiago de Aragão, analista políticoEm primeiro lugar, as falhas de segurança que permitiram este ataque são alarmantes. Como é possível que, em 2024, com toda a tecnologia e recursos disponíveis, um atirador consiga se posicionar para atacar um ex-presidente durante um comício público? Esta falha não é apenas um problema para os EUA, mas um lembrete para todas as nações sobre a importância de proteger líderes políticos e o processo democrático.Mais preocupante ainda é o que este atentado revela sobre o clima político atual, não apenas nos Estados Unidos, mas em muitas democracias ao redor do mundo. A polarização extrema, alimentada por anos de retórica inflamatória e desconfiança mútua, tem criado ambientes férteis para a violência política em diversos países. É um fenômeno global que exige atenção e ação coordenada.O ataque a Trump também levanta questões importantes sobre o controle de armas e segurança pública. Enquanto cada país tem suas próprias leis e culturas em relação às armas, incidentes como este destacam a necessidade de um debate sobre como equilibrar liberdades individuais e segurança coletiva.Para os apoiadores de Trump, este atentado provavelmente servirá como um ponto de união, reforçando narrativas de perseguição política. No entanto, é crucial que observadores internacionais resistam à tentação de interpretar este incidente através de lentes partidárias. A violência política é uma ameaça para todas as sociedades democráticas, independentemente de ideologias. Essa tentativa de assassinar Trump mostra, acima de tudo, que a polarização política, seja nos Estados Unidos, França ou Brasil, representa uma vitória da estupidez humana, onde indivíduos enxergam políticos como santos ou demônios, entes sagrados, membros de suas famílias, enquanto o rival é um inimigo. O chamado por unidade e calma após o atentado é louvável, mas palavras sozinhas não são suficientes. O mundo precisa de ações concretas para reduzir tensões políticas, melhorar a segurança de líderes e candidatos, e abordar as raízes da violência política nas sociedades modernas.À medida que os Estados Unidos se aproximam de suas eleições, este atentado serve como um alerta para todas as nações democráticas. A violência política não é um problema isolado de um único país, mas um desafio global que requer uma resposta coordenada.O ataque a Trump é um momento definidor não apenas para a América, mas para todas as democracias. É hora de líderes e cidadãos de todas as nações se unirem em defesa dos valores democráticos e contra a ameaça da violência política. As próprias narrativas eleitorais nos EUA em 2024 representam conteúdos pobres e superficiais, sejam de Trump, Biden ou qualquer um. Este incidente nos lembra que a democracia é um sistema frágil que requer constante vigilância e cuidado. Ele nos convida a refletir sobre como podemos fortalecer nossas instituições democráticas, promover o diálogo construtivo e combater a polarização extrema em nossas próprias sociedades.
Toda mídia comentava que a França faria um “zig” à direita no segundo turno das eleições legislativas. Eis que no domingo ela fez um “zag” à esquerda, para surpresa geral. Flávio Aguiar, analista político Isto quer dizer que a estratégia do presidente Macron, dissolvendo o parlamento nacional depois da derrota na eleição para o parlamento europeu, deu certo?Sim e não. Sim: sua coligação saiu de uma derrota humilhante no primeiro turno para um honroso segundo lugar no turno decisivo. Não: se ele não está às voltas com o projetado governo da extrema direita, ele está agora às voltas com um projetado governo da coligação de esquerda.Como nenhuma coligação obteve maioria absoluta, não se pode dizer que haja um vencedor insofismável na eleição, embora a coligação de esquerda tenha sido a mais votada. Mas fica claro que há um perdedor: o Reunião Nacional (Rassemblement National) de Marine Le Pen e Jordan Bardella, que, de vitorioso no primeiro turno, se viu reduzido a um humilhante terceiro lugar no segundo.Por outro lado, se não conseguiram a maioria absoluta, as esquerdas francesas desenvolveram uma tática claramente bem sucedida. Em primeiro lugar, por se unirem entre si, superando as tradicionais divergências. Em segundo lugar por desenvolverem, sempre que possível, uma frente comum com candidatos e eleitores da centro-direita de Macron, para barrar o caminho da extrema direita. Segundo comentários na mídia francesa, em 134 distritos eleitorais candidatos de esquerda abriram mão da sua candidatura em favor de um candidato da centro-direita melhor colocado, enquanto em outros 82 aconteceu o contrário, com o candidato macronista desistindo, em favor de um candidato de esquerda.O que está por vir?O que acontecerá a seguir? Ainda é cedo para se ter um quadro definido. O presidente Macron declarou que “respeitará o resultado da eleição”. A lógica desta declaração diz que ele deverá chamar a liderança do bloco de esquerda para formar o governo. Como isto vai repercutir em seu próprio partido, o Renaissance (Renascimento), que se mostrava dividido a este respeito?Do outro lado do espectro político, o que fará a direita tradicional, do partido Les Republicains (Os Republicanos), que deve permanecer com algo entre 60 e 65 deputados dos 577 no parlamento? Vão se unir ao Rassemblement para formar um bloco de oposição? Tentarão puxar uma ala de macronistas para seu lado?Muita água ainda vai correr por debaixo destas pontes antes de termos respostas concretas.Uma coisa é certa. O resultado da eleição francesa derrotou o preconceito contra estrangeiros, imigrantes ou refugiados. Logo antes do segundo turno, reportagens na mídia europeia davam conta da importância de temas constantemente veiculados nos meios de comunicação, ligando imigração e violência, para consolidar o apoio às propostas xenófobas do Reunião Nacional, sobretudo nas pequenas cidades do meio rural.Esta vitória do respeito às diferenças é muito significativa na Europa de hoje, aliada à promessa do governo trabalhista recentemente eleito no Reino Unido de suspender a deportação de imigrantes considerados irregulares para Ruanda, na África.A xenofobia, ou seja, o preconceito contra os estrangeiros, é uma ameaça que paira sobre a Europa inteira, dando força aos partidos de extrema direita.
Reportagem recente publicada pela agência de notícias Deutsche Welle (Matheus Gouvea de Andrade, “Exportação de agrotóxicos banidos na U. E. segue em alta”, 19/06/2024) denuncia que vários pesticidas proibidos na União Europeia continuam a ser produzidos em países-membros para serem exportados para o Sul Global. E o Brasil está entre os maiores consumidores desses produtos perigosos. Flávio Aguiar, analista políticoEm 2020 a Comissão Europeia, órgão executivo da União, comprometeu-se a promover o banimento dessa produção. Entretanto, especialistas e ONGs que atuam sobre o tema apontam que aparentemente este compromisso foi “esquecido”. E a produção e a exportação continuam volumosas e lucrativas.Estudo publicado em abril deste ano (“EU Pesticides Ban. What could be the consequences?” - “O banimento dos pesticidas da União Europeia. Quais seriam as consequências?”) revela que 36% dos pesticidas importados da União Europeia pelo Brasil são proibidos na Europa. No caso do México e do Peru este percentual chega a 50%.No nosso país a campeã deste tipo de importação e uso nocivos é a soja, produzida pelo agronegócio de norte a sul e de leste a oeste no país.Um dos produtos produzidos na U.E. e importados pelo Brasil é a atrazina que, além de usada na soja, é utilizada também na produção de milho. Uma concentração excessiva deste produto pode prejudicar as glândulas e órgãos do sistema endócrino, que produz hormônios para o organismo, afetando a capacidade reprodutiva, podendo causar alguns tipos de câncer. Além disto, a atrazina pode contaminar a água e afetar por meio desta a vida dos insetos, como as abelhas. Ela está proibida na União Europeia desde 2004, mas o Brasil continua a importação do produto em larga escala. Junto com os glifosatos ela é um dos produtos mais importados pelo país, a partir da União Europeia, chegando a 200 toneladas por ano.Segundo relatório da ONG Public Eye, somente em 2018 a União Europeia exportou quase 82 mil toneladas de 41 pesticidas proibidos em seu território. Os campeões desta exportação foram pela ordem, Itália, Alemanha, Holanda, França, Espanha e Bélgica.No caso da Alemanha, 8,2% de suas exportações de agrotóxicos eram de produtos proibidos na União Europeia. Em 2022, a Alemanha exportou 18.360 toneladas de pesticidas proibidos na União. Segundo João Camargo, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e co-autor do estudo sobre exportações europeias de agrotóxicos proibidos no continente, isto demonstra um comportamento decepcionante por parte do Partido Verde, que integra o atual governo de Berlim.Brasil importa produtos proibidos em outros paísesA pesquisadora Márcia Montanari, da Universidade Federal do Mato Grosso, aponta que 30% dos pesticidas usados no Brasil estão proibidos em outros países. São 40 substâncias perigosas, 11 das quais provêm da União Europeia.Reportagem também da Deutsche Welle, publicada em 2022, afirma que a cada 2 dias morre um brasileiro por contaminação com agrotóxicos, sobretudo crianças e adolescentes de até 19 anos, segundo dados da ONG Friends of Earth Europe.A pesquisadora da Universidade de São Paulo Larissa Mies Bombardi, hoje vivendo na Europa, autora dentre outras obras do livro “Agrotóxicos e colonialismo químico”, publicado em 2023, corrobora o dado, lembrando que as maiores vítimas deste tipo de envenenamento são crianças, mulheres, indígenas e camponeses. Segundo ela, o Brasil padece também de subnotificações sobre o tema. Para cada caso notificado, lembra, pode haver até outros 50 não notificados por serem seus efeitos menos dramáticos ou não identificados corretamente.Por fim, cabe ressaltar que estas exportações europeias de produtos nocivos à saúde têm também um efeito bumerangue. Muitos produtos, como a soja, importados de outros países, trazem de volta para a Europa os efeitos nocivos das contaminações.
Donald Trump, em um movimento ousado, lançou uma coalizão destinada a atrair eleitores negros. A iniciativa "Americanos Negros por Trump" foi inaugurada com uma mesa redonda comunitária em Detroit, apresentando figuras proeminentes como o deputado da Flórida Byron Donalds e o ex-secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano Ben Carson. Ambos são cotados como possíveis companheiros de chapa de Trump, que não hesitou em sugerir suas perspectivas de vice-presidência durante o evento. Thiago de Aragão, analista políticoApesar dessa aproximação, a sinceridade da campanha de Trump é questionável. Suas alegações de conquistas sem precedentes para os americanos negros durante sua presidência são, no mínimo, imprecisas. Embora Trump tenha alcançado taxas recordes de desemprego e pobreza entre os negros durante seu mandato, esses recordes foram superados sob a administração de Biden. Mas a sugestão de Trump de que essas conquistas são incomparáveis sob Biden é enganosa e omite convenientemente dados recentes que mostram um desempenho melhor sob seu sucessor.Além disso, o histórico de comentários inflamados de Trump sobre cidades predominantemente negras e suas críticas bem documentadas a essas áreas contradizem seus esforços atuais. Ele O ex-presidente rotulou Baltimore como um “lugar nojento, infestado de ratos e roedores” e, mais recentemente, descreveu Milwaukee como “horrível” em uma reunião privada, supostamente referindo-se a questões de crime e fraude eleitoral.A estratégia de Trump parece se basear na exploração de uma insatisfação percebida entre os eleitores negros com o Partido Democrata. Apesar do contínuo apoio majoritário de Biden entre os eleitores negros, há uma queda notável em suas avaliações de aprovação, particularmente entre os homens negros mais jovens. As pesquisas indicam que o apoio negro a Biden caiu de 94% no início de seu mandato para 55% em pesquisas recentes. Simultaneamente, o apoio a Trump entre os eleitores negros mostrou um ligeiro aumento, com algumas pesquisas sugerindo até 17% de apoio, um aumento significativo em relação aos 8% que ele obteve em 2020.No entanto, essa mudança não é necessariamente um endosso a Trump, mas sim um reflexo de uma insatisfação mais ampla com o Partido Democrata. Líderes negros proeminentes criticaram a administração Biden por não comunicar efetivamente suas conquistas políticas às comunidades negras, levando a uma lacuna de percepção que a campanha de Trump busca explorar.Em um paradoxo revelador, Trump enfatiza suas realizações econômicas, mas ignora o impacto negativo de suas próprias políticas sobre as comunidades negras. Durante seu mandato, cortes em programas sociais e a falta de apoio a políticas de reforma criminal afetaram negativamente muitos americanos negros. Além disso, sua retórica divisiva e a frequente demonização de cidades de maioria negra contrastam com sua atual tentativa de conquistar esses eleitores.Em última análise, a aproximação de Trump com os eleitores negros é uma mistura complexa de política estratégica e desinformação. Embora seus esforços possam influenciar um segmento do eleitorado, as implicações mais amplas de suas táticas e seu alinhamento com sua retórica passada permanecem controversas e sujeitas a escrutínio. À medida que a eleição se aproxima, o impacto dessas manobras no voto negro será um fator crucial nos estados decisivos.
Na primeira semana de junho de 2024 dois acontecimentos balizaram o que poderá ser o novo mapa político da União Europeia pelos próximos anos. O primeiro foi a comemoração dos 80 anos do desembarque dos aliados ocidentais na Normandia, em 6 de junho de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. O outro foi a eleição do novo Parlamento Europeu, de 6 a 9 de junho, nos 27 países membros da União. Flávio Aguiar, analista políticoAs estrelas do primeiro evento foram o presidente norte-americano Joe Biden e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, convidado especial para a ocasião. O chefe da Casa Branca discursou durante 12 minutos na praia batizada como Omaha, do alto do penhasco de Pointe du Hoc, imortalizado cinematograficamente no filme “O resgate do soldado Ryan”.Em seu discurso Biden elogiou os soldados que ali “defendiam a democracia”, dizendo que hoje se deveria honrar sua memória e valor.Foi como se, num jogo de vôlei, levantasse a bola para Zelensky bater. Em seu discurso, o presidente ucraniano comparou o presidente russo, Vladimir Putin, a Hitler, fazendo um paralelo entre a Alemanha nazista e a Rússia de hoje.Definiu-se assim um dos vetores principais do mapa político da União Europeia. Cabe à União seguir a diretriz norte-americana, corporizada na OTAN, que define a Rússia como seu alvo principal no momento, através do apoio financeiro e logístico ao governo de Kiev, contra Moscou.Nos últimos dias de maio, o primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, seguindo a diretriz de Washington, autorizou o governo de Kiev a atacar alvos em território russo com o armamento fornecido por Berlim, escalando a participação alemã na guerra.No dia 5 de junho, o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, do SPD, dirigindo-se ao Bundestag, o Parlamento Federal, afirmou que, devido à ameaça russa, a Alemanha deve preparar-se para a guerra até 2029, defendendo também a volta do serviço militar obrigatório.Europa crescentemente militarizadaEstes são sinais de uma Europa crescentemente militarizada. Alemanha, França, Polônia e outros países estão incrementando seus arsenais militares. Por ora estas armas estão apontadas para o definido inimigo comum, a Rússia. Qual serão os caminhos futuros desta militarização?Aqui entra em cena o segundo acontecimento deste começo de junho: a eleição do novo Parlamento Europeu. A se confirmarem as previsões, os blocos de extrema-direita deverão crescer substancialmente: o “Identidade e Democracia”, liderado pelo Rassemblement francês e a Lega italiana, e o “Conservadores e Reformistas”, onde pontifica o Fratelli d'Italia, da primeira-ministra Georgia Meloni. Com seu nacionalismo de estilo europeu, xenófobo e excludente, eles poderão dar as tintas nas pautas do parlamento eleito, mesmo que juntos não definam uma maioria. Serão um termômetro de tendências futuras em eleições nacionais. O conservador Bloco Popular Europeu, que reúne representantes dos partidos da direita tradicional, define a “autodefesa da Europa” como uma de suas prioridades. A Aliança Progressista de Socialistas e Democratas e o Bloco dos Verdes/Aliança Livre têm, entre suas prioridades, o isolamento de Putin e de sua Rússia. O Bloco chamado de Renew Europe (assim mesmo, em inglês) nada diz sobre questões militares. O Bloco de Esquerda, minoritário, é o único que ousa colocar, entre suas palavras de ordem, a de “Paz”.Pode-se assim prever, por este termômetro, que a militarização do continente terá amplos ventos favoráveis no futuro próximo e de médio prazo. E o currículo pregresso de uma Europa militarizada não é nada animador. Já aconteceu de um fanático isolado encontrar um arquiduque e sua esposa pela frente e, assassinado-os, deflagrar um conflito com 20 milhões de mortos e outros tantos de desaparecidos, feridos e mutilados.
O crescimento da extrema direita nas intenções de voto em vários países europeus, aliado à organização sistemática de encontros de seus líderes, dá a impressão de que seus partidos formam um bloco coeso. Na verdade não é bem assim. Eles têm, é claro, bandeiras comuns, que também se manifestam com nuances e variantes em outros continentes, como no caso de Donald Trump nos Estados Unidos, Javier Milei e Jair Bolsonaro na América Latina. e Benjamin Netanyahu e seu governo em Israel. Flávio Aguiar, analista políticoEntres essas bandeiras comuns estão: o nacionalismo xenófobo, que se volta contra imigrantes e refugiados, sobretudo os que vem de fora da Europa; a crescente islamofobia, substituindo na Europa, mas nem sempre, o antissemitismo; uma desconfiança acentuada em relação à União Europeia, pelo menos em seu estado atual; um discurso que se apoia num moralismo retrógrado e não raro em argumentos religiosos; oposição a movimentos identitários, como feminismo, valorização da diversidade cultural e outros; ações e discursos de ódio e violência contra aqueles que consideram ser seus adversários e inimigos; condenação da política e dos políticos tradicionais, sejam conservadores, liberais ou de esquerda.Ter bandeiras comuns não significa necessariamente ter um programa comum, nem mesmo uma identidade histórica compartilhada. “A Europa para os europeus”, eis um slogan que mobiliza as extremas direitas, da Ucrânia a leste até Portugal a oeste, do Círculo Polar ao norte até o Mediterrâneo ao sul.Mas as “Europas” do Chega português, do Vox espanhol, do Reunião Nacional (RN) francês, da Liga e do Irmãos da Itália em Milão ou Roma, do AfD (Alternativa para a Alemanha) na Alemanha, para citar alguns exemplos, não têm o mesmo significado, nem as mesmas raízes históricasCrise do bloco de extrema direita no Parlamento EuropeuUm atestado desta diversidade, que pode ser conflituosa, está na recente crise que se abateu sobre o bloco de extrema direita no Parlamento Europeu, o “Identidade e Democracia”, às vésperas da eleição para aquela casa legislativa continental, prevista para acontecer de 06 a 09 de junho.A crise começou com uma entrevista dada por Maximilian Krah, um dos principais deputados do AfD alemão no Parlamento Europeu e candidato à reeleição, ao jornal italiano "La Repubblica". Nela o deputado declarou que um membro da antiga SS, a principal organização paramilitar nazista, “não era necessariamente um criminoso”.A declaração caiu como uma bomba no bloco. A líder francesa Marine Le Pen, do RN, retrucou imediatamente que se recusaria, dali por diante, a trabalhar em conjunto com membros do AfD. Com apoio da Liga italiana, todos os membros do AfD terminaram sendo literalmente expulsos do bloco parlamentar. Dentro do próprio partido alemão houve um terremoto: a direção decidiu que Krah não poderia mais participar de seus comícios e da campanha para o Parlamento, embora o tenha mantido como candidato.A crise mostra, de um lado, como a declaração do deputado alemão pode prejudicar o esforço de Le Pen para se aproximar do centro político e apagar a pecha de antissemitismo do partido fundado em 1972 por seu pai, Jean-Marie Le Pen, como Frente Nacional. Esse mesmo esforço de se aproximar do centro é compartilhado pela Liga italiana.Também evidencia o temor do próprio AfD de cair mais nas intenções de voto, que já foram de 23% e hoje estão em torno de 15%, ainda confortáveis, mas numa queda considerável.Pautas conservadorasO Chega português cultiva a memória do salazarismo; o Vox espanhol, a do franquismo. Muitos partidários do Vox se vêem como herdeiros dos Cavaleiros Templários da Idade Média, acentuando um conteúdo fortemente religioso. O mesmo não se pode dizer da Liga ou do Irmãos da Itália, embora este compartilhe bandeiras com movimentos conservadores católicos, como a do antiaborto ou a do anticasamento de pessoas do mesmo sexo.A religião em si também não faz parte do menu principal do francês RN, nem mesmo do AfD alemão. Em compensação, ela é muito mais forte na vizinha Polônia e em outros países do antigo Leste europeu. Em alguns destes países, incluindo a Ucrânia, observa-se uma maior tolerância em relação ao uso, por parte de militantes de extrema direita, de símbolos que lembram os do antigo nazismo.Há um traço novo, entretanto, na paisagem. Ao contrário do que aconteceu nas primeiras décadas do século passado, a extrema direita não vem encontrando apoio entusiástico em meios empresariais europeus, que preferem apostar, de um modo geral, nos políticos do conservadorismo tradicional, austeros nos orçamentos sociais, às vezes liberais nos costumes e sempre neoliberais na economia.Tais meios não vêem com agrado a desconfiança da extrema direita com relação a um dos dogmas da União Europeia, cuja liberdade no que toca à circulação de capitais representa, no fim de contas, um "very good business" (um negócio muito vantajoso). Por isto, em quase todos os países a força maior dos extremistas vêm de classes médias urbanas e rurais, ou mesmo de camadas pobres que se sentem ameaçadas, buscando “inimigos” facilmente identificáveis, como estrangeiros ou culturalmente diversos.
As promessas inflamáveis de deportação em massa do ex-presidente Donald Trump ecoam novamente à medida que a eleição presidencial de 2024 se aproxima. Embora sua retórica anti-imigração possa ressoar com certos eleitores, uma análise mais profunda revela as potenciais repercussões catastróficas para a economia americana. Thiago de Aragão, analista político da RFI em WashingtonAs políticas de Trump ameaçam agravar a inflação, exacerbar a escassez de trabalhadores e mergulhar o país em uma espiral de dívida federal insustentável.A visão de Trump de uma América com 15 a 20 milhões de imigrantes a menos ignora a realidade demográfica e econômica do país. Os imigrantes desempenham um papel vital na manutenção de indústrias-chave e no preenchimento de lacunas críticas no mercado de trabalho.Deportações em massa desencadeariam uma onda de perturbações, deixando empresas lutando para preencher vagas e forçando-as a aumentar salários e preços. Essa escassez de mão-de-obra alimentaria novas pressões inflacionárias, minando a recuperação econômica e frustrando os americanos já sobrecarregados pelo alto custo de vida.Ironicamente, as mesmas preocupações com a inflação que impulsionam o apelo de Trump seriam exacerbadas por suas próprias políticas. Apesar de algum alívio recente, os efeitos persistentes da inflação elevada continuam a pressionar os orçamentos familiares, com os custos de habitação, alimentação e transporte permanecendo obstinadamente altos. No entanto, em vez de oferecer soluções substantivas, a agenda de imigração de Trump ameaça intensificar esses mesmos problemas de acessibilidade.Custos astronômicosAs implicações fiscais das políticas de imigração de Trump são igualmente alarmantes. Deportar milhões de imigrantes custaria centenas de bilhões de dólares, potencialmente ultrapassando US$ 1 trilhão em uma década.Esses custos astronômicos viriam em cima dos planos de Trump de tornar permanentes os cortes de impostos de 2017 e reduzir ainda mais as taxas corporativas, medidas que poderiam adicionar trilhões à dívida nacional. Sem um plano claro para compensar esses déficits, os Estados Unidos arriscam uma crise fiscal que poderia desestabilizar a economia global.Economias regionais vibrantes como Califórnia e Texas, onde os imigrantes compõem uma parcela significativa da força de trabalho, seriam particularmente atingidas pelas políticas de Trump. Setores inteiros enfrentariam paralisações e cidades poderiam experimentar um colapso econômico, com consequências em cascata que são difíceis de quantificar completamente.Em uma era de desafios econômicos complexos, as políticas de imigração e fiscais de Trump oferecem respostas simplistas que ameaçam aprofundar os problemas que ele afirma resolver.Ao ignorar o papel crucial dos imigrantes na economia americana e promover planos fiscais insustentáveis, Trump arrisca mergulhar o país em uma espiral de inflação crescente, escassez de mão-de-obra e dívida federal insustentável.Naturalmente, a imigração ilegal é um problema sério e deve ser contido pelo governo dos EUA. No entanto, as propostas e ideias de Trump são simplistas, populistas e eleitoreiras.
Muito se fala sobre o “discurso do ódio” no Brasil, associado quase sempre a ações de militantes de extrema direita contra seus adversários políticos. Nestas manifestações, por vezes parece que esta violência pertence exclusivamente à sociedade brasileira. Não é verdade. Flávio Aguiar, analista políticoDentro de um mês se realizarão as eleições para o Parlamento Europeu e nota-se um crescimento do “discurso e das ações de ódio” na Alemanha, também por parte de militantes de extrema direita, contra quem considerarem ser adversários políticos.Recentemente houve alguns incidentes graves desta natureza nas cidades de Dresden e Berlim.Em Dresden houve dois incidentes. No primeiro, a política Anne-Katrin Haubold, do Partido Verde, foi hostilizada por um grupo de jovens enquanto afixava cartazes de propaganda para a votação do Parlamento Europeu. A agressão foi filmada, e vê-se o grupo investir contra os cartazes que ela pregava, além de a agredirem verbalmente.O segundo episódio foi mais grave. Aparentemente o mesmo grupo - de quatro jovens - atacou o político do Partido Social-Democrata Matthias Ecke, também enquanto este fazia campanha para a eleição de junho. Matthias Ecke ficou ferido com alguma gravidade, sofrendo fraturas no osso facial e numa de suas cavidades oculares. A polícia identificou os quatro agressores, de idade entre 17 e 18 anos, e pelo menos um deles já era conhecido por suas ideias de extrema direita.Em Berlim, na terça-feira (7), a atual secretária da Economia da Prefeitura (aqui chamada de “Senado”) e ex-prefeita da cidade Franciska Giffey, do Partido Social-Democrata, foi agredida dentro de uma biblioteca no bairro de Rudow. Um homem de 74 anos atacou-a pelas costas, e bateu em sua cabeça e em seu pescoço com uma sacola pesada. Giffey sofreu ferimentos leves e o agressor foi detido. A polícia declarou ainda desconhecer os motivos da agressão.Max Reschke, porta-voz do Partido Verde no estado da Turíngia, na antiga Alemanha Oriental, declarou que ameaças e ataques contra militantes de seu partido e de outros de esquerda ou de centro-esquerda são constantes. Detalhou que durante manifestações dos agricultores da região, que, dentre outras reivindicações, pediam o afrouxamento das exigências ambientais, tornou-se comum encontrar estrume nas portas dos gabinetes de políticos do partido. Muitas vezes esses gabinetes tiveram suas janelas quebradas por pedradas e também suas caixas de correio foram destruídas.O porta-voz declarou que agora é norma que políticos em campanha não andem nem viajem desacompanhados.Aumento da violênciaA pedido da Fundação Körber de Proteção à Democracia, a agência Forsa realizou uma pesquisa com 6.400 prefeitos ou presidentes de câmaras municipais na Alemanha sobre o tema da violência política. Duas mil e quinhentas delas ou deles afirmaram que ou já sofreram violência e ameaças ou sabem de casos que aconteceram na sua jurisdição.Sven Tetzlaff, dirigente regional da Fundação Körber, ressaltou que este aumento da violência não se restringe à Alemanha, mas é observado em toda a Europa e nos Estados Unidos, motivado por ressentimentos e frustrações contra políticos e a política de um modo geral.Quanto à Alemanha especificamente, há analistas que ressaltam a semelhança deste crescimento com o que aconteceu nas décadas de 1920 e 1930 do século passado, durante o período conhecido como República de Weimar, cidade onde se reuniu a Constituinte alemã depois do fim da Primeira Guerra Mundial e da queda da monarquia. Naquele momento, grupos paramilitares de extrema direita patrocinaram uma violência crescente contra seus adversários até a ascensão do governo e do regime nazistas no começo de 1933.Apesar das analogias, notam-se algumas diferenças entre as duas situações, pelo menos de momento. Por exemplo, em maio de 1933 o subprefeito do bairro de Kreuzberg, em Berlim, o social-democrata Carl Herz, tio-avô do político brasileiro Tarso Genro, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul, foi arrancado de seu gabinete por militantes dos SA (Sturmabteilung), ou Camisas Pardas, e espancado no meio da rua. A polícia acorreu e prendeu... a vítima (!), que acabou se exilando com parte da família na Inglaterra. Hoje não é tal arbitrariedade policial que se observa nestes casos de violência na Alemanha. Mas há quem tema que a história se repita, e não como farsa, mas como nova tragédia.
A busca do ex-presidente Trump por um candidato a vice ganhou destaque, com um recente encontro em seu resort Mar-a-Lago, fornecendo insights sobre possíveis escolhas. O evento, que também serviu para arrecadação de fundos, recebeu uma variedade de concorrentes, cada um mostrando seus pontos fortes e recebendo atenção de Trump e sua equipe. Thiago de Aragão, analista políticoAs avaliações de Trump, reveladas em uma gravação de áudio, refletem um processo de escolha estratégica. Senadores como Marco Rubio e Tim Scott receberam comentários positivos, destacando sua habilidade política e eficácia como representantes. Enquanto isso, figuras como J.D. Vance e a deputada Elise Stefanik foram notadas por seus relacionamentos em evolução com Trump e sua crescente influência dentro do partido.O processo de seleção não se resume apenas ao talento político, mas também a considerações estratégicas. O encontro de doadores e legisladores republicanos destaca a importância da habilidade de angariar fundos, uma característica notada em potenciais candidatos como o senador Tim Scott e o governador da Dakota do Norte Doug Burgum. Além disso, considerações sobre diversidade, como sugerido pelo comentário de Trump sobre o deputado Byron Donalds, adicionam camadas à matriz de tomada de decisão.No entanto, a busca pelo vice-presidente não é sem complexidades. Preocupações com desafios legais, como os relacionados à elegibilidade do senador Rubio devido a questões de residência, adicionam uma dimensão jurídica às deliberações. As divagações de Trump sobre escolhas potenciais fora do comum também sugerem a imprevisibilidade da decisão final.À medida que o processo de seleção do vice-presidente se desenrola, o cenário político continua a evoluir, apresentando tanto oportunidades quanto desafios para os candidatos em potencial. Por exemplo, os esforços agressivos da governadora de Dakota do Sul, Kristi Noem, têm sido objeto de escrutínio, especialmente em relação a piadas controversas (para se dizer o mínimo) em seu livro, e declarações atrapalhadas sobre encontros com líderes estrangeiros. Tais incidentes destacam o delicado equilíbrio que os candidatos devem encontrar entre projetar força e evitar controvérsias que possam prejudicar sua viabilidade como companheiros de chapa.Além disso, o julgamento criminal em andamento envolvendo o ex-presidente Trump adiciona outra camada de confusão à busca pelo vice-presidente. Depoimentos de testemunhas-chave e a análise de batalhas legais anteriores destacam as considerações legais e de reputação em jogo. Embora os desafios legais de Trump possam não afetar diretamente o processo de seleção do vice-presidente, eles contribuem para a narrativa mais ampla que cerca sua administração e podem influenciar a percepção pública dos potenciais companheiros de chapa.Nesse contexto, a seleção do vice-presidente se torna não apenas uma jogada política estratégica, mas também um reflexo das batalhas legais em curso de Trump e das dinâmicas mais amplas dentro do Partido Republicano.
Na semana passada, o Parlamento do Reino Unido aprovou, depois de uma longa batalha, a lei que permite a deportação de refugiados e migrantes considerados ilegais para Ruanda, na África Central, uma ex-colônia alemã e belga. O primeiro-ministro Rishi Sunak, do Partido Conservador, se empenhou na aprovação da lei, retida durante meses num impasse entre a Câmara Baixa, ou dos Comuns, e a Câmara Alta, ou dos Lordes, e também entre governo e partidos de oposição, além de ser alvo de uma crítica constante por parte de ONGs de defesa dos direitos humanos.O ministro do Interior (Home Secretary), James Cleverly, saudou a aprovação da lei como “um marco no esforço para deter o afluxo de barcos” que tentam trazer refugiados do continente para o Reino Unido através do Canal da Mancha, e também como uma “afirmação da soberania britânica” contra “bloqueios impostos por tribunais europeus”.Já Denise Delic, da seção do Reino Unido do Comitê Internacional de Ajuda aos Refugiados, considerou a medida “ineficaz, desnecessariamente cruel e demasiadamente cara”. Ela argumentou que seria melhor aprimorar a rede de proteção aos refugiados e seus familiares, estabelecendo, por exemplo, rotas legais e seguras.Já há uma lista de 350 possíveis deportados e o primeiro voo para Ruanda está previsto para o mês de julho. Cada candidato a ser deportado receberá uma carta comunicando-lhe esta condição, e deve se seguir uma série de possibilidades de recursos até a decisão definitiva por parte de um tribunal.Há estimativas de que com todos os procedimentos legais e a compensação devida a Ruanda, cada deportado custará cerca de 180 mil libras esterlinas aos cofres britânicos, o equivalente a quase R$ 1,2 milhão.Os críticos da medida lembram que nos anos 90 do século passado Ruanda foi palco de uma guerra civil e do genocídio contra a etnia Tutsi, com uma estimativa de até 800 mil mortos e de até 500 mil mulheres estupradas. O atual governo de Ruanda pede, como condição para aceitar os refugiados, que o Reino Unido deporte para lá cinco acusados de participarem deste genocídio.A medida do governo londrino vem na esteira de uma série de iniciativas discutíveis e polêmicas na Europa sobre a questão dos refugiados e imigrantes. No ano passado a Comissão Europeia e o governo italiano tentaram negociar com a Tunísia um esforço por parte de seu governo para conter as levas de refugiados que passam por seu território em busca dos barcos no Mediterrâneo que os levem para o continente europeu, em troca de uma ajuda financeira para equilibrar as contas do país. A iniciativa não prosperou, mas foi suficiente para levantar uma série de críticas por parte dos defensores dos direitos humanos.No começo de abril deste ano o Parlamento Europeu aprovou por estreita margem um chamado Novo Pacto sobre Migração e Asilo envolvendo os países da União Europeia.A resolução compreende um conjunto de cinco leis visando agilizar e uniformizar os procedimentos para concessão ou rejeição de asilo, além de prever uma sistemática e relocação dos aceitos entre os países da União, com objetivo de aliviar a carga concentrada nos países do sul do continente. Abre também a iniciativa de negociar medidas de contenção com os países africanos que estão na rota dos migrantes, como novamente a Tunísia, além da Mauritânia, Marrocos e Egito. ONGs criticam a medida, dizendo que ela vai mais restringir do que proteger direitos de pessoas em situação de vulnerabilidade.A controvérsia vai continuar. Em 2023 a Europa recebeu 1,14 milhão pedidos de asilo. Além disto detectou 380 mil migrantes em condições consideradas como “irregulares”. Destes, 105 mil receberam ordem de deportação, e apenas 28 mil foram de fato deportados.No Reino Unido há quem preveja que aquela nova lei de deportação aprovada vai implicar uma verdadeira fuga de candidatos a sua aplicação para a clandestinidade, evitando o recebimento das intimações. No fim de semana, o primeiro-ministro Rishi Sunak afirmou, comemorando, que muitos imigrantes estão saindo do Reino Unido para a Irlanda, com medo da deportação.Por outro lado, esta situação, ao mesmo tempo, massiva e delicada, ressalta a importância de medidas estruturais que promovam a paz, evitando guerras internacionais ou civis e combatendo a pobreza e a violência contra pessoas e grupos vulneráveis, como crianças, mulheres e idosos.
Em um momento de polarização política aguda nos Estados Unidos, a recente aprovação pela Câmara dos Representantes de um pacote de ajuda externa de US$ 95 bilhões de dólares para Ucrânia, Israel e Taiwan reflete não apenas a complexidade da diplomacia internacional, mas também as tensões internas que fervem no coração da política americana. Thiago de Aragão, analista políticoA medida, que também inclui uma possível proibição nacional do aplicativo TikTok, marca uma tentativa audaciosa do presidente da Câmara, Mike Johnson, de consolidar apoio bipartidário, mesmo colocando seu cargo em risco diante da ala anti-intervencionista de seu partido. O pacote de ajuda, que contempla US$ 60 bilhões para a Ucrânia, 26 bilhões para Israel e 8 bilhões para a região do Indo-Pacífico, não apenas reafirma o compromisso dos EUA com seus aliados, mas também ajusta o foco na política externa americana para uma postura mais assertiva contra adversários como Rússia e Irã. A inclusão de medidas para o confisco de ativos russos congelados e novas sanções contra o Irã amplia o alcance deste pacote, posicionando os Estados Unidos firmemente contra o que muitos veem como agressões autoritárias que desafiam os valores ocidentais.No entanto, o que realmente captura a atenção é o teatro político que se desenrolou no plenário. Democratas acenando bandeiras ucranianas e republicanos de extrema-direita vaiando ilustram a divisão visceral sobre o papel dos EUA no mundo. Essa cena reflete uma luta interna dentro do Partido Republicano e destaca um dilema significativo para os políticos americanos: até que ponto eles estão dispostos a apoiar ações externas em um momento em que a política interna está tão fraturada? A abordagem de Johnson, desafiando a ala mais dura de seu partido e contando com o apoio dos democratas para aprovar a medida, é particularmente reveladora. Ele representa uma facção dentro do Partido Republicano que vê a necessidade urgente de apoiar aliados globais como um imperativo moral e estratégico, contrapondo-se à crescente influência de figuras como Marjorie Taylor Greene, que veem tais medidas como um desperdício de recursos que poderiam ser melhor utilizados internamente. Soberania nacional x responsabilidade globalEsta legislação também levanta questões críticas sobre o equilíbrio entre soberania nacional e responsabilidade global. Por um lado, há uma clara necessidade de apoiar nações que compartilham os ideais democráticos e enfrentam ameaças significativas à sua soberania. Por outro, as ações dos EUA são vistas por alguns como uma imposição de sua vontade sobre outros, com pouco respeito pelas consequências a longo prazo para os países receptores da ajuda. Além disso, a dinâmica interna dentro dos EUA sugere uma potencial reconfiguração das políticas de ajuda externa. A forte oposição interna ao pacote e a subsequente necessidade de compromissos destacam a complexidade de governar uma nação tão diversificada e dividida. Essa divisão é um microcosmo das tensões globais, onde as ações dos EUA são tanto um catalisador para a cooperação quanto um ponto de contenda. Em resumo, enquanto o pacote de ajuda de US$ 95 bilhões é uma declaração de intenções significativa, também é um prisma através do qual as lutas internas e os desafios externos dos Estados Unidos são vividamente ilustrados. Esta é uma era em que os ideais americanos de liberdade e democracia estão sendo tanto promovidos quanto questionados, tanto dentro quanto fora de suas fronteiras. O resultado dessas tensões não apenas moldará o futuro da política externa americana, mas também definirá o papel dos Estados Unidos no palco mundial nos próximos anos.