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De segunda a sexta-feira, sob forma de entrevista, analisamos um dos temas em destaque na actualidade.

Rfi - Miguel Martins


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    França: Vazio de poder na véspera de mega-protesto

    Play Episode Listen Later Sep 9, 2025 11:03


    Esta segunda-feira, 08 de Setembro, ao final do dia, a moção de confiança, pedida pelo primeiro-ministro francês François Bayrou, foi chumbada na Assembleia Nacional com 364 votos contra e 194 votos a favor. A votação levou à queda do executivo, que, de resto, já era previsível. A França mergulha assim num novo impasse político em vésperas de mobilização social. A grande incógnita é, segundo Eric Monteiro, professor de Ciências Políticas da Universidade de La Rochelle, saber quem terá condições para formar um Governo capaz de garantir estabilidade até 2027. Como é que fica a França?  A França fica numa situação previsível porque era quase certo que o Governo ia cair e imprevisível porque há várias possibilidades. O actual ex-primeiro-ministro, primeiro-ministro demissionário Bayrou, não tinha obrigação nenhuma de pedir o voto de confiança, coisa que fez. E, por isso, encontramo-nos, mais ou menos, na mesma situação da dissolução de há um ano, Junho de 2024, onde não era necessário ter havido dissolução. A situação ficou pior. Estamos outra vez no mesmo quadro, ou seja, um parlamento com, teoricamente, três grandes grupos. Mas são grupos ideológicos: extrema-esquerda, extrema-direita e bloco central. Só que o bloco central decompõe-se em muitos blocos, em mini-blocos. Outra questão é que ninguém vai querer assumir a presidência do Governo tão perto das eleições presidenciais.  Estamos a 18 meses das eleições presidenciais.  Exactamente. No bloco republicano que vai, mais ou menos, do tradicional Partido Socialista ao Les Republicain (Republicanos), passando pelo grupo parlamentar do actual Presidente da República, existem candidatos potenciais. Mas ninguém vai querer assumir a gestão da crise para não queimar as asas e não ter hipóteses de ser eleito em 2027.  Ou seja, para que a única figura que fique ‘queimada', a única figura política ‘queimada' seja Emmanuel Macron? Essa figura já está queimada. A questão já nem se põe. As sondagens ontem, 08 de Setembro, deram que a popularidade dele [Emmanuel Macron] atingiu uma taxa de 15%, ou seja, a mais baixa de toda a V República. Portanto, o papel presidencial até está posto em causa. Aliás, os extremos só querem isso. Querem a demissão do Presidente. A França Insubmissa e o Rassemblement Nacional [União Nacional] de Marine Le Pen só esperam uma coisa: que a situação esteja ingovernável a tal ponto que o presidente não tem outra solução que demitir-se.  A extrema-direita de Marine Le Pen pede a dissolução da Assembleia Nacional e novas eleições legislativas. Emmanuel Macron não quer novas eleições legislativas, devido à impopularidade dele e do seu partido. Arrisca-se a ter um resultado miserável nessas eleições. Por outro lado, os socialistas pedem uma figura de esquerda e a extrema-esquerda, a França Insubmissa pede a demissão de Emmanuel Macron.  Como é que se sai deste bloqueio?  Eu acredito que não haverá dissolução porque, efectivamente, todos têm a perder. Se houvesse uma dissolução hoje, o Rassemblement Nacional [União Nacional] seria o primeiro partido francês, sem dúvida, mas com uma percentagem entre 30% e 35% do Parlamento. Seria uma maioria insuficiente para governar e para validar um orçamento. Claro que o Rassemblement Nacional [União Nacional] tem toda a vontade que haja eleições presidenciais antecipadas, porque a campanha seria só de 35 dias e em 35 dias é impossível, a não ser eles que estão prontos, apresentar um programa de governo e um programa de sociedade para os franceses. Portanto, o bloco republicano, que está contra os extremos, tem que encontrar uma solução para governar. Penso que o consenso para governar será possível. O que falta é o nome da pessoa para dirigir este Governo.  Neste momento há nomes em cima da mesa, desde Xavier Bertrand - que o partido de Marine Le Pen já disse que não aceitaria; a presidente da Assembleia Nacional Yaël Braun-Pivet; a ministra do Trabalho e da Saúde Catherine Vautrin; o ministro da Defesa Sébastian Lecornu, e também o próprio ministro do Interior Bruno Retailleau. É preciso perceber qual destes nomes é que reúne o consenso necessário para aprovar o Orçamento de Estado para o próximo ano. Se não houver consenso, há uma lei especial que será votada, não ao shutdown' como nos Estados Unidos. O que acontece é que o orçamento do ano precedente é reconduzido nas mesmas modalidades para o ano seguinte. Isso permitiria a continuação do funcionamento da função pública, mas não é uma solução. Agora, todos os nomes que disse, Retailleau têm posições muito claras sobre a imigração. Poderia ter a adesão da extrema-direita, mas nunca teria a adesão da esquerda ou da extrema-esquerda. E ele próprio tem pretensões presidenciais. Portanto, duvido que qualquer dos nomes que disse, a não ser Sébastian Lecornu, que é o actual ministro da Defesa, que possa, porque a priori não têm pretensões presidenciais. Mas é complicado, dada a situação geopolítica mundial e ele tem sido um bom ministro da Defesa. Em todo o caso, em Dezembro, o próprio presidente Emmanuel Macron já tinha querido nomear Sébastian Lecornu, é um próximo de Macron. Mas foi nesse momento que François Bayrou se meteu no caminho e se impôs a Macron. Porque há muito tempo que François Bayrou queria ser primeiro-ministro. E não nos esqueçamos que ele vem do bloco mais ao centro, historicamente da direita, e foi um dos principais apoiantes de Macron em 2017. Portanto, não era do partido dele, mas trouxe-lhe o bloco central de centro direita. O que é dramático é a saída do Bayrou da maneira como saiu. Ele podia perfeitamente ter negociado durante o verão um consenso para validar um orçamento e não o fez. Disse: temos que fazer 44 mil milhões de poupança para o orçamento do ano que vem. A União Europeia só perdia 25 mil milhões por ano. E propôs medidas extremamente impopulares no momento em que a população francesa tem um descrédito total em relação aos políticos, qualquer que seja a origem partidária deles. A única expectativa para que haja estabilidade política em França passa por uma verdadeira campanha eleitoral, de vários meses, com um projecto de sociedade para 2027 e que atrás disso haja uma maioria parlamentar. Até aí, a única solução é garantir à União Europeia que a França fará esforços para reembolsar, pelo menos, 25 mil milhões de euros por ano até às presidenciais e que haja um consenso de "não moção" de censura. O que nos falta é o nome.   Pode, por exemplo, Emmanuel Macron fazer aquilo que o ex-primeiro-ministro Gabriel Attal pediu: a nomeação de um negociador para testar as coligações possíveis e pediu também que Emmanuel Macron deveria estar mais aberto à partilha de poder. É exequível? Acho pouco credível. Quem negocia é quem vai formar o Governo. É necessário, que, desde ontem à noite, haja alguém que esteja na sombra já a negociar um compromisso de Governo entre a esquerda progressista, o centro ex-macronista - embora tenham sido eleitos com a etiqueta Macron - e os Republicanos. Duvido muito que uma pessoa faça essa negociação para depois não ser primeiro-ministro. E pode esperar-se um primeiro-ministro ainda hoje para que amanhã não haja um vazio de poder. O movimento “Bloquons tout” [Bloquemos tudo] apela a uma mobilização geral nas ruas esta quarta-feira, há greves marcadas… Acho que nomear hoje seria aumentar a crise. Mas, Emmanuel Macron já teve 15 dias antes do chumbo da moção de confiança do primeiro-ministro, não foi apanhado de surpresa. Já teve algum tempo para pensar e para analisar os diferentes cenários. Mas Macron habituou-nos, desde que é Presidente, quer no primeiro mandato, quer no segundo, que cada vez que nos anuncia que vai rapidamente nomear um primeiro-ministro, demora semanas. Aliás, é o Presidente que demorou mais tempo a nomear governos de toda a V República. Na véspera de um dia de bloqueio nacional, seria insensato nomear alguém, porque, em regra geral, o primeiro-ministro é nomeado para poder formar um Governo e só 15 dias depois é que o Governo está completo. Imagino muito mal o Presidente da República nomear um primeiro-ministro na véspera de movimentos sociais importantíssimos, onde o ministro da Administração Interna tem que estar no gabinete dele a dar ordens. Suponho que não haverá nomeação hoje nem amanhã, depois do movimento social. Depende de como vai o dia amanhã? Só depois é que haverá a nomeação de um primeiro-ministro. Posso me enganar, mas todos os que têm aspirações políticas, ambição presidencial, vejo-os muito mal aceitar hoje a liderança de um Governo que poderia durar só três meses. O que é que se pode esperar do dia de amanhã? Uma mobilização que nos faz lembrar os coletes amarelos? Exactamente. À partida a ideia não era um movimento social que iria bloquear o país. A ideia era bloquear a economia, ou seja, ninguém comprava nada e mostrar que durante um dia podemos não fazer entrar IVA nos cofres do Estado. Isso era mais uma ideia de centro e da direita. Na prática, a extrema-esquerda incita à desobediência republicana e ao levantamento popular. Portanto, amanhã, provavelmente, todas as rotundas vão estar bloqueadas. Eu próprio não poderei dar aulas na minha faculdade. Suponho que os meus estudantes não conseguirão chegar à universidade. É diferente dos coletes amarelos, há um cansaço da população e acho que a própria população não aceitaria meses e meses de bloqueio como houve. Outra coisa, o movimento de amanhã é num dia de semana, ou seja, todas as pessoas que vão manifestar vão meter um dia de greve, vão perder um dia de salário. Portanto, fazer durar uma crise política onde os salários mais baixos iriam perder cinco, dez, 15 dias de salário é impensável, suponho. Espero que não haja destruições de bens públicos, porque é sempre terrível. Mas vai haver, provavelmente. Depois é essa imagem que fica, não a imagem das reivindicações, mas a imagem da destruição. São muito localizadas as destruições. Visto dos Estados Unidos, por exemplo, dá a impressão que a França está em guerra civil. É claro que vai haver confrontos com a polícia, vai haver cenas violentas, mas a França não está em estado de guerra e os franceses não querem isso. Veremos amanhã, mas provavelmente hoje não haverá novo primeiro-ministro nem amanhã, porque amanhã vai ser dia de crise e precisamos de um ministro da Administração Interna para gerir a situação.

    Addis Abeba acolhe II Cimeira Africana sobre o Clima

    Play Episode Listen Later Sep 8, 2025 7:43


    Arrancou esta manhã, 08 de Setembro, a segunda Cimeira Africana sobre o Clima, em Addis Abeba, na Etiópia. Até quarta-feira, 10 de Setembro, são esperados 45 chefes de Estado e de Governo, assim como mais de 25.000 activistas, representantes empresariais e institucionais. Em entrevista à RFI, José Luís, da Plataforma Juvenil para a Acção Climática de Moçambique, destacou a importância do encontro para criar sinergias, trocar experiências e compreender como países africanos, parceiros internacionais e doadores podem apoiar a juventude no reforço da resiliência climática. As alterações climáticas já custam aos países africanos, em média, entre 2 e 5% do PIB por ano, e, até 2030, até 118 milhões das pessoas mais pobres do continente podem vir a sofrer com secas severas, inundações e ondas de calor extremas, segundo a Organização Meteorológica Mundial. Com os grandes encontros internacionais - Assembleia-Geral da ONU, o G20 e a COP 30 - na linha de mira, África não quer apenas sofrer com a crise climática, mas transformá-la numa oportunidade económica. O continente detém 60% do potencial solar mundial e cerca de 40% do potencial global em energias renováveis, além de possuir no subsolo minerais essenciais à transição ecológica. A participar na II Cimeira Africana sobre o Clima encontra-se José Luís, oficial jurídico e gestor de grupos de trabalho da Plataforma Juvenil para a Acção Climática de Moçambique. Em entrevista à RFI, destacou a importância do encontro para criar sinergias, trocar experiências e compreender como países africanos, parceiros internacionais e doadores podem apoiar a juventude no reforço da resiliência climática. “Moçambique é um país muito vulnerável às mudanças climáticas. São as crianças e os jovens que sofrem mais directamente com ciclones e intempéries, muitas vezes ficam sem acesso à educação, já que as escolas acabam por servir de abrigos temporários. O jovem defendeu que a educação climática deveria integrar as estratégias de desenvolvimento do Governo, pois a falta de conhecimento aumenta os riscos para as populações. África é um dos continentes que mais sofre os efeitos do aquecimento global, apesar de contribuir com apenas 4% das emissões mundiais. Moçambique está entre os cinco países mais vulneráveis do mundo. Para José Luís, este cenário exige maior diplomacia africana e negociações directas com os grandes emissores, como a China e os Estados Unidos, para assegurar financiamento climático. É urgente um financiamento específico para África, que tenha em conta a fragilidade das infra-estruturas e permita preparar o continente para choques climáticos. A Cimeira Africana sobre o Clima antecede a COP 30, a realizar-se no Brasil, em Novembro. Para o representante da Plataforma Juvenil para a Acção Climática de Moçambique, esta cimeira de Addis Abeba é uma oportunidade para o continente definir prioridades e chegar ao palco global com uma posição unificada: África deve negociar como uma só voz, identificando as suas reais necessidades e exigindo responsabilidades dos maiores emissores, mas também assumindo os seus próprios compromissos. A reunião decorre até quarta-feira, 10 de Setembro, e pretende reforçar a preparação do No final desta cimeira, os dirigentes africanos devem assinar uma declaração comum para demonstrar a unidade e os compromissos climáticos perante os investidores e a comunidade internacional.

    Lisboa vive "situação absolutamente explosiva" nos transportes

    Play Episode Listen Later Sep 4, 2025 12:04


    O acidente no Elevador da Glória, em Lisboa, possivelmente causado por falhas de manutenção, veio expor a situação dos transportes públicos em Portugal, onde há não só falta de pessoal qualificado, mas também onde os salários são baixos e a maior parte do trabalho é subcontratado. O acidente no secular elevador da Glória, em pleno coração de Lisboa, fez até agora 16 mortos e cinco feridos, números que podem evoluir nas últimas horas. Na origem deste acidente estará possivelmente a quebra do cabo que assegura a ligação entre as duas cabines que constituem o sistema deste elevador, sabendo-se agora que a manutenção desta infra-estrutura tinha sido externalizada para uma empresa privada, uma mudança contestada há vários anos pelos sindicatos da Carris, empresa municipal de transportes da capital portuguesa. Em entrevista à RFI, Raquel Varela, historiadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa e investigadora sobre as relações de trabalho, denuncia o abandono dos transportes públicos, as más condições dos trabalhadores e a situação explosiva que se vive na cidade de Lisboa. "Temos estudos nos portos da cidade de Lisboa, na manutenção da TAP, no pessoal de voo e cabine, no Metro de Lisboa. Nos maquinistas da CP, Em todos eles. Todos eles. Nós apontámos para riscos significativos para os trabalhadores e para a população que usa estes serviços por causa das condições de trabalho, que são altamente degradantes. E nós não estamos só a falar dos baixíssimos salários, nós estamos a falar de trabalhadores em turnos sucessivos, porque não há outros trabalhadores para ocupar o lugar destes, porque os trabalhadores emigram com os baixos salários. Portanto, nós estamos a falar de pessoas que muitas vezes fazem 16h00 seguidas de trabalho. Nós estamos a falar de salários tão baixos que não dá para as pessoas reporem os seus níveis biológicos, nomeadamente alimentares decentes, dormir decentemente, etc. Portanto, nós estamos a falar de uma situação explosiva que o que nós temos é uma situação generalizada de degradação dos serviços públicos que está intimamente ligada. Eu gostava de salientar isto às regras que a União Europeia põe porque subcontratações são possíveis, mas contratar funcionários públicos bem pagos não é. E, portanto, tudo isto é uma situação absolutamente explosiva, em que as pessoas começam a chegar à conclusão que o Estado, em vez de as proteger, é uma ameaça à sua vida", declarou a académica. A emigração de trabalhadores especializados no sector da mecânica, a subcontratação e os baixos salários são tendências no mercado de trabalho português que podem ter tido impacto neste acidente. Também o desinvestimento público, nomeadamente no sector dos transportes, é visível. "Tudo indica que o que nós estamos é, perante a incúria, uma política absolutamente criminosa de degradação dos serviços públicos, com impacto na manutenção e manutenção dos transportes. É um trabalho altamente especializado, que exige equipas coesas e uma grande respeito pelos trabalhadores e uma grande ligação entre os trabalhadores mais novos e mais velhos", disse Raquel Varela. Publicamente, tanto o primeiro-ministro, Luís Montenegro, como o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, já vieram esclarecer que as responsabilidades sobre este acidente estão a ser apuradas, não havendo, para já, quaisquer consequências políticas. Para Raquel Varela, Carlos Moedas devia demitir-se e deveria haver um impacto na administração da Carris, podendo mesmo haver uma acusação criminal caso fique provado que houve negligência na manutenção do Elevador da Glória.já que todos os cidadãos, portugueses ou estrangeiros que visitam Portugal, estão em risco. "Isto é uma tragédia que matou o condutor, matou mais de uma dezena de pessoas que estão ali. Quer dizer, isto é um país completamente à deriva, que põe em risco os seus próprios cidadãos e cidadãos estrangeiros. Não interessa. Todos os cidadãos que circulam neste país, exceptuando evidentemente, os muito ricos, porque esses andam de motorista e jacto privado", concluiu Raquel Varela.

    Novo presidente do BAD quer valorizar as forças internas do continente

    Play Episode Listen Later Sep 3, 2025 9:17


    O economista mauritaniano Sidi Ould Tah tomou oficialmente posse esta segunda-feira, 01 de Setembro, como presidente do Banco Africano de Desenvolvimento. Em entrevista à RFI, o economista guineense Carlos Lopes, que contribuiu para a estratégia de Sidi Ould Tah, sublinhou a necessidade do continente procurar soluções inovadoras e passar a valorizar mais as forças internas. O economista mauritaniano Sidi Ould Tah, eleito presidente do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) em Maio, tomou oficialmente posse esta segunda-feira, 01 de Setembro de 2025, na sede da instituição, em Abidjan, Costa do Marfim. O antigo ministro da Economia da Mauritânia e antigo dirigente do Banco Árabe para o Desenvolvimento Económico em África (BADEA) prometeu continuar a construir "uma África robusta e próspera" e sublinhou a urgência de “revisitar o plano de investimento” e de “mudar de paradigma”. O primeiro mauritaniano a assumir a liderança da instituição insistiu na importância da paz para alcançar os objectivos de desenvolvimento e acrescentou que "África está de olhos postos em nós, a juventude espera por nós". Em entrevista à RFI, o economista guineense Carlos Lopes, professor na Universidade da Cidade do Cabo que contribuiu para a estratégia de Sidi Ould Tah, sublinhou a visão inovadora e ambiciosa do novo presidente do BAD, que pretende transformar a instituição num motor de desenvolvimento do continente africano. RFI: Quais são as prioridades de Sidi Ould Tah? Carlos Lopes, economista: O Dr. Tah tem uma paixão pelas questões relacionadas com as pequenas e médias empresas, porque tem consciência de que elas é que criam e geram emprego. Esse é o resultado de uma arquitectura mais complexa, onde teria que transformar o banco não num operador nessas áreas, mas num agente que pode mobilizar capitais e que pode, juntamente com outras instituições financeiras, trabalhar em sinergia. Por isso, uma das prioridades dele é, justamente, tentar construir uma arquitectura financeira africana, em vez de estarmos a perder muita energia nas reformas da arquitectura financeira internacional. No fundo, é um pouco o mote do seu programa, ou seja, tentar mostrar que os africanos têm que se concentrar muito mais nas possibilidades que têm e que até agora não foram propriamente utilizadas, nomeadamente a mobilização de capitais internos domésticos, fundos de pensão, fundos soberanos, a forma como se lida com infra-estruturas, que é normalmente feita pensando sempre no investidor estrangeiro e sem mercados internos intervindo directamente na sua concepção. São prioridades que têm a ver com a constatação de que estamos a entrar num período onde a ajuda ao desenvolvimento é muito mais escassa e deve ter um papel mais marginal na definição das prioridades do continente. E para que se possa ter uma integração continental, tem que se investir muito mais em infra-estrutura resiliente, tem que se fazer o necessário para que esse mercado de capitais possa multiplicar o tamanho do banco de forma consistente. Ele, na sua função anterior de director geral do e depois presidente do Banco Árabe para o Desenvolvimento da África, conseguiu aumentar o capital desse banco de cinco para 20 mil milhões de dólares e agora quer fazer o equivalente, mas com mais ambição, no Banco Africano de Desenvolvimento. Ou seja, o seu projecto é de multiplicar por dez o tamanho do banco. Mas há muitas dificuldades, nomeadamente a dificuldade de acesso aos mercados internacionais, os impactos das alterações climáticas. Há pouco falou da ajuda ao desenvolvimento cada vez mais escassa, a redução, por exemplo, do montante da ajuda externa por parte dos Estados Unidos. São uma série de dificuldades que vai ter pela frente. Sim, mas isso são as razões pelas quais ele busca soluções completamente inéditas ou diferentes das que até agora foram dependentes das características que acabou de mencionar. Por exemplo, os fundos de pensão africanos têm um trilhão de dólares, mas não foram utilizados até agora de forma consentânea com os objectivos do continente, porque 80% destes fundos são investidos fora do continente. Temos também outros actores, os países do Golfo, a Turquia, para já não falar da China e dos países asiáticos, que estão numa procura muito maior de alargamento de mercado e todas essas crises que nós estamos a viver a nível tarifário, a nível comercial, a nível de regulação internacional, etc, acabam por favorecer soluções inovadoras. E essas soluções inovadoras são aquelas que estão no programa do novo presidente do BAD. Ou seja, quando se fala do aumento do capital e todas estas características, não é ir buscar essas perdas que acabou de mencionar, é fazer coisas completamente diferentes. É fazer face a estas perdas? Fazer face a estas perdas, mas sem sem nostalgia sobre o legado, porque elas acabaram por caracterizar, de uma certa forma, seis décadas de desenvolvimento na África que não foram das mais mais produtivas, das mais encorajadoras em relação a outras regiões do mundo. E, portanto, agora nós temos que ter um nível de ambição completamente diferente, mas contar muito mais sobre as nossas próprias forças. E por isso, é preciso soluções inovadoras diferentes e é isso que está no programa do novo presidente do BAD. Esta ambição de Sidi Ould Tah é exequível, mesmo tendo em conta a conjuntura? É possível, primeiro, porque ele já deu provas em dez anos, numa conjuntura que também não era favorável. Conseguiu, não só, fazer da instituição que dirigia uma instituição que aumentou os desembolsos em cerca de 200%, que aumentou o capital para quatro vezes e que tinha já a possibilidade negociada para aumentar até seis vezes, conseguiu a notação pelas agências de notação desse banco, que não tinha notação nenhuma para ser o segundo melhor da África. Isto tudo feito num período relativamente curto, num banco e numa instituição com menos capacidade técnica. O que ele quer agora é utilizar a capacidade técnica do BAD para fazer coisas diferentes. Por exemplo, a montagem actual de qualquer projecto de infra-estrutura leva quase cinco anos para concluir e, portanto, é preciso pôr uma cláusula que esses projectos têm que ser feitos num período muito mais curto. A agilidade vai criar uma dinâmica completamente diferente de financiamento, porque os actores actuais dependem sempre da intervenção estrangeira e o banco vai um pouco atrelado às políticas que são definidas em Washington pelo Banco Mundial e outros. E neste momento, o que faz falta é justamente um banco que tenha a iniciativa de abraçar projectos que são ambiciosos, sim, mas tomando em conta o risco de uma forma diferente, por exemplo, fazendo seguros de risco que neste momento não são praticados em África, mas são praticados noutras partes do mundo, fundos de garantia que na África são pífios, mas que são muito importantes noutras partes do mundo. Enfim, copiando aquilo que há de melhor nos exemplos mais recentes de desenvolvimento acelerado, que são quase todos da Ásia.

    Julgamento de Jair Bolsonaro no Brasil : « Uma demonstração de prevalência da democracia »

    Play Episode Listen Later Sep 2, 2025 9:01


    O julgamento final do ex-Presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro, acusado de tentativa de golpe de Estado, decorrerá entre os dias 2 e 12 de setembro. Um momento histórico para o gigante sul-americano, que até agora nunca tinha conseguido punir um golpe de Estado militar e, para além disso, resiste às pressões políticas do Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O ex-Presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro, é acusado de ter liderado uma « organização criminosa armada » que conspirou para a sua manutenção no poder. O seu julgamento está previsto para arrancar a 2 de Setembro. Ele arrisca-se a cumprir mais de quarenta anos de prisão. As repercussões políticas são de grande alcance, em particular tendo em conta as pressões políticas do chefe de Estado norte-americano Donald Trump, que apoia Jair Bolsonaro. O politólogo Christian Lynch, especialista do bolsonarismo e autor, em 2022, do livro « O Populismo Reacionário: Ascensão e Legado do Bolsonarismo », recebe-nos em sua casa, no Rio de Janeiro, para explicar de que forma o Brasil defende a sua democracia. Boa tarde, Christian Lynch. Para começar: em que sentido este julgamento é histórico no Brasil, e qual é o papel decisivo do Supremo Tribunal Federal? No Brasil, como em vários outros países, não apenas na América Latina, mas também na Europa, o processo de construção do Estado de Direito democrático foi longo e complexo. Houve inúmeras rupturas institucionais. Tivemos golpes de Estado em 1889, em 1930, em 1937 e em 1945. Ao longo da história brasileira, o que se observou nesse tipo de disputa foi que os militares sempre saíram vitoriosos. Eles constantemente se atribuíram o papel de poder moderador. Isso só começou a mudar com o fim da ditadura militar, em 1985. A Constituição de 1988 foi construída de forma deliberada para criar uma série de salvaguardas contra o retorno de regimes autoritários e contra essa ideia de que os militares seriam uma espécie de poder moderador. O julgamento é histórico por esse motivo. Houve uma tentativa de golpe de Estado, como outras que marcaram a história brasileira, porém, desta vez, foi uma tentativa fracassada. E, pela primeira vez, estamos julgando e processando os responsáveis por essa tentativa. Trata-se de uma demonstração da prevalência do civilismo e da democracia, das instituições democráticas, frente a mais uma tentativa de golpe protagonizada, novamente, por sectores militares. Nesse sentido, não há dúvida de que se trata de um julgamento histórico. Apesar do afastamento de uma parte da direita brasileira de Jair Bolsonaro, continuam hoje a existir apoios políticos e cidadãos ao ex-presidente? Sem dúvida. A extrema-direita é um fenómeno global. Ela sempre existiu, mas a última vez que ela existiu foi há 80 anos, desde o final da Segunda Guerra Mundial, em que ela tinha desaparecido como força relevante dentro do debate político. Mesmo as forças que apoiaram golpes de Estado não se apresentavam como de extrema-direita. Em cada parte do mundo, a extrema-direita assume características próprias. Na Europa, ela se alimenta do declínio geopolítico, da questão migratória e da sensação de perda de identidade, essa ideia de que a Europa já não é mais o centro do mundo. Nos Estados Unidos, há também uma percepção de decadência. No Brasil, essa sensação de decadência não existe, por vários motivos. Talvez o país nunca tenha estado tão bem historicamente. O que ocorre é que a extrema-direita surge como reacção precisamente à consolidação da democracia e ao aparecimento de novos actores, setores antes subalternizados, pessoas que não tinham visibilidade até os anos 1990 ou 1994. Observamos o surgimento de contingentes da população negra, a emancipação das mulheres... O que vemos é uma espécie de revolta por parte daqueles que sempre exerceram o poder, desde o período colonial, sectores que se consideravam os legítimos detentores do mando. E é por isso que falam tanto em nome da liberdade: trata-se da liberdade de rejeitar a democracia para manter o controle. É a liberdade do senhor, do dominador, que não quer abrir mão da sua posição. O Brasil, sob a presidência de Lula, mostrou-se intransigente face às pressões de Donald Trump, que condicionou a retirada das sobretaxas a uma amnistia para Jair Bolsonaro. A reacção do Brasil, ao proteger a sua soberania e a sua democracia, poderá servir de inspiração a outros países? Não sei se pode servir propriamente de inspiração, porque estamos na América Latina e cada país reage de maneira diferente. O que me parece inédito, no caso brasileiro, é a resistência diante de um ataque frontal por parte do imperialismo norte-americano, esse que considera a América Latina como seu quintal. Além disso, o Brasil já não se vê mais como um país pequeno, pobre e indefeso. Claro que sempre sempre tem quem queira vender o país. A extrema-direita, naturalmente, aceita esse projecto colonizador dos Estados Unidos. Querem ser satélites. Há um sector da direita latino-americana que gostaria que a América Latina se tornasse um grande Porto Rico, ou um Panamá gigante, e acredita que o modelo ideal de civilização seja a Flórida. A Polícia Federal encontrou no telefone de Jair Bolsonaro uma longa carta, não assinada, solicitando asilo político à Argentina de Javier Milei. Uma possível aliança à escala mundial entre dirigentes de extrema-direita deve-nos preocupar em relação à protecção das democracias? Sem dúvida. Assim como no passado existia a internacional comunista, hoje temos a internacional reacionária, a internacional fascista, a internacional ultradireitista. Esses grupos se encontram em conferências conservadoras, trocam experiências, técnicas, financiamento, referências ideológicas. O objectivo deles é derrubar as democracias do mundo todo. Para a extrema-direita, não apenas os regimes autoritários de esquerda são ditaduras: a própria democracia liberal também é percebida como tal. De certo modo, como no passado, esses grupos até admiram mais os grandes ditadores de esquerda do que os modelos democráticos liberais. Para o fascismo e o nazismo, a democracia liberal é fraca, decadente, desprovida de vigor ou virilidade. Devemos, sim, temer essa internacional reacionária. Milei faz parte desse movimento. Embora não possamos classificá-lo como fascista, ele integra uma ultradireita neoliberal autoritária, que adota as mesmas estratégias: manipulação de redes sociais, uso de Big Techs, difusão de fake news. A ideia é reconfigurar a realidade por meio dessas ferramentas. Não é por acaso, portanto, que Bolsonaro tenha cogitado pedir asilo político a Milei. A influência determinante do pastor Silas Malafaia sobre Jair Bolsonaro foi revelada no mesmo relatório da Polícia Federal. Por que ele o defende tão intensamente, e qual é o peso da igreja evangélica na difusão de ideias de extrema-direita e antidemocráticas? O eleitorado evangélico no Brasil não é todo reaccionário. Há, evidentemente, evangélicos com posicionamentos democráticos. No entanto, é nesse público que se concentra o maior apoio ao pensamento reaccionário. E é importante esclarecer o que chamamos aqui de “reaccionário”. Não se trata de um insulto. Reaccionário, neste contexto, é aquele que defende uma ideologia de extrema-direita segundo a qual a única política legítima é a que se submete à religião. Trata-se de uma visão quase teocrática de governo. Toda política só é considerada válida se expressar a vontade de Deus e for sancionada por autoridades religiosas, padres, pastores, como sendo de origem divina. Sob essa óptica, entende-se a centralidade ideológica de Malafaia. Ele defende um governo teocrático, anti-laico, anti-republicano, patrimonialista, que é identificado com o Jair Bolsonaro. Malafaia é fundamental porque lidera o sector mais radicalizado, esse sector que quer um golpe de Estado, que acredita que o Brasil está debaixo de uma ditadura de judiciário, de uma ditadura do demónio. Porque, em última análise, eles acham que um governo que não é de extrema direita é um governo demoníaco. Claro que também há interesses mais financeiros e políticos. Mas, poderíamos dizer que, assim como o filé mignon é a parte mais nobre da carne, o “filé mignon” do discurso reacionário bolsonarista está concentrado no sector mais fanatizado das igrejas evangélicas. Fanny Breuneval, Rio de Janeiro, RFI

    “Mobilização sem precedentes” na Flotilha Humanitária rumo a Gaza

    Play Episode Listen Later Aug 28, 2025 8:33


    Esta semana, vai partir para a Faixa de Gaza uma Flotilha Humanitária com ajuda para a população palestiniana, transportada em dezenas de barcos que vão tentar quebrar o cerco israelita. Delegações de mais de 40 países integram a missão e há três portugueses. O activista Miguel Duarte é um deles e explica que esta é uma “mobilização sem precedentes” e “a maior tentativa de sempre para desafiar o bloqueio ilegal sobre o povo palestiniano em Gaza”. Apesar dos riscos, Miguel Duarte tem esperança que a ajuda humanitária chegue ao destino e defende que “é preciso que a sociedade civil se levante”, senão “ninguém o fará”. Esta é uma missão que junta dezenas de embarcações e delegações de mais de 40 países. O objectivo é levar ajuda humanitária para a Faixa de Gaza e tentar quebrar o cerco israelita que impede a chegada de alimentação e medicamentos. A ONU alertou, na semana passada, que mais de meio milhão de pessoas em Gaza estão a passar fome. Três portugueses integram a Flotilha Humanitária: o activista Miguel Duarte, experiente em missões de resgate de pessoas no Mar Mediterrâneo, a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua e a actriz Sofia Aparício. Em entrevista à RFI, Miguel Duarte disse que se está num “momento histórico”, que esta “é uma mobilização sem precedentes” e “a maior tentativa de sempre para desafiar o bloqueio ilegal sobre o povo palestiniano em Gaza”. Já houve outras frotas rumo a Gaza, mas a maior parte foi interceptada pelo exército israelita. Foi o caso, a 8 de Junho, com o navio Madleen, mas também com o navio Handala, a 27 de Julho. Por outro lado, no início de Maio, activistas que transportavam ajuda humanitária para Gaza foram atacados ao largo de Malta, em águas internacionais, e acusaram Israel. Graças à escala da missão, com delegações de mais de 40 países e dezenas de barcos que levam medicamentos e comida, o activista acredita que a atenção internacional possa impedir que o exército israelita trave a flotilha humanitária, pelo que tem esperança que a ajuda chegue realmente a Gaza. Miguel Duarte acrescenta que informou o Ministério dos Negócios Estrangeiros e que este tem “a responsabilidade moral de garantir a segurança” da tripulação e da ajuda humanitária. Por outro lado, o activista considera que Portugal deveria avançar com um corte de relações diplomáticas e comerciais com Israel, aplicar sanções e acabar com contratos com empresas de armamento israelitas. Experiente em missões de resgate de migrantes no mar Mediterrâneo, Miguel Duarte diz que o que o leva a Gaza é o mesmo que o levou ao Mediterrâneo: a necessidade das pessoas. Nesse sentido, acredita que “é preciso que a sociedade civil se levante”, senão “ninguém o fará”.   Miguel Duarte: “É a maior tentativa de sempre para desafiar bloqueio ilegal sobre o povo palestiniano em Gaza”   RFI: Qual é o objectivo desta missão? Miguel Duarte, activista: “O objectivo desta missão é trazer ajuda humanitária para Gaza. Neste momento, há um bloqueio ilegal por parte das forças israelitas imposto sobre o povo de Gaza. Sabemos todos que está a decorrer um genocídio e uma fome imposta pelas forças israelitas ao povo de Gaza. O objectivo desta missão, como de tantas outras anteriores, é o de desafiar este bloqueio ilegal e trazer esta ajuda humanitária que é tão necessária e tão urgente para estas pessoas.” O que é que diferencia esta missão das anteriores? “A principal diferença é a escala. Ou seja, já existem missões deste género desde 2008, se não estou em erro. Já muitos barcos e navios tentaram desafiar este cerco. Algumas conseguiram, mas a maior parte, a esmagadora maioria das flotilhas foram bloqueadas e ilegalmente capturadas pelo exército israelita. O que diferencia esta é a escala. Neste momento, estão a ser organizadas delegações de mais de 40 países em dezenas de barcos, portanto, certamente, pelo menos centenas de pessoas vão estar envolvidas. Vão partir barcos de vários pontos da Europa. Eu, neste momento, estou em Barcelona e a minha delegação vai partir daqui. Só de Barcelona vão partir mais de 30 barcos e, portanto, a atenção sobre esta missão espera-se que seja a maior de sempre e é a maior tentativa de sempre para desafiar este bloqueio ilegal sobre o povo palestiniano em Gaza.” Houve várias frotas que até agora falharam, que não conseguiram chegar a Gaza e levar a ajuda. A última delas, por exemplo, foi interceptada pelo exército israelita a 27 de julho. Quais são as perspectivas que tem para esta missão e como é que a encara? Não tem medo de ser detido e deportado? “Medo tenho, acho que todos temos, na verdade, porque basta olhar para a história recente deste movimento e vemos rapidamente várias intercepções por parte das forças israelitas que foram extremamente violentas. Em 2008, um barco das forças israelitas foi arremessado contra uma das flotilhas. Em 2010, dez membros da tripulação foram assassinados pelas forças israelitas e, ainda este ano, dois drones bombardearam um dos navios. Portanto, os riscos são altos. Ou seja, nós estamos aqui não é porque não temos medo, porque certamente temos e os riscos existem, estamos aqui porque é necessário e porque é absolutamente fundamental que a sociedade civil esteja em solidariedade, a sociedade civil global, em solidariedade com o povo da Palestina. No entanto, tenho esperança que esta missão tenha sucesso precisamente porque é uma mobilização sem precedentes. Ou seja, eu diria que estamos num momento histórico no que toca a este movimento e as centenas de pessoas que estão envolvidas directamente - que estão aqui neste momento ou que estão a embarcar noutros sítios da Europa e do Norte de África - estão longe de ser o movimento, ou seja, o movimento consiste em milhares e milhares e milhares de pessoas pelo mundo inteiro que se estão a mobilizar não só para organizar a partida destes barcos específicos, mas a organizar-se para mobilizar manifestações, boicotes e outros tipos de acções que ponham tanta pressão quanto possível sobre as forças israelitas. Portanto, tenho esperança que isto tenha sucesso.” É com essa mobilização mundial e a força do número de participantes que pretendem quebrar o cerco de Israel sobre Gaza? Como é que tencionam quebrar esse cerco? “A tentativa ou o que vamos tentar fazer é levar dezenas e dezenas de barcos e trazer muita atenção sobre estes barcos, portanto, quanto mais olhos melhor, pelo mundo fora, para que seja tão difícil quanto possível para as forças israelitas fazerem uma intercepção ilegal e violenta destes tripulantes. É isso que vamos tentar. Tenho a sensação que vamos conseguir, havemos de chegar a Gaza e havemos de entregar esta ajuda humanitária.” Que ajuda levam nas dezenas de barcos? “São bens de primeira necessidade que consideramos serem as coisas mais urgentes. Certamente o povo palestiniano de Gaza precisa de muito mais do que aquilo que nós conseguimos trazer, mas aquilo que consideramos mais urgente são essencialmente medicamentos e comida. Todas estas coisas não conseguem entrar em Gaza neste momento, portanto, as necessidades são absolutas e é isso que vamos trazer essencialmente.” Mais a mensagem, não é? “Mais a mensagem, absolutamente, sim. Precisamos de mobilizações pelo mundo inteiro. Precisamos de apoio não só para a nossa própria protecção e para a protecção da ajuda humanitária, mas porque o objectivo desta missão desafiar o cerco, é acabar com o cerco, é acabar com o genocídio, acabar com a fome, acabar com a ocupação e libertar o povo de Gaza.” O facto de ser uma missão tão falada, com uma tão grande dimensão, por outro lado, não poderá criar expectativas na população de Gaza que possam sair goradas? De certa forma, não poderá ainda ser mais doloroso para os palestinianos que estão à vossa espera, se vocês não conseguirem? “Eu não excluo essa hipótese, mas nós e os palestinianos não somos simplesmente grupos separados. Existem muitos palestinianos envolvidos nesta acção. Isto é feito em solidariedade e em conjunto com o movimento de pessoas palestinianas que lutam todos os dias, há muitos anos, pela libertação do povo palestiniano. Acho que as pessoas na Palestina compreendem certamente que isto é mais uma demonstração de solidariedade e que é uma luta contra uma força que é muito maior do que nós, que é um poder colonial e que tem por trás de si o maior exército da história da humanidade, que é o exército dos Estados Unidos. Portanto, as dificuldades são muitas e acho que todas as pessoas palestinianas compreendem isso. Mas se as nossas acções contribuírem para restaurar algum tipo de esperança, nem que seja um bocadinho, ao povo palestiniano, então penso que isso seja uma coisa boa.” Informaram o Governo português sobre a vossa missão? Se sim, o que é que esperam que ele faça? “Informámos sim. Informámos o Ministério dos Negócios Estrangeiros e ainda não obtive uma resposta. O que é que esperamos? Acho que vou responder a essa pergunta em dois níveis: um imediato e pessoal. Acho que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e, mais em geral, o Estado português tem a responsabilidade moral de garantir a nossa segurança, dos tripulantes, bem como a segurança da ajuda humanitária que é absolutamente urgente que chegue a Gaza. De uma forma mais abrangente, era preciso que o Estado português fizesse aquilo que já devia ter feito há muito tempo. É preciso frisar que não é um problema deste Governo, é um problema de sucessivos governos portugueses. É absolutamente urgente fazer um corte de relações diplomáticas e comerciais com Israel, é preciso aplicar sanções e é preciso acabar absolutamente com contratos vergonhosos que as Forças Armadas portuguesas têm com empresas de armamento israelitas que estão neste momento a conduzir o genocídio em Gaza. Tudo isto se fosse ontem, já era tarde.” O Miguel Duarte já tem um histórico de participação em navios de missões humanitárias, nomeadamente no resgate de migrantes no Mediterrâneo. Chegou a ser indiciado pelo crime de auxílio à emigração ilegal por tentar salvar vidas. Agora arrisca-se numa nova missão. O que é que o move e como é que olha para a forma como a comunidade internacional, nomeadamente a parte política, está a lidar com o que se passa em Gaza? “O que me traz a Gaza ou que me traz a esta missão foi o que me trouxe ao Mediterrâneo tantas vezes. A necessidade é enorme. Os nossos Estados não nos representam, portanto, aquilo que está a acontecer no Mediterrâneo hoje em dia é da mesma escala do que está a acontecer em Gaza. Já morreram mais de 30.000 pessoas no Mediterrâneo nos últimos dez anos. Já morreram outras dezenas de milhares de pessoas em Gaza ao longo dos últimos anos. E os Estados são os mesmos, as forças politicas são as mesmas e é preciso, por causa desta absoluta violência por parte dos Estados, nomeadamente ocidentais, europeus, Israel e os Estados Unidos, é preciso que a sociedade civil se levante, porque se nós não o fizermos, ninguém o fará. Eu, em particular, tenho experiência no mar e, portanto, sei estar num navio e tenho algum conhecimento sobre este tipo de missão. Pensei que estava numa posição privilegiada para fazer alguma coisa e aceitei o convite de me juntar a esta flotilha. É por isso que sinto que este é o meu lugar aqui. Mais uma vez, não é porque não existam riscos ou porque não acredito neles. É porque a necessidade é enorme."

    Angola vs Argentina: o jogo que está a indignar os angolanos

    Play Episode Listen Later Aug 27, 2025 8:30


    Angola pretende canalizar mais de sete milhões de dólares norte-americanos num jogo amigável com a selecção da Argentina, previsto para 11 de Novembro, no âmbito das celebrações dos 50 anos da Independência Nacional. As ONG's angolanas criticam a iniciativa devido ao actual contexto socio-económico que o país atravessa.  Angola pretende canalizar mais de sete milhões de dólares norte-americanos num jogo amistoso com a selecção da Argentina, previsto para 11 de Novembro, no âmbito das celebrações dos 50 anos da Independência Nacional. Os Albicelestes já confirmaram o jogo amigável com os Palancas Negras. Entretanto, quatro ONG´S angolanas criticam a iniciativa e solicitam o cancelamento do jogo, devido ao actual contexto socio-económico que o país atravessa.  Por apenas 90 minutos de jogo, a selecção argentina de futebol pode facturar, em Novembro deste ano, cerca de 11 milhões de dólares numa partida amigável, a decorrer em Luanda, com a selecção angolana de futebol, no dia do jubileu da Independência de Angola. O montante, a ser gasto, está a gerar críticas pela sociedade angolana, que ainda acredita que a Argentina possa desistir do convite da Federação Angolana de Futebol (FAF).  É o caso de Serra Bango, líder da Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD), que diz ser uma vergonha Angola gastar tanto dinheiro num jogo, quando o país se encontra mergulhado numa crise social e económica sem precedentes.  O nosso objectivo é, exactamente, chamar a atenção aos jogadores da selecção argentina, sobretudo ao Messi, porque eles têm uma visibilidade universal. A nossa chamada de atenção é no sentido de que eles se solidarizem com o sofrimento por que passam os cidadãos angolanos: a fome, a miséria, a nudez, o desemprego, falta de educação, de escolas. Nós temos problemas ainda de cólera, paludismo, saneamento básico. Temos problemas de saúde como a febre tifóide, por falta de água potável, por quase todo o país.  E associado a isso, infelizmente, ocorreu neste espaço de tempo aquelas execuções sumárias que já têm ocorrido várias vezes e têm sido denunciadas por vários outros activistas das execuções sumárias que ocorrem em Angola. Face a isso e face ao volume financeiro que se quer despender para esta partida de futebol, não temos certeza se serão apenas os 6 milhões de dólares que poderão ser revertidos para outras situações aqui em Angola. Nós apelamos à solidariedade destes jogadores, no sentido de recusarem esta vinda, este convite para jogarem com Angola. Porque nós temos assistido a nível da África - infelizmente Angola não escapou - preferem desembolsar várias somas de dinheiro para visitas momentâneas de ilustres figuras a nível do topo universal e o povo angolano vive na indigência. A Friends Of Angola, a Pro Bono Angola e a AJPD são subscritoras de uma carta enviada à Federação Argentina de Futebol e a Lionel Messi, cujo teor tem a ver com o cancelamento do jogo.  Florindo Chivucute, presidente da Friends Of Angola, entende que a selecção da Argentina antes de aceitar o convite de Angola, deveria lembrar-se do movimento de protesto de um grupo de mulheres que exigia a localização de seus filhos desaparecidos durante a ditadura militar argentina.  Esta decisão ficará na história, porque os argentinos sabem muito bem qual é as consequências de uma ditadura. É importante aqui lembrar das mães da Praça de Maio que começaram as suas marchas em 1977, que representam um dos maiores símbolos mundiais de resistência contra a violência de Estado e o desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura militar argentina que durou de 1976 a 1983. As mães  da Praça de Maio até hoje continuam a se reunir, todas as quintas-feiras, na Praça de Maio, lembrando ao mundo que não se pode esquecer do passado. É uma luta que simboliza a luta pela memória, pela verdade e pela justiça e é isso que nós esperávamos que a selecção da Argentina fizesse, mas, infelizmente, não fez. Serra Bango esclarece que a sociedade civil angolana não está contra o jogo, mas contra os gastos milionários a serem aplicados pelo Governo. A nossa carta apresenta dados, números que foram pesquisados, quem quiser desmenti-los, que apresentem outros números e outros dados diferentes. Por outro lado, nós não estamos contra uma partida de futebol. Angola pode jogar, aliás, é bom que a celebração dos 50 anos seja feita. Mas aqui há outro elemento. É que o partido no poder e o executivo querem fazer da celebração dos 50 anos só a sua actividade, particularmente não está a envolver os angolanos. Nem os outros movimentos. Mas a independência não foi conquistada só pelo MPLA.  Por outro lado, há um elemento importante. Seria interessante que a selecção de Angola ou a República de Angola, o nosso país, ao invés de convidar a selecção argentina, convidasse quatro selecções africanas, o valor não seria tanto. Estas equipas que eventualmente vão participar no CAN, teriam interesse também em ter jogos de preparação e aproveitariam a selecção de Angola a preparar-se com mais duas ou três equipas.  Para a independência de Angola participaram outros estados africanos. O Congo Democrático, ex-Zaire, o MPLA encontrou guarida no Congo, a FNLA quase que foi fundada no Congo, a UNITA encontrou guarida no Congo… por isso, é que temos angolanos refugiados no Congo e na Zâmbia.  A Zâmbia foi o país que abriu as portas para esses movimentos,  inserindo-se nos vários contactos internacionais, a nível da antiga OUA, actualmente União Africana. Convidem estes países! A selecção da Argentina confirmou a vinda a Luanda. Mas, apesar disso, o responsável da Friends Of Angola ainda acha que os argentinos podem vir a recuar na decisão, em solidariedade com milhares de crianças angolanas sem escolas.  Apesar da equipa nacional da Argentina ter confirmado o jogo, há sinais de que o jogador Lionel Messi não irá participar nesse jogo, que para nós já é um ganho, e espero que não participe mesmo. Fizemos um apelo de novo à selecção da Argentina, para que, de facto, repensem a decisão, ainda vão a tempo, que não manchem a sua dignidade por causa de 6, 11 ou 20 milhões de dólares. Ainda há tempo de eles poderem recuar nesta decisão. Este dinheiro deveria sim ser usado para dar oportunidade a crianças, centenas de crianças, em Luanda, e em todo o país, para ir à escola pela primeira vez. Nós temos centenas de crianças que estão fora do ensino todos os anos, porque, segundo as autoridades locais, não há condições para essas crianças poderem atender a escola pela primeira vez, não há escolas suficientes. Era nesse sentido que nós gostaríamos mais uma vez apelar à equipa da Argentina e ao próprio executivo angolano que não realize este evento, que use este dinheiro para melhorar a vida dos angolanos, porque isto é o que os angolanos querem. Para as organizações da sociedade civil, o Governo, liderado pelo MPLA, quer proporcionar uma operação de charme com jogo, no sentido de branquear a imagem do Presidente aos olhos do mundo, tendo em conta a oposição interna que tem na sua formação política e a falta de soluções concretas e imediatas para o país.

    França: "o cenário mais provável vai ser a dissolução do parlamento e novas eleições"

    Play Episode Listen Later Aug 26, 2025 11:18


    Nesta segunda-feira, o Primeiro-Ministro francês, François Bayrou, anunciou a intenção de se submeter à votação de uma moção de confiança no Parlamento a 8 de Setembro, no âmbito da discussão do seu plano de rigor prevendo poupanças de 44 mil milhões de Euros. Este plano cujo intuito declarado é lutar contra o défice Record do Estado francês tem levantado objecções não só por parte da oposição, como dos sindicatos que apelam a uma greve geral a 10 de Setembro. Com um défice de 5,8% do seu Produto Interno Bruto, ou seja praticamente o dobro dos 3% autorizados ao nível da União Europeia, a França tem actualmente a terceira dívida pública mais importante, a seguir à Itália e à Grécia, ao nível da Zona Euro. Para remediar a esta situação, no seu projecto de lei de finanças para 2026, Bayrou propôs nomeadamente congelar as prestações sociais, bem como os escalões dos impostos, sem ajustamento à inflação, ou ainda suprimir dois dias feriados, o que desde logo encontrou uma forte oposição. Perante uma quase inevitável moção de censura e uma sanção da rua, com sondagens a indicar que 84% da população é contra o seu plano, Bayrou apostou ontem numa moção através da qual pretende que fique assente a necessidade de uma reforma ao nível da gestão das contas públicas. Mas a aposta, para já, fracassou, com os partidos de esquerda e também a extrema-direita a dizerem de antemão que vão rejeitar a moção de confiança. Todos os cenários estão, por conseguinte em aberto, diz o professor de economia na universidade de Paris Dauphine, Carlos Vinhas Pereira, ao dar conta de um contexto económico difícil. RFI: Como está a economia da França neste momento? Carlos Vinhas Pereira: Em termos de endividamento não pode haver pior. Ou seja, estamos com quase 6% do PIB. Em termos de endividamento, houve um aumento enorme por vários factores, o covid e as medidas sociais que foram tomadas pela França. E hoje em dia estamos com 3.300 mil milhões Euros de endividamento e estamos neste momento simplesmente a pagar os juros. Estamos com 50 mil milhões, que é o segundo orçamento do Estado francês. Ou seja, em termos de pagamento da dívida, só unicamente os juros. Portanto, podemos dizer que esta situação, efectivamente, começa a ser alarmante. Mesmo em termos de poder continuar a pedir créditos, porque os actores internacionais, claro, que vêem esta situação e que os dados económicos, o crescimento da economia francesa e o orçamento não estão em adequação. Ou seja, continuamos a ter défices orçamentais. O Governo exprimiu o facto de que precisa de 40 bilhões e o objecto do próximo orçamento que ele queria apresentar e que afinal já sabia que seria com certeza chumbado, porque não tem a maioria, simplesmente por isso. E antes de ter um voto negativo durante o orçamento, decidiu pedir a confiança dos deputados numa audiência extraordinária. E assim seria "ou fazem confiança e continua, ou não fazem confiança e nem vai apresentar o orçamento." RFI: As opções que ele apresentou nestas últimas semanas de, por exemplo, congelar as prestações sociais, de desistir de dois dias feriados e de eventualmente também haver a possibilidade de "comprar" a quinta semana de férias anuais, isto suscita a oposição não só dos sindicatos como da própria população. Isto era uma opção acertada para combater este défice orçamental? Ou havia outras hipóteses? Carlos Vinhas Pereira: Havia outras hipóteses, claro. A opção que ele tomou, foi uma opção para ver se conseguia ir recuperar dinheiro, tentar reformar o Orçamento do Estado. Ou seja, neste tipo de orçamento não há nenhuma poupança. Não há poupança no funcionamento do Estado. Não há poupanças em termos sociais. Só podemos dizer impostos. Ou seja, de uma certa maneira, quando se faz este tipo de propostas é simplesmente para não estar a fazer as reformas que são necessárias ao nível do governo francês, porque senão não resolvemos a situação da França, ou seja, o facto de ter um défice estrutural. Não haverá maneira de resolver nem o problema do endividamento, nem o problema da economia francesa. Portanto, podemos dizer que são medidas que não têm uma certa lógica, que são tomadas para não ferir tanta gente. Mas mesmo assim, consegue ferir, por exemplo, as pessoas que vão dar dois dias de férias. Obviamente, os franceses, dar dois dias sem ter a remuneração, ele podia já prever o descontentamento da maioria das pessoas. Agora ele não tem também soluções que lhe permitem poder avançar sem estar a pôr em causa toda a estrutura do orçamento e, sobretudo, o orçamento social. O Orçamento, em termos de impostos, já não pode ir mais longe porque já estamos a atingir níveis completamente fora. A França é o país que tem a taxa de imposição mais elevada do mundo. Portanto, nem pode subir os impostos. Não quer ou não pode? Difícil responder a esta pergunta. Há medidas de poupança a nível do custo da gestão do Estado e do custo social que o Estado francês tem neste momento. Portanto, podemos dizer que estamos num impasse e que se não houver uma maioria na Assembleia que lhe dê as possibilidades de poder realmente fazer uma reforma de fundo do orçamento francês, não haverá soluções ou haverá remendos que ele vai pôr de vez em quando, ou outro, pode ser outro também que faça a mesma coisa. Mas que venha outro, será a mesma coisa. A Assembleia da República Francesa está dividida de uma tal forma, que não há possibilidade de haver um consenso sobre uma verdadeira reforma do Estado francês. RFI: Relativamente ao anúncio que ele fez ontem de se submeter a um voto de confiança a 8 de Setembro, isto pode ser interpretado de alguma forma como uma espécie de "suicídio político", porque ele com certeza calculou que nem o Partido Socialista, que até agora o tem apoiado implicitamente, iria votar a moção de confiança. Carlos Vinhas Pereira: Sim, há dois dados que ele sabe. Portanto, ele viu quando ele anunciou as medidas que toda a esquerda estava à espera. Mas agora, já houve oficialmente a resposta. Toda a esquerda vai dizer "não". A extrema-direita também não concordava pelo facto de haver mais impostos. Portanto, ele já sabia que o orçamento seria chumbado. Também sabia que no dia 10 de Setembro há a preparação de uma manifestação, uma greve geral em França que também não o vai ajudar a poder depois validar o orçamento. Eu não vou chamar a isto um "suicídio", mas é uma maneira de sair mais nobre. Ele é que perde a confiança, não a tem. Portanto, vai-se embora em vez de ser chumbado numa proposta que ele fez ao Parlamento. RFI: Relativamente aos cenários possíveis, até no próprio governo há vozes que já pensam no pós-Bayrou. Quais são os cenários possíveis? Uma dissolução do Parlamento ou a nomeação de um novo Primeiro-Ministro? Carlos Vinhas Pereira: Há três soluções, a dissolução. Só o Presidente pode decidir fazer esta dissolução. O Presidente também pode nomear outra pessoa. Depois estão a pensar no Sébastien Lecornu (actual ministro da defesa) que estava também citado ao mesmo tempo que Bayrou quando foi nomeado Primeiro-Ministro. Será a mesma coisa, porque vão ter que se pronunciar sobre o orçamento e o orçamento, se não houver medidas estruturais, também será difícil de passar. E também não vão ter mais maioria do que se tinha. Portanto, vamos nos encontrar também no mesmo impasse. Terceira solução também está nas mãos do Presidente, que é de sair e de passarmos directamente às eleições presidenciais para resolver uma vez por todas este impasse. Agora tudo depende do Presidente Macron nas três possibilidades, nos três cenários. Só ele é que vai decidir. E ele aparentemente anunciou que não queria sair, que queria ir até 2027. Portanto, eu acho que pronunciando a dissolução, vai ter o risco de ter outra maioria que não seja a dele, porque neste momento está a pôr Primeiros-Ministros que são mais da família dele do que outra. Portanto, aí é que ele vai ter que tomar uma decisão difícil. Mas só ele é que vai poder resolver este problema. E a partir do dia 9 de Setembro, vai ter que tomar esta decisão. RFI: E relativamente às consequências imediatas de seja qual for o cenário, governo de gestão ou dissolução do Parlamento ou eleições antecipadas? Todos os cenários estão em aberto. Mas isto, em termos de 'timing' para a adopção desse famoso orçamento, é muito complicado. Carlos Vinhas Pereira: Isto é muito complicado. Agora, a Constituição prevê soluções, ou seja, enquanto se fazem eleições ou enquanto se encontra soluções, pode ser adoptado o orçamento do ano anterior, para continuar a pagar os professores, para continuar a pagar as reformas. Portanto, isto está previsto, mas depois, a partir do prazo máximo do mês de Fevereiro, tem que haver um novo orçamento para o ano de 2026 e este novo orçamento será feito ou com um novo governo que será nomeado pelo Presidente Macron, ou um novo governo que será o resultado de novas eleições legislativas em França. Também vai ter como consequência do adiamento das eleições autárquicas que estavam previstas para Março em França. Portanto, estas eleições municipais vão ser adiadas normalmente para Junho ou Julho. Portanto, vai haver esta consequência também ao nível local. RFI: Tendo em conta tudo o que acabamos de dizer, a seu ver, qual é o cenário mais provável? Carlos Vinhas Pereira: Eu acho que o cenário mais provável vai ser a dissolução a ser anunciada pelo Macron e novas eleições, com certeza. De uma maneira ou de outra, pode haver uma vitória da extrema-direita, se não houver um consenso do lado esquerdo. Nomear, portanto, o Jordan Bardella (líder da União Nacional) como Primeiro-Ministro até às eleições presidenciais. Atenção, pode ser uma vontade do Macron, ou seja, de "queimar" a extrema-direita, pondo as pessoas a governar e ver o resultado. E o resultado, com certeza, que estará também nas ruas. Haverá, com certeza, manifestações todos os dias e eu acho que é uma maneira também de os pôr em confronto com o poder, antes das eleições presidenciais. Isto é um cenário que eu estou a ver agora. Posso enganar-me, mas pode ser também uma estratégia do Macron.

    RAEGE conecta os Açores ao estudo global das placas tectónicas

    Play Episode Listen Later Aug 25, 2025 8:18


    Valente Cuambe é um dos rostos da investigação em Santa Maria, nos Açores. Natural de Moçambique, chegou à ilha há quase quatro anos, integrado no projecto RAEGE - Rede Atlântica de Estações Geodinâmicas e Espaciais. O astrofísico coordena a investigação em rádio-astronomia e a geodesia espacial, área que mede o movimento das placas tectónicas e fornece sistemas de referência essenciais para tecnologias como o GPS. A escolha de Santa Maria não foi por acaso: “A ilha tem o privilégio de ter estes equipamentos que acredito serem únicos em Portugal Continental. E eu tenho a sorte de fazer parte do grupo de investigadores que explora esta área da ciência aqui.” A estação integra uma rede internacional, com antenas espalhadas pela Europa, Estados Unidos, Ásia, Austrália e África do Sul. O objectivo é medir com elevada precisão o afastamento e o movimento das placas tectónicas. “Aqui há uma junção tripla de placas tectónicas. Colocando antenas em diferentes placas, conseguimos estudar o afastamento ou o ajuntamento delas. Usamos uma técnica chamada de linha de base muito longa, que permite correlacionar sinais recebidos por antenas distantes ao observar fontes extragalácticas.” A informação recolhida é fundamental. “Usamos isto como sistemas de referência. Precisamos de pontos fixos para medir distâncias. É a base do funcionamento do GPS. Nós fornecemos essas referências internacionais para que os sistemas consigam medir correctamente.” Além da geodesia, a estação em Santa Maria tem vindo a provar o seu valor na rádio-astronomia. A antena de 13 metros mede radiação entre os 12 e os 14 gigahertz e permite observar buracos negros supermassivos e regiões de formação de estrelas. “Recentemente submetemos o nosso primeiro artigo para publicação. Queremos provar à comunidade científica que estes equipamentos também servem para fazer rádio-astronomia olhando para o espaço, para além da geodesia espacial”, salientou. Questionado sobre um possível regresso a Moçambique, o investigador é claro: “não está em cima da mesa, não só porque Moçambique não tem esse tipo de capacidade, como também os Açores precisam de potenciar a investigação. Santa Maria é privilegiada por contemplar estes equipamentos.”

    As dificuldades de uma "companhia de passagem" no Festival de Teatro de Aurillac

    Play Episode Listen Later Aug 24, 2025 10:26


    Como é actuar num mega-festival europeu de artes de rua, com mais de 700 espectáculos diários numa cidade de 26.000 habitantes que, em quatro dias, junta acima de 150 mil pessoas? As expectativas de encontrar produtores e programadores no Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac, em França, são grandes, mas o desafio financeiro é imenso para a maior parte das 640 “companhias de passagem” que participam à margem do programa oficial. Foi o caso da companhia portuguesa “Seistopeia” que nos contou a sua aventura, expectativas e dissabores relativamente à participação no festival que terminou este sábado. RFI: De que falam os espectáculos que trouxeram a Aurillac? Vítor Rodrigues: “A primeira peça que trouxemos foi ‘Soul Trio', que é inspirado no ‘Soul Train', que era um programa dos anos 70, em que havia muitos bailarinos, um apresentador muito charmoso. Então, nós decidimos criar esta peça inspirada nesse programa em que os nossos personagens também são bailarinos e dizem-se os salvadores das festas e os salvadores da alma das festas. Eles vêm tentar trazer a alegria às ruas.” E depois vão deambular por elas… Vítor Rodrigues:“Exactamente porque não é um espectáculo, na verdade, é uma performance. A ideia desta performance não é que as pessoas párem a nossa beira para ver ali alguma coisa muito concreta. É só que se sintam ali energizadas, de alguma forma, e que batam um bocadinho o pezinho, dancem um bocadinho connosco, que sorriam um pouco. A segunda peça é ‘Os Irmãos Fumière'.” Marisa Freitas: “Chama-se ‘Irmãos Fumière', é inspirada nos irmãos Lumière e é uma peça inspirada no cinema mudo, em que se quer trazer aquelas memórias antigas do cinema, que também está muito próximo do teatro físico e, portanto, continua dentro da linguagem da Seistopeia, e é uma peça que traz animação e boa disposição ao público.” O facto de a apresentarem em França, na terra dos irmãos Lumière, traz algo especial? Marisa Freitas: “Ela é muito recente, é uma estreia internacional, é a primeira vez que estamos a fazê-la fora de Portugal e senti que o público mal nos viu reconheceu logo que éramos dessa altura do cinema mudo. Foi bastante positivo.” Inês Jesus: “Tivemos o apoio da GDA, que é uma fundação portuguesa que apoia diversos espectáculos e apoia desde a criação a circulação dos projectos internacionalmente. No nosso caso, o apoio foi para a criação, foi para podermos montar este espectáculo.” Como é estar no Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac no meio de 640 “companhias de passagem”? Como é em termos de apoios? Como correu? Marisa Freitas: “Nós devemos começar por dizer que isto é um investimento nosso, actores e pessoas, nem sequer a companhia tem poder económico para financiar a viagem até cá. Portanto, é um esforço colectivo. Nós os quatro juntámos dinheiro, juntámo-nos e viemos. Em termos de apoio da organização, sentimos um bocado de abandono porque não há um espaço específico ou suficiente para o artista, por exemplo. Eles sabem que algumas companhias de passagem vêm com tenda e não há um espaço só para as companhias. As companhias acampam - e nós estamos a acampar - juntamente com o público. Depois é público que uns são mais diurnos, outros são mais nocturnos e levamos com os barulhos de todos eles. Os que acordam de manhã acordam-nos, os que vêem mais espectáculos à noite não nos deixam dormir. Faltam casas-de-banho nessa zona também para o público porque estamos à beira de duas pastilhas.” “Pastilles” que é o nome dos espaços de actuação… Marisa Freitas:“Sim. Exacto. As zonas de actuação são 'as pastilhas'. Há um descuido que eu sinto para com o artista e também para com o público. Há uma casa-de-banho num espaço onde há dois palcos e todas as manhãs acordamos com, pelo menos, 50 ou 100 pessoas à espera para ver um espectáculo.” O Vítor também se sente um pouco abandonado pelo festival? Vítor Rodrigues: “Sim, de certa forma. Uma coisa que me deixou um pouco chateado foi que nós temos que pagar um seguro de responsabilidade civil. Ou seja, eu sinto que, no fundo, em relação às companhias de passagem, o festival esquiva-se. Fazem um festival que se diz um festival com mais de 600 e tal companhias, mas não pagam essas 600 e tal companhias. São cerca de 20 as companhias que realmente são pagas totalmente. Portanto, eu sinto que eles vendem a ideia de que realmente vêm cá muitos produtores  e é verdade que vêm cá, há muitos produtores, mas também é verdade que são tantas companhias e o espaço não é assim tão bem organizado. Torna-se um bocado complicado para que realmente esses produtores consigam assistir a todos os espectáculos.” É um balde de água fria nas expectativas que vocês tinham? Vítor Rodrigues:“Sim, mas por outro lado, foi um investimento de nossa parte. Nós queríamos correr este risco também, de alguma maneira, porque queríamo-nos atirar aos lobos e é um espectáculo novo também, como é que este novo espectáculo funciona com um público estrangeiro… Foram várias coisas, sim. Não ficámos muito felizes com a recepção, por outro lado, também não estávamos à espera que fôssemos aqui recebidos como deuses, não é?” Inês Jesus: “Eu senti os mesmos dissabores. Partilho com eles o sentimento de abandono. Vejo que para a companhia é importante estarmos em França, é a primeira vez que a companhia vem a França e França é uma plataforma de arte grande, onde eu já vivi. Havia essa vontade de mostrar o nosso trabalho, fazê-lo chegar cá de alguma maneira. Vejo o lado positivo da oportunidade, mas…” Não vê os produtores? “Não vemos os produtores. E tivemos um problema com o nosso espaço porque o nosso espaço, que é concedido pelo festival, estava a ser usado por outros artistas que não estão programados. Então, o estado em que deixaram o sítio onde actuamos influencia a nossa intervenção no lugar e tivemos que readaptar o nosso espectáculo ao espaço. São questões que é importante serem discutidas, na minha opinião e na nossa opinião, com o festival e são coisas que queremos partilhar com eles e questionar.” E o público como vos tratou? Vítor Rodrigues: “O público tratou-nos muito bem. Nós sentimos que o público é muito generoso, muito receptivo. Realmente procuram coisas novas, procuram ver mais espectáculos, inclusivamente, contribuem no final, no ‘chapéu'. Eu senti que, nesse aspecto, foi bastante positivo, embora este os ‘Irmãos Fumière' seja praticamente uma estreia e conseguimos manter o público praticamente até ao fim. Ou seja, estiveram connosco, não nos largaram a mão." Inês Jesus: “Para nós é bastante ambicioso estar em França, apresentar ‘Irmãos Fumière' pela terceira vez no Festival de Aurillac. É super bonito porque os nossos espectáculos têm esta característica participativa, já o ‘Soul Trio' tem e agora ‘Irmãos Fumière também'. É super bonito ver este público que diz que sim, que vem sem medo, que confia nos artistas e que está connosco em cena. Acho que é o que nos alimenta também, de alguma maneira.” Filipe Maia: “O que eu queria dizer é que a liberdade do artista acaba onde começa a liberdade da produção e, neste caso, queria apenas salientar a importância de que se o festival vive do artista e da rua e do público, é muito importante dar condições para isso. É o que nós sentimos e que nos faltou muito. O festival quer dar muito às pessoas e ao público, mas depois peca também, pelo outro lado, de fornecer ferramentas importantes e básicas, até muitas vezes, para a boa performance do artista.” Marisa Freitas: “Acho que o conceito de Aurillac é bonito porque para entrar cá não há selecção, só há um limite e quando se chega a esse limite, fecham-se as candidaturas. Eu acho isso bonito, mas acho que depois toda a gente tem responsabilidades. O público tem responsabilidade. A produção tem responsabilidade e o artista tem responsabilidade. A responsabilidade do artista, por exemplo, no que nos aconteceu hoje, é deixar o espaço livre e limpo, em boas condições para a companhia que vem a seguir poder actuar. O espaço da produção, se calhar, é limitar: ‘Olha aqui nesta zona mais espectáculos de fogo porque deixam mais sujeira neste espaço, se calhar mais para bailarinos porque precisam do chão liso'. Pronto, esse tipo de atenção. Se calhar deixar alguém da produção a tomar conta desses espaços, por exemplo. E o público, nós estarmos a fazer uma peça e passar um grupo de adolescentes aos gritos com uma coluna só porque sim, também acho interessante haver um bocadinho esse respeito por parte do público, o que se calhar é mais difícil, mas acho que para um festival com os anos que tem Aurillac, era algo que já poderia existir.”

    A imaginação não tem limites na viagem à infância de Renato Linhares

    Play Episode Listen Later Aug 23, 2025 9:20


    O coreógrafo e bailarino brasileiro Renato Linhares levou a performance “SHAMPOO [Autobiografia do Chão]” ao Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac, em França, que decorreu de 20 a 23 de Agosto. É sobre rodas que ele conta a sua história, cruzando dança, circo, teatro, patinagem artística e muito movimento ao ritmo de música ao vivo e de ruídos que cria com os objectos inesperados que arrasta. Tudo parte de uma memória de infância: as esculturas de sabão e os penteados de senhora que fazia no chuveiro. “Um manifesto” a lembrar o poder da imaginação das crianças, diz Renato Linhares. RFI: Como é que descreve a peça “SHAMPOO [Autobiografia do Chão]”? Renato Linhares, Coreógrafo e bailarino: “É um espectáculo sobre rodas. Eu faço o espectáculo todo sobre patins. A patinagem artística é uma modalidade, uma fisicalidade que eu tenho no meu corpo desde que sou muito pequeno. Comecei a patinar com dez anos em Porto Alegre, que é a cidade onde eu nasci. Patinei durante nove anos profissionalmente e fui esse tipo de criança que não teve infância, que passou a vida inteira dedicado ao desporto. Durante a pandemia, eu resolvi voltar a patinar e comprei uns patins para sair de casa, pegar ar, voltar a exercitar-me, fazer alguma coisa que não fosse encerrado dentro de casa. Quando eu fiz esse regresso, esse tipo de movimentação, eu comecei a imaginar esse espectáculo. A coisa toda gira em torno de uma imagem da minha infância, que é uma memória. Eu, muito pequeno, com seis ou sete anos, tinha um cabelo comprido e ficava, como muitas crianças, fazendo penteados com champô. Fazia coques altos, fazia actrizes de novela, de cinema, fazia os cabelos da minha mãe e da minha irmã, sempre cabelos de personagens femininos, de mulheres. Eu já tinha a consciência de que aquele mundo se encerrava ali. Foi quando eu comecei a poder tomar banho sozinho. Era um lugar onde eu podia imaginar, onde a minha imaginação ia mais longe do que eu podia exercer na minha vida. Então, foi a partir dessa imagem que era produzida dentro do banheiro, esse jogo, essa brincadeira de criança que depois se desfazia com a janela aberta porque o vapor levava a existência daquele mundo. Quando eu saía do banho, eu já não podia mais ser, de certa forma, aquela criança. E eu resolvi fazer um espectáculo." Um regresso à infância e uma grande brincadeira em palco? "Um manifesto também. Lembrar que a criança pode imaginar tudo. Que tolos somos nós de pensar que elas estão restritas à nossa imaginação ou àquilo que a gente as permite imaginar, ou que a gente sonha que elas imaginem ou que a gente deseja que elas imaginem. Elas estão imaginando coisas incríveis. Um mundo em destruição elas são capazes de entender qualquer coisa, de vislumbrar qualquer mundo. Então, é uma espécie de manifesto: deixem as crianças imaginar o que elas quiserem, isso não faz diferença, pelo contrário, quanto mais a gente puder imaginar e não precisar realizar certas coisas, penso que pode ser melhor." Para recriar esse imaginário, recorre a vários objectos inesperados, nomeadamente os plásticos. Quer-me falar dessas escolhas? "Sim, foi uma escolha bastante prática. Quando você patina, por causa da velocidade que o corpo é capaz de criar, você produz vento. Então, desse sistema, dessa tecnologia que os patins produzem, eu fui pensando em coisas. Comecei a encher um saco desses de supermercado e fui brincando com ele, vendo. Olha, o ar entra, o ar fica por causa da velocidade dos patins eu sou capaz de inflar sacos muito grandes. Comecei a produzir esses infláveis, há um que tem 19 metros, outros de 15 metros de comprimento e três de largura. Eu faço esses grandes banhos de espuma, grandes banheiras, grandes nuvens, pensei naquilo que flutuava no ar, por motor. Comecei a trabalhar e a pesquisar formas com materiais plásticos e, aos poucos, fui vendo que patinar era também fazer desenhos coreográficos no chão. Eu fui vendo que também estava construindo uma história que se passava no rés-do-chão, muito próximo daquilo que a gente pisa. Vi umas imagens assim. Ao mesmo tempo que a gente faz história, a gente pisa na história. Eu comecei a dar a ver ao público tudo aquilo que passa pelo chão. Eu arrasto tudo o que está em volta de mim. No espectáculo, arrasto vasos de plantas, escadas, cadeiras, uma porta de um carro. E também o imaginário faz história no chão." Além dos todos os sons criados pelos objectos que arrasta, também tem música ao vivo. Como é que foi essa escolha e como correu o processo de criação musical? "O Ricardo Dias Gomes é um músico que eu conheço e este já é o nosso quarto trabalho juntos. Ele é muito especial, a gente brinca que temos uma mesma forma de se dispor dentro do palco, ele na música e eu no movimento. A gente comunica muito bem. Somos muito amorosos um com o outro nessa comunicação. E ele é muito sensível para absorver o som que os próprios materiais fazem e, a partir disso, construir a musicalidade, aquilo que que eleva o som da vida para a música, para a arte musical. Ele é um multi-instrumentista, é uma pessoa incrível." Música, dança, circo, teatro, patinagem artística, acrobacias… O Renato Linhares traz diferentes disciplinas das artes performativas para o palco. Porquê? "Eu sou actor, eu colaboro com a companhia portuguesa que produz o espectáculo, que é a Má-Criação, que é uma companhia que tem artistas multidisciplinares, que são artistas de várias áreas, e a Paula Diogo é a minha maior colaboradora. A gente já fez outros trabalhos juntos, a gente escreve, a gente dirige, colaboramos com o outro, a gente está sempre colocando a mão no trabalho do outro. Tem muito teatro também, conto histórias, brinco, converso, é também ligeiro." Em poucas linhas, qual foi o seu percurso até agora? "Eu sou um artista da cena. Eu gosto muito de pensar e de desenvolver trabalhos da performance como dançarino, como acrobata, como director [encenador]. Mas também escrevo. Todas essas áreas que envolvem o teatro e a dança são de igual importância para mim. Eu gosto é de estar na sala de ensaio. O Renato ama a sala de ensaio!"

    Marina Guzzo abriu “espaço para contemplação” da natureza no Festival de Aurillac

    Play Episode Listen Later Aug 23, 2025 10:37


    A 38ª edição do Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac homenageou o Brasil, com vários criadores brasileiros no programa oficial. A artista Marina Guzzo apresentou “Mistura”, um atelier performativo que se transformou num desfile "profano e sagrado" com muitas plantas, cores e brilhos. Mais de vinte personagens, alegorias de uma outra forma de habitar o mundo, deambularam pelas ruas da cidade em passo lento e contemplativo, acompanhado por murmúrios que convidaram a uma pausa colectiva. “Este é um projecto que nasce de um desejo de cultivar a beleza da contemplação que as plantas ensinam”, resume a artista, para quem “a contemplação é uma resistência política”. Foi um atelier performativo que explorou as relações coreográficas e rituais entre pessoas e plantas. Foi também um laboratório sensorial onde se inventaram outras formas de habitar o mundo e gestos lentos que travaram o frenesim das vidas contemporâneas. Tudo começou com um atelier comunitário durante uma semana e terminou numa experiência performativa colectiva no Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac, em França. Este foi um espaço para simplesmente “cultivar a beleza que as plantas ensinam”, contou à RFI Marina Guzzo. Inspirada pela lentidão e quietude, a artista convidou os participantes a criarem uma “comunidade provisória” para procurarem “a beleza da vida” na relação com uma natureza cada vez mais fragilizada e domesticada. Juntos, foram criando o que Marina Guzzo descreve como “coreografia vegetal”, que consiste em “olhar para si e pensar como se mover num outro tempo e com uma outra pele vegetal”. No dia do desfile, houve uma deambulação pelas ruas da cidade, num gesto artístico colectivo que reivindicou “um tempo lento e de contemplação” e uma “mistura com a natureza”. É que, diz Marina Guzzo, nos dias de hoje, “abrir um espaço para a pausa e para a contemplação é uma resistência política”. RFI: Em que consiste a “Mistura” que apresentou no Festival de Aurillac? Marina Guzzo, Artista: “Este é um projecto que nasce de um desejo de cultivar a beleza da contemplação que as plantas nos ensinam. É inspirado na possibilidade de a gente se tornar outra coisa mais que humana. Ele nasceu num momento muito duro da minha vida pessoal, da vida do planeta que foi a pandemia. A gente estava confinada em casa e eu comecei a passear, com a minha filha pegar em flores e também pegar e tirar as roupas guardadas da festa que estavam no armário, os figurinos, os brilhos, os carnavais que estavam guardados e quietos. Aí comecei esse jogo de misturar plantas e roupas e brilhos e memórias de uma beleza mais para além do que é uma vida quotidiana e muito veloz desse tempo da produtividade, muito inspirada pela possibilidade de uma lentidão, de um descanso, de uma quietude que a gente tem quando a gente está perto das plantas, na natureza, na floresta. E aí este projecto começou a tornar-se nesta oficina performativa.” Como é que funcionou o processo criativo, nomeadamente aqui em França? “Aqui no festival, a gente fez uma chamada aberta para participantes. A gente fez uma semana de trabalho intenso para construir estas figuras a partir de um acervo que eu já trago, que é um acervo que se vai construindo nos lugares que eu vou passando, das plantas que têm aqui em Aurillac e do desejo também das pessoas de se transformarem. Então é uma prática colectiva de montagem desses seres mais que humanos.” Quem são esses seres? “Eles são misturas, são seres encantados também. Há um pouco de encanto, de alegria, de beleza, de cor. É um pouco estranho, mas é engraçado, um pouco profano, mas também é um pouco sagrado no sentido de que a natureza é sagrada. Também tem um trabalho corporal e coreográfico de busca desse tempo lento, dessa coreografia vegetal. Durante todos estes dias, a gente trabalhou o que eu chamo de coreografia vegetal, que é olhar para si e pensar como se mover num outro tempo com uma outra pele vegetal.” Hoje em dia as pessoas estão habituadas ao movimento, ao frenesim. Como é que os participantes se adaptaram? Como correu esse trabalho? “Acho que foram pessoas muito engajadas. Formam um grupo, uma comunidade provisória. A gente vai criando esse encontro provisório de mostrar esses pequenos murmúrios que a gente faz durante a performance, que é também uma pergunta que eu faço para eles: ‘O que é que passa pela sua cabeça quando você está em silêncio? Você reza? Você canta? Que pensamentos são esses que vão passando quando a gente está meditando, quando está rezando, quando está em silêncio, quando a gente está com a gente mesmo?'   O que é esse mundo vegetal? Quanta vida deve ter também dentro desses seres que a gente não consegue ver. Então, é um pouco praticar o silêncio, praticar a contemplação, praticar a pausa, praticar a escuta colectiva, que são coisas muito difíceis hoje em dia porque a gente está num sistema capitalista patriarcal, muito enraizado e sistematizado a partir de outras lógicas, que são as lógicas opostas a isto. São a lógica da produção, da hiper-conexão e do tempo acelerado. A gente nem áudio de WhatsApp consegue ouvir de uma maneira lenta, não é? E trazendo esse tempo performático lento, numa cidade em que está acontecendo muita coisa, abrir um espaço para pausa, para a contemplação, acho que é uma resistência política.” Como assim uma resistência política? Até que ponto este espectáculo tem uma ambição também ecológica e de alerta? “Sim, esse trabalho fala muito dessa nossa vontade de misturar mais com a natureza porque acho que esse sistema colonial patriarcal capitalista está o tempo inteiro nos colocando separados da natureza, como se a gente não fosse natureza. Humanos e natureza, cultura e natureza, é uma máxima ocidental desse mundo que está destruindo a natureza, mas também alguns corpos dissidentes, corpos racializados, as mulheres, as pessoas trans. Quando a gente fala dessa reivindicação de um tempo lento, de um descanso, da contemplação e dessa mistura com a natureza, a gente está também resistindo a muitas formas de violência que estão colocadas nessa maneira de viver.” Escolheu as ruas como palco para essa deambulação. Qual a simbologia e intuito político? “Há essa ideia de que, principalmente aqui na Europa, que a natureza que está na cidade está muito contida, está muito domesticada. Então, este é um movimento de contra-domesticação dessa natureza, desses jardins que estão muito confinados a pequenos lugares da cidade. As árvores têm pouco espaço para crescer. Os jardins são todos arrumadinhos, não pode crescer uma ervinha ou uma planta diferente que a gente corta. Então, a ideia é também trazer um jardim contra-colonial que sai andando dos lugares onde ele está primeiramente confinado para conseguir ganhar outros espaços e também se misturar com a cidade. Também é uma ideia de tirar as plantas dessa redoma e colocar ela corpo-a-corpo com a gente. A gente só existe por causa das plantas. A gente respira por causa das plantas. A gente está conectada com as plantas. O nosso pulmão é justamente o antagonista da folha. Então, a gente precisa de estar mais perto e, de alguma maneira, apaixonado. Há uma coisa do trabalho que eu gosto muito de falar, que é a ideia do erotismo.” Como assim? “Talvez o erotismo como uma potência política de prazer, de beleza, não como sexualidade. A gente confinou também o erotismo ao sexo, mas tem uma poeta que eu amo, que é Audrey Lorde, uma feminista que fala muito sobre o poder do erótico. Então, como a gente pode trazer para nossa vida a contemplação e a beleza do prazer também vegetal, de estar com outros seres e também de viver a beleza da vida, não só produzir, dormir, comer, sobreviver. O trabalho é um pouco sobre isso.” Essa poética foi a outras cidades e vai continuar a deambular pelo mundo? “Sim, esta é a 11ª ‘mistura'. A gente fez em Paris, no verão. Foi super legal. No Jardim des Tuilleries que é um símbolo também colonial, mas muito lindo, incrível e monumental. Então, também é sobre essas contradições de como que a gente, como seres humanos em sociedade, vai tentando capturar a beleza e perde o principal que é a possibilidade de estarmos juntos, de nos misturarmos, de estarmos com o outro, de viver experiências de prazer.” Quer falar-nos um pouco do seu percurso? “Eu sou professora e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo e sou artista nesse local, onde tenho um laboratório interdisciplinar que trabalha com arte e saúde e corpo e ecologia. O meu percurso, desde muito tempo, tem sido trabalhar com comunidades, equipamentos culturais, mas também equipamentos de saúde, assistência social. E agora, desde 2011, eu tenho trabalhado em territórios. A ideia é também de deslocar territórios, deslocar as plantas de onde elas deveriam estar, deslocar o mar para quem tem acesso ao mar, deslocar pedras com trabalhos artísticos, com as pessoas. Tenho feito isso. Desde 2009 que o meu trabalho se vem construindo nesse perspectiva. Desde 2011, está muito fortemente ligado à questão ecológica, à mudança climática. A minha pesquisa agora é justamente sobre a arte antropoceno, como é que os artistas podem responder de maneira afectiva às questões que estão sendo colocadas, os desafios sociais e políticos que estão sendo colocados por conta das mudanças climáticas, que são também mudanças políticas, económicas e sociais porque não é uma crise climática isolada, ela está ligada a uma maneira de a gente tratar o outro. Acho que tem tudo a ver com arte e com a maneira como eu estou trabalhando agora.”

    Clarice Lima plantou um mundo do avesso no Festival de Teatro de Aurillac

    Play Episode Listen Later Aug 22, 2025 10:22


    A coreógrafa brasileira Clarice Lima plantou florestas efémeras e viradas de pernas para o ar no Festival de Teatro de Rua de Aurillac. “Bosque” é uma peça contemplativa de um mundo do avesso que quer despertar preocupações ecológicas e “desacelerar a dopamina e rapidez do mundo”. É no silêncio que uma floresta nasce do asfalto, ergue-se pelos ares e desafia a força da gravidade. Mas aqui são pessoas que estão de pernas para o ar numa suspensão e movimentos muito lentos. Vestidos com saiotes volumosos e coloridos, os intérpretes personificam uma natureza poderosa, mas também frágil. Quanto tempo consegue o corpo aguentar ao contrário? Quanto tempo a floresta consegue resistir e até que ponto o mundo está do avesso e o que fazer com isso?  Esse parece ser o mote da peça “Bosque”, da coreógrafa brasileira Clarice Lima, apresentada no Festival de Teatro de Rua de Aurillac, em França, e que também vai à Bienal de Dança de Lyon. A RFI falou com a coreógrafa que nos lembrou que “dança e arte é aproximar mundos e fazer alianças com outras pessoas”, mas também que “a arte tem o poder de imaginar e criar outros mundos”. Clarice Lima planta um bosque humano como “uma ocupação” de um espaço que convida as pessoas a parar e pensar. RFI: Que “bosque” é este que traz ao Festival de Aurillac? Clarice Lima, Coreógrafa: “Esta pesquisa é uma pesquisa bem antiga que eu já venho desenvolvendo há alguns anos. O “Bosque” finaliza essa trilogia. Ele traz essa ideia dessa paisagem em movimento, uma paisagem que a gente cria na cidade, com as pessoas na cidade e que, assim como a natureza, ela é viva. A gente entende que esses movimentos do nascer e do morrer estão conectados e só com a colaboração colectiva a gente vai conseguir fazer alguma coisa.” Há uma mensagem ecológica fortíssima… “Sim. Eu acho que é um assunto muito importante, que a gente tem que estar pensando sobre isso o tempo inteiro e é uma performance muito simples. Então, como é que a partir de uma simplicidade e do tempo que ela dura, a gente pode trazer essa reflexão para o público.” Por que é que escolheu colocar os seus bailarinos de pernas para o ar e ficar tudo em silêncio? “Para mim, é uma imagem dessa árvore invertida, como se fosse uma árvore de cabeça para baixo. Sempre me encantou essa imagem do corpo invertido porque sempre me faz pensar se é o corpo invertido ou o mundo que está de cabeça para baixo. Eu acho que isso desafia a normalidade, a forma como a gente vê o corpo e também nos faz abrir outras percepções, faz também trazer o tema da resistência física, como essa resistência que a gente precisa de ter.” Na peça, a resistência física é encarnada pelas pessoas, mas são as pessoas que estão a fragilizar o planeta… "Sim. Então como é que a gente consegue entender que as pessoas e a natureza é a mesma coisa, que não são coisas separadas e que a natureza não está aí em função da gente, mas que somos uma coisa só. Por isso é importante a gente da gente mesmo, cuidar do lugar que a gente é.” É uma performance que tem vários intérpretes. Quantos são e o dispositivo vai mudando de cidade para cidade? “A gente viaja com uma equipa de quatro pessoas. Sou eu, as assistentes Aline Bonamin e Nina Fajdiga que também fazem a performance, e a Catarina Saraiva, que é a dramaturgista. A gente, junto com a população local, monta o bosque e é sempre pensando em pessoas não profissionais para não precarizar o mercado da dança e voluntários que saibam fazer a parada de cabeça porque isso aproxima a gente que não tem experiências em práticas artísticas e performativas, mas que têm esse superpoder de ficar de cabeça para baixo. O que acontece é que a gente aproxima gente muito diferente. Tem gente do yoga, do circo, da capoeira, do hip hop que, porque têm essa coisa muito específica de saber ficar de cabeça para baixo, a gente aproxima mundos. Eu acho que dança, a arte é aproximar mundos e fazer alianças com outras pessoas e muitas delas acabam tendo a primeira experiência performativa com 'Bosque'. Então, eu acho isso muito bonito. Acho que é um trabalho que consegue abraçar isso, possibilita, num curto período de tempo, que a gente consiga montar, e sempre é uma grande surpresa, quantas pessoas se vão interessar, quantas pessoas vão aparecer porque é uma demanda física grande. Ao mesmo tempo, é uma troca muito bonita que a gente faz. A gente não está só ensaiando para montar um trabalho, mas a gente também tenta, através dos ensaios, criar práticas colectivas, que eles se sintam conectados e sintam que a gente realmente conseguiu criar uma conexão entre todo o grupo. Que poder tem a dança, o teatro e as artes performativas para contrariarem este movimento do mundo de pernas para o ar e do mundo do avesso? "Eu acho que a arte pode acontecer de diversas formas, mas eu acredito muito na imaginação, no potencial que existe na imaginação e da gente conseguir imaginar outros mundos, criar outros mundos. Eu acho que isso é um grande poder que a gente tem. E eu, como artista, gosto de seguir imaginando. Mais do que pensar o que temos, imaginar o que podemos ser. Criar hipóteses, abrir portas, abrir janelas, outras formas de a gente conseguir se relacionar com o mundo.” Na representação dessa floresta escolhe tons muito coloridos. Há também brilhos e tecidos muito extensos. Como é que foi essa escolha e o que simboliza? “A gente procurou mimetizar um pouco as cores de florestas, de bosques. São tons de verde, marron, laranja, roxo, mas a gente também quis trazer um pouco das flores através do tecido de chita, que é um tecido muito brasileiro e muito popular. É  um tecido que traz essas flores que também há no bosque e também traz esses pontos de brilho que a gente usa nas lantejoulas, esse tecido do pailleté, que também é um tecido muito do carnaval brasileiro. Então, como é que a partir dessas referências, a gente cria uma cromia que passeia, que tenta mimetizar um pouco as cores que a gente vê num bosque, numa floresta, um amarelo queimado, mas também expandindo um pouco essas cores para a ficção.” Estamos no Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac. A peça parece ser feita para a rua, para o espaço público. Ou também é projectada para ser apresentada também em sala? “Ela pode ser apresentada em espaços fechados, em salas, museus, galerias, espaços de passagem, não no espaço expositivo, mas no espaço entre, onde as pessoas estão acostumadas a passar porque é uma ocupação. Não há nada e aí chegam estas pessoas com estas saias coloridas e de repente, ploft, um bosque se planta ali! Interessa-me muito essa relação com a cidade e, principalmente, com o concreto para a gente criar esse contraste. Inclusive, é uma peça muito contemplativa, ela não é uma peça em que muitas coisas acontecem. Também é um momento de desacelerar essa dopamina, essa rapidez do mundo. É só olhar, ficar observando isso. Interessa-me bastante essa ideia de que a gente vê um espaço sem nada, um espaço de concreto e, de repente, essas pessoas ocupam esse espaço, criam um bosque. Eu gostaria que as pessoas imaginassem. Nossa! E se nesse espaço tivessem árvores? E se esse espaço fosse ocupado por outra coisa? Então, aí é que a imaginação é um factor muito importante.” Fale-nos também um pouco do seu percurso. “Eu sou uma coreógrafa brasileira, sou do Ceará, hoje em dia moro em São Paulo. Eu fiz minha a formação em dança em Amsterdão e depois voltei para São Paulo. Quando eu comecei a criar, sempre me interessou também um diálogo com as artes visuais. Pensar o movimento, mas também pensar um pouco essa parte estética. Eu vivo em São Paulo, há uma companhia que se chama Futura. Em São Paulo, trabalho muito em parceria com a Aline Bonamin, que está aqui nessa parceria com o Bosque. Para cada projecto, outras pessoas vão-se juntando. Gosto muito de pensar criações artísticas como forma de aproximar pessoas. No Bosque tem essas outras duas colaboradoras, mas os participantes locais e nos outros trabalhos em São Paulo, outras pessoas se aproximam. Acho que é importante dizer que a minha prática artística é total, não linear. Ela é circular, ela vai para a rua, ela vai para infância, ela vai para o teatro. Pensar isso, entender isso hoje, para mim é muito libertador porque eu consigo deixar que a minha imaginação vá para vários lugares a partir de interesses e vivências.” Como é que vê a sua participação neste Festival de Aurillac, que tem o Brasil como país convidado e como projecta a participação na Bienal de Dança de Lyon em Setembro? “Para mim está sendo muito especial. Este projecto foi produzido pelo Big Pulse Dance Alliance, que é uma aliança de festivais europeus, e depois dessa co-produção, a gente aos poucos está conseguindo circular mais aqui pela Europa. É  muito lindo estar aqui porque é muito forte essa cultura do teatro de rua, da dança, do circo. Então, é um festival que cria um contexto de encontro muito potente. Acho que também em Lyon, como tem grande visibilidade, vai ser muito bom para o trabalho. É de grande interesse meu de que esse trabalho possa circular e chegar a muitas pessoas porque eu sempre fico pensando que tem eu, tem as minhas colaboradoras, tem as pessoas que já participaram do Bosque, que já foram mais de 200 pessoas, tem o público, então são muitas camadas de impacto. Eu acho todas elas muito importantes.”

    Fábio Osório Monteiro cozinha política e memórias no Festival de Aurillac

    Play Episode Listen Later Aug 22, 2025 11:23


    O coreógrafo e bailarino brasileiro Fábio Osório Monteiro apresenta a performance “Bola de Fogo” no Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac, em França. Este é um espectáculo que junta dança, histórias e preparação ao vivo de uma iguaria culinária afro-baiana chamada acarajé, que o artista diz cozinhar com o “ingrediente da saudade”. Acarajé é também sinónimo de legado e resistência, uma “comida sagrada” e muito política. O Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac, em França, que arrancou esta quarta-feira e decorre até sábado, tem no programa oficial vários artistas brasileiros no âmbito da temporada cultural França-Brasil. Neste programa vamos conhecer o coreógrafo, bailarino e baiana de acarajé Fábio Osório Monteiro que falou com a RFI depois de ter fritado acarajé para as dezenas de pessoas que assistiam à sua peça. RFI: O que é esta “Bola de Fogo” que fala sobre tanta coisa e que acaba numa panela? Fábio Osório Monteiro, Coreógrafo e bailarino: “Bola de Fogo é uma performance. Ela surgiu no momento em que eu, como artista, estava tendo dificuldade de me sustentar, de subsistência. Como estava começando a aprender a fazer acarajé, surgiu a oportunidade. Comecei a me aproximar desse alimento tão tradicional em Salvador, na minha cidade, que a gente vê em cada esquina. Eu cresci comendo isso, então foi muito forte, em determinado momento da minha vida, encontrar com esse alimento e tirar dele a minha subsistência, o o que acabou gerando “Bola de Fogo” que é esta performance. Falo sobre os meus afectos, memórias, relações familiares, muita história relacionada ao meu pai, a minha mãe, muito questões políticas também, como filosofia e pensamento de progressista para o mundo. Então, é um trabalho em que eu vou passeando por desejos meus pessoais e desejos meu para o mundo, através do alimento que é o acarajé, que é uma comida sagrada, uma comida de Orixá, para quem é do candomblé. Sem dúvida, foi dos trabalhos que mais me tocam pessoalmente.” Cozinhar é político? “Muito, porque a gente entende a comida não só como uma coisa que vai nutrir. A comida alimenta, a comida vai nutrir as suas células, mas tem também uma carga simbólica, política e afectiva que vai-te nutrir de outras coisas. Vai-te nutrir de outras referências, de outras emoções. Isso também te alimenta. O acarajé, que é a comida que eu levo para a vida e que eu faço em Bola de Fogo, eu acredito que ao fazer uma peça sobre o acarajé e, no final, poder servir as pessoas para comerem acarajé, dá para entender como o sabor do dendê pode ser tão político e afectivo, para além de nutritivo.” Também dá sustento ao corpo. O corpo que é um tema omnipresente ao longo da peça, quer naquilo que diz, quer na forma como dança e como se apropria do espaço público… “Ele dá um sustento para o corpo e em especial, falando do acarajé, para o corpo preto, para o corpo da pessoa negra, essas mulheres que iam para a rua vender no início do século XIX, para ter dinheiro para comprar liberdade, alforria, de um marido, de um filho, de um irmão. É uma comida que está literalmente implicada no corpo. O fazer da baiana do acarajé está implicado no corpo dela. Então, ao levar esse trabalho com uma ideia de performatividade, é um corpo público. Eu estou ali em cena, mas acho que o meu corpo, ele traz-me, de alguma forma, a representação de muitos outros corpos, outras pessoas negras, outros brasileiros, outros nordestinos. Eu arrisco dizer que o corpo em bola de fogo, o meu corpo e o acarajé, é um corpo plural.” Também fala da conversa que teve com o seu pai sobre a sexualidade. E mais uma vez, estamos nas questões do corpo e da liberdade ou falta dela. “Ou falta dela. É sempre difícil porque a minha relação com o meu pai sempre foi muito maravilhosa, com essa questão, com esse ruído entre a gente. Esse reencontro que a gente teve, que a gente voltou a se aproximar, também é através de bola de fogo, deste espectáculo, desta performance. Ao levar essa comida para a rua e principalmente ao chegar junto, porque vender acarajé também ajudou em casa, financeiramente. Então, acho que ele começa a perceber que este corpo desse filho dele que é gay, que é uma pessoa negra, que uma pessoa gay, é um corpo político, é um corpo colectivo no sentido de estarmos juntos, eu e ele. O acarajé, a comida, serviu para reaproximar. Eu fico dizendo que o acarajé trouxe um ingrediente na nossa vida, na minha e do meu pai que era a saudade. Isso mudou tudo. Realmente o acarajé salvou a minha relação com meu pai.” Começa o espectáculo dizendo que, além de todas as coisas, é artista. O facto de vender acarajé remete para a precariedade dos artistas? “Com certeza! Só o facto de ter escolhido ou optado em algum momento vender acarajé, eu sendo um artista há mais de 20 anos e ainda assim não conseguir ter uma segurança e uma estabilidade financeira e escolher vender acarajé, isso é um acto político. Isso por si só é um acto político. Eu falo isso. O trabalho também permeia sobre essas questões. Esse corpo que está ali é um corpo de um artista há mais de 20 anos e que desde 2017 precisou de se tornar também uma baiana de acarajé por conta da precariedade do trabalho e a precariedade que a gente vê também no próprio ofício de baiana de acarajé. É um viés que a gente consegue, por exemplo, para conversar sobre a sustentabilidade do artista, mas também a sustentabilidade das pessoas negras, das pessoas autónomas, das pessoas que vão para a rua vender comida, que não sabem se não vão vender nada ou se vai vão vender tudo. É muito difícil, de alguma forma, mas é muito próxima essa relação entre o ofício da baiana e o meio enquanto artista.” É muito diferente actuar num espaço público, na rua, e dentro de sala? Chega a mais pessoas? “Eu acho que chega a mais pessoas. Primeiro porque a rua é o espaço do mundo. Na rua é onde tudo acontece. Eu vi isso no discurso da ColetivA Ocupação, na abertura do festival, que a rua é o lugar onde acontece a prática. A teoria é da porta para dentro, a prática é da porta para fora. A prática está na rua. Rua é onde a gente vive. Então, fazer uma festa na rua é você estar aberto a tudo mesmo, a tudo de bom, a tudo de ruim. Você está ali, expondo o seu corpo e conversando e necessariamente tendo que dialogar com isso. É muito incrível você estar na rua. Tem gente que já chega muito antes e está ali esperando. Tem gente que chega na hora, tem gente que está passando e fica. Tem gente que só passa e é da natureza. É muito incrível. Fazer isso aqui na Europa, eu estava numa expectativa muito grande de entender como é que seria isso.” Simbolicamente no Festival Internacional de Teatro de Rua… “Aurillac é um festival enorme.Quando tive a oportunidade de convite para fazer e fui buscar imagens, vi esse mar de gente que ia assistindo a cada apresentação. Vi o tamanho e a força do festival e o quanto isso poderia reverberar não só no público, mas em mim. Assim, chegar numa praça aqui na cidade de Aurillac, na França, e encontrá-la cheia de gente para ver a minha performance, assim como tem outras praças cheias de gente para ver outros artistas, isso é lindo. Isso é muito potente.” Por que é que tem linguagem gestual também no espectáculo? “Foi um grande acaso, mas foi uma coisa que eu não deixei mais de ter. Virou interesse mesmo de pesquisa artística, dramatúrgica. Já tinha estreado Bola de Fogo em 2017 e em 2018 a gente teve um convite para fazer um festival lá em Salvador chamado FIAC. Nesse festival eles ofereceram um programa de mediação. ‘Vocês podem receber um intérprete de libras', que é Língua Brasileira de Sinais, a linguagem gestual. Primeiro eu fiquei com vergonha porque me senti uma pessoa capacitista. Eu nunca tinha pensado nisso! Como assim? Tem pessoas surdas, pessoas cegas que precisam fruir de arte, claro! Vamos lá. Então, por favor, pede que seja uma mulher que seja negra e que venha vestida de branco. E aí veio Cíntia Santos que, desde então, faz essa performance comigo e que virou interesse mesmo dramatúrgico, entender como a libras está presente não só como uma tradução para quem não consegue ouvir, mas também como elemento dramatúrgico. Como é que ela, fazendo a linguagem gestual, aquilo ali também, por exemplo, vira dança?” Para terminar, quer falar-nos um pouco do seu percurso? “Nas artes eu comecei a fazer teatro na escola e eu acho que eu só virei artista porque eu não parei de fazer aquilo que eu fazia brincando. Então, de começo é isso. Comecei pelo teatro, fui-me aproximando da dança, por isso é que hoje eu tenho uma produção e uma relação muito forte com a criação e artistas. Eu sou um artista da dança também, da performance. Por conta disso e do interesse, por exemplo, sobre o tema de sustentabilidade do artista, o meu mestrado é em Políticas Públicas para a Cultura, eu sou um especialista, um mestre em política pública da vida do artista relacionada com a criação. E, nas artes, eu sou actor, sou director [encenador], sou performer, dançarino, produtor, sou baiana de acarajé. O facto de eu ser isso tudo diz muito sobre a precariedade, sobre a dificuldade que é ser artista, que não dá para se ser só uma coisa, você tem que fazer muito. Você tem que se especializar em muitas funções para conseguir, talvez, viver do seu trabalho.”

    Festival de Aurillac foi ocupado pela “dança-luta” das revoltas estudantis no Brasil

    Play Episode Listen Later Aug 21, 2025 10:13


    O espectáculo “Quando Quebra Queima”, da companhia brasileira “ColectivA Ocupação”, levou as revoltas estudantis de São Paulo, em 2015, para um liceu francês e para as ruas do Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac. Palavras de ordem, dança, canto e música mostraram uma “dança-luta”, uma “coreografia de protesto” e um “coro combate” que reactivaram protestos de ontem e ecoaram com revoltas de hoje. A companhia levou “as ruas para dentro da cena e tornou a rua numa cena”, nas palavras da encenadora Martha Kiss Perrone. O público também participou e repetiu slogans numa ocupação colectiva e festiva do espaço público e do teatro. Tudo começa no pátio de um liceu, na cidade que acolhe o Festival de Teatro de Rua de Aurillac. O público é convidado a ocupar as cadeiras que existem e a distribuírem-se pelo espaço onde vao interagir com os intérpretes. Esses recordam tempos que viveram durante as ocupações estudantis de 2015 em São Paulo, no Brasil, e falam de injustiças sociais de então e que perduram. Os actores-bailarinos-manifestantes mobilizam dança, canto, música, correm, saltam barreiras, exibem fotografias, fazem os espectadores repetir palavras de ordem e incitam-nos a ocupar o espaço político que o teatro também comporta. A peça desenrola-se num liceu, mas acaba invadindo as ruas da cidade, numa grande manifestação colectiva, festiva e poética. Martha Kiss Perrone, encenadora de “Quando Quebra Queima”, esteve à conversa com a RFI no final da peça. RFI: Como descreve “Quando Quebra Queima”? Martha Kiss Perrone, Encenadora de "Quando Quebra Queima” : “A gente desenvolveu algumas novas ideias e vocabulários sobre teatro. Esse espetáculo é uma dança-luta que é uma coreografia de manifestação, que é um coro combate. Então, é um espetáculo onde a gente não representa uma luta, mas a gente é, em si, uma manifestação, uma luta, uma festa. É uma feitura de teatro que desloca o que aconteceu nas ruas para dentro da cena e torna a cena numa rua.” Há a pretensão de também revolucionar, de certa forma, o teatro?   “Sim. A ideia da ocupação que, em 2015, aconteceu dentro das escolas, ela também acontece dentro da linguagem. Então, a própria linguagem das artes cénicas, do teatro, da dança e tudo o que envolve as artes performativas também é ocupada e transformada por essa luta.” Como é que se transforma em dramaturgia essas lutas que habitualmente estão nas ruas? “Primeiro, a dramaturgia nasce da experiência. Ela nasce dessas pessoas, desses secundaristas que hoje são artistas, e das vivências deles. São atores, performers, dançarinos que são autores da dramaturgia. Ela não está baseada somente na palavra, mas primeiro numa experiência política e depois numa experiência poética que é sobretudo elaborada e criada pelos artistas em cena.” A peça é co-criada com o público? Há essa intenção de trazer o público para dentro do palco? “Sim. Num primeiro momento, num processo de criação, ela nasce através das experiências pessoais, biográficas e que são coletivas. Num segundo momento, quando a gente recebe o público, elas são transformadas. Então, não é um espetáculo para o público, mas é um espetáculo com o público. Ele também é convidado a fazer parte dessa manifestação. Tanto é que esta noite a gente pôde ver isso, o público mais do que interagiu, ele também é sujeito da história. Ele também se sente muito livre para se manifestar, para falar, para dançar e também agir.” Sentiu-se um lado extremamente político e politizado, que contagiou o público. O objectivo também é esse? “Sim, mas não é só um objetivo, é um estado de vida onde a política é feita de corpo, de subjectividade, de jogo, de conexão com o outro. Então, ela não é uma ideia, mas é uma poética da relação, como diz o Glissant. Em termos de denúncias e de utopias e poéticas, quais são as principais linhas de força do espectáculo? “As linhas de força deste espectáculo, eu acho que é uma pergunta que a gente faz no final. A última fala do espectáculo é “o que nós devemos fazer agora”. Então, não é tanto uma resposta, mas uma pergunta. As linhas de força, sem dúvida, estão na colectividade, no encontro e no entendimento dessa experiência que nasceu na rua e que esta política é feita a partir de uma ideia, de uma política do encantamento, de uma política de festa, de uma política de alteridade, de uma política horizontal, autónoma e, sobretudo, em aliança com a alteridade do outro e o outro e o público.” Há temáticas que estão muito presentes, por exemplo, a valorização dos corpos negros, a valorização das heranças indígenas… Tudo isso também está muito presente. Também há uma vontade de denunciar tudo aquilo que foi alvo de uma tentativa de silenciamento? “A gente não costuma usar muito a palavra denunciar, apesar de ela ser muito justa e legítima. É uma manifestação na medida em que as pessoas e as artistas que estão em cena, essas são as ancestralidades delas. Então, também existe um lugar que, ao falar disso, não é falar mais somente de um lugar da dor, da tragédia e do silenciamento, mas um lugar também de vitória.” Como aconteceu toda a escolha da música, por exemplo, já que tem uma componente muito forte em termos de música, com música brasileira, música francesa, música electrónica. Aliás, em cena, está escrito “Funk não é crime”. Como é que foi essa escolha? "Tudo é música para nós. Tudo começa com a música. Isso tem a ver sobretudo, com a experiência afro-indígena e diaspórica do Brasil, onde a música é, vamos dizer, a nossa escrita também. É uma forma de viver a música que não nasce como um conceito, mas como uma pulsão de vida. E a música neste espetáculo nasceu como uma necessidade em conjunto. Ela é também uma personagem e nasce não como uma ideia, mas como uma pulsão. Durante a criação, durante os ensaios, essas músicas elas eram o “start” para a gente criar uma cena, muitas vezes ela nasce muito antes da palavra.” Porque é que escolheu terminar a peça nas ruas aqui no Festival de Teatro de Rua de Aurillac? “Esse espectáculo teve a sua estreia em 2018 e, desde o início, a gente tinha um entendimento que ele já terminaria na rua, que é o lugar onde ele começou. Então, ao longo desses anos, nós sempre terminamos na rua e muitas vezes nós bloqueamos a rua. Então, a gente estreou no bairro do Bom Retiro, em São Paulo. A gente apresentou na Avenida Paulista e nós bloqueámos a Paulista. A gente apresentou em Londres e bloqueou uma rua de Londres e hoje em Aurillac é como uma continuação. As ruas mudam, mas a nossa relação sempre é encontrar a origem de onde começou este espetáculo.” O Festival de Aurillac é de teatro de rua. Tem uma simbologia especial para vocês estarem num festival de teatro de rua que devolve esse lugar ao teatro? “Sem dúvida. Foi muito importante para a gente a apresentação desta noite porque este espectáculo nós não fazíamos há muito tempo e estar num festival que é de teatro de rua é como retomar a nossa terra, retomar as origens que produziram este espectáculo. E isso está muito presente. O público é completamente diferente de um público de teatro, de sala. A gente sentiu. A gente está muito emocionada porque é um público muito activo, que fala, que se posiciona. A rua também não é só o espaço público fora, mas a rua é um estado, é um jeito de ser. A gente também trouxe a rua para dentro do espectáculo. Foi muito emocionante. E talvez a gente precise sempre de retomar esse lugar que é a rua.” E devolvê-la ao teatro? “E devolvê-la ao teatro. Ocupar a rua e a rua entrar no teatro. Ocupar o teatro.”

    Angola: “Se nada for feito, o que aconteceu em Julho vai voltar a acontecer”

    Play Episode Listen Later Aug 20, 2025 6:40


    Entre 28 e 30 de Julho, os protestos em Luanda contra o aumento dos combustíveis fizeram 30 mortos e revelaram a frágil situação de três milhões de jovens angolanos desempregados. O economista angolano, Francisco Miguel Paulo, sublinha que muitos nem têm emprego informal e alerta para a necessidade de medidas de formação profissional. Adverte que, sem acção, a instabilidade social pode repetir-se, mas garante que “há dinheiro e é possível ocupá-los”. Entre 28 e 30 de Julho, Luanda viveu protestos violentos contra o aumento do preço dos combustíveis, que resultaram em 30 mortos, mais de 200 feridos e 1.500 detenções. A tensão social pode estar ligada a um dado preocupante para investigadores, segundo o Instituto Nacional de Estatística, cerca de um milhão de jovens na capital, e três milhões em todo o país, não estudam nem trabalham. O economista e investigador do Centro de Estudos de Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, Francisco Miguel Paulo, explica que os números oficiais do Instituto Nacional de Estatística consideram como empregados também aqueles que trabalham no mercado informal. No entanto, sublinha, há jovens que nem sequer conseguem esse tipo de ocupação precária. “Esses jovens não têm emprego informal, ou seja, nem dispõem de dinheiro para iniciar um pequeno negócio. Não trabalham, não estudam e não é por falta de vontade, mas porque não existem oportunidades reais para trabalhar ou estudar”, afirma. O economista acrescenta que “não é fácil conseguir lugar para estudar em Luanda ou em Angola em geral” e lamenta que “esses jovens sejam quase que marginalizados de toda a política social e económica do governo”. Afirma mesmo: “Não conheço nenhum programa do governo ou nenhuma política que tenha em mente essa franja de jovens de 15 a 24 anos que não trabalham e que não estudam. Mas isso pode ser feito, apesar da crise. Ainda há dinheiro para isso. É possível ocupar esses jovens". Para o economista, a solução passa pela formação profissional, aproveitando recursos já existentes. “Temos o Ministério do Emprego e Segurança Social, temos as escolas e centros de formação profissional públicos que estão em todos os municípios do país. Há empresas privadas disponíveis para dar formação de pedreiro, electricidade, canalização, coisas simples, mas que ajudam os jovens a serem empregáveis. Temos que formar esses jovens e há dinheiro para isso. Mas agora, se há vontade política, é outra questão”. O investigador alerta também para o peso da economia informal: “Da força de trabalho em Angola, dos 12 milhões, 10 milhões estão no mercado informal, só 2 milhões estão no mercado formal. Desses 10 milhões, boa parte são agricultores. Aliás, 50% da força de trabalho que está no informal são agricultores”. Essa realidade, alerta, levanta problemas sérios no futuro: “Não pagam segurança social e, quando aos 60 anos estão cansados, como é que resolvemos essa situação? O governo podia muito bem fazer com que a segurança social cubra isso, como fez com os antigos militares desmobilizados. Mas infelizmente há poucos programas sociais com impacto na sociedade”. A inactividade juvenil, adverte, tem efeitos directos na segurança e estabilidade do país. “Se nada for feito, o que aconteceu no 28 e 29 de Julho vai voltar a acontecer frequentemente, porque esses jovens não têm nada a perder, já não têm esperança, só têm a perder a vida e muitos deles passam fome”, descreve. “Às vezes precisam de 10.000, 5.000 kwanzas para começar negócios e nem têm esses valores. É uma insegurança para todo o país, porque nada justifica o vandalismo, mas também coloquemo-nos no lugar deles: o que é que eles têm de esperança?” Segundo o economista, não é possível conter esta realidade apenas com repressão policial. “Se o governo continuar a chamá-los de vândalos e não entender a situação deles, não há efectivos da polícia ou militares que vão conseguir combater. Eles são um milhão só em Luanda. Em todo o país são cerca de três milhões. Não queremos isso. Queremos que reconheçam que de facto falhámos em termos sociais. É possível fazermos isso e há dinheiro para fazer isso”, lembra. Após as detenções de líderes associativos, justificadas pelas autoridades como medidas de segurança, o economista considera que a principal lição a retirar é “mostrar empatia para com o que os jovens estão a enfrentar. Jovens sem emprego, sem escola… é preciso colocar-se no lugar deles, reconhecer e resolver essa situação”. Para isso, defende medidas simples e de execução rápida: “Há centros de formação profissional no país, criam-se mais centros. Numa ou duas semanas conseguimos cadastrar esses jovens todos e que seja feito a nível municipal, porque a nível central é muita burocracia, nada funciona. Dá-se autoridade aos municípios para registar os jovens que estão nesta situação, dar-lhes formação, kits e, no caso dos que estão no mercado informal, formalizá-los”. Francisco Miguel Paulo lembra, ainda, que a informalidade pode resolver necessidades imediatas, mas não garante o futuro: “No curto prazo, a informalidade consegue cobrir a sua necessidade, mas e depois? Amanhã, quando se reformarem, como é que eles vão viver, já que não conseguirão contribuir para a segurança social? Temos que pensar nisso”. Apesar do contexto preocupante, o economista mantém-se optimista: “No curto prazo é possível resolver isso. Basta ocupá-los, dar-lhes esperança de que é possível. São um motor para o desenvolvimento. O país precisa de desenvolver e precisa da mão-de-obra. O melhor recurso que o país pode ter é a sua mão-de-obra, mas para isso tem que ser qualificada e empregável".

    Guerra na Ucrânia entre incertezas e pressões internacionais

    Play Episode Listen Later Aug 19, 2025 9:10


    A reunião desta segunda-feira, 18 de Agosto, na Casa Branca entre Zelensky, Trump e líderes europeus resultou em avanços diplomáticos. Donald Trump adoptou uma "postura errática" e centrada em prestígio pessoal, descreve a investigadora Sandra Dias Fernandes, enquanto Moscovo intensifica ataques para negociar com a força. Há sinais de abertura, mas a paz definitiva está distante e o risco de impasse permanece igual. A reunião que juntou esta segunda-feira, 18 de Agosto, na Casa Branca o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, o Presidente norte-americano e vários líderes europeus foi apresentada como um passo em direcção à paz, mas acabou por revelar também contradições e incertezas. A pressão de Washington para acelerar um acordo de cessar-fogo com Moscovo incluiu a hipótese de concessões territoriais por parte de Kiev, rejeitada de imediato por Volodymyr  Zelensky. Ainda assim, abriu-se a possibilidade de um encontro directo entre Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin. Três anos e meio depois do início da invasão russa, a guerra na Ucrânia encontra-se numa encruzilhada: há sinais de reactivação da diplomacia internacional, mas o conflito mantém-se no terreno. Moscovo intensificou os bombardeamentos nas últimas semanas, mostrando que não pretende chegar às negociações em posição de fraqueza. Segundo a investigadora Sandra Dias Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho, “percebem-se bem as condições de Putin e compreende-se a posição de Zelenskye e dos europeus, mas não se sabe o que querem afinal os norte-americanos”. Para a especialista, o grande problema reside na “liderança errática” de Donald Trump, que “muda frequentemente de opinião e de posicionamento desde que chegou ao poder”. Na sua perspectiva, Donald Trump não encara a integridade territorial da Ucrânia como um princípio central, mas sim como uma variável de negociação. “Para Donald Trump, o essencial é mostrar que consegue calar as armas. Ele quer apresentar-se como alguém capaz de pôr fim ao conflito rapidamente, chegando mesmo a ambicionar ser proposto para o Prémio Nobel da Paz”, sublinha a investigadora. A promessa inicial de resolver a guerra em 24 horas, recorda, “já foi dilatada várias vezes; primeiro para 100 dias, depois com sucessivos ultimatos a Putin, revelando uma diplomacia marcada mais pela vaidade pessoal do que por preocupações de justiça ou proporcionalidade”. A questão mais delicada das conversações prende-se com a possibilidade de cedências territoriais. A Rússia controla actualmente cerca de 20% do território ucraniano, incluindo a Crimeia. Para Sandra Dias Fernandes, trata-se de uma imposição de facto: “A Rússia controla hoje, pela força, territórios soberanos da Ucrânia. O que Zelensky poderá procurar é um cessar-fogo que aceite provisoriamente essa ocupação, tentando depois reconquistar esses territórios por via política.” Ainda assim, a investigadora considera perigoso que se aceite formalmente essa cedência: “Isso seria não apenas problemático para Kiev, mas para toda a ordem internacional. Legitimaria o uso da força para alterar fronteiras e abriria um precedente gravíssimo”. Entretanto, o Presidente francês procura reposicionar a Europa como actor relevante, defendendo uma cimeira em Genebra e insistindo em garantias de segurança sólidas para Kiev. Nesse campo, a especialista vê um contributo concreto dos europeus: “O que podem trazer de essencial é precisamente essa garantia. Quando as armas se calarem e a linha de combate for congelada, é preciso que a Ucrânia tenha meios para garantir que a Rússia respeitará o cessar-fogo. É aí que a presença europeia pode fazer a diferença.” Este reposicionamento é já, em si, um avanço. “Até Julho, Donald Trump já não escutava sequer a visão europeia sobre o conflito”, recorda a investigadora. “O facto de Zelensky ter conseguido trazer líderes europeus à Casa Branca e recolocar a voz da Europa na discussão representa um resultado diplomático relevante”. Enquanto se fala de negociações, Moscovo mantém ataques aéreos de grande intensidade contra várias cidades ucranianas. Para Sandra Dias Fernandes, esta atitude corresponde a uma lógica de pressão: “Os russos querem chegar à mesa das negociações na posição mais vantajosa possível. Não têm qualquer incentivo para parar a guerra antes de assegurar ganhos tangíveis no terreno. Continuar a bombardear a Ucrânia é uma forma de negociar sob coação”. Apesar das dificuldades, a investigadora admite que um cessar-fogo poderá ser alcançado, ainda que não num horizonte tão imediato como sugere Donald Trump. “Não me parece que um acordo definitivo de paz esteja próximo, mas é provável que um cessar-fogo venha a ser negociado. O progresso diplomático reside no facto de europeus e ucranianos voltarem a ser ouvidos em Washington”. Sandra Dias Fernandes destaca ainda a resiliência ucraniana: “Kiev tem reforçado a sua autonomia militar, nomeadamente com a produção de drones e de mísseis de longo alcance. Essa capacidade própria permite equilibrar, ainda que parcialmente, a insuficiência de ajuda externa. É um elemento que pode fortalecer a posição ucraniana nas negociações”. A reunião na Casa Branca mostrou que a diplomacia regressou ao centro do conflito ucraniano, mas também evidenciou fragilidades: Uma estratégia americana errática, a Rússia que só aceita negociar em posição de força e a Ucrânia obrigada a considerar soluções que põem em causa a sua soberania deixam o futuro em aberto. “Estamos num momento decisivo”, resume Sandra Dias Fernandes. “Há sinais de abertura diplomática, mas ainda não existem condições para uma paz duradoura. O risco maior é que estejamos apenas perante mais um impasse, como tantos outros destes últimos três anos”.

    Como olham os guineenses para a expulsão dos jornalistas portugueses?

    Play Episode Listen Later Aug 18, 2025 12:17


    Como vão resistir as relações diplomáticas entre Lisboa e Bissau depois da expulsão dos jornalistas portugueses e do encerramento das emissões da RTP África, RDP África e Agência Lusa? Como olham os guineenses para a decisão do Presidente Umaro Sissoco Embaló três meses antes das agendadas eleições presidenciais? Para conversar sobre o tema convidámos o analista e investigador Rui Jorge Semedo. As delegações da agência Lusa, da RTP e da RDP têm até esta terça-feira para deixarem a Guiné-Bissau, de acordo com a ordem de expulsão do governo tornada pública na sexta-feira. Não foram avançadas razões para a decisão e, este domingo, em Cabo Verde, o Presidente guineense, Umaro Sissoco Embaló, recusou explicar os motivos da expulsão, dizendo que o problema é entre a Guiné-Bissau e Portugal. Na sexta-feira, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português repudiou a expulsão dos orgãos de comunicação social portugueses, que classificou de “altamente censurável e injustificável” e convocou o embaixador da Guiné-Bissau em Lisboa para dar “explicações e esclarecimentos”. Este domingo, até a porta-voz para a política externa da Comissão Europeia, Anitta Hipper, condenou, a decisão da Guiné-Bissau e falou em "restrição lamentável" à liberdade de expressão. Como olham os guineenses para a expulsão dos jornalistas e corte das emissões, assim como para um eventual degradar das relações entre Lisboa e Bissau? “Com muita preocupação”, alerta o analista e investigador guineense Rui Jorge Semedo, falando em “tentativa de silenciamento da imprensa, neste caso particular da imprensa portuguesa”. “Isso não é de agora. O que aconteceu foi resultado de um percurso de mau relacionamento entre o actual poder político com a imprensa. E o que acabou de acontecer com a imprensa pública portuguesa pode ser visto como o seu ponto mais alto”, começa por considerar o investigador. Este domingo, em Cabo Verde, Umaro Sissoco Embaló rejeitou que a liberdade de imprensa esteja em causa na Guiné-Bissau e disse: "Podem ir à Guiné-Bissau e ver se está interditada a liberdade de expressão. Façam-me essa pergunta na Guiné-Bissau”. No final de Julho, o delegado da RTP na Guiné-Bissau, Waldir Araújo, foi agredido e assaltado no centro de Bissau e disse que os agressores acusaram a RTP de "denegrir a imagem da Guiné-Bissau no exterior". As Direcções de Informação da Rádio e Televisão de Portugal repudiaram a agressão e apelaram às autoridades uma urgente investigação. A ordem de expulsão dos jornalistas portugueses acontece um mês depois de a Guiné-Bissau ter assumido a presidência rotativa de dois anos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), numa cimeira em que o Presidente português esteve ausente e em que Portugal esteve representado pelo chefe da diplomacia. Por outro lado, a expulsão dos jornalistas e fim das emissões é ordenada três meses antes das agendadas eleições presidenciais. Rui Jorge Semedo lembra que a imprensa nacional e internacional “funcionam como holofotes para o mundo ver o que está a ser vivenciado na Guiné-Bissau” e questiona se “essa tentativa de silenciamento e de apagamento das luzes pode ser ligada com o avizinhar das eleições”. “Há vários elementos que devem ser observados para podermos compreender o que pode estar por detrás dessa atitude do governo. Se é a mera atitude de repudiar o posicionamento do Conselho de Administração da RDP [ao pedir explicações sobre agressão a Waldir Araújo] ou se é uma estratégia para poder controlar a comunicação no período eleitoral para não permitir que o mundo saiba aquilo que está a acontecer durante o processo e também no dia do escrutínio. Portanto, há várias leituras que se podem fazer. Eu acho que vamos compreender isso talvez nos próximos dias ou nos próximos três meses que nos separam, de acordo com a comunicação oficial, das próximas eleições gerais”, conclui Rui Jorge Semedo. As direcções de informação da Lusa, RTP e RDP reagiram, em conjunto, à decisão do Governo guineense, que descrevem como "um ataque deliberado à liberdade de expressão".

    Gaza: Diariamente são recolhidas “evidências que suportam a acusação de genocídio”

    Play Episode Listen Later Aug 15, 2025 9:58


    “Gaza é um cenário apocalíptico”, as palavras são de Raul Manarte, psicólogo e trabalhador humanitário da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), acabado de regressar de uma missão de duas semanas no território palestiniano. Em entrevista à RFI, confirma que diariamente são recolhidas “evidências que suportam a acusação de genocídio: há matança em massa de civis, deslocações forçadas e um comprometimento total das condições básicas de vida”. Apesar do horror, questionado sobre o que mais o marcou nestas duas semanas, Raul Manarte sublinha a “generosidade dos colegas palestinianos”. RFI: Que descrição é que pode fazer de Gaza neste momento? Raul Manarte, MSF: Gaza é um cenário apocalíptico. Há certas zonas em que está tudo completamente destruído. Só há restos de estruturas, destroços. Não se vê verde. Não se vêem árvores. Neste momento, não há acesso a comida suficiente, nem água suficiente, nem medicação suficiente. Portanto, as pessoas na rua, quando nos vêem passar, pedem comida. Os hospitais públicos estão completamente sobrelotados. As pessoas estão no chão. Não há condições de higiene. Estão constantemente sobrelotados por incidentes com vítimas múltiplas devido à distribuição de comida da Gaza Humanitarian Foundation. A organização liderada por Israel e pelos Estados Unidos. Exactamente. Só em sete semanas, só nas nossas instalações, vindos desses sítios de distribuição de comida, nós registámos 1.300 feridos, 28 mortos, 70 crianças baleadas. No meu último dia estive com duas crianças paralisadas, que vieram desses locais e os tanques abriram fogo sobre a multidão. Há efectivamente a abertura de fogo, ou seja, tiros contra pessoas que vão buscar comida? Exactamente, como lhe disse, atendemos 1300 pessoas feridas e 28 mortas em sete em sete semanas. Temos muito mais do que isso. Mas, este estudo refere-se a sete semanas. E 70 crianças baleadas. Como é que se curam estas pessoas? Que tratamento é dado? Esse tratamento é suficiente para que uma grande parte não acabe por falecer? Não, não é suficiente. Não há medicação suficiente. Nós estamos envolvidos na cirurgia ortopédica e no tratamento de queimaduras. Mas, por exemplo, a evacuação médica é uma coisa que é extremamente difícil. Há pessoas que estão na lista de espera há seis meses para sair de Gaza, que precisam de tratamentos que não estão disponíveis lá dentro e isso não acontece. Depois, nestes hospitais públicos, as altas são muitíssimo antecipadas porque estão sempre pessoas a entrar. Portanto, as pessoas saem do hospital sem estarem em condições para ter alta e com risco altíssimo de terem infecções. Porque cá fora, toda a gente a viver em tendas, está toda a gente aglomerada num pequeníssimo espaço que não é de evacuação obrigatória. Mesmo este espaço é atacado e bombardeado e não há comida. Portanto, nós no norte, nas nossas instalações, temos mais de 300 crianças, mais de 500 grávidas com malnutrição moderada a severa. A questão da fome é uma questão que tem sido muitas vezes defendida por Israel, que diz ser propaganda por parte do Hamas. Você esteve no terreno. A fome é uma realidade em Gaza? Sim, sim. E não é uma opinião, uma visão. Acabei de dar evidências. Nós temos mais de 300 crianças, mais de 500 mulheres grávidas em malnutrição moderada a severa, só nas nossas instalações em Gaza City. E já havia em Novembro. Já agora, um aparte enquanto cidadão, [Benjamin] Netanyahu [primeiro-ministro de Israel] tem um mandado de captura pelo ICC [Tribunal Penal Internacional] por causa de usar a fome como arma de guerra. As leis da guerra não são respeitadas. Não, não são. Nós coleccionamos evidências que suportam a acusação de genocídio todos os dias: matança em massa de civis, deslocações forçadas, um comprometimento total das condições básicas da manutenção da vida, como é a falta da entrada de alimentos ou de água, de medicação ou de combustível. Aqui também há a guerra das palavras. Acaba por ser, muitas vezes, criticada a utilização da palavra genocídio por ser demasiado forte e apontam-se, muitas vezes, o dedo a quem utiliza este vocábulo por não saber o que é verdadeiramente um genocídio. Você acaba de a utilizar. É isso que efectivamente se passa em Gaza? Eu acabei de dizer que nós testemunhamos todos os dias evidências que suportam essa afirmação. Onde é que os humanitários estão no meio disto tudo? Há comida que chega aos humanitários? De alguma forma são protegidos quando há bombardeamentos? Já morreram mais de 500 trabalhadores humanitários, mais de 1.300 profissionais de saúde. Só dos Médicos Sem Fronteiras morreram 12 colegas. A comida do staff internacional também é muito mais reduzida. Temos de ser nós a levá-la para dentro, nossas malas, porque não há. Os corredores humanitários não estão abertos para ninguém. Mas há comida fora da fronteira, pronta para ser entregue. Há toneladas e toneladas de comida e a organizações capazes e experientes para fazê-lo, como a WFP [Programa Alimentar Mundial] das Nações Unidas, que sabem que são precisos 500 ou 600 camiões diários, para entrar, e isso é perfeitamente possível. É só preciso que as forças israelitas o permitam. Quanto tempo é que esteve em Gaza? Da primeira vez, estive um mês e meio. Desta vez, estive só duas semanas. Quando foi a primeira vez? Novembro e Dezembro. Notou uma degradação no terreno? Completamente. A destruição é cada vez maior. A moral das pessoas é cada vez menor. E a questão das condições básicas - da comida, da água e da medicação - está muitíssimo pior. O seu trabalho tem a ver com a saúde mental. Depreendo que os traumatismos vão ficar para o resto da vida destas pessoas e não são tratáveis em duas semanas. Quais são as grandes questões que lhes chegam e como é que se responde a essa procura? Antes de dar minha resposta, só quero dizer que a nossa resposta - de saúde mental, e saúde física - nunca vai ser eficaz neste contexto. As pessoas se não tiverem o comer, se não tiverem protecção, se estiverem constantemente a ser deslocadas e (re)traumatizadas, nunca, nunca vão recuperar. Vão continuar a piorar.  Os casos que nós temos têm muita sintomatologia traumática: crianças que chegam e não falam, pessoas que estão em choque psicológico ou que estão completamente isoladas, que não conseguem funcionar, têm flashbacks, estão a reviver o que aconteceu no dia em que perderam a perna ou que perderam a mãe ou que perderam o filho, que não interagem…  A intervenção psicológica tenta melhorar um pouco estes sintomas, aumentar o funcionamento das pessoas, voltar a conectá-las, um bocado, com a vida e com os outros. É isso que tentamos fazer. Vai ser sempre insuficiente e vai ser sempre limitado, porque as pessoas não estão em segurança, não têm o que comer, não têm acesso a medicação suficiente e não sabem se vão estar cá amanhã ou se os familiares vão cá estar amanhã ou não. Todos os dias nós temos elementos do staff que faltam, porque foram ao funeral de um familiar. Como disse, 12 dos nossos colegas nunca mais voltaram e é sempre um medo que temos ao chegar ao hospital de manhã é se alguém vai faltar, faltar para sempre. O facto de os jornalistas também não serem poupados nesta guerra acaba por fomentar a guerra de palavras e a guerra de imagens, de um lado e do outro. Ainda estava em Gaza quando os jornalistas da Al-Jazeera foram mortos. Como é que recebeu essa notícia? O que é que sentiu? O que é que a população disse? Teve um impacto muito maior para a população do que para mim, pessoalmente. Porque para a população, aquele jornalista [Anas al-Sharif] era um símbolo, era uma voz muito importante. Para mim, há tanta barbaridade há tanto tempo… Nós tivemos de sair do nosso hospital em Nasser, em Março, porque foi repetidamente atacado. As instalações da ONU foram atacadas, instalações da Cruz Vermelha foram atacadas, colegas nossos foram mortos, Colegas internacionais da World Central Kitchen foram mortos. Nós atendemos miúdos baleados na cabeça, nas costas, todos os dias. Portanto, ninguém está seguro dentro de Gaza e não há nenhum sítio seguro. Mas uma guerra sem jornalistas acaba por ser uma guerra onde cada um faz o que quer, sem o olhar do mundo. Sim, exactamente. Acho que os jornalistas deveriam entrar. Já há evidência recolhida por organizações neutras e humanitárias, mas precisamos de jornalistas lá dentro.  Precisamos do máximo de olhos lá dentro para perceber o que se passa, para que possa haver um cessar-fogo, o mais rapidamente possível, e para mudar a narrativa. Porque esta narrativa de que ‘ou és a favor dos reféns israelitas, ou a favor dos palestinianos' está a matar pessoas. Não é assim que nós pensamos. Nós somos a favor do cessar-fogo e a favor de salvar todas estas vidas, seja qual for o lado da fronteira de onde vêm. Até porque o seu trabalho é o mesmo, independentemente do local. Estou a fazer este trabalho na Palestina, mas podia estar a fazer em Israel, fiz na Ucrânia, mas podia ter feito na Rússia. Fiz com os Dinka e os Nuer no Sudão do Sul, mas podia ter feito com outra etnia. É igual! E sinceramente, até é fácil quando se está cara a cara. É difícil quando se está longe, porque há narrativas que envenenam. Nestas duas semanas há algum caso que o tenha marcado mais? O que me marca mais - isto pode ser estranho - é a gentileza e a bondade dos meus colegas. Como é possível estarem nas condições em que estão - perder a família todos os dias, não poderem sair de Gaza, estarem todos muito mais magros, é extremamente difícil arranjar comida, depois há o calor calor absurdo - e têm a maior paciência e bondade com os miúdos ou com os pacientes que estão aos berros com as dores ou que estão em choque porque perderam a mãe. E isso para mim é impressionante, porque eu acho que não conseguia. Como é que consegue arrumar todo o horror que vê nestas missões para que esteja mentalmente saudável? Acho que a experiência ajuda muito. São várias missões e a experiência vai calibrando as expectativas, não só do que é que vamos ver, mas do real impacto que conseguimos ter. E isso vai ajudando. Depois, cada pessoa tem os seus métodos para gerir isso com o seu autocuidado. E às vezes não sabemos lidar e ficamos mal. E depois ficamos bem outra vez. Pensa voltar a Gaza? Acho provável que me chamem novamente. Portanto, é provável que aconteça.

    “Angola tem capacidades para vencer este Afrobasket, mas tem que passar da teoria à prática"

    Play Episode Listen Later Aug 14, 2025 8:53


    A selecção angolana regressa à quadra esta quinta-feira, 14 de Agosto, para defrontar a Guiné-Conacri, na segunda jornada do Afrobasket 2025. O campeonato africano de basquetebol masculino entra hoje no terceiro dia. Angola defronta esta noite, 14 de Agosto, pelas 19h00 locais, a selecção da Guiné-Conacri, no Pavilhão Welwitschia, para a segunda ronda do Grupo C. O seleccionador angolano, Pepe Cláros, prometeu uma equipa competitiva. Angola entrou no Afrobasquet a vender por 85-53 frente à Líbia. Todavia, os 12 atletas que defenderam as cores de Angola frente à Líbia não convenceram o seleccionador nacional. Pepe Clarós considerou o resultado enganador. Em declarações aos jornalistas, reconheceu a importância da vitória, mas lembrou que os jogadores “têm de jogar muito melhor”. Assinalou que foram cometidos “demasiados erros” e que, no terreno, muitos foram “os jogadores que não procuraram o bem comum”. O próximo jogo dos angolanos está agendado para esta quinta-feira, 14 de Agosto, frente à Guiné-Conacri. A selecção da Guiné-Conacri que, na 1.ª jornada do Grupo C, surpreendeu e venceu o Sudão do Sul por 88-80. Em entrevista à RFI, Osvaldo Bravo, jornalista da Rádio 5, acredita que o encontro desta noite será um teste para os angolanos, dividido em dois momentos distintos, sem esquecer que “Angola entra para este jogo avisada desta selecção da Guiné-Conacri, que surpreendeu o Sudão”. Eu olho para este encontro frente à selecção nacional da Guiné-Conacri como um jogo com duas partes completamente diferentes. O início vai ser carregado, um jogo onde teremos uma diferença na componente táctica. Na segunda parte, frente à Guiné-Conacri, Angola vai tentar aproveitar a componente física, porque nós notamos que os nossos atletas estão muito bem fisicamente e, também, a experiência daqueles que militam nas principais equipas. O Afrobasket 2025 chega a Angola num ano de forte carga simbólica, “porque é também o ano em que vamos festejar os 50 anos de independência nacional”. Para o jornalista, acolher a competição “demonstra o interesse da sociedade e da juventude angolana pela modalidade”. Sobre a possibilidade de Angola vencer o Afrobasket 2025, Osvaldo Bravo é peremptório: Angola tem grandes capacidades para vencer este Afrobasket, mas o vencer tem que sair da teoria para a prática. Nós temos uma selecção com tradição a nível continental. Nós temos uma selecção jovem, experiente, porque temos atletas que actuam nas melhores equipas do mundo. Significa dizer que nós temos atletas que podem traduzir tudo isso, que é o nosso desejo, na quadra, vencendo a competição para que a cereja esteja, de facto, em cima do bolo.

    Como adaptar as cidades às ondas de calor extremo?

    Play Episode Listen Later Aug 14, 2025 13:14


    Perante os episódios de calor extremo cada vez mais recorrentes, como é que as cidades se podem adaptar? França viveu a 51ª onda de calor extremo desde 1947 e a segunda este verão. Os alertas vermelhos por causa do calor e do risco de incêndio multiplicaram-se em vários países europeus. Tendo em conta que as ondas de calor são uma consequência previsível do aumento dos gases com efeito de estufa na atmosfera, o que fazer e como proteger a população contra o calor extremo? Raquel Estrócio, arquitecta paisagista a viver em Paris, dá-nos algumas pistas. RFI: Como é que as cidades, de uma forma global, se podem adaptar às ondas de calor extremo cada vez mais recorrentes? Qual seria a prioridade? Raquel Estrócio, Arquitecta paisagista: “Usualmente, os projectos hoje em dia são feitos de forma a aumentar a vegetação nas cidades, sobretudo a nível arbóreo, colocar vegetação arbórea nas vias que não têm vegetação, aumentar as zonas e os pontos de água. Mas nem todas as cidades, nem todos os lugares podem abarcar com estas soluções. Portanto, algumas proteções físicas de toldos, de proteção específica em alguns lugares e alguns pontos de água para a população poder usufruir são essenciais. Mas, sobretudo, olhando as cidades de uma forma global, terá que se integrar a vegetação e o planeamento urbano de outra forma. Por exemplo, no Sul de Portugal e em Portugal há cidades que vão ter que optar por um urbanismo mais norte-africano, indo buscar as soluções árabes de pátios, de ruas mais pequenas, em que a sombra é a prioridade, enquanto que aqui em França, por exemplo, a vegetação ainda é uma solução possível.” Mas quando há períodos de seca, quando há estas ondas de calor, a vegetação também sofre, também seca, também precisa de água. Essa é uma solução durável? “Por isso é que em Portugal, hoje em dia, as soluções terão que passar por essa reformulação do urbanismo e da escala urbana e da forma urbana, enquanto as soluções em França ainda podem passar pela vegetação. Contudo, a vegetação tem de ser adaptada porque a vegetação que era habitualmente usada, por exemplo, em Paris, não poderá ser a mesma. E aí ela tem que ser adaptada a estes extremos climáticos que, muitas das vezes, obrigam a usar uma vegetação que é mais do sul de França ou é mais mediterrânica. Então é essa transformação que profissionais que trabalham o espaço urbano precisam de reflectir e mediante também as capacidades que as plantas têm porque as plantas também se adaptam, são seres vivos. Mas as culturas e as plantas utilizadas, para não utilizar tanta rega que é uma coisa que usamos muito em projectos de espaço público e vegetação, pode não ser utilizada e pode ser utilizada vegetação adaptada.” Há árvores mais propícias para combater, digamos assim, o aquecimento? “Não é que combatam. Elas adaptam-se a essas alterações.” Conseguem refrescar?... “Há algumas que conseguem refrescar, mas, por exemplo, se pensarmos no Alentejo, nos sobreiros e nas azinheiras, a sombra não é totalmente refrescante, mas o clima, o solo e a possibilidade que a vegetação tem de sobrevivência também não é a mesma. Não podemos colocar uma vegetação do norte da Europa no sul da Europa, por exemplo.” Mas podemos ir buscar os exemplos do Sul da Europa e do Sul, de África. “Do Norte de África sim. Podemos usar os mecanismos urbanos de países que não necessitam de artifícios tecnológicos como o ar condicionado e evitá-lo ao máximo porque aumenta as emissões e aumenta o calor na cidade. Portanto, toda esta vegetação que começa a progredir mais para Norte, pode ser adaptada e pode ser gerida aumentando a sombra, ela vai aumentar a capacidade de refrescar as cidades. Mas não podemos só pensar dessa forma. Temos que pensar que ela vai permitir a infiltração da água. Usar materiais também claros nas construções e no urbanismo também aumenta o albedo, aumenta a capacidade que a cidade tem em reflectir a luz solar.” O que é o albedo? “É o poder das superfícies de reflectir a luz solar.” Nas cidades, por exemplo, em Paris, há muito betão, muito cimento e alcatrão. Não podemos alterar isso de um dia para o outro ou podemos? “Progressivamente podemos. Os projetos, hoje em dia, em França, em toda a Europa, em todo o mundo, contrastam com os projectos dos anos 70 ou 80 porque cada vez mais se utilizam materiais que reflectem, materiais permeáveis, materiais que não limitam a natureza, mas que trabalham com ela.” Agora as pessoas estão a viver esta onda de calor na Europa. Estamos a fazer esta entrevista em Paris, onde os apartamentos são muito pequenos e muito quentes. Quais são as soluções para as pessoas que vivem em apartamentos numa zona de densidade urbana muito grande? “Há uma solução que a Câmara Municipal de Paris começou a implementar há uns anos que é abrir os parques à noite, alguns parques, como o Montsouris, como o Buttes Chaumont. Algumas pessoas são contra, e eu percebo por causa da segurança, mas como é à noite que nós regulamos a temperatura do corpo, quando há dias seguidos de temperaturas altas - como aconteceu em 2003, como a segunda-feira negra em Paris, em que houve uma grande quantidade de pessoas que não aguentou e que não resistiu - sobretudo as pessoas mais idosas e as crianças que também estão no processo de desenvolver essa capacidade de regular a temperatura interna do corpo deveriam sair para refrescar e estar em parques à noite ou ao fim do dia para precisamente permitir que o corpo se regule um pouco. Portanto, em muitos dias seguidos de temperaturas altas, as pessoas devem tentar encontrar mecanismos individuais em casa para reduzir a temperatura do corpo, como colocar gelo nos punhos, dormir com ventoinhas...” Ar condicionado? “Há países do sul da Europa que não se aguenta sem ar condicionado, como por exemplo a Sicília, ou outros países do mundo em que é impossível passar o dia e a noite sem ar condicionado, mas ainda é possível em Paris e a ida aos parques ao fim do dia com amigos é uma solução. Ou então colocar gelo nos punhos e usar roupa branca durante o dia, chapéu, roupa branca larga que ajuda a reflectir, aumenta o albedo e reflecte a luz solar. E beber muita água, claro, mas isso toda a gente sabe.” E em relação às casas? Fechar os estores e as janelas ou abrir? “Eu acho que depende da casa. Nos apartamentos pequenos eu acho que essencialmente durante o dia é encontrar formas de cobrir as janelas com superfícies que reflectem ao máximo essa luz solar, superfícies o mais brancas possível ou que reflictam mesmo como espelhos. E depois, durante a noite, tentar abrir para haver corrente de ar, mas eu sei - porque já vivi numa casa assim - que há casas que são feitas de forma a que essa corrente de ar não exista e é muito difícil abrir duas janelas de um ponto oposto ao outro para que isso ocorra. E nesse sentido, mais vale descer, estar um bocadinho na rua, beber muita água ou tomar um banho de água fria.” As cidades ocidentais estão preparadas para o aquecimento climático em termos de urbanismo e de arquitectura? “As alterações climáticas vão aumentar a temperatura, mas a questão essencial é que elas vão aumentar os extremos. Ou seja, os eventos extremos vão fazer com que haja mais picos de calor, mais picos de tempestades, mais picos de chuvas intensas, de inundações e as cidades não estão, nenhuma cidade no mundo, está adaptada a isso. Nem as cidades, nem o território porque nós estamos a viver uma inconstância de eventos. Ou são os fogos, por exemplo, ou são as canículas, estes momentos de temperaturas muito elevadas, ou são as chuvas torrenciais que inundam Paris, Cabo Verde... Todo o mundo passa um pouco por esses eventos extremos e são esses eventos extremos que nós devemos olhar para o território e geri-lo e trabalhá-lo. Nenhum território no mundo inteiro está adaptado a isso.” Mas as cidades mais ricas dos países ocidentais têm mais dinheiro para lutar contra o impacto das alterações do que as cidades com menos meios. “Sem dúvida, mas mesmo dentro das cidades mais ricas ou mais pobres, há pessoas mais ricas. A desigualdade económica faz com que os mais ricos se safem mais. Claro.” O que é que as políticas de urbanismo e os próprios políticos deveriam fazer nos próximos tempos para aprender com todas estas lições? A prioridade? “Estar aberto à ciência, estar atento e ouvir os cientistas. Todas as posições devem ser escutadas, não só as adaptações urbanas, o dinheiro que se vai precisar para que as cidades se tornem resilientes porque é a população que se deve tornar resiliente também. Mas ao mesmo tempo, hoje em dia, eu acho que é muito importante, é fundamental, ouvir cada vez mais os estudos que são mais de ponta, os estudos mais recentes, porque desde os primeiros cenários do GIEC ou IPCC até hoje, os cenários e as previsões foram-se alterando muito e aquilo que nós previmos há dez anos não é a mesma coisa de agora. Portanto, essas adaptações também vão ter que ser contemporâneas desses estudos, o que não acontece. O que acontece é que os estudos saem e daí até as universidades se actualizarem e até aos profissionais se actualizarem para implementar no território ocorre muito tempo e hoje em dia essa actualização deve ser permanente.” Mas tem que haver uma vontade política de ter opções mais ecológicas... “Isso, de certa forma, já há, embora haja um retrocesso nos últimos tempos politicamente. Eu creio que é ouvir a ciência, experimentar, não ficar apenas com uma solução, tentar encontrar diversas soluções, pensar no passado. Fala-se muito também de utilizar técnicas e formas urbanísticas ou de gestão do território passadas e é importante porque elas não eram baseadas em desenvolvimentos tecnológicos muito de ponta, como o betão, que foram importantes numa determinada altura e que eram mais adaptados ao território e que usavam a vegetação e os materiais que o território podia proporcionar. Mas os extremos climáticos hoje em dia também vão requerer uma adaptação dessas soluções. Um exemplo muito claro: antigamente projectava-se as pontes para as cheias dos cem anos. Hoje em dia é dos mil ou deve ser porque os extremos climáticos fazem com que sejam mais frequentes cheias que atinjam alturas muito maiores do que antigamente. Ou seja, a cheia dos mil anos é os valores, os caudais que num determinado momento ocorrem num território, que podem ser dramáticos e são dramáticos.”

    "Braima Camará não é primeiro-ministro, é director de campanha de Umaro Sissoco Embaló"

    Play Episode Listen Later Aug 13, 2025 9:33


    O membro fundador da coligação Aliança Patriótica Inclusiva (API) e antigo primeiro-ministro, Baciro Djá, critica a nomeação de Braima Camará como primeiro-ministro, classificando-o como “director de campanha” do presidente Umaro Sissoco Embaló. Acusa o Presidente de usar estratégias para adiar as eleições e fragilizar instituições, comprometendo a democracia. A FREPASNA e a API prometem defender o Estado de direito e punir membros que violem os seus princípios. RFI: Que consequências políticas concretas prevê para a coligação depois desta decisão presidencial? Baciro Djá: A Guiné-Bissau atravessa mais uma vez uma situação política muito complicada, aproximando-se das eleições gerais de 23 de Novembro, marcadas por decreto presidencial de Umaro Sissoco Embaló, que muitos consideram um ex-Presidente. Eu digo que não é ex-Presidente, é Presidente cessante. Sendo um Presidente cessante, não terá grande margem para exercer plenamente as funções, pois a Constituição limita os seus direitos. A nomeação de Braima Camará é uma tentativa dilatória para ganhar tempo e reorganizar-se para a reeleição, já assumida por ele. Para mim, Braima Camará não é um primeiro-ministro, é um director de campanha com vestes e regalias de primeiro-ministro. Ele próprio disse, na sua tomada posse, que o antecessor já tinha tratado 99% da organização das eleições. Então, para quê trabalhar para apenas 1%? Isto mostra que a intenção do Presidente é dividir a classe política e as coligações; mais uma estratégia infantiloide. Temos de nos posicionar para defender o Estado de direito democrático. Esta nova nomeação, num país já politicamente fragilizado, vem ampliar essa fragilidade? Sim. Ou seja, esta é a estratégia do Presidente Umaro Sissoco Embaló: a estratégia de dividir para melhor reinar. Isto é antigo, esta estratégia é antiga, e nós pensamos que a Guiné-Bissau tem uma experiência política muito mais avançada,  do povo da Guiné-Bissau, do que o próprio presidente Umaro Sissoco Embaló. Portanto, entendemos que o povo da Guiné-Bissau irá compreender e a classe política, ainda lá na Guiné, políticos com noção de Estado, com noção de democracia, e nós estamos aí para ser guardiões desses princípios e desses valores que nortearam o princípio da fundação do Estado da Guiné-Bissau e a entrada do nosso país na democracia multipartidária. Portanto, essas atitudes são atitudes anti-democráticas e que põem em perigo um verdadeiro Estado de direito democrático. O que é que se pode esperar deste novo executivo? Não se espera nada desse novo executivo. O que se espera é que comecem a lançar-se para a campanha política para o segundo mandato de Umaro Sissoco Embaló, num país fragilizado e com um governo que vinha fazendo algum esforço, também fragilizado. Umaro Sissoco Embaló não respeita as leis. Leis, para Embaló, são os seus caprichos. Quem não cumpre os seus caprichos está fora da lei. Portanto, nós não podemos permitir isso enquanto democratas, enquanto pessoas servidoras do Estado e pessoas que lutaram para consolidar um Estado de direito democrático. De que forma é que esta nomeação de Braima Camará para o cargo de primeiro-ministro pode influenciar o equilíbrio e a transparência do processo eleitoral de Novembro? O que está por trás desta intenção é o seguinte: se nós não nos posicionarmos, vão querer adiar novamente as eleições. A perspectiva é para o mês de maio. Portanto, isto é uma brincadeira de mau gosto. Nós estamos disponíveis para defender a democracia, o Estado de direito e dar o nosso próprio sangue, se for necessário. Portanto, não podemos permitir nunca mais que o Estado da Guiné seja um espaço de brincadeira. O que se espera é exactamente o Braima Camará servir o Umaro Sissoco Embaló como direcor nacional de campanha, não enquanto primeiro-ministro. Não havia necessidade de um novo governo, sabendo que o anterior tinha uma missão, não era um governo de gestão, era um governo de missão, e essa missão era exclusivamente organizar as eleições. Disse o antigo primeiro-ministro que o novo primeiro-ministro, Braima Camará, enquanto director nacional de campanha de Umaro Sissoco Embaló, que o antecessor já tinha feito um trabalho de 99%. Como é que se pode justificar um governo de missão para organizar eleições quando já havia 99% de todas as condições criadas? Portanto, eu acho que isto é uma brincadeira. Fez referência ao possível adiamento destas eleições para Maio de 2026. Quais seriam as motivações para adiar estas eleições?  Porque, enquanto Umaro Sissoco Embaló não tiver a certeza de que pode ganhar as eleições, ele não vai organizar eleições. E ele vai perder, mesmo que organize as eleições em 2030, ele vai perder, porque a sua atitude enquanto homem de Estado, a sua atitude enquanto estadista, não lhe granjeia simpatia do povo da Guiné-Bissau. Ou seja, perdeu toda a credibilidade necessária. Ele arroga-se de ter feito algumas obras, mas as obras não ganham eleições, o Macky Sall, no Senegal, nosso vizinho, não teria perdido. Umaro Sissoco Embaló, quando chegou ao poder, não fez nenhuma obra na Guiné-Bissau, mas ganhou as eleições. E eu espero que, já disse uma vez, para ganhar eleições na Guiné-Bissau nós temos 960.000 eleitores. A maioria do povo da Guiné-Bissau sente-se traída por Umaro Sissoco Embaló. O Presidente defende que vai manter todos os poderes até à tomada de posse do próximo chefe de Estado. Considera que esta interpretação da Constituição compromete este período pré-eleitoral? Esta atitude sempre foi a atitude de Umaro Sissoco Embaló desde que tomou posse há cinco anos. Já vamos para seis anos e ele quer levar as eleições e manter-se na presidência por sete anos. Portanto, esta foi a sua atitude. Ou seja, não respeita a Constituição e outras leis da República. O seu capricho é uma lei. Vamos ver se ele vai conseguir novamente impor o seu capricho como lei e fazer o que disse que vai fazer. Nós estamos aí para defender a democracia. E quais são, portanto, as estratégias da FREPASNA e da API para garantir que essas eleições decorram de forma justa? A API Cabaz Garandi é um projecto visionário, um projecto ambicioso, congregador, e que pode surgir como uma terceira via: essa é a nossa ambição. A API Cabaz Garandi não é associação de pessoas, é associação de ideias, de ideologia, de estratégias e de missão. Portanto, quem quer que seja que se desvie deste princípio vai sozinho e não vai conseguir arrastar ninguém. A API Cabaz Garandi vai-se manter enquanto projecto, enquanto um ideal político e alternativo ao poder na Guiné-Bissau, uma terceira via. Nós vamos reunir membros da API Cabaz Garandi para tomar medidas de sanção contra as pessoas que desrespeitaram os princípios que nortearam a fundação da API. Portanto, nós somos firmes e, enquanto membro fundador da API, vamos manter os nossos princípios e a lealdade aos princípios que nortearam esta fundação. As pessoas serão sancionadas e até inclusive com medidas de expulsar quem traiu os princípios da API.

    Ministro diz que “nunca choveu assim em Cabo Verde” e admite “atenção redobrada”

    Play Episode Listen Later Aug 12, 2025 7:34


    Cabo Verde decretou luto nacional de dois dias na sequência das fortes chuvas que provocaram vítimas mortais, desaparecidos e danos materiais. O ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, disse à RFI que “ninguém esperava” o que aconteceu, que “nunca choveu assim em Cabo Verde” e admite “atenção redobrada”, mesmo que “aparentemente” já não haja riscos. O Governo cabo-verdiano declarou estado de calamidade na ilha de São Vicente, a mais afectada, e na ilha de Santo Antão, onde também há danos a registar. Desta forma, pode-se accionar o fundo nacional de emergência, responder aos estragos provocados nas estradas, habitações, viaturas e outras infraestruturas e acudir às pessoas em situação difícil. Esta terça-feira, o vereador para a Protecção Civil, Ambiente e Saneamento da ilha de São Vicente, José Carlos da Luz, citado pela Rádio de Cabo Verde, indicou que o número de vítimas mortais subiu para oito. Em entrevista à RFI, logo pela manhã, o ministro da Administração Interna cabo-verdiano, Paulo Rocha, começou por dizer que o balanço que tinha ainda era o de ontem, ou seja, sete vítimas mortais confirmadas. Hoje continuam os trabalhos de procura, limpeza e remoção de escombros. Segundo informações do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica, uma onda de leste, inicialmente prevista como pacífica e que por isso não justificou qualquer alerta, intensificou-se ao passar sobre as ilhas ocidentais, incluindo São Vicente, Santo Antão e São Nicolau, provocando a precipitação intensa e trovoadas. O ministro da Administração Interna acrescentou que a chuva estava “prevista para chegar um pouco mais tarde, ontem de manhã, e chegou no início da madrugada”. Por isso, Paulo Rocha afirmou que “ninguém esperava”, que “nunca choveu assim em Cabo Verde ao longo da sua história” e que "isto que aconteceu em São Vicente é a primeira vez”. Agora, “aparentemente” já não há riscos, mas face ao inédito do ocorrido, a atenção continua "redobrada”. “Aparentemente não, embora a previsão seja de chuva de intensidade variável. Mas aquilo que aconteceu foi tão inusitado que agora ficamos todos assim a tentar perceber. Choveu muito de uma hora para a outra e com uma intensidade nunca vista. Foi pouco mais de duas ou três horas de chuva, entre a 1h sensivelmente e as 3 da manhã. A previsão era essa, previsão de chuva com intensidade variável. (...) A atenção está redobrada em todo o país, estamos todos em modo de alerta, à espera do que possa acontecer”, acrescentou Paulo Rocha. Questionado sobre os danos materiais, o governante explicou que “a situação mais grave é na ilha de São Vicente”. “A situação mais grave é realmente em São Vicente. Há, de facto, muitos estragos e uma avaliação dos danos que está a ser feita. Levaremos alguns dias a apurar tudo, mas o impacto desta tempestade é grande em São Vicente. (...) O impacto é abrangente nas vias de circulação e no comércio. O pequeno comércio foi severamente afectado nalgumas zonas, nalgumas ruas. Houve quem tivesse perdido absolutamente tudo, casas, muros que desabaram. Portanto, levaremos dias a fazer este levantamento”, acrescentou o ministro.

    Morte do jornalista Anas al-Sharif "é tentativa de silenciar as últimas vozes que transmitem genocídio em Gaza"

    Play Episode Listen Later Aug 11, 2025 9:42


    O jornalista palestiniano da Al-Jazeera Anas al-Sharif e outros quatro colegas foram mortos esta noite na Faixa de Gaza, com o o Exército israelita a admitir ter feito um ataque deliberado contra estes jornalistas. Desde o início do conflito, já morreram mais de 230 jornalistas na Faixa de Gaza. Num vídeo divulgado no Youtube, o jornalista palestiniano Anas al-Sharif, de 28 anos, agradece à Amnistia Internacional Austrália o prémio de Defensor dos Direitos Humanos 2024 e dedica este galardão ao pai, que morreu em 2023, num ataque israelita, mas também às centenas de jornalistas mortos no conflito, afirmando ser ameaçado constatemente pelas forças israelitas. Anas al-Sharif, juntamente com outros quatro colegas jornalistas que trabalhavam para a cadeia de televisão Al-Jazeera a partir da Faixa de Gaza, foram mortos esta noite por Israel num ataque que o exército israelita já admitiu ter sido deliberado, já que identificava Anas al-Sharif, um dos últimos jornalistas a trabalhar a partir de Gaza, como integrante das fileiras do movimento terrorista Hamas. Para Miguel Marujo, porta-voz da Amnistia Internacional Portugal, os jornalistas são actualmente alvos a abater em Gaza já mostram a realidade neste território fechado ao Mundo. "Para a Amnistia Internacional, esta [morte] é uma tentativa de silenciar as últimas vozes em Gaza que transmitem a trágica realidade do genocídio ao mundo. Aquilo que se está a viver no território da Faixa de Gaza e um genocídio em curso por parte de Israel contra os palestinianos de Gaza. E os poucos jornalistas que continuam a poder relatar em directo e ao vivo para o mundo todo, são sobretudo palestinianos que estão no território e estão a ser mortos às mãos do exército israelita", declarou Miguel Marujo, também director de comunicação da Aministia Internacional Portugal. Desde o início do conflito em Gaza, já foram mortos mais de 230 jornalistas, com as únicas notícias a saírem da Faixa de Gaza a serem transmitidas por jornalistas palestinianos, já que outros correspondentes abandonaram o território devido às dificuldades de vida e cobertura a partir do enclave. "O facto de Israel impedir que haja jornalistas estrangeiros independentes no território ajuda a perceber que aquilo que Israel pretende é que o mundo não tenha conhecimento do que se passa no território. Aliás, há um verdadeiro despudor da parte do governo israelita e do exército israelita em dizer que os jornalistas palestinianos são militantes do Hamas. Anas Al-Sharif, por exemplo, era acusado de ser um jornalista com ligações ao Hamas, que ele sempre negou. Ele sempre disse que era um jornalista sem qualquer afiliação política, que a única missão dele era relatar a verdade a partir do terreno. Tal como ela é, sem preconceitos. E isto é o trabalho de um jornalista", detalhou Miguel Marujo. Para Israel, Anas Al-Sharif comandava uma célula terrorista do Hamas e era responsável por vários ataques com misséis contra civis e tropas israelitas. Anas al-Sharif era um dos rostos mais populares da Al-Jazeera tendo, por vários vézes, mostrando emoção na sua cobertura jornalística e o júbilo dos palestinianos quando, em Janeiro de 2025, houve um período de cessar-fogo e pôde, durante alguns dias, retirar o capacete com a inscrição de "Press" que utilizava de forma quotidiana. A urgência em Gaza, para a Aministia Internacional, como organização que defende a manutenção dos direitos humanos no Mundo, é travar a violência na Faixa de Gaza, na Cisjorndânia e o regresso dos reféns israelitas detidos pelo Hamas, de forma a terminar este conflito que já dura desde Outubro de 2023. "Aquilo que a Amnistia Internacional tem defendido, pondo sempre a tónica que a sua defesa é a dos direitos humanos - e, neste caso, incluem-se também os reféns às mãos do Hamas [...]. Ao mesmo tempo, também tem defendido absolutamente a necessidade de um cessar fogo imediato da entrada de ajuda humanitária e, ao mesmo tempo, a libertação de todos os reféns ou apenas os corpos dos reféns que estejam já mortos, que estão às mãos do Hamas e que sejam entregues às suas famílias, como, aliás, as próprias famílias dos reféns têm pedido", concluiu Miguel Marujo. Os outros jornalistas mortos neste ataque foram Mohammed Qreiqeh e os operadores de câmera Ibrahim Zaher, Mohammed Noufal e Moamen Aliwa.

    Tratado Global dos Plásticos: “Está em jogo a saúde do planeta”

    Play Episode Listen Later Aug 8, 2025 8:39


    Representantes de 184 países iniciaram esta semana, em Genebra, Suíça, as difíceis negociações sobre o tratado global dos plásticos. O objectivo é redigir, em dez dias, o primeiro documento "juridicamente vinculativo" destinado a resolver a "crise mundial" da poluição por plásticos. Em entrevista à RFI, Valentina Muñoz, da ong Sciaena, sublinhou que esta é uma oportunidade crítica para alterar o rumo actual da produção e consumo de plástico. O texto está em discussão há três anos e os trabalhos que acontecem em Genebra, surgem depois do falhanço das discussões em Busan, na Coreia do Sul, no final de 2024, onde um grupo de países produtores de petróleo bloqueou qualquer avanço. No topo das exigências do grupo dos países "ambiciosos" - onde se incluem muitos países europeus - está o desejo de ver inscrito no tratado "um objectivo mundial de redução" da produção e do consumo de polímeros plásticos primários. Entre os países que se fazem ouvir contra o tratado, encontram-se os Estados produtores de petróleo e gás, como as monarquias do Golfo, o Irão e os Estados Unidos, que defendem um tratado centrado exclusivamente na reciclagem e no tratamento de resíduos. A estes acrescem-se as empresas da indústria petroquímica e as da indústria de bebidas engarrafadas em plástico. Na abertura do encontro, o presidente do comité de negociação, Luis Vayas Valdivieso, recordou que se trata de um “momento histórico face a uma crise mundial”. Terminados os discursos oficiais, começaram as difíceis manobras de negociação, com o grupo dos países árabes a pedir que a questão - que consideram “controversa” - da limitação da produção de plástico fosse discutida à margem das negociações formais. A postura faz antever negociações tensas até ao último minuto. Valentina Muñoz, responsável pelo lixo marinho, comunidades e sensibilização na organização não-governamental portuguesa Sciaena, encontra-se em Genebra a acompanhar os trabalhos. Em entrevista à RFI, sublinhou que esta é uma oportunidade crítica para alterar o rumo actual da produção e consumo de plástico. Um dos aspectos mais preocupantes é a toxicidade do plástico, tanto para os ecossistemas como para a saúde humana. E, apesar de os impactos já serem visíveis, as respostas políticas têm sido, até agora, tímidas e insuficientes. A activista lamenta que os Estados ainda não tenham tomado medidas concretas à altura do problema: “Os Estados têm que agir. Essa é que tem que ser a novidade”. No centro das negociações estão três temas centrais: a redução da produção de plástico, a regulamentação dos produtos químicos associados à sua produção, e o modelo de financiamento do futuro tratado. “Uma das questões mais importantes é a redução da produção de plástico. É também uma das mais controversas (...) Está em jogo a saúde do planeta”, frisou. Valentina Muñoz critica a narrativa de que a reciclagem é a solução mágica para o problema. Diz tratar-se de uma "falsa solução", promovida pela indústria para evitar mudanças mais profundas. Acrescenta que o problema é estrutural e está enraizado no actual modelo de consumo. “Este tratado é controverso porque questiona o status quo de tudo o que conhecemos, ou seja, de um sistema que é descartável, que foi vendido como o idílico, de consumir e descartar”. Apesar da complexidade das negociações e dos bloqueios, Valentina Muñoz mantém a esperança: “Ainda tenho um bocado de esperança [...] Há vários países que já mostraram muita ambição”.

    Afro Renaissance, a exposição que aponta o futuro da arte contemporânea africana

    Play Episode Listen Later Aug 6, 2025 9:39


    “Afro Renaissance, entre o legado e as transformações” é a exposição que nos desafia a entrar e descobrir uma parte daquilo que se poderia entender como uma das alas do rico e imenso palácio que é a arte contemporânea africana.O renascimento proposto pelo conjunto de obras seleccionadas apresenta múltiplas cartografias que, no fundo, nos convidam a reflectir sobre como um manifestar artístico plural pode ser uno e sem fronteiras. Em “Afro Renaissance”, patente na Oficina de Artes Manuel Cargaleiro, no Seixal, Portugal, o poder das obras, pinturas e fotografias, assinadas por artistas consagradíssimos e revelações de Angola, Cabo Verde, Nigéria e São Tomé e Príncipe, é o bilhete para a viagem que nos resgata ao presente, remete para um ponto algures num passado e nos projecta no futuro. A RFI falou com a curadora da exposição, Alexandra Martins, e com o fundador da plataforma Afrikanizm Art, produtora da exposição, João Boavida. RFI: O que é a Afrikanizm Art? João Boavida: A Afrikanism Art é uma plataforma de impacto social e cultural focada em promover tudo o que é arte contemporânea africana juntando artistas independentes, galerias, coleccionadores e clientes numa só única plataforma. Faz exposições em Angola e em Portugal e faz trabalhos com marcas também. O intuito é promover, educar e criar oportunidades para todo o ecossistema e, com isso, encontrar aqui uma valorização de todo o ecossistema. RFI: Está direccionada a todo o continente africano? João Boavida: Todo o continente africano e estamos neste momento a crescer para a diáspora, para os artistas afro-brasileiros e os artistas afro-americanos. Temos 220 artistas de 18 países africanos neste momento. Vamos juntar todo este ecossistema da africanidade e das suas raízes numa só plataforma. RFI: Alexandra Martins, curadora da exposição, como é que foi construída, como é que foi pensada esta exposição? Alexandra Martins: Segue um bocadinho aquilo que já se tinha iniciado com o Afro Renaissance em Angola, que foi a primeira edição deste ano. Aqui em Portugal também com muita consciência de que estávamos a abrir um novo caminho, um novo percurso, que era a nossa colaboração com as galerias. Portanto, partimos da reunião das obras de galerias que nós próprios seleccionámos e, de algum modo, juntámos com aquele que era o trabalho de artistas independentes que já trabalhavam connosco e muitos deles também iniciaram essa colaboração este ano. RFI: Qual é o conceito que está por trás da exposição Afro Renaissance? Alexandra Martins: Afro Renaissance é muito o diálogo entre o passado e o presente. Portanto, os artistas são levados a reflectir um bocadinho sobre essa questão e depois a produzirem artisticamente sobre essa questão. Neste caso específico é Afro Renaissance entre o legado e as transformações. Portanto, nós temos aqui, no fundo, três salas que fazem um percurso. A primeira muito avançada para ir delineada para o passado. Portanto, esta reflexão contemporânea sobre. A segunda sala pega na identidade e como é que ela pode ser transformada numa linguagem muito mais diferenciada. Portanto, uma perspectiva mais surrealista. E a terceira numa perspectiva absolutamente contemporânea. Aqui também, por exemplo, temos a fotografia que reflete um bocadinho esse percurso. RFI: Os trabalhos que estão aqui, uns foram pensados, criados propositadamente para a exposição, mas outros não? Alexandra Martins: Sim. Na primeira sala, por exemplo, temos dois artistas que criaram especificamente para esta (exposição), que é o Casca, com quatro obras, e a Micaela Zua, que faz colagens e é a primeira exposição que ela integra no início da carreira dela. São seis míni-colagens que ela faz. E o Júnior Jacinto também, fez quatro obras para esta exposição, separando-as na primeira sala e na segunda sala. O resto é uma forma de nós enquadrarmos obras de artistas com quem nós já colaborávamos, com a This is Not a White Cube e também com o trabalho de coleccionadores para esta exposição. RFI: Falando dos mercados internacionais, como é que está a aceitação destes artistas? Como é que os mercados estão a reconhecer o valor da arte contemporânea africana quando chega o momento de vender ou ir a leilão? João Boavida: Contra factos não há argumentos. O mercado transacciona em arte, a nível global de artes e antiguidades, 67,8 mil milhões. No entanto, a arte contemporânea africana é muito jovem num mercado já tão antigo. E também é um mercado que tem bastante preconceito. É um mercado que durante muito tempo viveu à porta fechada, não era um mercado democrático. Está a haver uma grande transformação por parte dos coleccionadores e de transição destas colecções mais antigas para novos coleccionadores que vêm à procura de coisas frescas. Está a haver uma mudança de comportamento com maior número de galerias. Isto abre um pouco o ecossistema. A arte contemporânea africana é recente, está num processo ainda de valorização internacional e só representa 1% a nível mundial. Ou seja, existe aqui, claramente, um problema, um desafio, mas também uma oportunidade. O problema é que nós precisamos de mostrar e de educar o que é a arte contemporânea africana, porque muita gente ainda pensa que é o pôr-do-sol, é uma cabana, é o elefante. E, na realidade, se nós olharmos aqui à volta, nós temos aqui várias linguagens, várias correntes artísticas. Aquilo que nós queremos numa exposição, e por isso é que o africanismo faz exposições, é que as pessoas consigam viajar dentro destes vários caminhos e digam “ah, não sabia que isto era a arte contemporânea africana”, “não sabia que isto existia”. É este o papel educativo que nós todos temos que fazer para valorizar este percurso. Temos que escalar para mais países porque há falta de informação e de data sobre o mercado. Transacções, artistas, galerias que também dêem confiança aos coleccionadores para investirem. Agora, há trabalho que está a ser feito. O Metro (Metropolitan Museum of Art) este ano está a investir 70 milhões de dólares em renovar o seu serviço de arte contemporânea africana, vemos as feiras como a 1 54 ( Contemporary African Art Fair) em Londres, Nova Iorque e Marrakech a fazerem um processo de evangelização muito grande, vemos a Art X Lagos que é uma feira que está a educar e transformar, porque há um papel educativo dentro do continente para gerar os coleccionadores locais, porque mesmo dentro dos coleccionadores locais há um processo de educação que tem que acontecer para que não vejam como arte como a que é vendida nos mercados informais, nós estamos a falar de artistas de galeria. E depois começar a desafiar e passar este processo de educação também aos artistas. A Bienal de Veneza é um fenómeno de credibilização brutal, vimos a ganhar representatividade ano após ano, tendo atingido o grande epicentro este ano mas, infelizmente, a curadora africana faleceu. No entanto, o trabalho dela já estava feito para esta Bienal e a verdade é que abriu aqui a porta para ainda mais artistas. Passámos, do ano passado, de uma representatividade de 50%, para este ano em que já estamos a falar provavelmente de 80%. Apesar de ainda não terem saído os relatórios, é mais ou menos isto que é esperado em termos daquilo que vão apresentar nos vários pavilhões. Só que há aqui um trabalho grande. Os mercados que mais consomem a arte são, em primeiro lugar os Estados Unidos que representam 40% do mercado, depois temos Inglaterra, que acaba por ser um mercado transaccional financeiro, temos a França, com ligações às ex-colónias e acaba por ter aqui já um trabalho há mais tempo, e depois a China que também está a crescer muito naquilo que é o consumir a arte e já começa também a receber arte contemporânea africana com algum trabalho que vem a ser feito tanto por leiloeiras como por feiras como a arte de Basileia. RFI: Renaissance vai ficar por aqui ou há a perspectiva de avançar para outras latitudes, para outros países? João Boavida: Temos três países claros na nossa missão, no nosso roadmap. Os Estados Unidos, a França e o Dubai é onde nós queremos escalar a nossa presença, através da presença física com as exposições, seja com a Afro-Renaissance como com a Intersections que são os dois conceitos que nós temos da autoria própria da Afrikanizm. RFI: E para quem quiser saber mais sobre a Afrikanizm Art e as diferentes iniciativas ou como vos contactar, como é que pode fazer? João Boavida: Através do nosso website do afrikanizm.com e também das redes sociais do Instagram, do Facebook, LinkedIn e, depois, também, se quiserem, podem-se inscrever na nossa newsletter e receber aqui vários artigos de blog dos nossos curadores, das galerias, do trabalho dos artistas. Vejam aqui algumas das obras expostas: Link plataforma Afrikanizm Art : https://www.afrikanizm.com/?srsltid=AfmBOoohb87065ZpmPXKbQfqtcMBX_8Y_BpCYGFi3T4yJpjUqaBk47if

    80 anos de Hiroshima: O apelo por estabilidade global

    Play Episode Listen Later Aug 6, 2025 9:04


    O mundo assinala nesta quarta-feira, 6 de Agosto, os 80 anos do bombardeamento nuclear norte-americano sobre a cidade de Hiroshima que precipitou a rendição do Japão e o fim da guerra no Pacífico. Um acontecimento trágico - com mais de 100 mil mortos e impactos duradouros na saúde e no ambiente - que mudou para sempre a História. Num contexto de apelos ao abandono das armas nucleares e das guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, António Sá Fonseca, especialista em Física Nuclear, denuncia o "abuso perpetrado pelos países que possuem armamento nuclear" e alerta para a necessidade de se estabelecer uma “ordem mundial mais estável”.   Em 6 de Agosto de 1945, os Estados Unidos lançaram uma bomba atómica sobre a cidade de Hiroshima, matando cerca de 140 mil pessoas. Três dias depois, uma bomba idêntica atingiu Nagasaki e matou mais 74 mil. Oitenta anos depois, que memória resta desta tragédia nuclear? É uma memória trágica. Quem visita o museu de Hiroshima percebe que foi uma tragédia imensa. Corpos derretidos, queimados, uma área enorme dizimada pela explosão da bomba nuclear. Essa realidade está bem patente no museu. Acho que é uma visita que todos os líderes mundiais deviam fazer, para terem noção do sofrimento e da desgraça que esse acontecimento representou. É uma bomba que atinge todos. Atinge os socorristas, os médicos, a população, os militares... É algo indiscriminado que paralisa completamente uma cidade, num raio que depende agora da potência da bomba. Pode ir dos cinco quilómetros aos 20, ou mesmo 50, conforme a potência. Hoje em dia, é algo perfeitamente devastador. Um acontecimento trágico que mudou para sempre a face do mundo. Este episódio acabou por determinar as futuras relações internacionais? Sim, para o bem e para o mal. As bombas nucleares são dissuasoras. De certa maneira, quem as possui consegue dissuadir os seus opositores de atacar, porque sabe que pode responder com armamento nuclear. Por outro lado, cria uma certa dose de impunidade para quem as tem. Isso está bem patente na guerra entre a Ucrânia e a Rússia, ou mesmo nas tensões entre Israel e Teerão. Na realidade, o Irão sabe que só será respeitado se tiver armas nucleares, e Israel não quer que o Irão as tenha - quando, na verdade, Israel já possui várias. Isto torna o mundo aparentemente instável e, de certa forma, perigoso. Oitenta anos depois do bombardeamento nuclear de Hiroshima e Nagasaki, o mundo parece fazer tábua rasa deste acontecimento, com vários países a modernizarem o seu armamento nuclear. A guerra da Rússia contra a Ucrânia contribuiu também para esta escalada? Acho que sim. Quem tem armas nucleares acha que tem poucas. A China, por exemplo, resolveu aumentar o seu arsenal. A Coreia do Norte fez o mesmo, porque sente necessidade de proteger o seu regime. E os países que não têm perguntam-se se também não deviam ter. Durante a governação de Biden, notou-se algum receio em escalar o apoio à Ucrânia, justamente por medo de que a Rússia pudesse usar armas nucleares e desencadear uma catástrofe global. Ainda recentemente se voltou a falar dessa escalada com o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o antigo chefe de Estado russo, Dmitri Medvedev... Entre Donald Trump e Dmitri Medvedev, trata-se de golpes de teatro - e nem sempre se percebe bem onde começa o teatro e onde acaba. Mas sim, o mundo está cada vez mais complicado. Há ainda as tensões no Indo-Pacífico - Taiwan, Mar do Sul da China - que colocam os Estados Unidos e a China em rota de colisão. O risco de um conflito nuclear é hoje uma realidade? Eu não gostaria de pensar nisso, porque essa possibilidade representa o fim da humanidade. Se, por acaso, os Estados Unidos, a China ou a Rússia começarem a lançar bombas nucleares, a civilização poderá ficar altamente comprometida. Depois de se lançarem várias bombas nucleares, gera-se um inverno nuclear -durante meses, ou até anos, a Terra deixa de receber luz solar, porque uma nuvem de poeira bloqueia o Sol. Isso impossibilita a produção de alimentos e o cultivo da terra. Há ainda a questão radioactiva, que afecta as populações que forem alvo dos ataques. É urgente estabelecer-se um novo acordo para eliminar totalmente as armas nucleares ou, pelo menos, criar uma ordem mundial mais estável. Porém, vejo uma certa instabilidade, com países a abusarem do facto de possuírem armamento nuclear, acreditando que não podem ser atacados. Há aqui uma guerra de medo e de contenção. Estas ambições desafiam também o regime da não-proliferação de armas nucleares? Sim, o regime de não-proliferação pode ficar cada vez mais comprometido. O Paquistão, por exemplo, foi em tempos acusado de ajudar a Coreia do Norte a desenvolver armas nucleares. Esta regra da não-proliferação pode ser contestada por alguns países. O Irão, desde sempre, defende o seu direito a possuir a bomba nuclear. Apesar de as autoridades iranianas negarem, sabe-se que tinham um programa que poderia conduzir à construção de uma arma. Há também o equilíbrio nuclear entre a Índia e o Paquistão, que continua frágil, especialmente com os episódios de violência na Caxemira. Como se define o direito a possuir armamento nuclear? Porque é que uns países podem tê-lo e outros não? É uma situação instável. Quem tem a bomba nuclear não quer que outros tenham. Mas como impedir o uso do nuclear para fins pacíficos - por exemplo, na medicina ou na produção de energia? Quem tem centrais nucleares precisa de combustível. Esse combustível é enriquecido a 3 ou 4%. Já para armamento nuclear, é necessário enriquecê-lo acima dos 90%. O processo exige uma estrutura tecnológica complexa, com centrifugadoras para atingir concentrações elevadas de urânio-235 e, eventualmente, alcançar a "críticalidade" necessária para produzir uma bomba. Mas essa é uma decisão que deveria ser tomada ao nível das Nações Unidas - embora, depois, possa ser quebrada por acordos bilaterais, secretos ou oficiosos. No mundo em que vivemos, não sei como se atinge um novo equilíbrio. Seria preciso muito bom senso, uma nova ordem na Rússia, eventualmente no Irão e também nos Estados Unidos. Com a emergência de eliminar os combustíveis fósseis, alguns países estão a retomar os planos para investir em energia nuclear - como a França, a Dinamarca e até o Japão. Os acidentes de Chernobyl (1986) e Fukushima (2011) mostraram os riscos. Os países estão conscientes desses perigos ou a energia nuclear é, de facto, uma opção viável? É uma opção viável para países grandes, com elevadas necessidades energéticas e que querem descarbonizar. No Japão, seria complicado apostar apenas em energia eólica ou solar, por causa da geografia e das convicções ambientalistas - o país tem uma grande ligação à natureza. Assim, as centrais nucleares surgem como uma hipótese. O Japão está, de facto, a reabrir algumas que foram encerradas após Fukushima. As autoridades estão a rever todos os sistemas e protocolos de segurança, tal como se fez na Europa e na América, com os chamados testes de stress a eventos externos súbitos. O objectivo é aumentar a segurança e a robustez das centrais. Mas ainda recentemente vimos um sismo, com alerta de tsunami, a ameaçar novamente o Japão. Sim, mas hoje em dia as centrais nucleares têm suficiente robustez para resistirem a certos fenómenos. Construíram-se muros mais altos, para que os sistemas de arrefecimento não fiquem vulneráveis a inundações -que foi, precisamente, o que causou o desastre de Fukushima. Na altura, a barreira construída era demasiado baixa, por razões financeiras, e mesmo assim a central recebeu autorização para funcionar. O problema não foi provocado pelas ondas em si, mas a falha no sistema de arrefecimento. Foi, claramente, uma falha do órgão regulador japonês. Hoje, as centrais são mais robustas, e as futuras ainda mais - com sistemas que impedem o sobreaquecimento, ou que desligam automaticamente, garantindo segurança mesmo em caso de falhas.

    "Opinião mundial sobre o conflito em Gaza está a mudar" com liderança de Emmanuel Macron

    Play Episode Listen Later Aug 4, 2025 9:28


    A França está a levar a cabo desde este fim de semana, juntamente com Espanha, largadas de bens de primeira necessidade em Gaza a partir da Jordânia. Ao mesmo tempo, cada vez mais países se estão a juntar ao apelo de Emmanuel Macron para se reconhecer o Estado da Palestina. Em Julho, a França deu o passo diplomático de reconhecer a Palestina como um Estado, estando actualmente a ser seguida por vários países ocidentais, nomeadamente o Canadá ou mesmo Portugal. No entanto, e apesar de haver uma onda de indignação no país, muitas vezes encabeçada pelo Presidente Emmanuel Macron sobre o tratamento dos palestinianos por parte de Israel, a França ainda hesita em opor-se completamente ao regime de Benjamin Netanyahu.  Este posicionamento explica-se pelo facto de a França ter efectivamente um poder militar que rivalizaria com Israel mas que só agravaria o conflito e por haver uma mudança internacional em relação à percepção da solução dos dois Estados, uma posição há muito defendida pelos consecutivos chefes de Estado franceses como explica Eric Monteiro, professor de Ciências Políticas da Universidade de La Rochelle, em entrevista à RFI. "A França tem esse poder, mas a costa marítima da Faixa de Gaza está protegida pelas forças armadas de Israel. Portanto, é impossível chegar por mar, a não ser que haja realmente um confronto entre navios do exército de Israel e da França. O que ninguém deseja pois iria cristalizar mais a situação do que outra coisa. Fazer largadas de ajuda humanitária de avião é muito mais fácil e é por isso que optaram Espanha e França por essa opção. A opinião mundial está a mudar. A França tem tido efetivamente, através do papel do presidente Macron e da sua liderança a nível internacional. A opinião mundial está a mudar", considera o docente universitário. França está assim a levar a cabo largadas de ajuda humanitária a partir da Jordânia, utilizando aviões franceses nessas missões. Para Emmanuel Macron, estas largadas "não são suficientes" e o chefe de Estado gaulês já pediu a Israel "pleno acesso" a um corredor humanitário.  O empenho de Emmanuel Macron na cena internacional tem a ver com a dificuldade da sua intervenção interna, com o conflito em Gaza a ter também influência no que se passa em território francês. Nesta semana, uma estudante palestiniana foi impedida de continuar em França após ter alegadamente feito apologia anti-semita contra Israel. Comportamentos que estão a ser severamente punidos em França já que as autoridades temem a infiltração de organizações com a Irmandade Muçulmana no país. "Os actos antissemitas foram multiplicados por mais de 1000, o que é um escândalo e que está globalmente a assistir a um anti-semitismo, como víamos há 100 anos  emFrança, quando houve o caso Dreyfus, entre o final do século XIX até à Segunda Guerra Mundial. A grande diferença é que o anti-semitismo dos anos 20/30 do século passado era essencialmente de extrema direita. Hoje ele é mais caracterizado pela extrema-esquerda, que tem dificuldade em reconhecer que o que o Hamas fez foi um acto de barbaridade", concluiu.

    Cabo Delgado: "Populações têm de escolher entre morrer na guerra ou morrer de fome"

    Play Episode Listen Later Aug 1, 2025 12:41


    A província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, enfrenta uma intensificação dos ataques atribuídos a grupos terroristas, agravando a crise humanitária na região. Desde o início do ano, cerca de 47 mil pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas, de acordo com uma ONG local, numa fuga motivada pela violência, pela fome e pelos desastres naturais. A situação preocupa autoridades e organizações, e a assistência internacional revela-se insuficiente. Ponto da situação com Abdul Tavares, do Centro para a Democracia e Direitos Humanos.   Cabo Delgado, no norte de Moçambique, vive uma nova vaga de violência, com recorrentes ataques imputados a grupos terroristas que levam à fuga das populações já ressentidas com a fome, a seca e os desastres naturais. Desde o início do ano, cerca de 47 000 pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas, de acordo com um recente relatório da ONG Instituto de Psicologia Paz de Moçambique. A maioria dos deslocados concentra-se no distrito de Chiúre, que acolhe  42 411 pessoas, de acordo com a ONG, e nos distritos de Muidumbe e Ancuabe. Presente em Cabo Delgado, Abdul Tavares, do Centro para a Democracia e Direitos Humanos, recorda que a ONU disse que "Moçambique vive a terceira crise mais negligenciada do mundo". "Moçambique, sobretudo a província de Cabo Delgado, tem a terceira maior crise a nível mundial, a crise mais negligenciada. E é o que nós vemos na província, sobretudo quando vamos para os campos de deslocados que hoje em dia vivem a sua sorte. Nestes últimos dois, três meses iniciou uma nova onda de ataques esporádicos por parte dos extremistas violentos. Tivemos ataques na zona de Mocímboa da Praia e Palma. Temos reiteradamente ataques na Estrada Nacional 380, em que os extremistas atacam viaturas, incluindo recentemente atacaram uma ambulância do Serviço Distrital de Saúde. No caso das viaturas particulares, exigem resgates e no caso das ambulâncias, retiram medicamentos e outros instrumentos de saúde. Recentemente tivemos também os ataques na localidade de Chiúre-Velho, o que criou uma nova onda de deslocados internos. Mais de 13 000 pessoas deslocaram-se para a sede do distrito de Chiúre... E isto acontece num contexto em que a ajuda humanitária reduziu drasticamente, com a retirada de financiamento das organizações internacionais, sobretudo devido à saída dos Estados Unidos." Que tropas e contingentes se encontram no terreno a combater os insurgentes? Face a estes factos, o ministro da Defesa, Cristóvão Chume, admitiu preocupação, a 31 de Julho, reconhecendo o alastramento dos ataques para "fora do centro de gravidade que as autoridades vinham assinalando" e admitindo que "nem sempre será possível evitar-se que situações como estas voltem a acontecer".  "Faz sentido o ministro ter falado nesses termos. E as organizações da sociedade civil, particularmente o CDD, sempre foi alertando sobre o risco que representa a saída da SAMIM [contingente militar da Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em Moçambique].  Houve a entrada de um novo efectivo por parte de Moçambique, mas não foi suficiente para fechar a zona tampão que compreendia a zona de Macomia. Os insurgentes têm esta capacidade de andar pela mata e chegar a zonas em que é difícil acompanhar os seus movimentos." A SAMIM retirou-se oficialmente a 4 de Julho de 2024. Recentemente, a União Europeia prolongou até 2026 a missão de treino militar destinada às tropas moçambicanas e continuam, presentes no terreno, para além das tropas moçambicanas, contingentes do Ruanda, e também da Tanzânia.  Mas a resposta militar em Cabo Delgado "continua envolta em segredos", e como refere Abdul Tavares, "não se sabe" porque é que a União Europeia optou por financiar o contingente ruandês em Cabo Delgado, em vez de financiar directamente o exército moçambicano.  "Quase toda a resposta militar em Cabo Delgado continua envolta em segredos. É preocupação de todos saber porque é que a UE financia as tropas ruandesas, não as moçambicanas. Mesmo nós, organizações da sociedade civil, não temos respostas concretas em relação a esta escolha da União Europeia. Para além das tropas ruandesas e moçambicanas, há também a presença das tropas da Tanzânia. O Governo moçambicano tem um memorando com a Tanzânia em matéria de apoio bilateral. E eles ainda continuam activos, não directamente na linha de frente, mas a apoiar de alguma forma nas zonas de conflito." "O maior interesse sempre foi criar zonas-tampão à volta dos projectos das multinacionais" Em 2024, morreram 349 pessoas em ataques de grupos extremistas islâmicos no norte de Moçambique, um aumento de 36% face ao ano anterior, segundo o Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS). Fica uma questão: como explicar as declarações das autoridades que, até recentemente, relativizavam a situação em Cabo Delgado? Recentemente, o Presidente Daniel Chapo apelou a empresa petrolífera francesa Total Energies a retomar o projecto de exploração de gás natural liquefeito, na península de Afungi, em Cabo Delgado. "O maior interesse em termos de posicionamento das tropas, sempre foi fazer o tampão da zona onde os grandes projectos multinacionais, sobretudo de gás, estão a operar.  Então a resposta do governo moçambicano (o anterior e o actual) sempre foi para tranquilizar os investidores internacionais, para passar uma imagem de que está tudo bem. Mas no terreno sempre houve um e outro incidente que colocava em causa esta narrativa. Por exemplo, não era efectivo o regresso das pessoas deslocadas das suas zonas de origem, assim como não se consegue assegurar a circulação de mercadorias através da estrada 380 que liga ao norte de Cabo Delgado."  Quanto ao perfil dos insurgentes, de acordo com Centro de Estudos Estratégicos de África, trata-se de um grupo afiliado ao grupo extremista Estado Islâmico. Chamado Ahlu-Sunnah wal Jama`a (ASWJ), o movimento terá sido criado por um grupo de paramilitares na Somália. Foram eles que reivindicaram, nas suas redes sociais, o recente ataque em Chiúre, a 24 de Julho. Mas, em Cabo Delgado, persistem dúvidas à volta da identidade dos grupos terroristas, sabendo-se apenas, como aponta Abdul Tavares, que a maioria deles são moçambicanos. "Hoje já deveríamos estar mais ou menos esclarecidos em relação a esta questão, mas penso que as dúvidas acabam aumentando. A percepção que se tem é de que é um grupo organizado, na sua maioria composto por jovens locais, jovens moçambicanos. Pode haver uma ou outra liderança internacional, mas eles aproveitam-se da existência de esses grupos a nível internacional e fazem propaganda para merecer um determinado apoio por parte desses grupos. Então é extremamente difícil imputar-lhes uma identidade específica. O que se sabe é que este grupo tem tentáculos internacionais." Que objectivos perseguem os grupos terroristas em Cabo Delgado? Ainda de acordo com o Centro de Estudos Estratégicos de África, estes grupos terroristas afiliados ao Estado Islâmico perseguem o objectivo de "alargar o conflito, deslocando-se para o interior e para áreas mais rurais". Mas, de acordo com Abdul Tavares, não se observa uma clara intenção em conquistar novos territórios. "A ambição até pode existir, mas não nos parece que haja esta capacidade. Pelo menos por enquanto. A província de Cabo Delgado é extremamente vasta e ocupá-la significa aumentar de forma significativa o número de combatentes. E é também difícil conquistar um espaço dentro das comunidades de outros distritos.  Por exemplo, para distritos como Mocímboa da Praia ou Palma, os insurgentes precisaram de um tempo de preparação, de treinamento e de presença. Lá, os combatentes são originários dali do distrito. São jovens conhecidos, que eram comerciantes, etc. Tinham uma ligação com a terra que depois foram atacar, e onde se foram acantonar. E não nos parece fácil que um grupo que está acostumado a viver na zona norte de Cabo Delgado tenha esta mesma facilidade na zona centro, por exemplo. O alastramento do conflito para zonas mais recuadas pode significar que procuram recursos para alimentar a própria guerra e não necessariamente que eles procurem se instalar noutras zonas. Não nos parece que seja isso. Parece que o objectivo seja também o de comprometer, talvez, o regresso dos investimentos internacionais." "Deslocados actualmente escolhem entre morrer de fome ou morrer da guerra" Desde o início do ano, 47 000 pessoas foram obrigadas a deslocar-se e totalizam-se, desde o início dos ataques em 2017, mais de 1 milhão de deslocados, segundo a ONU, devido também aos desastres naturais e às secas recorrentes. Para onde vão estas pessoas? Muitos centros de acolhimento deixaram de ter ajuda alimentar, devido ao contexto internacional, explica Abdul Tavares, pelo que resta aos deslocados a dura escolha entre partir ou ficar em zonas inseguras, mas onde existem alimentos.     "Antes, as pessoas iam para centros de acolhimento de deslocados. Os centros eram locais seguros porque as agências das Nações Unidas, sobretudo o Programa Alimentar Mundial (PAM), estavam no terreno e ofereciam comida, senhas... Isto ajudava na sobrevivência de muitas famílias deslocadas.  Hoje, com a retirada do PAM, essas pessoas começaram a repensar entre ficar nos centros de acolhimento e morrer de fome ou voltar para os seus distritos para fazer a sua machamba e morrer da guerra. Os centros de acolhimento já não têm alimentação, nem água, nem conseguem garantir o acesso a cuidados básicos. Estamos a falar de pessoas que têm problemas psicossociais porque viveram a guerra, viram seus familiares a serem decapitados, viram suas casas a serem queimadas. Estes, preferem ficar numa zona segura em termos de conflito, preferem morrer de fome do que da guerra. E outros preferiram morrer da guerra do que da fome."

    Angola: mortes e detenções nas ruas após revolta popular colocam em questão acção da polícia

    Play Episode Listen Later Aug 1, 2025 7:53


    Em Angola, mortes, caças às bruxas, julgamentos sumários e ainda indícios de tensão social nalgumas regiões do país continuam a fazer ecos da já terminada greve dos taxistas, que terá motivado a desordem popular. Na capital angolana, já é visível a reabertura tímida de alguns centros comerciais, sendo que uns ainda permanecem encerrados, o que condiciona a vida de várias famílias, que também receiam a fúria da polícia. A cronologia dos três dias de paralisação dos serviços de táxi, devido ao aumento dos combustíveis, causou a destruição de estabelecimentos públicos e privados e a morte de vários cidadãos. Dados oficiais apontam para mais de 30 mortos, centenas de feridos e milhares de detidos, mas vídeos partilhados nas redes sociais contrariam os números do Governo. Ana Mabuila, de 33 anos, antiga moradora da CAOP, em Viana, é apenas uma das vítimas mortais não contabilizadas nas estatísticas do Governo. As redes sociais fizeram questão de a enumerar e viralizar a sua morte nesta quarta-feira, 30, para o conhecimento do mundo, como lamentam os irmãos da malograda, Victor e José Mabuila. “A dedicação e o crescimento de uma criança, não é fácil. A mãe estava aqui, minha irmã estava aqui, estava a dar tudo para a criança dela. Fazia de tudo. Agora, o marido está mesmo aí sentado e estava de viagem. Chegou só ontem de noite. Veio mal, não trabalha, não tem nada, é motoqueiro. Enche e repara pneus, não sei como vamos sair desta situação. Espero que o governo olhe para este caso de grande responsabilidade. Por amor de Deus, se faz favor", diz Victor Mabuila. “O tio não trabalha. Onde é que ele vive? Vive na casa de arrenda. A própria irmã vive na casa de arrenda. O marido vende ferro, não tem possibilidade de conseguir assumir a responsabilidade dessas crianças que deixaram. O próprio Estado que matou que assuma a responsabilidade dessas crianças. Dar a casa às crianças, pôr o homem no trabalho, para conseguir cuidar daquelas crianças. Deixou um bebé com 7 meses que não tem alguém para conseguir a cuidar”, acrescenta. “Não temos nada. Dormimos aqui fora. Vizinhos e o próprio marido. Acabou. Nem o próprio Estado que fez o próprio crime, nem chegou a perguntar, nem de vir visitar. Nem o próprio comandante da polícia”, queixa-se o parente. Mas, ainda assim, o Ministro angolano do Interior, Manuel Homem, insiste que a situação de segurança pública no país está controlada e estável, quando ainda há relatos de execuções sumárias, detenções e clima de tensão nalgumas localidades de Angola. “A situação de segurança pública no país é calma. Os órgãos da Segurança Nacional do Ministério do Interior, ao nível do país, estão empenhados com forças e meios para assegurar que exista a normalidade que se impõe. Queremos transmitir aos cidadãos angolanos e à comunidade residente do nosso país que continuaremos empenhados em assegurar que a segurança pública no nosso país não sofrerá alterações que inviabilizem a vida social de todos nós”, garante o governante. Na Lunda Norte, por exemplo, o rasto terá provocado seis mortos e continua a causar a detenção de muitos jovens. O activista Fiel Muaco descreve o cenário a partir da Lunda Norte. “Na verdade, na província da Lunda Norte, onde me encontro também, esta greve abrangeu e houve muitos tiroteios. E nesta altura existem nas esquadras muitos jovens que estão lá detidos. Para além dos feridos, falando assim no Lucapa, temos um ferido, no Dundo temos feridos e morte. Só que estas mortes no Dundo, as pessoas falam de duas pessoas a quatro, mas tudo ainda está no segredo dos deuses. Como os hospitais são deles, estão a querer esconder isso aqui, para não sair á tona. Mas em todo caso, eles prometeram continuar a deter pessoas. Mas o clima está mal, porque mesmo a polícia está sempre de alerta, o que indica que o clima não está favorável”, denunciou Fiel Muaco. Para a satisfação dos habitantes de Luanda, os transportes colectivos retomaram parcialmente a circulação em vários pontos da capital. O porta-voz da Empresa Pública de Transporte Colectivo de Luanda (TCUL), André Gomes, confirma que os autocarros começaram a circular nesta quarta-feira, 30 de Julho, tentando normalizar o serviço em meio às dificuldades operacionais. “Pelo facto da paralisação e vandalização dos autocarros, dizer que a TCUL teve, infelizmente, mais de 10 autocarros vandalizados. Isto é muito preocupante. E sabemos que deixamos também de arrecadar valores. Mas para a TCUL é, de facto, necessário os valores ou a receita. Mas o mais importante é mesmo aquilo que é a nossa responsabilidade de transportar a população. Para isso, dois dias, deixamos de transportar mais de 500 mil passageiros. Deixamos de arrecadar mais de 48 milhões de kwanzas”, lamenta André Gomes. “Nós temos uma frota de mais de 70 autocarros. Nós os vamos começar a colocar num funcionamento normal. Estamos a falar de Deolinda Rodrigues. Estamos a falar da estrada de Catete, Mutamba, Viana. Vamos para Benfica, Ilha de Luanda. Nós estamos a preparar-nos, de facto, para o funcionamento normal. E estamos aqui para servir a população”, explica ainda o director. A Igreja Católica também repudiou a actuação da polícia e a vandalização de património público e privado. Dom José Manuel Imbamba, líder da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé e Príncipe (CEAST), apela ao civismo e ao diálogo. “É preciso que não fiquemos tranquilos perante este evento de vandalismo, de arruaças, este evento de desordem, de violência, de desobediência, este evento de vícios, de roubalheira, este evento que não ajuda a elevar a nossa dignidade”, começa por declarar o sacerdote. “Não podemos ficar indiferentes, não podemos ficar tranquilos só olhando os efeitos. Temos que ir às causas, temos que ver porque este estado de situação está a acontecer. Temos que ver a qualidade das nossas respostas, a qualidade das nossas políticas públicas, a qualidade do nosso empenho profissional, a qualidade do nosso empenho cívico, a qualidade da nossa entrega para que o bem que depende de mim, a acção boa que depende de mim, não falte aos nossos irmãos, a quem somos chamados a servir”, recomenda o religioso. “Este é o esforço que temos que fazer para que verdadeiramente o diálogo flua entre nós. A capacidade de escuta seja permanente, a capacidade de discernimento seja permanente, a capacidade de escolhermos coisas boas, coisas dignas para os nossos irmãos seja permanente. E é este esforço que hoje convido todos nós a fazermos, sobretudo apelando aos nossos jovens para que não caiam nestas desgraças”, exortou o prelado católico. Refira-se que desde quarta-feira, começaram a ser julgadas as pessoas suspeitas de terem participado nas pilhagens e actos de vandalismo ocorridos durante os três dias de greve observados pelos taxistas de Luanda em protesto contra a subida do preço do combustível e, num sentido mais lato, contra o aumento do custo de vida. Apesar de estes incidentes se terem registado durante o bloqueio encetado na segunda-feira, os representantes dos taxistas dissociaram-se destes actos e condenaram veementemente os distúrbios.

    Expedição científica revela biodiversidade desconhecida nos Bijagós

    Play Episode Listen Later Jul 31, 2025 20:34


    A investigação no arquipélago da Guiné-Bissau permitiu conhecer uma biodiversidade local rica e até então desconhecida, mas também mostra a presença alarmante de espécies não nativas num dos ecossistemas mais intactos da África Ocidental. O trabalho liderado equipa do Centro de Ciências do Mar do Algarve (CCMAR), em portugal, em colaboração com as instituições locais da Guiné-Bissau, Instituto da Biodiversidade e Áreas Protegidas (IBAP), e o Instituto Nacional de Investigação Pesqueira e Oceanográfica (INIPO), documentou, em 2023, 28 novos registos de invertebrados marinhos no arquipélago de Bijagós, incluindo seis espécies nunca antes observadas no Atlântico Oriental e encontrou duas novas espécies de camarão endémicas da região: a Periclimenes africanus e uma segunda, ainda não descrita, do género Palaemon. A expedição científica envolveu comunidades piscatórias e foi também elemento dinamizador da formação de técnicos locais. Em entrevista à RFI, Ester Serrão, coordenadora da expedição e investigadora da Universidade do Algarve e do CCMAR, refere que o sucesso da missão só foi possível graças à excelente colaboração das equipas de Portugal e da Guiné-Bissau. Ester Serrão começa por descrever o valor da biodiversidade dos Bijagós, facto que fez com que o arquipélago tenha sido classificado pela UNESCO como Património Mundial Natural. Ester Serrão, coordenadora da expedição e investigadora da Universidade do Algarve e do CCMAR: Em termos de natureza, é extraordinária. É uma zona onde os ecossistemas são geridos por entidades oficiais em grande estreita colaboração e dependente das pessoas que vivem nos Bijagós, que têm as suas próprias regulamentações, as suas próprias tradições e, portanto, toda a utilização da natureza é, desde há muito tempo, feita de uma forma muito integrada entre as pessoas que lá vivem e, em algumas zonas, nem sequer há pessoas, porque são muitas, muitas ilhas e, portanto, eles gerem certas ilhas mesmo como reservas que eles próprios criam devido a suas tradições e a considerarem que certas zonas, por exemplo, são sagradas, etc. Para além da riqueza natural que esta zona tem, por ser uma arquipélago com tantas ilhas e com tanta riqueza que vem da sua localização privilegiada e da situação, com umas ilhas mais próximas da zona de grandes rios, de grandes mangais e outras mais longínquas, mais afastadas, com águas mais transparentes, tudo isto, são zonas de poucas profundidades, etc. Toda esta situação geológica, oceanográfica e climática cria ecossistemas muito ricos. Para além disso, a gestão pelas pessoas não tem sido um foco de destruição significativo como tem sido muito mais noutras zonas vizinhas, digamos, e, portanto, recebeu este reconhecimento muito merecido de ser Património Mundial Natural. RFI: Esteve a coordenar um projecto nos Bijagós, quais os objectivos deste projecto quando se propôs avançar com esta investigação? Ester Serrão: O programa é para toda a costa atlântica de África. Os Bijagós é um dos locais particulares onde focámos mais atenção e o objectivo era conhecer a distribuição das espécies, que espécies existem, a composição das espécies marinhas menos conhecidas. Há muitos outros estudos, programas e projectos de outras entidades e de outros países sobre, principalmente, espécies mais carismáticas, como aves, como tartarugas, como mamíferos marinhos, até peixe. Nós focámos mais em aspectos da biodiversidade, então, complementares aos que se conheciam, pouco conhecidos, como o que chamamos genericamente florestas marinhas, que podem ser florestas animais, como os corais, as esponjas e outros grupos de invertebrados com os nomes difíceis de as pessoas conhecerem, e também grandes macroalgas, plantas marinhas, portanto, este tipo de biodiversidade que está debaixo da superfície do mar e que, normalmente, as pessoas não conhecem, porque só indo para debaixo do mar é que as conseguem ver, quanto muito na maré muito baixa. Mas, também, tivemos por objectivo dar a conhecer a informação toda que já existe, mas que não está facilmente disponível ao público, porque houve já muitos projectos, muitos estudos, etc., que estão publicados, por exemplo, em artigos científicos, ou em teses, ou em relatórios de projectos, e toda essa informação, se as entidades locais quiserem utilizá-la para a gestão, ou, por exemplo, para o dossiê da candidatura ao património mundial, era difícil chegar a toda esta informação. O que fizemos foi, penso, uma contribuição muito útil para a gestão, para a ciência, para os cidadãos, foi pôr a informação toda disponível, foi recolher a informação que existe em portais, em publicações, em relatórios, muitas vezes não publicada, nos dossiês, nas prateleiras, e juntar toda essa informação, colocá-la toda numa base de dados única, e disponibilizá-la num portal de utilização livre, gratuito, e qualquer pessoa pode ir lá, recolher os dados, ver os mapas de distribuição das espécies, etc. Por exemplo, no caso dos Bijagós, isto teve muita utilidade o dossiê, porque, quando perguntaram às entidades de conservação e gestão da natureza da Guiné-Bissau, quais são as espécies que existem dentro da zona a proteger, da zona a designar, comparativamente com fora, nós tínhamos recolhido neste projecto já essa informação toda. Tínhamos as coordenadas geográficas onde já tinham sido avistadas cada espécie, e toda a informação e todos os estudos tinham sido feitos anteriormente. Portanto, estamos a desenvolver este programa, não só para os Bijagós, como estamos a tentar desenvolver isto para toda a costa atlântica da África.   RFI: Este foi um trabalho realizado não só com gente que a acompanhou daqui da Universidade do Algarve, também envolveu investigadores da Guiné-Bissau e a comunidade local. Ester Serrão: A comunidade local é essencial, não se podia fazer este trabalho sem a comunidade local. O programa inteiro foi, logo de início, planeado com entidades locais. Foram, primeiro, feitas conversas e inquéritos sobre quais são as vossas necessidades, em que é que gostariam de ter mais formação ou mais apoio do ponto de vista científico, e depois desenvolvemos este programa, tanto para recolher informação em falta, como para fazer capacitação, ou seja, para melhorar o conhecimento em certas metodologias que poderiam ser úteis a quem já é profissional nestas instituições, mas que gostaria de melhorar a sua formação, por exemplo, em sistemas de informação geográfica, ou em estatística, ou em outras técnicas ou outros conhecimentos. E, portanto, em colaboração com as entidades locais, definimos quais eram as lacunas de conhecimento e estabelecemos o mestrado profissional para profissionais apenas, para pessoas que já trabalhavam, pelo menos, há cinco anos, por exemplo, nos institutos da pesca, nos institutos da conservação de natureza, em organizações não-governamentais, etc. Tivemos vários tipos de estudantes que vieram trabalhar neste programa, recolher também os dados e informação e integrá-los e levá-los de volta para os seus países. Portanto, as campanhas foram planeadas com as entidades locais e com estudantes para contribuir para as suas teses e para a informação que as entidades locais necessitavam. E depois, as campanhas locais foram organizadas com eles. Planeámos conjuntamente onde é que deveríamos ir fazer as amostragens, quais eram os sítios mais importantes, o que é que deveríamos ir estudar, e, portanto, o seu conhecimento local era indispensável. Nós fizemos um conhecimento complementar ao que eles já tinham, Acaba por ser uma sinergia, um daqueles casos em que o todo é mais do que só uma das partes isoladas. No caso dos Bijagós, por exemplo, a maior parte do trabalho foi desenvolvido com o Instituto da Biodiversidade e Áreas Protegidas, que fazem um trabalho excelente na zona, com os recursos que têm, fazem um trabalho excelente, são exemplares, de facto. RFI: Foi recentemente publicado o resultado desta investigação. Quais são as descobertas mais assinaláveis, de maior relevo, que este vosso trabalho veio a revelar? Ester Serrão: A biodiversidade subaquática, a biodiversidade que fica debaixo da superfície do mar e que não é visível facilmente a qualquer um, tem muitas espécies e muitos habitais que não eram conhecidos anteriormente. O que foi mais surpreendente, que os próprios colaboradores, os outros biólogos das entidades locais nos diziam que ficavam surpreendidos, é que como nós íamos a mergulho com o escafandro autónomo, podíamos passar muito tempo dentro de água, olhar para o fundo e encontrar espécies que só se encontram estando ali, com cuidadinho, a olhar para o fundo e a ver, “ah! está aqui esta no meio das outras”, etc. Portanto, descobrimos florestas de corais, alguns corais que parecem árvores, porque são as que nós chamamos as gorgónias, os corais moles, muito ramificados, uns cor-de-rosa, outros amarelos, outros roxos, muitas cores, muito bonitas estas florestas de gorgónias, que não se conheciam, não estavam registadas para os Bijagós. Por exemplo, de corais e esponjas, muitas esponjas, também muito coloridas e grandes e ramificadas, que também parecem florestas. Muitas macroalgas, grandes florestas de grandes algas, vermelhas, castanhas, verdes. Pradarias marinhas, são umas plantas marinhas que até não são de grandes dimensões, nos Bijagós só existe uma espécie tropical que até é bastante pequena, mas que afinal está muito mais espalhada, existe em várias ilhas e em vários locais, muito mais do que se sabia anteriormente. Portanto, a descoberta e a cartografia da localização deste tipo de ecossistemas foi uma grande novidade e acho que é importante para chamar a atenção da riqueza dos Bijagós, que para além de tudo o que já se conhecia, que é uma riqueza extraordinária, o que terá sido talvez a maior novidade foi o nosso foco nestas outras espécies que normalmente têm menos atenção. RFI: Estamos a falar do lado revelador, mais positivo, que este projecto trouxe à tona, mas se calhar depois também poderá haver aspectos menos positivos, com os quais também se depararam. Possíveis espécies invasoras, possíveis efeitos de poluição, de alterações climáticas? Ester Serrão: Hoje em dia, tanto as alterações climáticas como as espécies invasoras são um problema global, que infelizmente afecta especialmente os países que pouco contribuem para o problema. Muitas vezes são os países menos desenvolvidos que mais natureza têm e que têm mais a perder com estes efeitos globais, que não foram criados tanto por eles, porque são criados mais por países mais industrializados, que já destruíram mais a sua natureza. Mas, então, no caso das espécies invasoras, acabamos por descobrir um grande número destas espécies invasoras que são invertebrados, agarrados às rochas e que competem com outras espécies que também necessitam do espaço nas rochas para se agarrarem, que são nativas. Tal como se nós pensarmos no meio terrestre, toda a gente compreende a competição pelo espaço de certas espécies. Por exemplo, nas plantas, o chorão, que é uma espécie que invade muitas áreas e não deixa que outras plantas se instalem, cobre tudo. Dentro do mar, podem pensar no mesmo aspecto, no mesmo problema, há rochas que ficam cobertas por espécies que são invasoras, que não são da zona e que impedem as espécies naturais nativas da zona de encontrar espaço para se instalar, enquanto elas se reproduzem têm umas pequenas larvas que têm que se agarrar às rochas para originar o próximo coral, por exemplo, ou a próxima esponja, e que se estiver tudo coberto por uma espécie invasora já não se podem instalar. Muitos destes grupos têm uns nomes até pouco conhecidos das pessoas, como há uns briozoários, umas ascídias, outros grupos próximos dos corais, e que foram descobertos com abundância inesperada nesta zona, que é tão natural, não estamos à espera de encontrar tanta espécie invasora. Ora, como é que isso acontece? A maior parte destas espécies vem de zonas longínquas, a zona nativa não é mesmo ali perto, por isso é que são espécies exóticas. Vêm ou do Indo-Pacífico, algumas poderão ter vindo do outro lado do Atlântico, ou vêm todas do Indo-Pacífico e acabam por entrar ou de um lado do Atlântico ou do outro, e, portanto, a origem mais provável é o tráfego marítimo, a circulação de grandes navios, tanto de mercantis como até de pescas, que vêm não para dentro dos Bijagós, não há grandes navios, é uma zona muito baixa, mas ao longo de toda a costa atlântica da África, a circulação de navios é uma coisa enorme. Portanto, podem trazer espécies ou agarradas aos cascos ou nas águas de lastro, que são águas que enchem os porões num determinado sítio e depois largam num outro sítio diferente, e lavam as larvas e tudo o que estiver na água e vai se agarrar ao fundo. Portanto, podem essas espécies depois serem introduzidas, por exemplo, no Senegal, que é mesmo ali ao lado, e depois, através de pequenos objectos flutuantes ou agarradas aos cascos dos barcos mais pequenos, das canoas, etc., acabam por se ir espalhando e chegando mesmo aos Bijagós. Nas nossas amostragens, muitas espécies foram amostradas, que foram depois sequenciadas com o ADN para encontrar, para verificar qual o nome da espécie, através de métodos moleculares, que são métodos que permitem, de forma mais eficaz, ter a certeza que aquela espécie não é exactamente a mesma que outra muito parecida morfologicamente, mas que a sequência do ADN é diferente. As mais fáceis e mais rápidas de identificar foram as exóticas, porque aquela sequência já existia na base de dados, exactamente a mesma sequência daquela espécie já existia na base de dados, por exemplo, do Indo-Pacífico. Dizemos, isto é a mesma espécie do Indo-Pacífico que está aqui, ou a mesma espécie que existe nas Caraíbas, e não se sabia que estava aqui deste lado do Atlântico, não se sabia que existia em África. Afinal, algumas espécies são registos novos para a costa de África, e que provavelmente estão nos outros países todos da costa de África. Mas ainda não foram encontradas, porquê? Porque ainda não foi feita essa amostragem, que só se encontram se andarmos, de facto, nas rochas, como neste caso, andámos em mergulho, portanto, com atenção às rochas, a apanhar todas as pequenas espécies que eram diferentes umas das outras. É a mesma amostragem indicada e depois a sequenciação para verificar, de facto, é uma espécie que não é endémica dali. Há muitas outras espécies que ainda não foram identificadas e que não estavam directamente já presentes nas bases de dados, e portanto, elas podem vir a ser mesmo espécies novas, ainda não conhecidas para a zona. Mas a quantidade de espécies invasoras é um problema, porque algumas delas espalham-se bastante, têm uma grande cobertura, quando cobrem as rochas, de forma muito contínua e não deixam espaço para as outras espécies se instalarem. E ficamos a pensar como é que teria sido esta zona, como é que teriam sido os Bijagós antes destas espécies invasoras chegarem lá. Porque agora vemos que elas são muito abundantes e que ocorrem por todo lado. Algumas cobrem mesmo zonas muito significativas, onde anteriormente teriam estado espécies nativas e, portanto, pensamos, já chegámos um bocadinho tarde, gostaríamos de ter tido uma baseline, uma linha de base, do que é que teria sido o estado dos Bijagós, antes destas espécies invasoras todas terem colonizado estas zonas. Já fizeram alguma alteração, certamente, mas nunca vamos saber o que é, porque foi no passado e não ficou registado. RFI: O resultado desta investigação foi recentemente publicado. Depois deste resultado publicado, a investigação continua? Ester Serrão: Exacto. Este trabalho todo fazia parte da tese de mestrado de um aluno, profissional do Instituto das Pescas da Guiné-Bissau, o Felipe Nhanque. Portanto, fazia parte do mestrado profissional que criámos no Programa MarÁfrica e, com estes dados, criou-se um portal que disponibiliza os dados todos que foram recolhidos, não só nas nossas campanhas, como todos os que já existiam de todas as fontes anteriores, desde 1800 e tal. Está tudo, agora, disponível ao público. Portanto, ele, como foi formado nesta área, continua a procurar mais informação e a entregá-la para o portal. O portal é actualizado mensalmente, com toda a informação nova que existe, é o portal Mar África. Se procurarem Mar África, encontram o portal. Tem bases de dados para os Bijagós, para o Parque Nacional do Banco d'Arguin naMauritânia, para as áreas marinhas protegidas de Cabo Verde, para a zona de transição entre a Namíbia e Angola, a zona do Cunene, que é muito rica também. As primeiras zonas de foco são zonas especialmente ricas em biodiversidade, que colocámos os dados todos que foram recolhidos já disponíveis. E, portanto, continua a haver mais campanhas, nós próprios vamos continuar a ir lá, fazer mais campanhas em colaboração com as mesmas entidades e os mesmos investigadores para continuar a ajudar. Eles próprios foram equipados com este equipamento de mergulho, por exemplo, e também fizemos formação e continua a ser feita na parte da identificação molecular das espécies P ortanto, eles podem continuar por si só, mas nós também continuamos a colaborar. O programa continua em termos de uma colaboração contínua e sempre que há oportunidade fazemos mais algumas campanhas para complementar o trabalho e para continuar. Portanto, por um lado, continua de forma automática, todos os meses é actualizado o portal, com a informação nova que existe e, por outro lado, mais campanhas e mais trabalho de campo e mais colaboração do ponto de vista de reuniões directas e conversas directas. Estamos sempre em contacto, porque criámos uma rede, que não foi só para naquele momento fazer aquilo e terminar. Criámos uma rede de contactos que ficam para o futuro, porque muitas vezes eles contactam-nos e precisamos saber isto ou precisamos saber aquilo ou precisamos de ajuda nisto e nós fazemos o melhor possível, porque estão sempre disponíveis. Mas eles próprios já têm, por sua iniciativa, com os laboratórios mais equipados, os conhecimentos para fazer as coisas. Os complementos de informação que nós tentámos atribuir já estão disponíveis lá, cada vez precisam menos de nós, mas nós continuamos a querer sempre colaborar porque, de facto, é uma colaboração fascinante e que nós também apreciamos muito. RFI: Há diferentes iniciativas, diferentes programas de diferentes países que trabalham sobre a costa ocidental de África. Como é que o MarÁfrica pode contribuir, pode ser diferente em relação a esses outros programas, a esses outros projectos? Ester Serrão: Fundamentalmente importante e uma grande, grande contribuição que eu acho que tivemos com este programa e continua sempre, porque é permanentemente atualizado, é o portal de dados de biodiversidade, porque o acesso à informação é algo muito importante. A informação pode existir, mas se as pessoas não têm acesso fácil e acessível, acaba por não ser utilizada, o que acontece com imensos estudos. Há programas na costa atlântica de África, por exemplo, da União Europeia, da França, da Alemanha, da Holanda, etc., imensos, desde há décadas que há estudos e programas e projectos que recolhem informação e deixam um relatório, que fazem publicações científicas, fazem teses, etc., mas quando as entidades locais querem utilizar a informação para os seus fins de gestão, para definir quais são as áreas em que se pode fazer, por exemplo, uma determinada actividade, ou não se deve fazer outra porque se vai destruir algo, toda essa informação, apesar de ela existir, porque houve estudos que recolheram informação, não está facilmente disponível. Então, ao perceber isso, percebemos que é necessário disponibilizar a informação de forma livre, de forma compatível, porque cada estudo utiliza a sua forma de colocar os dados. E não só não estão acessíveis, como não são standardizados, não estão comparáveis uns com os outros. Não só entre países, cada um tem as suas formas de guardar dados, como, mesmo dentro de cada país, cada instituição tem alguns dados, outros têm outros, e muitas vezes, quem tem os dados e a informação são os investigadores que fizeram os estudos e que ou têm no seu computador, ou têm numa publicação, mas não estão numa base de dados em que se possam ser acessíveis. O que se vê é só um gráfico, ou um resultado, já com tudo integrado. Os dados de base são muito úteis, muito importantes, e nós percebemos que existiam imensos dados, imensa informação que foi recolhida, e que se for, se não se perder, se não se deixar que aquilo desapareça nos computadores, não sei onde, ou que fique em PDFs, ou que fiquem, em outras formas, pouco acessíveis. Portanto, não só recolhemos a informação como foi toda transformada, editada, para estar num formato compatível, portanto, todos os dados de todas as fontes foram transformados para um formato comum, e agora, estando num formato comum, consegue-se ir às bases de dados do Mar África e ver qual a distribuição de cada espécie, quando e onde é que já foi observada cada espécie, e assim perceber, por exemplo, em relação às alterações climáticas, quais são as distribuições das espécies actuais, quais foram os registos dessas espécies no passado, e depois usar esses dados até para prever quais serão as distribuições das espécies no futuro. Porque um dos objectivos é, por exemplo, se percebermos que uma espécie está no seu limite sul de distribuição, por exemplo, nos Bijagós, e não vai mais para sul, e que é possível, por exemplo, nas corvinas, é uma espécie com interesse comercial enorme da espécie que é apanhada em Portugal, chegam lá no limite sul, mas cada vez há menos, se calhar com alterações climáticas e as alterações ambientais está-se a ver que cada vez há menos, portanto, se calhar, é importante as entidades saberem que investir na pesca da corvina não é, se calhar, algo importante, isto é só para dar um exemplo de uma espécie que sabemos que é muito importante em alguns sítios, mas que no futuro a sua distribuição pode ser alterada. Portanto, o conhecer a distribuição actual das espécies permite não só planear como é que se faz a gestão hoje, nos ecossistemas que temos, e também permite fazer previsões de qual será a distribuição dos ecossistemas daqui a 50 anos, e fazemos hoje o planeamento da gestão costeira, já a pensar como é que as coisas vão ser daqui a 50 anos, ou daqui a 100 anos, porque já existem dados e modelos que nos permitem fazer essas previsões. É por isso que, por exemplo, na própria formação do Mestrado do Mar África, também tínhamos uma disciplina que era fazer modelos de previsão da distribuição das espécies no futuro, para que também possam integrar isso na sua própria actividade de gestão. Descubram aqui algumas das espécies existentes no mar do Bijagós: Link do Projecto MarAfrica : https://ccmar.ualg.pt/project/marafrica-network-monitoring-integrating-and-assessing-marine-biodiversity-data-along-west 

    "O turismo é o sector estratégico de desenvolvimento do Príncipe"

    Play Episode Listen Later Jul 30, 2025 22:28


    Em entrevista à RFI, o presidente da região autónoma do Príncipe, Filipe Nascimento, assume a importância do turismo para a ilha, mas também o que este sector permitiu desenvolver na ilha, nomeadamente mais emprego, maior cobertura da rede eléctrica e uma maior valorização do meio ambiente. A ilha do Príncipe celebra em 2025 os seus 30 anos como região autónoma, tentando aliar a conservação ambiental ao turismo para o desenvolvimento da sua população. Estes são objectivos claros para o presidente da região autónoma do Príncipe, Filipe Nascimento, que não esquece também os desafios da dupla insularidade em entrevista à RFI. "Um dos maiores ganhos destes 50 anos foi a conquista da autonomia. Que tipo de autonomia? Bom, no quadro legal há sobretudo o estatuto político administrativo, com apoio da Constituição da República, quer autonomia política, legislativa, administrativa, de cooperação internacional descentralizada, isto é, respeitando a cooperação entre os Estados que compete aos órgãos de soberania e a autonomia financeira que carece aqui de um trabalho grande de aprofundamento e clarificação", disse o responsável político. Assim, a região autónoma defende uma revisão da Constituição de São Tomé e Príncipe de forma a clarificar o estatuto do Príncipe e, especialmente, a permitir a esta ilha contrair dívida, algo que viria facilitar a construção de infra-estruturas de média escala como estradas. Um outro passo na solidificação desta autonomia do Príncipe será um a possível criação de autarquias, já que mesmo o território não sendo grande, as distâncias a percorrer entre a capital e alguns pontos da ilha mais remotos são longos, senod difícil a gestão centralizada de todas as necessidades da população. "Consideramos uma reflexão necessária colher sensibilidades, contributos, para depois aferirmos, com conclusões consistentes e sustentáveis, de que ganhos pode trazer. Mas é uma reflexão necessária, porque há 30 anos que se criou a autonomia. Este é o único nível de poder que é o Governo Regional, que é a instituição máxima do poder na região. Ao mesmo tempo é linha da frente e quem gere todas as médias e grandes, mas também as pequenas situações", indicou Filipe Nascimento. Nalgumas zonas do Príncipe já há electricidade quase 24 horas por dia, mas o objectivo é atingir trabalhar para que toda a energia na ilha seja renovável, sobretudo através de painéis solares, quanto à água, ainda é um desafio, mas há projectos apoiados por empresas com investimentos locais para tentar trazer água potável à casa de todos os habitantes do Príncipe. O presidente da região defende ainda que a empregabilidade na ilha permite também um melhor nível de vida. "Demos passos muito importantes em alguns sectores como o desenvolvimento da empregabilidade, acesso à electricidade, acesso à educação pré-escolar. Temos hoje energia em todas as comunidades do Príncipe, a educação pré-escolar só havia um jardim. Hoje são 18. Vamos construir mais dois este ano. [...] Nós temos feito um caminho interessado na saúde, mas falta um bloco operatório com médicos especialistas. O comércio, ou seja, o custo de vida, por se tratar de uma ilha periférica, implica abastecimento, sobretudo a custos controlados para a população. Mas temos investido na autossuficiência alimentar. Depois o sector das infra-estruturas, de modo geral estradas, água, recuperação dos edifícios, mas sim, sobretudo a energia que demos passos significativos nesta universalização no passado. A água, hoje, constitui também um grande desafio, não só porque implica investimento em recursos avultados, como também as mudanças climáticas têm feito com que haja diminuição de caudal de água nas fontes, mas há projetos em curso, nós temos para destacar em execução dois projetos com financiamento Shell no quadro da reciprocidade social, para abastecer a Zona Sul e a nova comunidade de Terra Prometida", explicou. Uma grande parte dos novos empregos criados no Príncipe vêm do turismo, com um sector que se constrói cada vez mais para um público exclusivo e abastado, ao mesmo tempo que São Tomé e Príncipe, em geral, se encontra entre os países mais mal classificados no índice de desenvolvimento da sua população. Estas duas realidades, segundo Filipe Nascimento não são incompatívieis e é este turismo de excepção que pode melhorar a vida dos habitantes do Príncipe. "O turismo é o sector estratégico de desenvolvimento do Príncipe, mas também de São Tomé e Príncipe. O factor primordial aqui é o acesso ao rendimento para as famílias e isso é com o turismo. Podemos dizer que o sector que mais emprega no Príncipe hoje é o turismo. Seja os investidores estrangeiros, sejam os alojamentos locais, restauração e outros, como guias turísticos, prestadores de serviço. Através do rendimento para as famílias, vamos dando aqui as condições para as famílias realizarem os seus planos de vida, os seus sonhos. Paralelamente o Governo Regional, com a capacidade de arrecadação de receitas, prestando contas sempre ao Tribunal de Contas, mas ao nível local, trabalharmos para termos os nossos recursos e realizarmos as acções. Não digo que vamos construir um porto com essas verbas porque os recursos seriam muito avultados, mas aquilo que já tem sido feito pelo Governo Regional, como estradas, salas de aula, jardins de infância, a rede eléctrica com não só o acesso a comunidades onde não havia energia, como a iluminação pública, segurança, assim como cuidarmos da salubridade do ambiente, da população, oferecendo bens essenciais para o seu desenvolvimento", explicou. Actualmente o maior grupo de turismo a actuar no Príncipe é o HBD, do multimilionário Mark Shuttleworth, sendo também o maior empregador da ilha. Este grupo está actualmente a gerir a Roça Sundy, a Roça Paciência e os resorts Sundy Praia e Bombom, entre outros investimentos também em São Tomé. O grupo instalou-se no país no início dos anos 2010 e desde lá promove também acções a nível social. O governo regional reconhece o perigo de um possível monopólio e quer apostar na diversificação de operadores na ilha. "Devemos trabalhar com confiança. E é isso que trabalhamos diariamente para estabelecer a confiança em toda a sociedade ou em todo o mercado, que é na relação entre os poderes democráticos e os investimentos, nomeadamente dos empresários estrangeiros, mas também com uma componente muito importante que é a população criar as condições para o ambiente de negócio, isto é, o sucesso dos investimentos e, ao mesmo tempo, que haja este benefício para todas as partes, sobretudo para a população, para as metas que as autoridades pretendem almejar, em que é importante as receitas à população, o emprego. Mas criar um quadro jurídico legal que regule de forma harmoniosa e equilibrada todas estas relações, que dê, por um lado, garantia de protecção dos investimentos, mas, por outro lado, o respeito para não só as regras do mercado, como também o respeito pela cultura, o ambiente, as pessoas de um modo geral. Os riscos há em qualquer mercado, mas sim, no caso do Príncipe, uma economia pequena, numa ilha. Há, portanto, necessidade de continuarmos a trabalhar para a diversificação dos subsectores da economia, mas também dos intervenientes, isto é, mais empresários, mais investidores", concluiu Filipe Nascimento.

    Protestos em Angola: "A população está a ver que o Governo não está minimamente preocupado"

    Play Episode Listen Later Jul 29, 2025 11:50


    A violência vivida em Luanda na segunda-feira com barricadas nas estradas e pilhagens é um sintoma da insatisfação dos angolanos face ao aumento do custo de vida e à falta de futuro dos jovens angolanos, com a população a revoltar-se face à indiferença dos dirigentes políticos. Em Angola, segunda-feira foi marcada por um dia de violência na capital, com cinco mortos, várias lojas pilhadas e confrontos entre populares e polícias após os aumentos dos custos dos combustíveis terem levado à greve dos táxis, que transportam quase 90% da populaçõa de Luanda e arredores no dia-a-dia. Hoje a principal cidade angolana está calma, mas as razões do descontentamento mantêm-se, já que ao aumento dos combustíveis se vem juntar um aumento geral dos preços que torna difícil a vida da população como descreve a activista angolana Laura Macedo em entrevista à RFI. "A baixa de Luanda está tranquila. Estamos a ouvir relatos de que há ainda alguns focos de cidadãos a tentarem assaltar algumas lojas, alguns empreendimentos. Mas desde ontem que estão todos fechados. Todas as lojas ontem à tarde estavam todas fechadas. Luanda neste momento está parada", explicou a activista. Há várias semanas que um grupo de figuras da sociedade civil, incluindo Laura Macedo, estão a organizar protestos contra o aumento dos combustíveis, mas essas passeatas pacíficas nunca conseguiram ser levadas até ao fim devido à intervenção da polícia. "Os angolanos estão há uns anos a passar por muitas dificuldades, com os seus rendimentos a não chegarem para por o básico em casa. Mesmo as pessoas da classe média, o custo de vida está tão alto que não se consegue. E espoletou, com a subida dos combustíveis, o aumento dos transportes, que são os táxis colectivos, porque nós não temos transportes públicos. Quem pagava 700 kwanzas numa viagem está a pagar 1800 ou 1400 kwanzas porque estes carros passaram a fazer rotas curtas, subiram o preço porque o Governo autorizou que eles subissem os preços. O governo ao tentar calar a revolta ou uma possível revolta destes transportadores privados sobre o aumento do preço dos combustíveis provocou um descontentamento maior na população. Portanto, a população está a ver que o governo não está minimamente preocupado com eles. Então isto gera uma revolta", indicou Laura Macedo. Este aumento dos combustíveis é ainda mais difícil de compreender pela população já que acontece num país produtor de petróleo, um paradoxo difícil de aceitar para os angolanos. "Este é um paradoxo que a gente está a viver desde que somos independentes e que se vêm e que vem vindo a agudizar. Outra revolta grande que a população tem é o facto do Presidente da República estar preocupado em aparecer lá fora, em aparecer bem e está a fazer uma comemoração dos 50 anos da independência como se nós fossemos um povo feliz. Não, nós não somos um povo feliz. Ele próprio, presidente da República, não é um homem feliz. Ele não pode ser um homem feliz, porque da maneira que nós temos a situação, como é que você vai, por exemplo, aceitar que continuem a ver crianças na rua que continua a ver a seca no sul de Angola a atirar pessoas para a morte. [...] O paradoxo é a governação que o MPLA nos infringe. A má governação que eles nos infringem. Este é o paradoxo. E neste momento ainda há gente na rua à procura de onde é que vai assaltar. Nós temos miúdos completamente desenfreados. A culpa é deles? A culpa é dos pais deles? Não, a culpa é do sistema, porque nós temos um sistema que proporciona este tipo de atitude", concluiu Laura Macedo.

    Acordo entre Estados Unidos e União Europeia é um "processo de extorsão"

    Play Episode Listen Later Jul 28, 2025 7:53


    O acordo comercial entre os Estados Unidos e a União Europeia estabelece as linhas gerais que vão reger um terço do comércio mundial, que é quanto pesam as transacções entre os dois blocos económicos. Em Convidado, o jornalista português e analista de política internacional Miguel Szymanski fala em "extorsão" e considera que este entendimento reflecte a “fraqueza geoestratégica e financeira da Europa em relação aos Estados Unidos." O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e a presidente da União Europeia, Ursula von der Leyen, selaram este domingo, na Escócia, as linhas gerais de um acordo que vai reger as transacções comerciais entre as duas margens do Atlântico Norte. Miguel Szymanski começa por considerar, algo eufemístico o termo negociações e acordo, porque o que nós tivemos foi, desde o início, um processo de extorsão, de extorsão por parte dos Estados Unidos. O Convidado da RFI desta segunda-feira afirma que a União Europeia não conseguiu resistir às ameaças e ao bluff do presidente Trump porque em vez de termos o gigante económico que é a União Europeia a negociar com os Estados Unidos, tivemos uma espécie de aglomerado de anões. A maior parte dos produtos europeus vai ser taxada a 15 por cento na alfândega dos Estados Unidos. Isto resulta de uma tentativa desesperada do chanceler alemão Friedrich Merz conseguir um acordo que desse algum planeamento, alguma possibilidade de planeamento estratégico para a indústria alemã, sobretudo para a indústria automóvel, mas acaba penalizado a pagar 6% mais taxas alfandegárias para exportar carros alemães do que antes das ameaças de Trump. Para Miguel Szymanski, assistimos actualmente a um processo de transferência de riqueza da Europa para os Estados Unidos que se tornou previsível aquando da tomada de posse de Donald Trump. A presidente da Comissão Europeia, em Bruxelas, e o chanceler alemão em Davos, mal Donald Trump tomou posse, disseram logo que a Europa tem de comprar mais gás liquefeito aos Estados Unidos e comprar mais armas, na perspectiva de apaziguar os Estados Unidos. E os Estados Unidos não se ficaram por aí. A essa cedência da União Europeia acrescentaram muito mais. A obrigação dos países da NATO consagrarem 5 por cento do PIB ao orçamento da Defesa é uma consequência da estratégia americana que reflecte fraqueza por parte da Europa. Só no caso português representa 15 por cento das receitas dos impostos que a ser aplicado é superior ao orçamento da Saúde ou da Educação. Para a os países europeus, Szymanski considera que se trata de uma estratégia de vassalagem assumida por parte da Europa, que negociou francamente muito mal, (...) o que nós temos é um assumir de uma posição de extrema fraqueza geoestratégica e financeira da Europa em relação aos Estados Unidos. Quanto à possível rejeição do compromisso por parte dos chefes de Estado e de governo dos 27, o nosso Convidado é claro: É preciso ver quem é que está sentado em cima do grande saco de dinheiro que financia e que perfaz o orçamento da União Europeia. E quem está sentado em cima deste saco de dinheiro é o senhor Friedrich Merz, chanceler Friedrich Merz, que sentiu os pés frios e fez esta cedência. (...) Este planeamento, esta estabilidade para a Europa não existe. O que existe foi uma cedência em toda a linha.

    Países afectados devem ser "igualmente exigentes com os emigrantes portugueses"

    Play Episode Listen Later Jul 25, 2025 8:41


    O Presidente de Angola, João Lourenço, está em Portugal para uma visita de Estado de dois dias. Antes de partir de Luanda, manifestou o “incómodo” com a chamada lei de estrangeiros. Esta sexta-feira reuniu-se com o primeiro-ministro de Portugal, Luís Montenegro. A RFI falou com a artista angolana, Indira Mateta, a residir em Portugal, para nos dar a sua visão sobre o tema. Conversámos também com Eugénio Costa Almeida, especialista em Assuntos Africanos sobre Angola e o papel da sua diplomacia. RFI: Indira Mateta, muito obrigado por aceitar o nosso convite. Gostaria de lhe perguntar se Portugal é um país racista e como encara a chamada lei de estrangeiros. Indira Mateta: Eu posso dizer que é subtil, no dia-a-dia, não é uma coisa escancarada como em outras sociedades, mas existe, sim, preconceito e muitas vezes até um entendimento de que seja mesmo estrutural. Com relação à mudança na lei da nacionalidade, sim, afecta-nos na medida em que algumas pessoas têm intenção de continuar por Portugal. Não é necessariamente o meu caso. Eu não saí de Angola com a intenção de emigrar. Saímos de Angola porque foi uma situação familiar, porque infelizmente o nosso país não oferece condições para tratar certas doenças. Eu, particularmente, pretendo voltar para Angola, mas sei de pessoas que querem continuar fora e sentem-se afectadas mas por outro lado, é normal. É uma medida de um país. Os países são livres de tomarem as medidas que têm que tomar para se defender, para se proteger, para que façam funcionar as suas sociedades. Quem se sente afectado ou é dançar a dança da nova lei ou é quem está incomodado de se retirar. E os outros países com quem Portugal tem relação que achem que de alguma maneira estão a ser afectados deviam é aplicar aquele princípio da reciprocidade e simplesmente serem, de alguma forma, igualmente exigentes com os emigrantes portugueses nos seus países. RFI: Acha que o Governo de Angola tem algum poder de influência junto do Executivo português? Recordo que o Acordo da Mobilidade foi assinado em 2021, em Luanda. Crê que a CPLP pode sair afectada por esta legislação? Indira Mateta: Eu duvido que tenha e não acho que devesse ter. Eu sou apologista de que os países não se devem mesmo meter nos assuntos internos de cada país. Isso é uma coisa que se vê dos países do Ocidente, essencialmente. Com relação a África, principalmente. E eu acho que está na altura de os Estados africanos deixarem de permitir isso. Não sei se o Governo de Angola ou o Estado angolano terá na pessoa do Presidente algum peso na lei portuguesa. Eu espero que não. Para que também não haja o contrário, para que não se veja o contrário a acontecer connosco, porque cada país tem a sua decisão. Cada país se rege como acha que deve se reger. As relações internacionais existem, a diplomacia existe, as conversas existem. Mas essa lei de Portugal não afecta só aos angolanos. E os portugueses não fizeram isso só a pensar nos imigrantes angolanos. Há todo um conjunto de factores que levam o Estado a tomar essa decisão. Então, não sei se só um país deveria ter este peso e essa influência. Quanto a afectar as relações da CPLP, a mim não me faz muita diferença, porque eu preferia mais que as relações fossem fortalecidas entre as instituições do género que existem no continente africano, que são super frágeis e quase não se fazem sentir. Com relação à CPLP, se tiver que ser afectado, lamentamos, não é? Porque eu acho que Portugal deverá, ou se calhar pensou nisso, ou se não pensou é porque não acha relevante, se calhar, manter a CPLP forte, entre aspas, com uma lei dessas. Porque é o que eu já disse há bocado, não é só sobre os angolanos ou sobre os países da CPLP. É maior do que isso. E Portugal está a olhar para si e faz muito bem. Eu acho que todos os países deviam fazer a mesma coisa. RFI: Preferia que Angola tivesse laços mais fortes com outras organizações? Indira Mateta: Exactamente. Há uma tentativa, há um esforço dos Estados de se unirem em blocos, temos a SADC, temos as outras organizações que, mais uma vez digo, são fracas e no caso da União Africana é a pior de todos, é a pior de todas as instituições. Não há, de facto, uma União Africana. Há é, dentro da África, dois grandes blocos, uns que estão do lado de uma superpotência e outros que estão do lado da outra superpotência e acabam tendo conflitos entre si. Os Estados, os presidentes africanos, precisam de perceber que uma verdadeira União Africana vai ser benéfica para todos. Já que nós temos a grande tendência de olhar para o Ocidente e para a Europa para copiar, que copiássemos então essas políticas, essa forma de ser e estar, como é o caso da União Europeia, que é benéfica para os Estados europeus. E se nós quisermos, à semelhança da Europa, estar numa posição em que podemos debater, em que podemos dialogar com os outros Estados, temos que ser unidos porque em separado não vai acontecer. RFI: O Presidente João Lourenço é o presidente em exercício da União Africana e é também nessa qualidade que se desloca a Lisboa. Para a segunda parte desta emissão convidámos o luso-angolano Eugénio Costa Almeida, investigador em Ciências Sociais, especialista em questões africanas. Em 2011, publicou o livro “Angola Potência Regional em Emergência”, com base na sua tese de doutoramento. Eugénio Costa Almeida, muito obrigado por aceder ao nosso convite. 15 anos depois, pode-se dizer que este destino se cumpriu? Eugénio Costa Almeida: É uma potência regional continua a ser uma potência regional em excepção. Se o Eduardo dos Santos oficialmente dizia que nós não somos uma potência, na realidade, nós somos uma potência. Quanto mais não seja uma potência na área da África Central. RFI: Angola é uma potência regional, uma potência militar, diplomática e económica. João Lourenço presidiu à Conferência dos Grandes Lagos para tentar resolver os diferendos entre o Ruanda e a República Democrática do Congo e de alguma forma, foi “ultrapassado pela direita” ao ver que esses dois países foram conversar num terceiro país… Eugénio Costa Almeida: Na política não há amigos nem inimigos, há interesses a defender. Na política de Estados ainda mais. Os qataris também tinham interesses e têm interesse em aprofundar os seus interesses, passe a redundância, em África. E de certeza que, também, Doha tinha já por trás… estavam a ser incentivados pelos Estados Unidos porque aos Estados Unidos convinha-lhes que fosse mais um país fora de África a tratar do assunto do que um país africano. Ainda que é preciso não esquecer, Angola já estava a preparar-se para sair das conversações e dos planos de intervenção directa nas conversações entre Kigali e Kinshasa porque João Lourenço tinha assumido que, sendo Presidente da União Africana, não poderia nem devia estar a fazer esse tipo de actividade diplomática. Entretanto, Doha atravessou-se. Não considero que tenha sido uma derrota. Não foi bonito, mas, em termos práticos, o que conta é os interesses dos países e os interesses do Qatar, porque quer avançar mais por África e ele já está, em alguns casos, e os interesses dos Estados Unidos.

    Protecção dos oceanos: países lusófonos insulares promovem centros de ciência marinha

    Play Episode Listen Later Jul 25, 2025 8:17


    Os pequenos Estados insulares de língua portuguesa - Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Timor-Leste - defendem a criação de centros de excelência em ciência marinha. A iniciativa, impulsionada por desafios comuns, representa uma estratégia de soberania científica, cooperação regional e valorização do conhecimento local. Para o ministro do Mar de Cabo Verde, Jorge Santos, esta é uma “iniciativa importante dos SIDS lusófonos — Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, que tem uma vasta área de ilhas importantes, mas também é extensiva a Timor-Leste”, que deve assumir-se como rede regional de investigação oceanográfica, protecção da biodiversidade e gestão de áreas marinhas protegidas. O governante sublinha que estes centros, além de permitirem a investigação oceanográfica, devem servir para fixar os dados recolhidos: “Estamos na era dos dados, e os dados têm um custo e um valor. Precisamos liderar esse processo”. O ministro acrescenta que a ciência deve ser estratégica e inclusiva, com “complementaridade e autenticidade nas parcerias”. A necessidade de apropriação do conhecimento também foi destacada por Nilda Borges da Mata, ministra do Ambiente, Juventude e Turismo Sustentável de São Tomé e Príncipe: “Hoje, os investigadores vão ao país, fazem os seus estudos e levam os dados. E nós, quando precisamos, não os temos”. A ministra sublinhou a carência de estruturas locais, o risco de perda de soberania sobre os próprios dados nacionais e lembrou a necessidade de capacitação técnica: “É fundamental termos essas estruturas nos nossos países, mas temos que trabalhar na capacitação dos nossos técnicos e trabalhar com a comunidade local que directamente tem no mar o seu rendimento”, acrescentando que sem estruturas nacionais, os países continuam dependentes de consultores externos, muitas vezes desconectados da realidade local.   Por seu lado, a coordenadora residente das Nações Unidas em Cabo Verde, Patrícia Portela de Souza, reforçou o papel da ciência como base para decisões políticas mais eficazes. “No evento liderado por Cabo Verde para criar os centros de excelência nos países lusófonos em África, serve justamente para apoiar os decisores políticos com dados para que as políticas sejam cada vez melhores, mais focalizadas e cada vez mais beneficiem as pessoas que mais precisam.” Todavia, a professora universitária Corrine Almeida alerta para a necessidade de alinhar a ciência com as realidades locais. Muitas vezes a ciência que se faz é completamente desconectada da realidade das pessoas que vivem nas comunidades. Não está devidamente alinhado.” Segundo a investigadora cabo-verdiana, as colaborações científicas muitas vezes nascem de iniciativas externas que nem sempre reflectem as prioridades nacionais. “É extremamente importante procurar saber junto às populações quais são as questões essenciais que têm e que precisam ser respondidas. Isso tem muito a ver com as actividades e com a sua interacção com o mar.” As entrevistas foram realizadas à margem da 3.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano, que teve lugar em Nice, França, entre os dias 9 e 13 de Junho de 2025.

    ONGs denunciam propagação de “fome em massa” na Faixa de Gaza

    Play Episode Listen Later Jul 24, 2025 11:40


    Uma centena de ONGs denunciaram, esta quarta-feira, a propagação de “fome em massa” na Faixa de Gaza. Também a Organização Mundial da Saúde alertou que uma “grande proporção” de pessoas na Faixa de Gaza estão a “morrer à fome”. Nelson Olim, professor de Medicina Humanitária que já viveu em Gaza, compara a situação “com aquilo que se passou nos guetos durante a Segunda Guerra Mundial” e lembra que várias organizações internacionais dizem que está em curso um genocídio e que uma das acções é “tentar matar a população à fome”. Uma centena de ONGs denunciaram que a “fome em massa” está a propagar-se na Faixa de Gaza. Também o director-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, alertou que uma “grande proporção” de pessoas na Faixa de Gaza está a “morrer à fome”. O responsável disse que além das bombas e das balas, os mais de dois milhões de residentes enfrentam “outro assassino, a fome”, e que se assiste a um aumento fatal das mortes ligadas à desnutrição. "A taxa de desnutrição aguda ultrapassa os 20% no caso de mulheres grávidas e com bebés para amamentar. Por sua vez, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, falou em “cenário de horror sem comparação na história recente” e avisou que “a fome bate a todas as portas”. Nelson Olim é professor de Medicina Humanitária, de Conflito e de Catástrofe na Universidade de Lisboa e viveu em Gaza durante dois anos. Ele compara o que se “está a passar em Gaza com aquilo que se passou nos guetos durante a Segunda Guerra Mundial” e relembra que várias organizações internacionais dizem que está em curso um genocídio e que uma das acções é “tentar matar a população à fome”. RFI: Como olha para estes alertas de "fome em massa"? Nelson Olim, professor de Medicina Humanitária, de Conflito e de Catástrofe na Universidade de Lisboa: “Atenção, este é um alerta para resultados de uma política de bloqueio que foram impostos por Israel desde o princípio de Março, portanto já há cerca de cinco meses. Um bloqueio de entrada de água, alimentos, combustível, medicamentos e já nessa altura era perfeitamente possível prever que a muito curto-médio prazo,  as parcas reservas ainda existentes em Gaza iriam rapidamente desaparecer e ser consumidas. Aliás, o preço dos alimentos disponíveis em Gaza subiu 1.400% - se é possível imaginar algo deste género.  Aquilo que estas organizações agora estão estão a dizer é: ‘Atenção, as pessoas estão de facto a morrer de fome”. Para além de, obviamente, estarem a morrer quando tentam aceder a alimentos naqueles postos de distribuição geridos por esta fundação humanitária para Gaza - eu custa-me dizer isto porque de humanitário não tem nada - mas além de as pessoas estarem a morrer a tentar aceder aos alimentos, além de as pessoas estarem a morrer porque os campos de deslocados estão a ser bombardeados, além disso, as pessoas estão a morrer de fome.” A fome está a afectar toda a população ou só os mais vulneráveis? “Isto começa habitualmente com as crianças que são aquelas que são mais sensíveis porque têm menos reserva fisiológica, portanto, menos capacidade de lidar com este aspecto da fome. Mas, neste momento, temos adultos a morrerem de fome e a situação só vai agravar-se. Eu diria que a cereja no topo do bolo- se é que podemos pôr a coisa nestes termos - é que os efeitos para estas crianças, nomeadamente nos primeiros dois anos de vida, são irreversíveis quando a fome é prolongada, que é o caso. E, portanto, aquilo que vamos assistir no futuro são crianças com baixo desenvolvimento psicomotor, eventualmente atrasos cognitivos, défices imunitários e isto é irreversível. O que está a ser feito é criminoso. É condenável por todo e qualquer artigo do Direito Internacional Humanitário. A fome não pode ser utilizada como uma arma de guerra nunca. No entanto, Israel, sabendo isso, ainda assim decidiu avançar com este processo e não dá opção às pessoas. Esta é outra das grandes questões que nós não vemos noutros conflitos. Noutros conflitos sempre que há uma situação de fome, as pessoas saem do sítio e vão à procura e, portanto, há hordas de refugiados ou de deslocados que saem do local onde a guerra está a acontecer e vão à procura de melhores condições. Não é o caso em Gaza porque Gaza está sitiada, e não é de agora. Gaza está sitiada há vários anos, mas agora, principalmente em paralelo com este processo de terraplanagem de Gaza -  e quando falo terraplanagem, não é não é uma força de expressão, de facto, os bulldozers estão a terraplanar Gaza, a destruir e a fazer  daquilo que eram antigas cidades campos que são completamente planos - além disto, as pessoas estão impedidas de sair.” O que é que seria preciso fazer para não se deixar morrer as pessoas à fome? É que a OMS apela a um cessar-fogo, a uma solução política durável, outras ONGs pedem um cessar-fogo imediato, a abertura de todos os pontos de passagem terrestres, a livre circulação da ajuda humanitária, mas já vimos que Israel não cede... “Quer dizer, até o Papa pede paz, não é? A questão é que quem está a pedir para que isto cesse não são as agências nem as autoridades que têm alguma força para impedir Israel de fazer isto. Quem tem força e capacidade de impedir Israel é a comunidade internacional, são as diversas nações, são os diversos países que até hoje não tiveram a coragem de impor sanções a Israel e dizer: ‘Atenção, vocês passaram uma linha vermelha'. Eu não tenho dúvidas nenhumas que se fosse a Rússia a fazer isto a uma qualquer comunidade na Ucrânia, hoje já o mundo tinha saltado. Se fosse um qualquer país árabe a fazer isto a uma comunidade judaica, o mundo já tinha saltado. Mas, de certa forma, criou-se esta ideia de que se criticarmos Israel, estamos a ser antisionistas ou antisemitas, quando na verdade não tem nada a ver com isso, tem simplesmente a ver com o facto de o governo de Israel, e nomeadamente na pessoa de Netanyahu, ter enveredado por uma política que é criminosa e ninguém, até agora, teve coragem de bater com a mão na mesa e dizer: ‘Atenção, párem, chega, isto já ultrapassou todos os limites. Isto é uma vergonha para nós, enquanto sociedade, para toda a comunidade internacional e nomeadamente nós no Ocidente que tanto nos batemos pelos valores da liberdade e nomeadamente no pós-guerra, que fizemos todo o esforço para a criação das Nações Unidas e do Direito Internacional Humanitário, etc, para que estas coisas não voltassem a acontecer. E a verdade é que estão a acontecer à vista de todos.” Em entrevista à Antena 1, fez uma comparação muito forte do que se está a viver em Gaza. A que compara a situação em Gaza? “Isto é um tema extremamente sensível e, por um lado, eu diria quase que trágico porque isto que se está a passar em Gaza foi aquilo que se passou nos guetos durante a Segunda Guerra Mundial, só que dentro dos guetos, na altura, estavam os judeus e fora dos guetos estava a Alemanha nazi. Mas aquilo que se criou naquela altura foi exactamente isto: foi criar comunidades que estão cercadas, que estão impedidas de se mover, que são pontualmente abatidas a tiro e que não têm acesso a água, alimentação, medicamentos, cuidados de saúde, etc. Eu acho que fica à consciência de cada um fazer as comparações, mas o facto é que isto é o mais parecido que nós temos até hoje na memória colectiva e o mais recente que nós temos, foi, de facto, aquilo que se passou na Segunda Guerra Mundial.” De facto, o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU acusou o exército israelita de ter assassinado em Gaza desde o final de Maio, mais de 1.000 pessoas que tentavam obter ajuda humanitária. Porém, Israel acusa o Hamas de roubar a comida para a revender a preços elevadíssimos e de disparar sobre as pessoas que aguardam pela ajuda... “Pois, lá está, esse é o efeito de propaganda, porque, na verdade, o governo de Israel pode alegar aquilo que quiser, mas desde o momento em que esta fundação humanitária para Gaza começou a distribuir alimentação, eles são os únicos responsáveis em Gaza pela distribuição da alimentação. Ou seja, o argumento anterior era dizer: ‘Não. As organizações internacionais estão a distribuir, mas estão a distribuir essencialmente para o Hamas, que está a controlar e que está a provocar a fome, etc.' E, portanto, o argumento foi: ‘Não, a partir de agora somos nós, Israel, em parceria com esta fundação, a fazer a distribuição.' Portanto, este argumento de que aquilo está a ser distribuído para o Hamas é falso. Aliás, as imagens mostram milhares de pessoas a tentar obter ajuda, entre elas crianças, mulheres e idosos, a menos que Israel esteja a dizer que toda a população de Gaza é Hamas - o que, aliás, é um pouco o argumento - e todos têm de ser punidos. Esse argumento é falso, dizer que a fome está a ser provocada porque o Hamas está a controlar a distribuição é falso porque quem está a controlar a distribuição é, de facto, o exército israelita.” Israel também anunciou ter levantado ligeiramente o bloqueio total imposto desde o início de Março em Gaza e as autoridades israelitas dizem deixar passar quantidades importantes de ajuda. Na prática, isso verifica-se? “Não, na prática, na situação anterior à guerra entravam em Gaza entre 500 a 600 camiões de ajuda humanitária por dia. Isto já anteriormente à guerra, isto era para suprir as necessidades básicas de uma população de 2,3 milhões de pessoas. Aquilo que está a acontecer hoje em dia é que estão a entrar cerca de 60, 70 camiões, que não é todos os dias, que são controlados por Israel e cuja distribuição é feita por Israel. Ora, estamos a falar de uma quantidade quase oito vezes menor do que aquilo que entrava anteriormente. Portanto, como é óbvio, se uma população tinha uma necessidade X para sobreviver e se agora temos um oitavo disso, algo está mal. E atenção, não é do interesse de Israel que entre ajuda humanitária porque isto está a ser usado como uma arma para, no fundo, forçar, digamos assim, um qualquer acordo. Isto é, de facto, usar a fome e usar o acesso humanitário como arma de negociação, algo que devia ser e é proibido por todo o Direito Internacional Humanitário. Esta é a situação actual. É um governo a usar tudo aquilo que está ao seu alcance e violando todas as normas do Direito Internacional Humanitário para querer forçar uma população - e atenção, nós temos neste momento dezenas de académicos e de instituições internacionais a dizerem: ‘Isto é um genocídio em curso' e, portanto, vamos chamar as coisas pelos nomes. Isto é um genocídio em curso. Isto é uma deslocação forçada de uma população que está a ser comprimida num espaço que corresponde a cerca de 20% daquilo que era o território inicial de Gaza. Portanto, Israel está a puxar toda a população para Sul, para a zona de Rafah e de Khan Younes, sendo que toda a parte Norte está a ser literalmente terraplanada. Isto é - e não sou eu que o digo, são várias organizações internacionais, vários académicos internacionais que o dizem - isto é um genocídio em curso e um genocídio não é apenas uma acção, são várias, é um conjunto de acções, nomeadamente a de tentar matar uma população à fome.”

    Antiga MNE guineense integra equipa de conselheiros africanos do executivo de Madrid

    Play Episode Listen Later Jul 23, 2025 14:23


    A antiga ministra guineense dos Negócios Estrangeiros Suzi Barbosa participou na semana passada, em Madrid, no lançamento do Conselho Consultivo Espanha-África, dirigido pelo chefe da diplomacia espanhola, José Manuel Albares. Em entrevista à RFI, a antiga governante revelou que acaba de ser nomeada para integrar este órgão a ser composto por 50 conselheiros africanos para ajudar Madrid na sua estratégia de cooperação com o continente. Ao referir ter sido convidada em 2024 para se juntar a esta equipa que reúne personalidades africanas, designadamente antigos presidentes, vice-presidentes e chefes da diplomacia, a antiga titular do pelouro dos negócios estrangeiros da Guiné-Bissau explica que a criação do Conselho Consultivo Espanha-África insere-se no reforço da cooperação deste país europeu com o continente no horizonte 2028. A residir actualmente em Portugal, a antiga governante respondeu por telefone ao nosso correspondente em Bissau, Mussa Baldé. RFI: Como é que surgiu a possibilidade para ser nomeada conselheira do governo espanhol para África? Como é que ocorreu este processo todo? Suzi Barbosa: Na verdade, a Espanha não foi nunca um país com muita presença em África. Isto tem sido uma estratégia que nos últimos anos aumentou. Começou sobretudo em 2006, quando se faz a primeira estratégia para a África não tão ambiciosa e, sobretudo, que era uma estratégia que era exclusiva para África subsariana, não incluía o Norte de África. A diferença é que esta estratégia cobre todo o continente africano, embora priorize, sem dúvida, a costa ocidental africana pela proximidade e pelo facto de ser o primeiro vizinho em África que a Espanha tem. Nós não podemos esquecer que Espanha tem territórios no continente africano. Estou a falar nomeadamente de Ceuta e Melilha, que estão no norte da África e pertencem ao Reino de Espanha e ainda do arquipélago das Canárias, onde eu tive a oportunidade de viver durante dez anos e conheço muito bem e que se situa mais ou menos a frente de Marrocos, mas que são também território do Reino de Espanha. Então Espanha tem toda esta proximidade geográfica com a África, tem alguma proximidade histórica e também tem um interesse comercial muito grande. Isto porque nós não podemos esquecer que, dada esta proximidade, Espanha vê em África uma grande oportunidade, porque África tem neste momento aquela que é a população mais jovem do mundo e é uma população muito grande. É uma população de quase 1,5 bilhões de habitantes, mas que é uma população que, segundo as Nações Unidas, tem previsão de crescer até 2050 para o dobro. Ou seja, nós temos perspectivas de ter uma população em 2050 em África de 2,5 bilhões de habitantes, o que significa que África não só terá a maior população jovem do mundo, mas terá também aquela que será a maior população de classe média do mundo. Ou seja, representam um poder de compra considerável. Então, a Espanha vê assim uma grande oportunidade e acha que desde agora deve começar a preparar o terreno no sentido de estreitar mais as relações com os países africanos, de aumentar a sua presença em África e intensificar essas relações de cooperação. Eu acho que é uma estratégia brilhante. Eu acho que Espanha tem uma oportunidade muito importante neste momento, tendo em conta alguma reviravolta a nível geoestratégico e geopolítico, sobretudo na costa ocidental africana, que nós acompanhamos mais de perto. Tendo em conta também o facto de os Estados Unidos, um grande doador que agora cancelou a USAID e vai redefinir a sua política de cooperação com África. E também tem o facto de em alguns países da costa ocidental africana ver-se um recuo da presença francesa, que foi sempre uma presença dominante nesse espaço e que há assim uma redução da cooperação. A Espanha vê sobretudo esse vazio como uma oportunidade de entrar e, ao mesmo tempo, aproveita o facto de haver uma intenção da União Europeia em aumentar a cooperação com África, dada também a proximidade e dada esta mudança, talvez da política dos Estados Unidos através daquele programa chamado 'Global Gateway'. O Global Gateway é um programa de cooperação da União Europeia que inclui a África e outros continentes, neste caso outros países do mundo, mas que tem um 'budget' muito elevado. Nós estamos a falar num 'budget' de aproximadamente 300 mil milhões de Euros, que é um valor muito alto que muitas das vezes não é aproveitado por desconhecimento. Então a Espanha, precisamente, pretende fazer esta ponte porque incrivelmente, a ideia que se tem em África da cooperação com a União Europeia é que é uma cooperação muito rígida, muito burocrática e de difícil acesso. Então, o objectivo de Espanha é usar não só o que é o orçamento espanhol para fazer esta operação, mas também ser talvez o elo de ligação entre a União Europeia e estes países africanos. E conta com uma grande vantagem: pelo facto de não ter sido um grande país colonizador, a Espanha tem uma imagem muito positiva em África, então tem conseguido realmente melhorar bastante as relações com os países africanos, precisamente porque não tem esta sombra de país colonizador, com a excepção da Guiné Equatorial, a Espanha não teve nenhum outro país que tenha colonizado no nosso continente. RFI: Já tem ideia do que é que poderão ser os seus primeiros aconselhamentos ao governo espanhol em relação a África? Quais são as temáticas em que se vai dedicar? A Espanha é um país muito presente em África, que está ainda a reforçar cada vez mais a sua presença em África. Quais são as temáticas em que se vai dedicar em termos de aconselhamento ao governo espanhol? Suzi Barbosa: O meu trabalho, especificamente, para além de integrar este gabinete restricto a este conselho restricto de 'experts' de elite, eu vou trabalhar directamente com o Ministério das Relações Exteriores da Espanha, nomeadamente directamente com a Direção África. E também faremos reuniões anualmente com o comité todo e serão reuniões que não serão só feitas em Espanha, serão também feitas em outros países africanos. Iremos fazer reuniões permanentemente, vamos reunir-nos tanto on-line como presencialmente, e eu farei uma presença mais permanente em Espanha, nomeadamente no Ministério das Relações Exteriores, onde poderei continuar a desenvolver o trabalho. A razão de não viver em Espanha neste momento tem a ver com o facto de eu estar a fazer um doutoramento em Portugal, um doutoramento precisamente em Estudos Africanos, e não me convém neste momento estar permanentemente em Espanha. Mas irei com muita frequência desenvolver o meu trabalho e posso dizer que -sim- já conto com uma assessora que reside em Espanha para me acompanhar nos meus trabalhos. Eu tenho que dizer que eu não sou apologista de maneira nenhuma desta política de relações de cooperação país-continente. Eu não sou apologista das cimeiras que se fazem Rússia-África, China-África. Eu acho que de certa forma, é desrespeitoso nós termos, enquanto continente, que responder a um país apesar do poderio económico e financeiro desses países. Correcto -sim- é que se façam as relações através das instituições, neste caso a União Europeia, a União Africana. E quando é feito de país a país, que se faça de maneira bilateral entre país e país. O que eu gosto precisamente nesta estratégia de Espanha é que, apesar de ser a Espanha a fazer a cooperação com África, eles fazem um plano de cooperação específico para cada país. Ou seja, é um plano de estratégia de cooperação 'Tailor made', feito à medida da realidade de cada país. Ou seja, tendo em conta a realidade desse país, tendo em conta as vantagens desse país e tendo em conta as prioridades desse país, é feito então um modelo de cooperação. Daí a necessidade de ter 'experts' de cada área geográfica da África e também trabalhar muito com os blocos económicos regionais africanos. De imediato, a grande parceira com quem vai trabalhar Espanha vai ser a CEDEAO. Vai trabalhar não só a nível de instituição, mas também com os países que compõem a CEDEAO. Mas aí está, não vai trabalhar só com Espanha-CEDEAO ou país-instituição, mas vai representar a União Europeia junto destas instituições e vai canalizar os fundos da União Europeia para os nossos países africanos. Posso dizer que todo este conselho será presidido pelo Ministro das Relações Exteriores, coadjuvado pelo Secretário de Estado das Relações Exteriores e Relações Globais, que é um excelente técnico e um excelente profissional. Conhece muito bem a área da cooperação e com quem tive o prazer de trabalhar ultimamente e fiquei bastante satisfeita com o conhecimento geral que tem da África. Já visitou acima de 35 países de África, conhece muito bem as realidades e penso que são pessoas que realmente estão muito motivadas a trabalhar e que estão motivadas que neste período, pelo menos de 2025 a 2028 se consiga este reforço e intensificação das relações de cooperação entre Espanha e África. RFI: E no caso da Guiné-Bissau, tem assim alguma ideia do que é que vai ser o seu aconselhamento sobre a política espanhola em relação a Guiné-Bissau? Algum dossiê especial? Meio Ambiente, pesca, a mulher, a saúde, educação, a imigração ilegal que é um problema muito caro ao governo espanhol? Quais são as suas prioridades em relação ao aconselhamento ao governo espanhol sobre a Guiné-Bissau como guineense? Suzi Barbosa: Tenho todo o interesse de tentar que a Guiné tenha o maior benefício possível. Eu tenho que ser muito justa e coerente e, sobretudo, ser imparcial no meu trabalho. Mas no que puder, enquanto guineense, eu vou tentar -sim- beneficiar a Guiné-Bissau. E eu, como sempre, defendo que a principal forma de ajudar a Guiné-Bissau, o principal sector em que se tem de apostar é na educação e na formação. E quando digo formação, digo formação sobretudo técnico-profissional, porque acredito que a Guiné-Bissau precisa de ter uma camada técnica ou profissional bem preparada, de forma a dar resposta às necessidades que nós temos. Não tem que ser necessariamente uma população licenciada apenas. Então, nesse sentido, estarei muito dependente de todas as oportunidades de educação. Até porque um dos grandes desafios do nosso continente, com este crescimento demográfico tão grande, torna-se um desafio também educar toda esta população. Como criar postos de trabalho também é outra grande preocupação. Penso que possa haver benefícios para a Guiné-Bissau nesse sentido de criar microempresas, apoiar a criação de empresas locais de transformação, agroindústria, agro-business, neste caso, projectos ligados ao ambiente que a Guiné-Bissau tem um potencial muito grande, projectos ligados ao turismo de forma a criar postos de trabalho que permitam empregar a nossa população e evitar que elas tendam a fazer esta imigração ilegal que já está a ser tão característica e que cada vez vem mais ao Sul. Portanto, se me perguntar da Guiné-Bissau, eu acho que os dois grandes sectores que eu apoiaria seriam estes, educação-formação e depois a criação de postos de trabalho nos diferentes sectores em que a Guiné-Bissau tem esta potencialidade. Sem dúvida, o turismo, o ambiente, o agro-business são áreas que eu tentarei apoiar muito na cooperação com a Espanha. Relativamente à imigração ilegal, permita-me dizer que a Espanha até tem uma política bastante diferente da tendência actual europeia, apesar de já começar a haver alguns focos de revolta contra a imigração em Espanha. Neste momento é um país que tem um grande número de imigrantes marroquinos. Temos quase 800.000 marroquinos a residirem em Espanha. Ou seja, é uma cifra muito grande e Espanha tem sido um país com muita imigração da América Latina. Ou seja, tem esta cultura de ter imigrantes, mas também porque talvez a sociedade espanhola, mais do que as outras, tenha percebido a necessidade desta mão-de-obra estrangeira. E claro está que esta é uma situação que quem não percebeu ainda vai acabar por perceber, porque daqui a 20 ou 30 anos não haverá mão-de-obra suficiente na Europa, como já não há. Mas será drástica essa ausência daqui a 20 ou 30 anos. O que vai acontecer, ao contrário do que se passa agora, é que os países europeus passarão a correr atrás dos imigrantes para que venham aos seus países, porque senão as indústrias vão parar. Vai fazer falta muita mão-de-obra. Ou seja, vão começar a fechar. Então haverá uma procura muito grande desta mão-de-obra migrante nos países europeus. Isto é uma situação que hoje pode parecer problemática a questão da imigração ilegal, mas cabe aos países europeus criar as condições para ter uma migração legal e organizada na Europa. Porque há realmente essa necessidade dessa mão-de-obra imigrante? Porque cada vez mais a população europeia envelhece. A média da população europeia actual é de 42 anos, enquanto que a média da população africana é de 19 anos. Há uma disparidade muito grande e a tendência é para aumentar. Então, o mais provável é que dentro desse horizonte de 20 a 30 anos, não haja mão-de-obra suficiente para aguentar a sociedade europeia. E, sem dúvida, para os governantes, a grande preocupação será onde ir buscar esta mão-de-obra e onde melhor do que em África? Pela proximidade, talvez pelos laços culturais, laços históricos, mas muito mais do que ir buscar, por exemplo, ao Sudoeste asiático. Então, nesse sentido, o governo espanhol também tem noção desta necessidade e começa desde já a criar condições nesse sentido. Eu sei que actualmente já existe um acordo de cooperação muito bom, de migração transitória ou sazonal com o Senegal, que resulta muito bem e tem sido muito elogiado.

    Promessa de cessar-fogo entre RDC e M23 vista com prudência

    Play Episode Listen Later Jul 22, 2025 8:23


    A República Democrática do Congo está "perto" da paz, disse o ministro do Interior da RDC na noite de segunda-feira, falando sobre o acordo assinado, este sábado, com o grupo armado M23, em Doha, no Qatar. No texto pode ler-se que “as partes reafirmam o compromisso para um cessar-fogo permanente” e é adiantada a intenção de iniciar “o mais tardar a 8 de Agosto” as negociações formais para um acordo de paz global que deve ser assinado até 18 de Agosto. Sérgio Calundungo, coordenador do Observatório Político e Social de Angola, alerta que “a paz não pode ser alcançada sem abordar as causas profundas do conflito” e, apesar de algum optimismo, sublinha que não vê mudanças significativas para que o cessar-fogo seja duradouro. RFI: O ministro do Interior da República Democrática do Congo disse na noite desta segunda-feira que a RDC está próxima da paz. Que credibilidade esta afirmação tem, tendo em conta o histórico dos últimos anos e dos últimos meses? Sérgio Calundungo, coordenador do Observatório Político e Social de Angola: “Sem dúvida que a paz é um objectivo nobre, mas não pode ser alcançada sem abordar as causas profundas do conflito. Provavelmente o que o ministro devia ter dito, em minha opinião, é que se está próximo de um cessar-fogo, mas para mim, as causas profundas deste conflito ainda estão por ser abordadas. Nós temos que pensar que a RDC tem sido marcada por décadas de instabilidade, exploração e violações dos direitos humanos fundamentais e, portanto, não acredito que uma assinatura de cessar-fogo venha significar que estes aspectos estão ultrapassados.” Mas é apenas uma "declaração de intenções" e é nessa declaração de intenções que há um “cessar-fogo permanente”. Que perspectivas? “Eu penso que é uma condição necessária, mas não é suficiente para alcançar a paz. Nós não sabemos os detalhes. Por exemplo, como é que vamos resolver o problema da promoção da justiça, a responsabilização pelos crimes cometidos. Parte do conflito tem causas profundas, muitas delas assentes na distribuição equitativa dos recursos naturais. Como é que isso vai ser feito? Como é que se vai fortalecer as instituições democráticas e a participação dos cidadãos? Como é que se vai proteger os direitos humanos e a dignidade das comunidades locais? A paz não é apenas a ausência de conflito, a paz é a presença de justiça, a igualdade de oportunidades para todos. É isto que vai ser o foco. Agora, vamos valorizar, esta é uma etapa, mas não é o fim em si mesmo. Pelo menos esta é a minha ideia. Eu acho que as partes têm que trabalhar para construir um futuro mais justo e mais pacífico.” A questão do cessar-fogo permanente é plausível? É plausível que entre em vigor e que não seja violado como outros cessar-fogos e outros acordos de paz assinados nos últimos anos? “Bom, eu acredito que é plausível, tomara que chegue antes. Agora, é importante que as partes expliquem o que é que vão fazer desta vez de diferente para que o cessar-fogo seja uma realidade permanente, como se está aqui a dizer. Eu acredito que - até onde me foi dado ver - não há grandes alterações no xadrez que me permite dizer ‘Ok, provavelmente desta vez o cessar-fogo vai acontecer'.” Que grandes alterações são essas? “Normalmente o cessar-fogo - e vejo muito a experiência de Angola - quando há um desequilíbrio na correlação de forças, quando um dos beligerantes sente que está numa clara posição de desvantagem militar e, portanto, não pode continuar, esta pode ser uma. Às vezes, também ele é fruto do cansaço das partes que estão na frente do combate - isso também não sinto. Às vezes é fruto do convencimento daquelas pessoas que têm feito aproveitamento político e económico deste conflito quando pensam que ‘se calhar já num cenário de mais pacificação, podemos explorar isto' - isto também não se verifica. Portanto, estamos expectantes, não vamos deixar de ser optimistas de que o cessar-fogo desta vez virá para durar, mas não podemos perder a visão mais realista: o que é que mudou de significativo para que as partes desta vez consigam alcançar um cessar-fogo que seja duradouro.” Então e mudou alguma coisa? “É isso que eu digo. Eu não sinto grandes mudanças a este nível - ou pelo menos não se fazem grandes anúncios em relação a estes quatro aspectos que eu mencionei: a questão da justiça, da responsabilização pelos crimes cometidos, a distribuição dos recursos naturais, o fortalecimento de instituições democráticas e a proteção dos direitos humanos. Eu penso que esses são os elementos que iriam concorrer para um cessar-fogo mais duradouro. Não é a mera ausência do conflito, mas sim a presença de justiça, igualdade de oportunidades para todos os actores viverem de forma pacífica naquela região.” O texto prevê um calendário e também prevê o restabelecimento da autoridade do Estado no leste da RDC. Quando o acordo de paz for realmente para a frente é previsível que, de facto, o M23 se retire do território? “Era importante perceber quais são os pronunciamentos do M23 até agora. O M23 alegava causas profundas para estar envolvido naquele conflito. E a pergunta é: o M23 acredita que depois de assinar o cessar-fogo, as causas ou as grandes motivações que tinha para se envolver num conflito daquela dimensão ficaram resolvidas? Não sinto da parte do M23 pronunciamentos nesse sentido.” Ou seja, há uma coisa que está escrita, mas que não vai ser respeitada? “Eu acredito que pode haver um foco na alteração da dinâmica do conflito. Ele pode baixar de intensidade, inclusive pode - e assim desejo - levar a um cessar-fogo. A grande questão que se coloca é que se as causas profundas do conflito não forem resolvidas, a possibilidade de que ele venha a eclodir é alta. Este é o grande problema. Por isso é que eu reiteradamente digo que o cessar-fogo nestes casos é uma condição necessária, mas não é suficiente quando ele não vem acompanhado de um foco na resolução das causas profundas deste conflito.” No terreno, como é que está a situação actualmente? “Eu acredito que depende muito da perspectiva que se der, se do ponto de vista da correlação de forças ou do ponto de vista do impacto sobre a vida das populações. Nós sabemos que o impacto nas condições de vida naquelas populações continua pior ou igual ao que sempre esteve. Ou seja, as incertezas, a desesperança, o sofrimento, sobretudo num contexto em que há cada vez mais dificuldades dos actores humanitários terem recursos para poderem ajudar aquela população. Infelizmente, aquele é um conflito que não tem a mesma visibilidade que outros conflitos no mundo, como é o caso da Palestina, como é o caso da Ucrânia, e, portanto, há o risco de o sofrimento daquelas populações ser negligenciado. Do ponto de vista dos actores e da correlação de forças, eu creio que há um impasse. Em algumas etapas do conflito, alguns dos beligerantes pensaram que poderiam suplantar-se pela via da força e militarmente e parece que não. Agora está-se numa situação de impasse, pelo menos, se há um convencimento das partes é que ninguém tem poderio militar superior ao outro a ponto de fazer grandes avanços, como vimos há alguns meses aqui na região de Bukavu, ou provocar o seu adversário face a grandes recuos. Então, eu diria que há aqui uma situação de impasse e daí também a predisposição para negociação.”

    Plano de austeridade francês: "Falta-lhe sustentabilidade económica e social"

    Play Episode Listen Later Jul 17, 2025 9:16


    O primeiro-ministro francês, François Bayrou, apresentou esta semana um conjunto de medidas de austeridade para enfrentar as dificuldades económicas do país e poupar 44 mil milhões de euros. A proposta para o Orçamento do Estado de 2026 prevê, nomeadamente, o congelamento de pensões e o corte no número de funcionários públicos. O economista Pascal de Lima considera que se trata de um plano "coerente do ponto de vista contabilístico", porém, admite que lhe falta "a longo prazo, sustentabilidade económica e social". O primeiro-ministro francês, François Barrot, apresentou esta semana um conjunto de medidas de austeridade para enfrentar as dificuldades económicas do país e poupar 44 mil milhões de euros. Este plano será capaz de equilibras as contas públicas francesas? O plano apresentado é muito ambicioso. Fazer cortes de 44 mil milhões de euros numa só legislatura orçamental, sem aumentar impostos, é uma operação difícil. Pretende-se assim reduzir o défice para 4,6% do PIB e tentar iniciar uma trajectória de consolidação. Mas,este esforço está focalizado na compreensão da despesa pública e na contenção dos direitos sociais, sem que haja uma reforma fiscal profunda, ou seja, não há um verdadeiro motor de crescimento. Refiro-me a um plano ambicioso de investimento produtivo, de transformação numérica ecológica, o que pode comprometer o equilíbrio orçamental a médio prazo. Em conclusão, o plano é coerente do ponto de vista contabilístico, mas falta-lhe, a longo prazo, sustentabilidade económica e social. A proposta para o próximo Orçamento Geral do Estado prevê, entre outras, o congelamento de pensões e um corte no número de funcionários públicos. Esta medida não pode pôr em causa o poder de compra dos franceses, num país onde o nível de pobreza tem vindo a aumentar? Sim, esse é uma das principais críticas formuladas por muitos economistas. Ao congelar as pensões e os salários da função pública, o chamado um ano branco, o Governo introduz um mecanismo de perda do poder de compra, especialmente para os pensionistas e trabalhadores com rendimentos fixos. Ora, esses grupos são precisamente os que mais consomem no comércio local e nos serviços básicos. O problema é que num país onde 15% da população vive abaixo do limiar da pobreza e onde a inflação, apesar de estar a abrandar, continua a limitar os rendimentos, estas medidas podem gerar uma contracção da procura interna. Portanto, o ajustamento orçamental corre o risco de ser ainda mais regressivo para o crescimento económico. O primeiro-ministro anunciou a supressão de dois feriados, a segunda-feira de Páscoa e 8 de Maio, sublinhando que em França há muitos feriados. Esta medida poderá afectar o sector do turismo? É uma medida controversa, tanto pela dimensão simbólica como económica. Do ponto de vista simbólico, o 8 de Maio -dia do Armistício- é uma data de memória, histórica, onde se assinala a vitória sobre o nazismo. A supressão pode ser também percebida como uma forma de desrespeito pela memória colectiva. Quanto ao impacto económico, os feriados são também momentos chave para o turismo interno e o primeiro feriado pode de facto provocar perda de líquidas, para o sector do turismo, avaliadas -segundo alguns estudos - em cerca de 500 milhões euros. Neste caso, a produtividade teórica recuperada poderá não compensar o impacto económico real num sector já fragilizado. O Governo quer rever as baixas médicas de longa duração. Existe, de facto, um aproveitamento das baixas médicas, ou o Governo estará a fazer pagar sempre os mesmos? É um debate sensível, porque se é verdade que há situações de baixas médicas legítimas; também existem situações de fraude, como em todos os sistemas sociais. Porém, os dados disponíveis não indicam que estas situações são realmente representativas e a esmagadora maioria dos trabalhadores -que estão em baixa médica fá-lo por necessidade médica real, muitas vezes associados ao esgotamento profissional e a problemas de saúde mental ou doenças crónicas. Portanto, apontar o dedo às baixas médicas pode criar uma cultura de desconfiança generalizada, penalizar os doentes e desincentivar os diagnósticos precoces. O risco é também que esta política acabe por afectar os mais vulneráveis, sem resolver os problemas estruturais de absentismo laboral, ligados sobretudo à precariedade e à degradação das condições de trabalho. Como é que se equilibram as contas de um país, fazendo com que ele cresça -ao mesmo tempo? Pode haver um plano de investimentos, a longo prazo, no sector numérico, nos empregos do futuro, inteligência artificial e-em paralelo- priviligiar-se uma política económica assente em bases sociais-democratas. O Governo descartou a taxa Zucman, apesar de sete prémios Nobel da Economia terem vindo defender que com esta taxa a França estaria a enviar um sinal ao mundo... Ao recusar aplicar esta taxa de imposto mínimo global sobre as grandes fortunas, o Governo revela uma escolha política clara de evitar qualquer sinal de fiscalidade progressiva que possa alienar os investidores ou parte da classe média alta. François Bayrou e Emmanuel Macron temem uma fuga de capitais, sobretudo no contexto europeu, ainda sem uma coordenação fiscal robusta. Porém precisamos de redistribuição, porque se pensarmos no mercado de trabalho do futuro, essa redistribuição será necessária. Como defende o ensaísta norte-americano, Jeremy Rifkin, as desigualdades vão aumentar -frente ao desenvolvimento da inteligência artificial- e nesse contexto serão importantes as receitas do Governo, mas também o rendimento universal. O chefe de Estado, Emmanuel Macron, e alguns partidos de direita aplaudiram, de certa forma, este plano de austeridade. Os partidos de esquerda e a extrema-direita são críticos, ameaçando derrubar o executivo francês. Este plano pode levar à queda do Governo? O risco é real, isto porque Governo não dispõe de maioria absoluta na Assembleia Nacional. Sabemos que a instabilidade política impacta directamente o crescimento económico. Se o primeiro-ministro decidir avançar com o artigo 49/3, para forçar a aprovação do Orçamento, poderá haver outra crise parlamentar, precipitando a queda do Governo ou desencadear uma remodelação ou eleições antecipadas com impacto no crescimento económico. O crescimento económico já muito fraco em França. Que mudanças é que podem ainda ser feitas neste plano de austeridade para que se torne mais exequível, mais justo? Faltam medidas que privilegiem os investimentos no mercado dos empregos do futuro e falta uma reforma estrutural no mercado de trabalho. Mas quando fala em reforma estrutural de trabalho, refere-se a que tipo de reformas? A um ajustamento adequado entre a oferta no mercado de trabalho e as competências dos trabalhadores, à reforma das 35 horas semanais que, no contexto actual, é totalmente absurda. É preciso aumentar as horas de trabalho, tendo em conta as condições laborais. Precisamos de fazer reformas estruturais no mercado de trabalho, nas pensões, nos subsídios e rever a carga fiscal, através da simplificação administrativa. Admito que são mudanças que levam tempo, que muitas fezes pela falta de tempo os responsáveis políticos se recusam a querer implementar, mas se não as fizermos não vamos resolver os verdadeiros problemas.

    "Affaires Familiales" leva a palco mosaico fragmentado da justiça familiar

    Play Episode Listen Later Jul 14, 2025 14:03


    No espectáculo "Affaires Familiales", de Émilie Rousset, sete actores revivem histórias reais para retratar a complexa justiça familiar na Europa. Teresa Coutinho, actriz portuguesa, conduz o público por este labirinto documental, onde o direito se revela fluido, contraditório e politicamente vulnerável. O resultado é um teatro onde o corpo, a voz e o gesto traduzem não só histórias pessoais, mas o pulsar desigual de um continente em disputa com os seus próprios princípios. A justiça, tal como o teatro, vive da interpretação. Em Affaires Familiales, Assuntos de Família, essa premissa torna-se literal. A criação de Émilie Rousset dá corpo e voz a testemunhos reais de quem viveu o divórcio, a custódia, a parentalidade ou a violência doméstica e sexual – situações familiares, sim, muitas vezes juridicamente desconcertantes. Teresa Coutinho, uma das intérpretes do espectáculo, fala-nos de um “exercício de presença” tão exigente quanto revelador. O convite surgiu de forma natural. Teresa Coutinho já conhecia Rousset do projecto Pays Partagés, onde colaboraram em Portugal. “Foi logo um encontro muito feliz”, recorda. O trabalho começou com uma pesquisa sobre parentalidade LGBT em vários países europeus, e foi ganhando contornos mais concretos. “Fez sentido que a língua portuguesa estivesse presente em palco e com ela, eu”, explica a actriz, que incorpora falas de figuras como Isabel Moreira ou Fabiola Cardoso. Mais do que um retrato da Europa, Affaires Familiales é uma composição subtil dos seus contrastes. “A lei caminha a ritmos diferentes”, diz Teresa Coutinho, que destaca um paradoxo: “Muitas vezes em Portugal avançámos mais depressa em temas como a parentalidade LGBT do que em França”, compara. Mas a peça também alerta para o retrocesso. “O que está a acontecer em Itália pode acontecer em qualquer lado. Não estamos ao abrigo de nada”, alerta. O espectáculo parte de entrevistas reais. Os actores reproduzem palavra por palavra, intuição por intuição, as vozes originais, guiados por uma gravação áudio que ouvem discretamente através de um auricular: “É como seguir uma partitura”, descreve. A cadência da fala, as hesitações, a respiração, tudo conta. O trabalho é rigoroso, mas também sensível: “Encontramos sempre espaço para reagir ao presente, ao público presente na sala”. A cenografia apresenta-se como uma página em branco, ao mesmo tempo simples e evocadora. Um dispositivo que se torna um espaço de projeção, onde os relatos íntimos ganham corpo. As sombras de figuras humanas evocam a presença de muitas outras vítimas de violência intrafamiliar, recordam que, por detrás de cada testemunho individual, se escondem percursos semelhantes, muitas vezes silenciados ou invisibilizados. A gestualidade, por sua vez, é uma coreografia estudada e fragmentária. “As mãos falam, muitas vezes dizem o que não dizemos com a boca”, lembra a actriz, acrescentando que “há passagens em que sublinhamos esse exercício, para que o público perceba que está perante uma construção. É também sobre isso que fala o espectáculo: o que é natural e o que é encenado”. No palco, o público é mais do que espectador é convocado, sentado frente-a-frente perante o palco, num efeito espelho que se sente, sobretudo, nas cenas mais intensas. “Há uma sequência que evoca mães de crianças vítimas de incesto. Só faz sentido dizer estes testemunhos com outras pessoas presentes. É aí que se cria uma assembleia, uma comunidade provisória”.  “Acho que o espectáculo, apesar de tudo, oferece um lado de esperança”, afirma a actriz portuguesa. Essa esperança, diz, não vem de soluções, que raramente existem nos relatos partilhados, mas da possibilidade de dar voz e forma à dor. “As pessoas aplaudem, sim, o nosso trabalho, mas aplaudem sobretudo o facto de estas histórias existirem, de estarem a ser ouvidas”. No final, o teatro cumpre a sua função mais antiga: tornar o invisível visível. Teresa Coutinho vê nisso uma responsabilidade que não pesa, mas que exige consciência. “Quando temos um palco e 250 pessoas à frente durante duas horas e meia, isso é um poder enorme”, sublinha. Para a actriz, o espectáculo é um alerta: “A lei é mutável. Pode mudar consoante quem está no poder. A Europa é diversa, mas também instável”. Teresa Coutinho reconhece, ainda, que nem toda a arte tem de ser interventiva, mas acredita no poder do palco como ferramenta cívica. “A arte pode ser muitas coisas, mas os artistas têm essa possibilidade de consciencializar. A Emílie fez essa escolha com muita clareza, porque este é um tema pessoal para ela, como acaba por ser para quase todas nós”. A dor que se partilha em cena é muitas vezes eco de dores privadas. Affaires Familiales é uma advertência contra o esquecimento, contra a ideia de que os direitos adquiridos são eternos. “Cabe-nos defender as leis e agarrá-las”, conclui. Entre o rigor documental e a emoção teatral, o espectáculo propõe uma escuta atenta; não só ao que os outros dizem, mas ao que nós próprios queremos ouvir.

    O outro lado do palco do festival de Avignon

    Play Episode Listen Later Jul 14, 2025 9:10


    No centro do Festival de Avignon, muito para lá dos holofotes, Ivone Sens e Débora Carvalho garantem que tudo acontece com precisão e paixão. Entre bilhetes, bastidores e contactos internacionais, revelam-nos o lado invisível do teatro, onde o cansaço é diário, mas o brilho no olhar não falta. Um retrato íntimo da equipa que faz o palco levantar voo. Ivone Sens e Débora Carvalho integram a equipa do Festival de Avignon. Trabalham nos bastidores, longe da visibilidade do palco, mas com funções essenciais para o festival. São parte de uma estrutura logística e organizativa que garante que os espectáculos decorram sem falhas, desde a comunicação institucional até à gestão das reservas para as companhias. Débora Carvalho ocupa-se da bilheteira reservada às companhias. Corre de manhã cedo até à noite, numa coreografia de nomes, lugares e pedidos de última hora. Sabe de cor os espectáculos mais procurados Le Canard Sauvage ou NOT e conhece os ritmos frenéticos que antecedem cada estreia. “Há sempre filas enormes, pedidos em cima da hora, e a necessidade de acolher com sorriso mesmo quando o relógio já pesa”, conta. Ivone Sens é a ponte entre os artistas e o festival. Trabalha na comunicação, mas faz muito mais do que divulgar: colecta dados, organiza biografias, monta fichas técnicas, e prepara o terreno para que a arte aconteça sem tropeços. “É a minha primeira vez em Avignon, e já parece uma vida. Começámos em Janeiro, e agora ver os espectáculos em palco é como ver um filho crescer”, conta, com entusiasmo. Ambas chegaram a Avignon por amor ao teatro e à cultura, vindas de percursos distintos, mas movidas pelo mesmo impulso: fazer parte do festival. Débora, com cinco anos de festival, fala de uma aprendizagem contínua: “Nunca tinha trabalhado em bilheteira. Aqui, aprendi a resolver problemas em várias línguas, a lidar com um sistema gigante e a não perder o pé mesmo quando tudo parece andar depressa demais”. Ivone vê no trabalho uma forma de concretizar a vocação. “Sempre quis comunicar cultura. Aqui, estou a fazê-lo com intensidade. É exigente, mas incrivelmente gratificante”, explica. Para ambas, o contacto diário com artistas, técnicos e espectadores constrói um tecido invisível que sustenta o festival e que raramente é visto. Há um brilho especial quando falam dos espectáculos que conseguem ver. “Mesmo sentada na plateia, depois de horas de trabalho, sinto que faço parte daquele momento”, diz Débora. E Ivone completa: “Estar nos bastidores e depois assistir ao resultado é como fechar um ciclo. É perceber que, mesmo fora de cena, somos parte da criação”, conclui.

    Escolher e arriscar, a programação do festival de Avignon com Magda Bizarro

    Play Episode Listen Later Jul 14, 2025 15:00


    Nos bastidores do Festival de Avignon, um dos mais importantes palcos do teatro do mundo, há uma programadora que observa, escolhe e molda. Magda Bizarro, programadora internacional do festival e braço direito de Tiago Rodrigues, é uma arquitecta do invisível. Trabalha na escuta e acredita que programar é arriscar. Nesta entrevista, Magda Bizzaro, levanta o véu sobre o que é fazer curadoria num lugar onde a arte é feita para estremecer, deslocar e revelar. Quando lhe perguntamos o que faz com que um espectáculo mereça estar no Festival de Avignon, Magda Bizarro responde sem hesitação: “Uma coisa muito importante para nós é sempre o público”. Antes de construir o programa, dedicou-se a entender quem o vê: “Passei o festival de 2022 inteiro a pisar cada espaço para perceber o que é que o público procura, mas também o que é que ele não está à espera de ver”. Essa escuta inicial marca toda a sua abordagem curatorial: “A programação é pensada tanto para o público habitual como para aquilo que pode desafiá-lo”. Não se trata de agradar, mas de propor. “Queremos trazer artistas que o público conhece bem, mas também outros que nunca viu. Propostas arriscadas, que o fazem descobrir”, conta. A linha que define o ADN do festival é esse cruzamento entre reconhecimento e surpresa. A escolha dos espectáculos é um processo longo e exigente: “Vejo mais de 300 espetáculos por ano”. Não se trata apenas do que está pronto porque "muitas vezes, o espectáculo que eu vejo não é o que vai ser apresentado - é o próximo”. A programação não se baseia em produtos finalizados, mas em relações, em processos. “É um trabalho que se constrói ao longo do tempo", conta. Um exemplo claro é o caso de Thomas Ostermeier: “Comecei um diálogo com ele em 2023, e agora, em 2025, apresentamos o espetáculo 'O pato selvagem'”. Mesmo com todas as conversas e acompanhamento, a programadora portuguesa só o viu completo no momento da estreia. “Descobri o espectáculo ao mesmo tempo que o público", diz. Essa partilha do risco é uma das marcas do festival: “É um festival de criação, muitas vezes não sabemos o que vamos ver. E isso é extraordinário”. Nem sempre os projectos chegam ao palco. “Houve um espectáculo que não conseguimos estrear este ano porque o artista perdeu o teatro onde ensaiava, vivia numa zona de conflito”, recorda. Questionada se existem enganos na escolha da programação, Magda Bizzaro sublinha que “não é engano. Às vezes, simplesmente, as condições não se reúnem. E isso faz parte do nosso trabalho: reunir tempo, apoios e espaço para que as criações possam existir”. É nesse contexto que surge La FabricA, espaço de residência artística ao serviço de quem mais precisa: “Muitos dos artistas que recebemos em residência vêm de regiões onde os governos não os apoiam”. Este ano, por exemplo, “a Marlène Monteiro Freitas esteve duas semanas e meia connosco, para ensaiar o seu espectáculo num espaço com as condições que ela precisava” A estreia do espectáculo, no grande recinto que é o pátio de honra do Palácio dos Papas, foi um sucesso, mas só o foi porque houve escuta e propostas práticas. O festival também reflecte uma visão política da linguagem. Desde 2023, há uma língua convidada. Depois do inglês e do espanhol, este ano é a vez do árabe. “Queríamos desassociar o árabe da ideia de conflito e religião”. O objectivo é outro: “Mostrar a sua diversidade, a sua viagem pelo mundo e as formas como se transformou e foi transformando outras línguas”, descreve a programadora portuguesa. Dois espectáculos mostram essa pluralidade. “Temos o "Laaroussa Quartet" de Selma e Sofiane Ouissi, sobre as mulheres de Sejnane, no norte da Tunísia e temos "When I Saw the Sea" de Ali Chahrour, com três mulheres vindas da Etiópia e do Sudão para viver no Líbano”. São abordagens completamente diferentes, “com sonoridades distintas, dois árabes diferentes, mas que falam da mesma urgência”, defende. Magda Bizarro insiste que o festival é desenhado como uma viagem para o espectador: “Pensamos o dia completo: pode ver-se teatro de texto de manhã, à tarde dança, e depois algo sem palavras. O objectivo é um percurso rico e pleno”. E, para isso, a programação precisa ser feita em articulação com os espaços: “Temos 22 locais em Avignon. Cada um tem as suas especificidades. Há espectáculos que não podem acontecer ao ar livre, por exemplo”. A complexidade da operação exige uma equipa gigantesca: “Durante o ano, somos 34. Em Julho, passamos a ser 750. Com os artistas, somos cerca de 1500”, descreve. Mas essa força não é só logística: “É uma equipa que sabe adaptar-se às necessidades dos artistas. E isso torna o festival mais rico". Magda Bizarro fala com carinho dessa máquina invisível que sustenta o brilho do palco. Quando se fala em reinvenção, a programadora admite: “É muito difícil reinventar cada edição. O festival tem um passado pesado, uma história densa”. E isso obriga a pensar em múltiplos equilíbrios: “Não é só diversidade geográfica ou estética. É também equilíbrio geracional, financeiro, técnico”. No mesmo cartaz, convivem mestres como Christoph Marthaler e estreantes como Mário Banushi: “Esse encontro entre gerações é o segredo da reinvenção”. Por fim, perguntamos-lhe se o facto de ser portuguesa afecta o seu olhar como programadora. A resposta vem com a nitidez de quem já viu e viveu muito: “Sim, há uma diferença. Eu sei o que é trabalhar com quase nada. Já paguei cenários do meu bolso. Já fiz espectáculos em garagens com luzes de velas". E isso dá-lhe uma escuta particular, uma atenção ao que ainda está a nascer: “Se calhar, vou a Buenos Aires ver um espectáculo numa garagem porque já fiz um espectáculo numa garagem. É aí que se descobrem pérolas”. Quando lhe pedimos uma palavra para resumir o Festival de Avignon, não hesita: “Aventura”. Mas no seu olhar percebe-se que essa aventura não é feita de impulso, antes de persistência. Não é o desvario de quem salta no escuro, mas de quem aposta no que ainda não se viu, de quem arrisca sem espetáculo e trabalha para que outros possam estar em cena. Magda Bizarro está no silêncio atento das grandes decisões deste que não é apenas um festival: é um território de possibilidades, onde o teatro continua a ser um dos lugares mais íntimos e bonitos.

    Mayra Andrade canta o mundo no Festival de Avignon

    Play Episode Listen Later Jul 13, 2025 19:24


    Mayra Andrade subiu este sábado, 12 de Julho, ao palco do Palácio dos Papas, no festival de Avignon, num concerto marcado por beleza, urgência e consciência social. A cantora cabo-verdiana evocou temas como justiça, identidade e herança cabo-verdiana. ReEncanto celebrou os 50 anos da independência de Cabo Verde e reflectiu sobre o papel da arte como escuta e resistência. Num concerto intimista no pátio de honra do Palácio dos Papas, no festival Avignon, Mayra Andrade levou o coração de Cabo Verde, a voz das entranhas e a consciência do mundo a ecoar entre as pedras. Entre a sua filha na plateia e o grito por justiça em palco, a cantora cabo-verdiana ofereceu um momento de beleza e urgência: “Se não a cantar, não contribuo para o diálogo”, confessou. O pátio de honra do Palácio dos Papas tem o peso das coisas eternas, mas este sábado foi o presente que se fez ouvir. Mayra Andrade subiu ao palco com a simplicidade de quem não tem nada a provar, mas tudo a oferecer: “Antes de subir ao palco, alinho-me com o porquê de eu cantar. Agradeço ao universo pela oportunidade de partilhar quem eu sou, de contar o tempo no qual estamos”. Havia beleza e sombra no ar, como se cada nota tivesse de atravessar a consciência antes de tocar o ouvido. “Teria sido mais bonito se esta canção já não fizesse sentido. Mas se não a canto, não estou a contribuir para o diálogo. Um diálogo que é não fechar os olhos à injustiça, ao genocídio, ao absurdo”, afirma em palco antes de cantar "Konsiénsia", do álbum Stória, Stória de 2009. “A consciência que dorme não muda o mundo”, defende Mayra Andrade, num murmúrio que se espalhou pelo pátio. Cantar é, para ela, uma forma de escuta. “Sim, sem dúvida. Cantar é dar eco à vida. É ser antena. É captar o que acontece à nossa volta, o que vem no ar, o que a gente observa, o que a gente quer denunciar, o que se quer partilhar”, partilha. Na sua voz, há uma memória antiga e um apelo novo: “Canto sempre das minhas entranhas. A minha voz vem do meu útero, das minhas vísceras. É uma ponte entre o céu e a terra. E eu, no meio, sou atravessada por esse espírito criativo que me usa como vetor de mensagens, emoções e histórias”, descreve. “Quero acreditar que quando somos genuínos, conseguimos tocar as pessoas. A minha música é feita numa língua que 99,99% das pessoas no mundo não entendem. O crioulo é falado por poucos, mas traz uma musicalidade, um ritmo, uma herança muito antiga. É um idioma do mundo”, acrescenta a cantora cabo-verdiana. Quando canta em crioulo, não é apenas identidade, é chão. “Cantar em crioulo é cantar com todo o meu ser. Tem uma coisa muito raiz. Depois posso cantar em francês, inglês, espanhol, português, que também é a minha língua, mas o crioulo vem da terra de onde eu venho”, lembra. A sua participação no festival coincide com os 50 anos da independência de Cabo Verde, poucos dias depois de Marlène Monteiro Freitas ter aberto o festival com dança, com NÔT. “Estamos todos a celebrar. Eu faço parte de uma constelação de artistas cabo-verdianos muito orgulhosos de o ser e sedentos de partilhar a nossa cultura com o mundo”, defende. O concerto reEncanto é também autobiográfico. Um gesto artístico e íntimo: "É o fechar de um ciclo, a abertura de um novo. É redescobrir a minha voz. Algumas canções foram compostas há mais de vinte anos, outras são recentes. E é tremendo perceber como ainda fazem sentido. Talvez mais do que nunca”. Essa permanência do sentido revela outra inquietação, “muitas foram escritas em contextos políticos e sociais diferentes, mas hoje continuam a ecoar. A violência, a injustiça, o absurdo, o genocídio, a apatia, a indiferença... Tudo isso me preocupa”, sublinha. No fim do concerto, o agradecimento foi dirigido ao festival de Avignon e ao seu director, Tiago Rodrigues: “Vivi catorze anos em França. Já não vivo aqui há dez. Voltar para cantar neste espaço, neste festival, é algo que nunca vou esquecer". Cabo Verde esteve presente em cada sílaba, como ponto de partida de uma voz que canta o mundo. “Sou uma cabo-verdiana no mundo. E como a Marlène Monteiro Freitas, é difícil pôr-me numa caixinha. Porque nós somos isso: movimento, mistura, herança e futuro”.

    “Chá Verde dos Açores promove funções cognitivas e ajuda na prevenção do cancro”

    Play Episode Listen Later Jul 8, 2025 7:22


    O Chá verde dos Açores, produzido na Gorreana, contém uma substância que fomenta as funções cognitivas, ajuda na prevenção do cancro e a combater doenças como Parkinson ou Alzheimer. A descoberta foi feita pelo investigador e professor na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada, José Batista, doutorado em bioquímica analítica, que trabalhou em várias universidades portuguesas e do Canadá. A investigação começou com uma simples pergunta: como pode o chá verde ajudar a reduzir o risco de cancro? Ao trabalhar com dados de estudos de universidades internacionais, o investigador e professor da Universidade dos Açores, José Baptista, percebeu que fazia sentido explorar o potencial do chá verde neste contexto, “Comprei chás da China, do Japão, da Coreia… e quando os comparei com o chá da Gorreana, reparei que o dos Açores era menos amargo, menos adstringente. Isso levou-me a pensar: há aqui algo diferente”, conta o professor. Foi essa diferença no sabor que despertou o interesse do professor José Baptista: um ligeiro toque adocicado indicava a presença de um aminoácido especial -raro na natureza produzido apenas pela planta do chá e por alguns cogumelos tóxicos. “Suspeitei que se tratava de L-teanina, um aminoácido que estimula a comunicação entre neurónios. Precisava de o provar, e consegui confirmar, com ajuda de colegas no Japão, que o chá da Gorreana tinha mais do dobro da média encontrada em 16 chás chineses analisados”, recorda A análise revelou cerca de 3,7% de L-teanina nas folhas de chá verde da Gorreana. O investigador da Universidade dos Açores começou a estudar o impacto da zona da plantação, da fase de crescimento da folha, do tempo e temperatura de secagem. Com algumas modificações no processamento, aumentaram em 70% o teor deste aminoácido, sem recorrer a qualquer produto químico. “O que fizemos foi encontrar as condições ideais para que a planta não perdesse esse composto durante o processamento. Hoje, somos o único local do mundo onde se produz um chá verde com estas características”, afirma. O professor José Baptista sublinha que a ciência já demonstrou que o nosso cérebro, embora represente apenas 2% do peso corporal, consome 25% do oxigénio que respiramos - e essa elevada actividade metabólica gera radicais livres, moléculas instáveis que danificam as células e podem levar a doenças como o cancro ou Alzheimer. “Os radicais livres roubam electrões às células vizinhas, criando uma reacção em cadeia. Se atingirem o núcleo de uma célula, podem transformá-la numa célula cancerígena”, explica Baptista, acrescentando que “é aqui que entram os antioxidantes, compostos que neutralizam os radicais sem desencadear novas reacções. E o chá verde - especialmente o dos Açores - é riquíssimo em antioxidantes”, Além do efeito antioxidante, a L-teanina encontrada no chá verde estimula a actividade cerebral, promove o relaxamento sem causar sonolência e pode ajudar a prevenir doenças neurodegenerativas como o Alzheimer. “Esse aminoácido melhora a comunicação entre os neurónios. E sabemos também que 50% da membrana dos neurónios é formada por ácidos gordos ómega-3. Uma dieta rica em ómega-3 e chá verde pode reduzir significativamente o risco de Alzheimer”, nota. O investigador recomenda o consumo gradual do chá, sobretudo para quem não está habituado à cafeína, sublinhando que há formas de reduzir esse conteúdo, “Basta deitar fora a primeira infusão de 30 segundos - ela liberta grande parte da cafeína. A segunda infusão já tem níveis mais baixos. Além disso, a água nunca deve ser colocada a ferver diretamente nas folhas. O ideal é deixá-la arrefecer até cerca de 70 °C antes de a usar”, detalha. Para quem quer integrar este chá na rotina diária, a boa notícia é que não é necessário consumir grandes quantidades. Mesmo duas a três chávenas por dia podem trazer benefícios significativos "os japoneses, beba até dez por dia". “Não se trata de uma cura milagrosa, mas de um contributo real para a saúde cerebral e para a prevenção de doenças graves”, conclui José Baptista.

    Tiago Rodrigues estreia A Distância: um pai na Terra e uma filha em Marte

    Play Episode Listen Later Jul 7, 2025 10:12


    O autor e encenador Tiago Rodrigues estreou esta segunda-feira A Distância no Festival de Avignon. Entre a Terra e Marte, a peça fala do amor e da distância entre um pai e uma filha. Uma ficção científica íntima, com o coração sempre ligado, mesmo a anos-luz. Tiago Rodrigues transforma o futuro em palco para reflectir sobre herança, memória e esperança. Estamos em 2077. A Terra arde, afogada nas consequências da crise climática, e uma parte da humanidade fugiu para o planeta Marte. O que resiste, ainda, entre um pai que ficou e uma filha que partiu? Em A Distância, Tiago Rodrigues constrói uma ficção científica do íntimo, “uma miniatura perdida na imensidão do cosmos”, como se lê na sinopse, e como se escuta, em cada frase do encenador, também director do festival de teatro de Avignon. “Quis falar do futuro e da relação entre gerações. Quis perceber o que acontece a um amor, como o de um pai por uma filha, quando há uma distância. Não uma distância de quilómetros, mas uma longa, longa, longa, longa distância entre dois planetas”, diz Tiago Rodrigues. A peça, protagonizada por Adama Diop e Alison Dechamps, gira como dois corpos celestes em órbita: ora se encontram, ora se perdem. Tiago Rodrigues não esconde que a ideia tem raízes pessoais: “Emigrei para França há três anos, mas a minha filha continua os seus estudos em Portugal. Temos uma relação de amor à distância. Esta peça toca-me porque parte também dessa realidade”, partilha. No palco, a distância não é apenas física, é sobretudo uma questão de tempo, de memória, de esperança ameaçada. “A peça fala da transmissão. Que planeta vão herdar as próximas gerações? E o que é que isso faz ao amor, à ideia de esperança, à memória?”, questiona o autor. Há na peça um certo desespero sereno, um aceno à impotência, mas também uma vontade de escuta. “Julgo que hoje já começamos a ter uma geração de jovens que pensa que vai viver pior que os seus antepassados. Isso é novo, é tremendo. E o que é que isso faz à esperança? Talvez nos leve a esquecer tudo, a começar de novo em Marte. Não é a minha proposta para o futuro, mas é um cenário que já nos habita”, desenvolve. Se A Distância traça linhas ténues entre planetas, o Festival de Avignon, que Tiago Rodrigues dirige desde 2023, propõe outras ligações improváveis; entre línguas, estéticas, histórias e geografias. Este ano, o festival abriu com um gesto que é também um manifesto: Marlene Monteiro Freitas, cabo-verdiana, fez dançar no Palácio dos Papas, no mesmo dia em que se celebraram os 50 anos da independência de Cabo Verde. “É um gesto de risco, mas compensado por um espetáculo sublime. Pela primeira vez, uma cabo-verdiana abre o festival e acontece no dia em que se celebram os 50 anos da independência de Cabo Verde. Uma coincidência poética, histórica. Essa cabo-verdiana é convidada por um português que é o primeiro estrangeiro a dirigir o festival de Avignon”, explica Tiago Rodrigues. Nesta edição, a língua árabe é convidada como “língua mundo”. Uma escolha com peso político, feita num tempo em que tantas das geografias onde ela se fala vivem em exílio, guerra ou luto. “A razão principal para convidarmos a língua árabe é a sua riqueza e diversidade. Mas claro que sabemos que ela carrega também complexidades políticas. E queremos lidar com essas complexidades com aquilo que o festival faz melhor: criar espaços de escuta, de diálogo, de pensamento”, sublinha o seu director. Escutar, acolher, debater. Fazer do teatro um lugar de confronto e, sim, de utopia. Tiago acredita nisso. “Em Avinhão, a utopia é palpável. As pessoas não dizem que vêm ao festival. Dizem que fazem Avingon”, acrescenta. E fazem-no aos milhares: “Este ano temos números de público absolutamente record. Isso diz muito sobre a fome que temos de diversidade, de descoberta, de formas novas de pensar o mundo". No meio de tudo isto, A Distância estreia entre a Terra e Marte, entre o amor e o silêncio, entre o que se perdeu e o que insiste em permanecer. No centro deste palco político e poético, Tiago Rodrigues apresenta um teatro de ciência íntima, que escava o futuro para tentar escutar o presente. Durante a peça, há uma música que regressa, "Sonhos" de Caetano Veloso. É a favorita do pai e da filha e é por ela que se reconhecem, é com ela que se lembram. Como se, mesmo a anos-luz de distância, ainda existisse um lugar comum onde pousar o ouvido. “Parti da ideia de que a comunicação não se quebra, forma-se”, diz o encenador. E no seu teatro, mesmo quando a linha parece frágil, há sempre alguém do outro lado.

    Entre o que se diz e o que se cala começa a dança de Marlene Monteiro Freitas

    Play Episode Listen Later Jul 6, 2025 11:11


    No Pátio de Honra do Palácio dos Papas, um lugar de pedra, de História, de poder antigo. É aqui que, todos os verões, o Festival de Avignon tenta reinventar o teatro como se se tratasse de um levantamento. Este ano, o sopro inaugural, aquele que dá início a tudo, foi confiado à coreógrafa cabo-verdiana Marlène Monteiro Freitas, figura indomável da dança contemporânea, cuja obra não cabe em nenhuma categoria senão na da possessão poética. Na noite de sábado, 5 de Julho, o espectáculo NÔT rasgou a ordem do Pátio de Honra do Palácio dos Papas. A coreógrafa cabo-verdiana, Marlène Monteiro Freitas, abriu a 79.ª edição do Festival de Avignon. Por entre grades brancas, lençóis manchados de vermelho e corpos disformes que dançam como se estivessem possuídos, a coreógrafa trouxe o caos como gesto inaugural ao maior festival de teatro francês. “A peça teve, nestas últimas semanas, de lutar pela sua sobrevivência e talvez pela sua independência”, começa por nos contar, acrescentando que a obra “demorou bastante tempo a falar-nos. Acho que isso tem a ver com o diálogo e com a arquitectura deste espaço. Foi uma luta até ao fim". O que nos diz NÔT? Talvez nada que possa ser traduzido em palavras. Talvez tudo o que o corpo, o som e o silêncio podem dizer quando as palavras já não sabem o que dizer. O título, ambíguo, evoca a “noite” em crioulo cabo-verdiano, mas também o “not” em inglês: negação, interrupção, desobediência. Nada parece ser inocente aqui, nem gratuito. “Quando comecei a trabalhar nas Mil e Umas Noites pensei que teríamos que criar um diálogo com essa obra. A ideia da noite impôs-se", lembra. A noite como território instável, onde a imaginação e o medo se confundem: “Há ideias que nos parecem boas à noite e de manhã já não são. Há dores que aumentam, há exageros. E depois há os sonhos, que são uma espécie de trilha que não controlamos”. Entre o que se diz e o que se cala começa a dança Inspirada nas Mil e Uma Noites, NÔT não é uma adaptação é uma reescrita sem palavras. “A própria obra é uma força entre o oral e o escrito. Há uma certa mobilidade que existe no oral e que na escrita se torna mais fixa”, sublinha a coreógrafa. Essa tensão entre o fixo e fluidez marca o trabalho de Marlène Monteiro Freitas: “Estamos sempre em diálogo entre algo fixo e algo móvel”. A cenografia é composta de grelhas metálicas, camas desalinhadas, pequenas cadeiras que desenham o espaço sem nunca oferecer estabilidade. A composição visual, por vezes hipnótica, por vezes grotesca, serve de espelho ao corpo: fragmentado e, por vezes, reduzido a marioneta de si mesmo: “É um desafio muito grande fazer um espetáculo neste palco”, admite. Em cena, oito intérpretes: músicos-dançarinos-figuras grotescas que se mascaram, que se duplicam, que se deformam. Em certos momentos, todos parecem encarnar, distorcidamente uma Shéhérazade mecânica, a lendária rainha persa e narradora dos contos de As Mil e Uma Noites. O vermelho, omnipresente, insinua-se como sangue e memória. O espetáculo apresenta-se todas as noites a um público de 2.000 pessoas, muitas das quais vieram apenas “ver um espetáculo no Pátio de Honra” e Marlène Monteiro Freitas reconhece o confronto: “Com certeza que muita gente não sabe ao que vem. Talvez encontrem o nosso trabalho por acaso”. Mas é nesse acaso que reside também a força do que se cria ao vivo. O fascínio pela obra original as Mil e Uma Noites não nasce de uma tentativa de domínio, mas de espanto. “O meu contacto com a obra aconteceu muito cedo, na adolescência… Depois nunca mais pensei nela”. Ao voltar a ela, Marlène encontrou algo que ressoava com o seu próprio processo criativo: “Uma obra com várias versões, vários autores, onde nem sempre se sabe quem escreveu o quê. Uma espécie de livro estrangeiro, sempre em potência”. Essa ideia de potência, de texto que se reescreve a cada leitura, é o coração de NÔT. Há fragmentos que colidem: entre o ritmo de Stravinsky ao de Prince, gritos, ruídos, movimentos que se repetem. NÔT estreou no dia em que se assinalaram os 50 anos da independência de Cabo Verde. “Confesso que, quando me apercebi disso tudo, achei um acaso incrível. Pensei: se calhar vamos ter alguma sorte. Nos últimos dias pouco pensei nisso porque é um desafio muito grande fazer um espetáculo neste palco. A peça teve nestas últimas semanas a lutar pela sua sobrevivência e talvez pela sua independência", concluiu. Com esta estreia mundial de NÔT, o Festival de Avignon abriu-se àquilo que não se explica: à estranheza, à violência poética, à radicalidade de corpos em luta. A escolha do director do festival, Tiago Rodrigues, para abrir com NÔT não foi apenas ousada, mas foi política. Começar com o incompreensível é uma forma de dizer que o teatro, hoje, precisa menos de respostas e mais de perguntas que nos deixem inquietos.

    Juventude alerta que “a luta continua” 50 anos depois da independência

    Play Episode Listen Later Jun 26, 2025 19:38


    Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica uma série de reportagens sobre este tema. No décimo episódio, ouvimos jovens que reivindicam o legado de Amílcar Cabral, que questionam o que foi feito dos ideais revolucionários e que consideram que “a luta continua”. Nesta reportagem, conversamos com o rapper Hélio Batalha, o artista plástico Hélder Cardoso, o artista multidisciplinar Djam Neguim e o sociólogo Redy Wilson Lima.  A música de Hélio Batalha “não é só rap”, é muito mais e é muito político. É isso mesmo que ele diz numa das mais recentes canções, “não pode ser só rap”. Ele acredita no poder interventivo da arte e na urgência em fazer despertar os jovens para as lutas de hoje. “Esta música fala sobre a questão de que o pessoal ouve a música só com o ouvido do entretenimento, não entende que a arte não é só uma manifestação artística em si. Ela também traz no seu âmago questões políticas e ambições sociais fortes”, começa por explicar Hélio Batalha. É preciso resistir contra o esquecimento das lutas de libertação dos povos de Cabo Verde, da Guiné-Bissau e de África em geral. Face ao que é denunciado como risco de branqueamento da memória colectiva e histórica, Amílcar Cabral representa, para uma juventude desperta, o expoente máximo de uma geração que levou até às últimas consequências a resistência a um sistema opressivo, o colonialismo. Por isso, “a luta continua” 50 anos depois da independência de Cabo Verde. “Cabralistas wake up”, do rapper Pex em que Hélio Batalha participa com Rabeladu Lopi, é uma música que fala das dificuldades dos tempos actuais e que resgata Amilcar Cabral logo para o título. Para Hélio, “o jovem cabo-verdiano deve ser Cabral hoje”, um “jovem indignado e de coração cheio”. No fundo, como diz a música, um “fruto da Revolução Cabral”.  O músico considera que os ideais de Amílcar Cabral foram traídos, por isso, diz - num outro rap - que “a luta continua”. “Essa luta tem de ser contínua, tem de ser uma luta todos os dias. Por isso é que falar sobre Cabral, falar sobre a independência, falar sobre a luta de libertação dos povos de África são pilares fundamentais para que a luta continue. Porque não há luta sem conhecer o passado (…) Tenho uma música que se chama ‘Imortal', que fala que nós, os povos africanos, temos a necessidade de estar sempre cientes e prontos para continuar essa luta porque temos vários problemas de diferentes ordens que não podemos deslumbrar só com o acto da independência”, explica Hélio Batalha. O rap está a fazer com que os jovens descubram ou redescubram a história de Amílcar Cabral e a própria luta de libertação de Cabo Verde. O sociólogo Redy Wilson Lima, que tem estudado este tema, reitera que “o Cabral da juventude é símbolo de resistência”, ainda que a figura histórica tenha sido demasiado partidarizada em Cabo Verde. Quanto às perspectivas de futuro do país, Redy Wilson Lima responde: “A luta continua”. Na reportagem que pode ouvir, fomos também espreitar alguns dos murais que representam Amílcar Cabral na cidade da Praia. Um dos mais conhecidos está num bairro periférico, na Achada Frente Grande, realizado pelo artista português Vhils, na fachada de um liceu. No centro da cidade, no Plateau, foi o jovem cabo-verdiano Hélder Cardoso a homenagear o líder da luta de libertação na fachada lateral da Fundação Amílcar Cabral. Esta é uma história que o inspira desde criança e é graças a ela que pode “pintar em liberdade”. Por isso, no mural em que retrata Cabral, ele também transcreveu a sua frase: “A luta pela libertação não é apenas um acto de cultura, mas também um factor de cultura”. “Acredito que se hoje tenho um grande conforto é porque um grupo resolveu, lá atrás, mesmo sabendo de todos os riscos e sabendo que poderiam nem usufruir do que estavam a lutar, que foi o caso de Amílcar Cabral, mas mesmo assim puseram isto como a causa maior. Então, o mínimo da minha parte é prestar homenagem a esse grupo, representado pela figura de Cabral sendo o líder”, explica o artista que assina as obras como HJC. Hélder Cardoso também pintou um mural de Amílcar Cabral com um bebé ao colo na ACOLP, Associação dos Combatentes da Liberdade da Pátria, assim como outro a representar Pedro Pires. A casa fica junto a um dos mais conhecidos liceus da cidade e Hélder Cardoso espera que os murais inspirem os alunos. “O mural de Amílcar Cabral é um mural onde usei de referência uma fotografia emblemática, que é a de Amílcar Cabral a segurar uma criança. Ele sempre dizia que as crianças, os jovens, são o futuro da Nação e flor da revolução. É esta responsabilidade que, nós, os artistas, temos neste processo de perpetuar, homenagear, passar a mensagem, educar”, acrescenta. A luta de libertação também inspira as artes performativas. Djam Neguim levou a palco, no ano passado, um espectáculo intitulado AMI.LCAR, em que revisitou esta figura histórica como um ponto de partida para pensar lutas contemporâneas. “Eu acredito que nós somos mais fortes juntos e que a transformação é feita pensando no colectivo e cada um de nós tem que se colocar nesse lugar de lutador. Não olhar para Cabral como uma figura a idolatrar, mas mais como um ponto de partida para nós fazermos as nossas lutas contemporâneas”, resume. Para marcar os 50 anos da independência, também nas artes de palco, o artista multidisciplinar Djam Neguim organizou, em Maio, o Kontornu, um festival internacional de dança e artes performativas, em que participaram companhias de nove países. Só que as dificuldades foram muitas devido à falta de apoios, o que mostra que apesar de a cultura ser uma marca identitária e turística de Cabo Verde, a luta continua também para os artistas e ainda se vive “uma utopia num país em construção”, conclui Djam Neguim.   Se quiser aprofundar este assunto, pode ouvir aqui as entrevistas integrais aos convidados desta reportagem:

    Amílcar Cabral: as múltiplas facetas do líder da luta de libertação

    Play Episode Listen Later Jun 26, 2025 21:10


    Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica uma série de reportagens em torno deste tema. Neste quinto episódio, fomos à procura de algumas memórias sobre Amílcar Cabral, o líder da luta de libertação da Guiné e de Cabo Verde, descrito como estratega, poeta, pensador, visionário e “pai” para muitos. É na fachada de um liceu, na Achada Frente Grande, na cidade da Praia, que se vê um retrato gigante de Amílcar Cabral, com os seus óculos e a sua sumbia, esculpido pelo artista português Vhils. Esta é mais uma homenagem ao ‘homi grandi' [‘grande homem'] que ficou na memória dos seus compatriotas como o pai das nacionalidades cabo-verdiana e bissau-guineense. Líder incontestável da luta pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, Amílcar Cabral é uma figura do panafricanismo e uma das personalidades mais importantes da luta anticolonial e do pensamento revolucionário no século XX. É, ainda, considerado como o motor da queda do Império Português e da viragem pós-colonial do mundo contemporâneo. Foi, também, um estratega militar e político e um pensador que continua a ser uma referência nas lutas contemporâneas contra o imperialismo, o racismo e o neocolonialismo. O historiador e sociólogo António Correia e Silva, co-autor dos três volumes da História Geral de Cabo Verde, diz que o revolucionário é, antes de mais, um filho de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e que herdou combates de gerações anteriores, sintetizando e canalizando toda a cultura de protesto que se foi cimentando numa história ritmada pela tragédia cíclica das fomes e do colonialismo. “Amílcar Cabral, incontestavelmente, é o homem que, num determinado momento, sintetiza uma cultura de protesto, uma incomodidade cabo-verdiana que está no ar e ele dá-lhe uma direção. É o líder não só que pensa a independência, mas que a operacionaliza e é uma figura que tem um peso individual, o tal poder carismático. É, também, o homem que não só pensa, mas mobiliza, estrutura, gere um processo não só para Cabo Verde e Guiné, mas ele é fundamental na criação de um nacionalismo independentista das colónias portuguesas”, começa por explicar António Correia e Silva. O historiador vai mais longe e considera que as preocupações de Amilcar Cabral “são mais amplas” porque além de militante de uma causa nacionalista, “o seu pensamento busca a emancipação enquanto tal”. “Ele vê para lá da missão do Estado, Amílcar Cabral tem preocupações do que ele chamava o projecto da humanidade e de povos africanos e, no caso concreto, cabo-verdiano e guineense, dentro desse projecto de humanidade. Aliás, ele tem uma expressão extremamente ambiciosa, ambígua e utópica, que diz que mesmo na condição de escravatura e do colonialismo, podemos trazer para a humanidade as especificidades da nossa cultura e enriquecemos o património comum da humanidade. Então, na liberdade e independentes estaríamos plenos para esse projecto de humanidade”, descreve o professor António Correia e Silva. Amílcar Cabral nasceu em Bafatá, na Guiné-Bissau, a 12 de Setembro de 1924, filho de cabo-verdianos. Estuda em Cabo Verde, primeiro em Santiago, depois no Liceu Gil Eanes, em São Vicente. Aluno brilhante, consegue uma bolsa para o ensino superior em Portugal. Em Lisboa concretiza o pensamento nacionalista, particularmente na Casa dos Estudantes do Império, da qual chegou a ser vice-presidente em 1951. Foi cofundador e colaborador do seu boletim Mensagem e criou o Centro de Estudos Africanos com Mário de Andrade e Agostinho Neto. A partir da Casa dos Estudantes do Império, ele e colegas de outras colónias começam a apoiar-se na luta pela independência dos seus países. Ainda nessa altura, ele conhece Maria Helena Rodrigues, ao lado da qual vai iniciar a luta. Formado em engenharia agrónoma, Amílcar Cabral trabalha entre 1952 e 1955 em Pessubé, na Guiné, onde dirige o Posto Agrícola Experimental e faz o recenseamento agrícola de todo o território, com viagens que lhe serão úteis para a luta posterior. A 19 de Setembro de 1956, de acordo com a historiografia oficial do PAIGC, funda o partido do qual é o primeiro Secretário-Geral. Em Dezembro de 1957, participa na fundação do Movimento Anticolonialista (MAC), depois na Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional e na Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, ao lado de camaradas das outras colónias. A sua primeira conferência de imprensa em que denuncia o colonialismo português é em Março de 1960, mês em que vai para Conacry, onde passa a viver e que passa a ser a sede do partido e da luta. É em Conacri que, mais tarde, instala a Escola-Piloto para os filhos e órfãos de combatentes. Amélia Araujo, a locutora mais conhecida da Radio Libertação e que também trabalhava no secretariado, conheceu-o de perto. “O Amílcar era uma pessoa fora de série. Era uma pessoa extraordinária, que se preocupava com todos nós e que adorava as crianças. Ele dizia: ‘As crianças são a razão da nossa luta e as flores da nossa revolução'. Bonito, não é? Ele dava muita atenção às crianças. Todos os dias, de manhã cedo, ele ia à Escola-Piloto, sentava-se lá com os meninos, contava histórias, ensinava jogos, fazia competições entre rapazes e raparigas, na corrida, por exemplo. A minha filha ganhava sempre!”, conta, com orgulho, Amélia Araújo, ao lado da filha, a cantora Teresa Araújo, numa conversa em casa delas, na cidade da Praia, na ilha de Santiago. A partir de Conacri, Amílcar Cabral implementa todo um sistema de ensino pioneiro nas chamadas zonas libertadas na Guiné-Bissau, assim como hospitais, tribunais, assembleias populares, lojas do povo e são organizadas várias formações no exterior para preparar os futuros quadros dos dois países independentes. Maria Ilídia Évora, “Tutu”, tem retratos de Amílcar Cabral logo à entrada da sua casa, no Mindelo, na ilha de São Vicente. Para ela, "nunca mais África terá um líder assim". Conta que foi ele quem a convenceu a ir para Cuba, em meados dos anos 60, para se preparar para a guerrilha em Cabo Verde, mas a luta armada nunca se fez nas ilhas e Amílcar Cabral decide que Tutu vai fazer uma formação em enfermagem na antiga RDA. “Amílcar era uma pessoa muito humana, uma pessoa muito responsável, uma pessoa muito honesta e uma pessoa amiga. Todas as vezes que a gente se encontrava, ele punha-me ao lado dele para sentar na mesa e a gente falava depois. Ele tinha a atenção de dizer: ‘Vou ter um pequeno espaço para ti para falarmos da tua filha'. Portanto, para além de ser o meu líder, também foi como se fosse um pai. Você está a ver a estima que eu tenho por ele? Ele até está na minha entrada para toda a gente ver que eu sou Amílcar Cabral. Eu apoiei Amílcar Cabral. Foi o melhor líder que nós podíamos ter. Melhor não vai aparecer nunca”, sentencia Tutu. A antiga combatente recorda também que quando a motivação esmorecia, o líder do PAIGC tinha sempre as palavras certas: “Tu sabes porque é que estás aqui, filha. Estamos a lutar. É um comboio que viaja, alguns descem, outros sobem. Mas tu não vais deixar esse comboio porque eu penso que sabes por que é que tu estás cá. Não vieste à toa.” Só depois de frustradas todas as tentativas de diálogo com o poder colonial português, é que se passa da ação diplomática à luta armada em 1963. Amílcar Cabral foi, por isso, um estratega militar e muito mais, descreve o comandante Silvino da Luz. “Amílcar era um ser humano, antes de mais, extremamente humano, extremamente humanista. Mas o Amílcar tinha várias facetas. Amílcar era engenheiro, mas foi um chefe militar, um estratega inconfundível. Amílcar foi simultaneamente poeta e foi um visionário”, afirma Silvino da Luz, sublinhando que “a sua inovação da proclamação do Estado [da Guiné-Bissau] durante a luta foi uma coisa brilhante”. Silvino da Luz diz que seria preciso um livro para descrever Amílcar Cabral, mas vai avançando com mais algumas pistas: “É um teórico, um pensador das ciências sociais e políticas inconfundível. As suas grandes armas, seus grandes textos que ele deixou, por exemplo, 'O Papel da Cultura na Libertação Nacional', 'A arma da teoria', etc, etc, etc, que o tornaram célebre.  Ainda hoje é lembrado e festejado e é comemorado nos diversos continentes. Portanto, era um homem de muitas facetas, um homem invulgar, profundamente humano. Ele dizia: ‘Se tivesse de mandar matar alguém dentro dos meus quadros da luta, então eu deixaria nessa mesma altura de ser dirigente e nunca mais seria dirigente desta terra''. Amílcar Cabral era, de facto, um “pensador e um grande líder”, resume a filha Iva Cabral, que também nos abre as portas de sua casa, na Praia, para nos falar do líder africano. “Ele é um grande líder. Conseguia levar as pessoas atrás dele. conseguia formar equipas. Era uma pessoa honestíssima porque ele dizia-me que ‘o problema de África não é a falta de recursos, o problema da África é a falta de honestidade, a elite africana não é honesta'. E é a realidade, diga-se de passagem. Nós traímos os nossos ideais. E ele dizia que o processo revolucionário não é uma ambição que ele tinha para a nossa juventude porque o que nós devemos é ser honestos conosco, honestos com o povo”, lembra a historiadora Iva Cabral. A pedra angular do ideário político de Amílcar Cabral era o princípio da “unidade e luta”, acrescenta. Os militantes da Guiné e Cabo Verde deveriam lutar juntos pela independência e contra o inimigo comum: o colonialismo português. Mas havia ecos de queixas de nacionalistas guineenses que se consideravam preteridos em detrimento de elementos da ala cabo-verdiana na ocupação de escalões superiores da estrutura do partido. Algo que viria a ser usado e instrumentalizado por parte da PIDE/DGS que tudo tinha a ganhar com a divisão entre os dois povos. O comandante Osvaldo Lopes da Silva chegou a confrontar Amílcar Cabral sobre a questão da unidade e a alertar para a necessidade de mostrar que os cabo-verdianos não queriam mandar na Guiné e queriam estar a par da evolução das coisas no que toca à luta pela independência também nas ilhas. “Devia-se vincar - até para sossegar os guineenses - que o cabo-verdiano não queria ir mandar na Guiné, que o cabo-verdiano quer mandar em Cabo Verde e o guineense que mande na Guiné. Vincar, chamar a atenção mesmo para o facto da História não nos aproximar. A História podia ser até um factor de maior separação porque a Guiné esteve durante muito tempo subordinada ao governo de Cabo Verde e isso cria movimentos de rejeição da parte da Guiné. E tínhamos que compreender”, explica o antigo comandante de artilharia. No regresso de uma formação de marinha de guerra no Mar Negro, Osvaldo Lopes da Silva e o grupo de cabo-verdianos que dirigia sentiram a hostilidade de elementos guineenses na Marinha, alguns dos quais estariam envolvidos no futuro complô que levaria à morte de Amílcar Cabral. A 23 de Janeiro de 1973, Amílcar Cabral era assassinado. Ana Maria Cabral, a esposa, estava com ele nessa noite. Diz que “não houve nenhuma justiça” e que “toda a verdade ainda não foi dita”. “Não houve nenhuma justiça. Não houve nenhuma justiça. Já se escreveu muita coisa sobre isso, mas toda a verdade ainda não foi dita. Eu pensei que depois da morte do Spínola, a verdade saísse. Falta esclarecer quem foram realmente - além de Spínola - quem foram todos os intelectuais que trabalharam nisso. Uma vez li uma entrevista de Spínola em que ele dizia, mais ou menos isso: ‘Eu não dei a ordem, eu não disse para matar. Eu não dei ordem para matar.' Mas como é que se vai distribuir armas a alguém e se diz para não utilizar as armas?", questiona Ana Maria Cabral, numa conversa em frente à praia, na capital de Cabo Verde. Até que ponto as divergências em relação à unidade não estiveram na origem do assassínio de Amílcar Cabral, a 23 de Janeiro de 1973? O líder do  PAIGC foi assassinado em Conacri, em frente à sua residência, por um grupo que pretendia prender e eliminar os dirigentes do partido, pouco mais de dois anos depois da fracassada Operação Mar Verde, em que o exército português invadiu Conacri para tentar acabar com a direcção do PAIGC (22 de Novembro de 1970).  Inocêncio Kany foi o homem que disparou a matar contra Amílcar Cabral, mas os mais próximos apontam a responsabilidade do então governador na Guiné, António de Spinola. O único cabo-verdiano presente nos interrogatórios aos assassinos de Amílcar Cabral foi Alcides Évora, conhecido como “Batcha”. Uma vez, na cantina do secretariado, ele conta ter ouvido Amílcar Cabral dizer que “quem o havia de matar eram os próprios camaradas do PAIGC”. Porém, “ele tinha uma confiança ilimitada nos camaradas”, acrescenta. Sobre os interrogatórios, em que serviu de intérprete, ele recorda que “estavam sempre a dizer mal dos cabo-verdianos e achavam que Cabral estava a beneficiar os cabo-verdianos em detrimento dos guineenses”. “Havia um certo ódio contra Cabral”, lamenta o homem que trabalhou bem perto do líder do PAIGC, no secretariado em Conacri, como nos mostra numa das fotografias em exposição na Fundação Amílcar Cabral.  A morte de Amílcar Cabral não impediu que se cumprisse o seu objectivo: libertar a Guiné e Cabo Verde das garras do colonialismo. O comandante Pedro Pires, que depois do 25 de Abril de 1974 liderou a delegação cabo-verdiana nas negociações da independência, recorda que “sem o PAIGC ou sem essa aliança entre Guiné e Cabo Verde, a independência de Cabo Verde seria complicada”. “Isso, em certa medida, permitiu as vitórias ou a vitória final, se quiser dizer isso, na Guiné. A introdução dos artilheiros cabo-verdianos  que melhoraram a capacidade da artilharia que era a arma que fustigava mais os quartéis e podia destruir os quartéis. Essa chegada e a introdução dos artilheiros cabo-verdianos foi um factor de mudança favorável à melhoria das capacidades das Forças Armadas do PAIGC”, testemunha Pedro Pires, acrescentando que essa aliança Guiné-Cabo Verde também abriu as portas às negociações para a independência depois da queda do Estado Novo em Portugal. Também a historiadora Ângela Benoliel Coutinho, autora de “Os dirigentes do PAIGC: da fundação à rutura: 1956-1980”, considera, em entrevista por telefone, que a “unidade e luta” foi uma “fórmula brilhante” que resultou na libertação e independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, mas também no fim da ditadura em Portugal. “A aposta em unidade e luta da direcção do PAIGC foi uma aposta brilhante que deu excelentes resultados, que permitiu libertar a Guiné-Bissau e Cabo Verde e que deu um forte contributo para libertar os portugueses da ditadura fascista, visto que desde há décadas tinha havido diversas tentativas de golpes de Estado, todas falhadas contra o regime do Estado Novo em Portugal, e esta tentativa foi bem sucedida”, resume a investigadora. Por sua vez, José Vicente Lopes, jornalista e autor do livro pioneiro sobre a história contemporânea do país “Cabo Verde - Os Bastidores da Luta pela Independência”, considera que o principio de “unidade e luta” foi “uma das utopias de Amílcar Cabral”, simultaneamente uma força e o ponto fraco do PAIGC. “Quando Amílcar falava em unidade, ele falava em várias unidades e querer ver uma população tão heterogénea como a guineense ou mesmo como a cabo-verdiana, chega a ser quase uma espécie de utopia ou então uma unidade imposta a martelo que também não funciona. Aliás, a história vem mostrar isso. A tal unidade pretendida pelo Amílcar era ao mesmo tempo força e, ao mesmo tempo, o ponto fraco do PAIGC ou daquele processo. Daí que foi uma das utopias do Amílcar que não se realizou por razões mais diversas, na medida em que a unidade nunca é feita por decreto, nem por força. Então, logo as coisas tiveram o fim que tiveram e, do meu ponto de vista, isto hoje é passado e não sei até que ponto vale a pena gastar mais tinta com isto”, considera José Vicente Lopes, também ao telefone com a RFI, a partir dos Estados Unidos, onde em Maio foi convidado pela diáspora a falar sobre o livro “Cabo Verde - Um corpo que se recusa a morrer”. A independência de Cabo Verde chegaria mais de dois anos depois da autoproclamada pela Guiné-Bissau, com o PAIGC a negociar com Lisboa os termos da independência cabo-verdiana, na sequência da queda da ditadura portuguesa, a 25 de Abril de 1974. Alguns anos depois, o golpe militar de 14 de Novembro de 1980 na Guiné-Bissau desfez o sonho de Amílcar Cabral de uma união política entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde e ditou a cisão do PAIGC e a fundação, em Cabo Verde, do PAICV. Meio século depois, o legado de Amílcar Cabral persiste e o homem que é considerado como um dos maiores líderes africanos de sempre, continua a ser símbolo de resistência, unidade, luta e panafricanismo.   Pode ouvir aqui as entrevistas integrais a Ana Maria Cabral e Iva Cabral:

    As mulheres também escreveram a história da luta da libertação de Cabo Verde

    Play Episode Listen Later Jun 26, 2025 20:46


    Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica várias reportagens sobre o tema. Neste sexto episódio, damos voz às mulheres que também escreveram a história da luta de libertação. “A história da luta armada de libertação nacional tem sido escrita fundamentalmente pelos homens”, adverte Josefina Chantre, avisando que “a participação da mulher na luta foi tão importante como a do homem”. Nesta reportagem também falamos com Amélia Araújo, "a voz da luta" na Rádio Libertação, e com Maria Ilídia Évora, Marline Barbosa Almeida e Ana Maria Cabral.  Esta é uma história de mulheres que lutaram pela independência de Cabo Verde. Uma delas, Josefina Chantre, diz que “a história da luta armada de libertação nacional tem sido escrita fundamentalmente pelos homens” e lembra que “a participação da mulher na luta foi tão importante como a do homem”. Josefina Chantre foi uma das fundadoras da Organização das Mulheres de Cabo Verde, depois de ter estado numa das muitas frentes de batalha da luta liderada pelo PAIGC: a informação. Trabalhou no jornal “Libertação-Unidade e Luta” e na Rádio Libertação, os órgãos de comunicação oficial do partido. “Cabral dizia que toda a frente de luta era uma frente. A minha frente de luta, a minha arma, era a comunicação social”, resume Josefina Chantre. O Jornal Libertação foi criado em 1960 e a Rádio Libertação começou a emitir em 1967 e era o “canhão de boca” da luta, dizia o líder do partido, Amílcar Cabral. A voz da luta era precisamente a de uma mulher, Amélia Araújo, angolana de origem cabo-verdiana, tão conhecida pelo "Programa do Soldado Português" e pelo programa "Comunicado de Guerra". “Durante a guerra, durante a luta, as mulheres tiveram vários postos. Cabral fazia questão de valorizar as mulheres. Então, nós tínhamos camaradas em posições de relevo”, recorda Amélia Araújo, admitindo que não eram muitas, mas que se destacaram, apontando os exemplos de Dulce Almada e Carmen Pereira. Maria Elídia Évora, conhecida como Tutu, foi a única mulher no grupo de 31 cabo-verdianos que receberam formação político-militar em Cuba para um eventual desembarque em Cabo Verde, cujo objectivo seria desencadear a acção armada no arquipélago. Em Cuba, sentiu-se descriminada pelos camaradas, mas contou com o apoio de Amílcar Cabral quando a tentaram excluir do grupo. O projecto de desembarque acabou por não se concretizar e o grupo foi disperso por várias frentes de batalha na Guiné. A maioria dos companheiros de Tutu foram para o mato lutar com armas. Ela foi tentar salvar vidas nos hospitais de Boké e Koundara, depois foi enviada para a ex-República Democrática Alemã estudar enfermagem e obstetrícia. Dos tempos de Koundara, lembra-se da surpresa inicial quando viu as instalações rudimentares e sem condições do hospital. “Fizemos o que era possível fazer, levámos mais de uma semana a limpar aquele lugar para estar mais ou menos. Não é que fosse um grande sítio para fazer as operações, mas a gente fazia, não tinha outro remédio”, lembra Maria Elídia Évora. O líder da luta, Amílcar Cabral, tinha ideais de emancipação e participação das mulheres. Em 1965, o PAIGC instituiu, na Guiné, a equidade de género no respeitante à esfera familiar, profissional e política. A partir de 1967, as mulheres foram integradas nas milícias populares criadas para a protecção da população civil. Em 1970 foi decidido que, pelo menos, dois em cada cinco dos membros dos comités da Tabanca deveriam ser obrigatoriamente mulheres. Em 1972, as mulheres passaram a integrar os júris dos tribunais populares. Por outro lado, na Escola-Piloto de Conacri vigorava a equidade de género a nível dos comités de gestão e da representação dos estudantes. Porém, Amílcar Cabral era uma voz solitária num mundo de guerra dominado historicamente pelos homens, admite Josefina Chantre. “Cabral nunca fez distinção entre homem e mulher. Eu costumo dizer que Cabral foi um grande visionário porque o que agora se diz da igualdade de género, na altura, ele já tinha pensado nisso porque ao criar os comités de tabanca, ele exigia que de cinco elementos, duas pessoas, pelo menos, tinham que ser mulheres. Por outro lado, ele dizia-nos sempre que a nossa emancipação, a verdadeira emancipação da mulher, teria que ser fruto da própria mulher e que não pensássemos que haveria algum homem que viesse realmente lutar pela nossa emancipação. Inculcava-nos sempre esse espírito e ele sempre respeitou as mulheres, ele sempre deu o devido valor porque a mulher é mãe, a mulher é tudo. Eu acho que somos a metade do céu e Cabral tinha na sua mente a verdadeira noção do valor da mulher a nível global”, acrescenta Josefina Chantre. “Nós até hoje ainda estamos a lutar. A mulher foi duplamente explorada durante o regime colonial português, explorada pelo regime colonial e pelo próprio homem. Nós ainda temos resquícios da nossa origem escravocrata, portanto, ainda temos muito machismo na nossa sociedade. Eu penso que na nossa luta já atingimos várias vitórias, mas os nossos desafios ainda são maiores. Nestes 50 anos, o balanço que eu faço é que a mulher ganhou tudo com a independência, mas ainda temos a tal história do machismo. Temos que trabalhar bastante a mentalidade e a mentalidade das coisas é muito difícil de se mudar”, comenta. Com Amílcar Cabral, o PAIGC foi considerado como um movimento político que fez um esforço de promoção da mulher, mas elas estavam, sobretudo, na retaguarda. Marline Barbosa Almeida é outra resistente que combateu duplamente na sombra, por lutar na clandestinidade em Cabo Verde e por ser mulher.   “Eu, como mulher, embora estivéssemos a lutar pela independência, tinha noção de que não valia tanto como os homens naquela altura. Havia sempre aquele recuo em relação às nossas opiniões, principalmente quando metia a igualdade, não nos levavam muito a sério nesse aspecto, mas noutro aspecto procuravam o nosso esforço, o nosso trabalho para que a luta continuasse”, afirma Marline Barbosa Almeida. Ela acrescenta que, aquando do regresso dos cabo-verdianos da Guiné-Bissau, “em conversa com alguns militantes que vieram da luta armada, eles disseram: ‘Nós queremos uma mulher que não nos canse a cabeça'”. No livro “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Ruptura [1956-1980]”, Ângela Benoliel Coutinho fala na quase ausência de mulheres na direcção do partido e em “esposas na sombra”. Também no artigo “Militantes Invisíveis: as cabo-verdianas e o movimento independentista (1956-1974)”, ela recorda que, em várias ocasiões, em discursos proferidos para militantes e dirigentes do movimento, Amílcar Cabral mencionou situações em que os homens resistiam à participação activa por parte das mulheres e essa oposição tornava-se ainda mais intensa, apesar de silenciada, quando às mulheres eram atribuídos cargos de responsabilidade. “À medida que se vão fazendo investigações, que têm sido poucas até à data, vai-se descobrindo que as mulheres cabo-verdianas (e aqui abro um parênteses para especificar que me refiro àquelas nascidas em Cabo Verde e que foram educadas lá, mas também a filhas de cabo-verdianos que nasceram noutros territórios, nomeadamente noutros territórios africanos e que se assumiram como cabo-verdianas), vamos descobrindo que estiveram presentes desde a primeira hora e que actuaram desde o início nas diversas frentes. Antes de o PAIGC ter iniciado a frente da guerrilha, actuou a nível diplomático e houve mulheres cabo-verdianas que tiveram uma presença forte nesse âmbito”, explica a investigadora à RFI. Ângela Benoliel Coutinho acrescenta que as mulheres cabo-verdianas também estiveram presentes no sistema de saúde e de educação criado por Amílcar Cabral nas zonas ditas libertadas e que houve comissárias políticas que tinham treino para guerrilha. A historiadora diz, ainda, que tanto as autoridades portuguesas quanto o PAIGC “foram grandemente omitindo a presença e a actuação destas mulheres” e que “essa invisibilização ocorreu já durante o próprio processo”. Ana Maria Cabral cresceu num ambiente familiar de resistência e o seu combate começou bem antes de conhecer Amílcar Cabral, com quem viria a casar. Nascida na Guiné-Bissau, emigra para Angola muito nova porque o pai, médico, tinha sido deslocado para essa ex-colónia. Em Luanda, frequenta a escola portuguesa, onde eram raros os alunos africanos. Depois, foi para Portugal fazer o liceu, foi activista, frequentou a Casa dos Estudantes do Império. Foge de Portugal, foi estudar para a então Checoslováquia, foi vice-presidente da secção daquele país da União Geral dos Estudantes da África Negra. Conacri foi o destino seguinte, onde integrou as fileiras do PAIGC e foi professora na Escola-Piloto, criada para receber os filhos dos combatentes e os órfãos de guerra. Questionada sobre como foi ser companheira de Amílcar Cabral, Ana Maria responde que “não foi fácil” e que hesitou “por causa da diferença de idade e pela responsabilidade de ser companheira de um líder como ele”.  Talvez tenham sido resistentes na sombra, mas as mulheres tiveram um papel activo na luta de libertação de Cabo Verde. De notar que nenhuma delas foi ministra durante o regime de partido único do PAIGC, entre 1975 e 1991. Mulheres e homens estiveram na mesma frente de batalha, no entanto, a emancipação da mulher é um combate que persiste até hoje.

    Cabo Verde: A “bandeira negra da fome” era também “fome de bandeira”

    Play Episode Listen Later Jun 26, 2025 19:04


    Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica uma série de reportagens sobre este tema. Neste primeiro episódio, abordamos as raízes da revolta com algumas das pessoas que lutaram pela libertação nacional, como Pedro Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Alcides Évora, Maria Ilídia Évora e Marline Barbosa Almeida, mas também com o historiador António Correia e Silva e o jornalista José Vicente Lopes. Foram mais de cinco séculos de dominação colonial, uma história marcada pelo comércio de pessoas escravizadas, ciclos de fome, secas e emigração forçada. A independência foi a 5 de Julho de 1975, mas a resistência começou muito antes, ainda que tenha sido a Geração Cabral a desencadear a luta de libertação e a conduzir Cabo Verde à independência. No século XIX, a elite letrada já manifestava uma atitude contestatária face ao poder colonial. Intelectuais como Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Luís Loff e, mais tarde, os chamados “claridosos” denunciaram os problemas que afectavam a população e exaltaram a singularidade e a identidade do povo cabo-verdiano.  Na década de 1940, uma nova geração de intelectuais, inspirados pelos antecessores, passam a reivindicar o direito à independência. O historiador e sociólogo António Correia e Silva sublinha que a Geração Cabral é fruto de lutas anteriores, que o fantasma das fomes foi determinante para desencadear o movimento de libertação e que, nessa altura, a ideia de “independência se torna politicamente credível”. “Gabriel Mariano vai escrever um grande poema sobre a fome que se chama 'Capitão Ambrósio': 'Bandeira negra, negra bandeira da fome…'. Eu costumo dizer aos meus alunos que bandeira, negra e fome é um triângulo virado para o futuro e que a bandeira negra da fome era, na verdade, uma fome de bandeira, uma fome de independência”, descreve António Correia e Silva. “Essa geração de Amílcar Cabral, o grande salto é que, através de uma aliança pan-africana, aproveitando uma conjuntura pós-guerra, a criação das Nações Unidas e a ideia de autodeterminação que surge naquela altura, a ocorrência de algumas independências de países afro-asiáticos, países grandes como a Indonésia, a Índia, o Egipto, etc, tudo isto provoca a passagem, a violação do interdito, a passagem do intransponível limite que era a independência. Isto é, a independência torna-se pensável, mas mais, torna-se politicamente credível”, acrescenta o historiador. As grandes crises de fome em Cabo Verde entre 1941 e 1942 e entre 1947 e 1948 foram de uma violência brutal, com milhares de mortos. Em 1939, a população estava avaliada em 174 mil pessoas e caiu, em 1950, para 139 mil. Os sobreviventes emigravam em massa para as plantações de São Tomé e Príncipe, onde viviam, trabalhavam e muitos morriam em condições semelhantes às da escravatura. Outros conseguiam emigrar clandestinamente para espaços que não o do Império português.  Na memória colectiva há um episódio trágico que não se esquece. Foi a 20 de Fevereiro de 1949, na cidade da Praia e ficou conhecido como o Desastre da Assistência. Centenas de pessoas, que aguardavam pela distribuição de refeições quentes, morreram quando caiu o muro do edifício dos Serviços de Assistência. Estima-se que mais de três mil pessoas se reuniam diariamente nesse espaço para receber a única refeição do dia. Dados oficiais apontavam para 232 vítimas, mas teme-se que o número tenha sido muito superior. Muitas vítimas foram enterradas em valas comuns no Cemitério da Várzea, embrulhadas em lençóis, por falta de caixões. Alcides Évora era uma criança nessa altura, mas lembra-se de ter visto as valas comuns. “Eu comecei a ter uma certa revolta interna desde o início da década de 40. Na altura, eu tinha sete ou oito anos e presenciei a fome de 47. Ainda lembro quando houve o desastre da assistência em que foram transportados, feridos e mortos do local para o Hospital da Praia. Havia tantos mortos. Inclusive muitas casas ficaram fechadas porque não houve nenhum sobrevivente da família que pudesse abrir a porta das suas residências. Da mesma forma, assisti ao enterro na Várzea, na vala comum, em que punham um grupo de cadáveres, depois deitavam o cal e depois punham outra camada de mortos e assim sucessivamente. É algo que ficou gravado na memória. Isto também me fez despertar uma certa revolta interna contra o sistema colonial português”, recorda. Gil Querido Varela também testemunhou a fome de 1947 e viu crianças a morrerem. Por isso, a revolta foi inevitável e quando surgiu a oportunidade aderiu à luta clandestina nas fileiras do PAIGC em Cabo Verde. “Quem já tinha visto a fome de 47 - que eu vi - não ficava sem fazer nada. Vi crianças a morrerem de fome, corpos inflamados de fome. Vi mães com crianças mortas nas costas, não as tiravam para poderem achar esmola. Os colonialistas troçavam do povo, da fome do pobre. Quando veio o PAIGC, entrei rápido. Quem viu aquela fome, era impossível para não lutar. Só quem não tem sentimento”, lembra Gil Querido Varela, que nos leva, num outro episódio ao Campo de Concentração do Tarrafal. A fome também ensombra as memórias de Marline Barbosa Almeida. Foi a partir daí que ela decidiu juntar-se à luta, também na clandestidade. Quis ver a sua terra “livre e independente”. “Nós, que nascemos nos anos 40, 50, vimos aquele período de fome, em que morreram muitas pessoas e o culminar foi o Desastre da Assistência, que matou dezenas, para não dizer centenas de pessoas. Daí cresceu em nós uma certa revolta que não estava classificada politicamente, mas era uma revolta contra a situação de Cabo Verde. Mais tarde, eu, como lia muito - eu devorava livros – fui-me apercebendo das desigualdades, da opressão, do que era necessário para que saíssemos do jugo do colonialismo”, conta Marline Barbosa Almeida, em sua casa, na Praia. No livro “Cabo Verde - Um Corpo que se Recusa a Morrer - 70 anos de fome - 1949-2019”, o jornalista José Vicente Lopes fala sobre o Desastre da Assistência, considerando que a luta de libertação do PAIGC teve como um dos motores a fome que assolava desde sempre o arquipélago. “Este livro fala de um acontecimento que houve em Cabo Verde, que foi o Desastre de Assistência de 1949, e cobre a história de Cabo Verde de 1949 a 2019, numa perspectiva da questão alimentar em Cabo Verde, a história das fomes, o impacto que isto foi tendo nos cabo-verdianos até desembocar inclusive na criação do PAIGC. O PAIGC foi uma reacção à calamidade famélica que foi sucedendo em Cabo Verde desde o século XVI ao século XX porque até 1949, quando se dá o Desastre de Assistência, qualquer seca que acontecesse em Cabo Verde matava no mínimo 10.000, 20.000 pessoas”, sublinha o jornalista, acrescentando que “o espectro da fome não desapareceu porque, apesar de todos os investimentos feitos, apesar de tudo o que se conseguiu fazer, mesmo um bom ano agrícola, um bom ano de chuvas em Cabo Verde, Cabo Verde não consegue produzir mais de 20% das suas necessidades alimentares, logo, 80% tem que ser importado”. As violências coloniais eram de toda a ordem. Maria Ilídia Évora tinha cinco anos quando viu o pai a ser espancado por brancos. A imagem nunca mais a deixou, assim como o medo incontrolável sempre que via alguém de pele branca. Mais tarde, ela viria a integrar um grupo de cabo-verdianos que foi treinado em Cuba para desencadear a guerrilha em Cabo Verde e viria ainda a trabalhar em hospitais durante a guerra na Guiné.  “Uma pessoa a bater em alguém que não fez nada, a bater daquela maneira como baterem no meu pai, uma criança não entende. Eu não entendi. Nunca entendi. Até conhecer o Amílcar, para mim, o branco era o diabo. Eu considerava o branco uma coisa muito ruim. Bater em alguém que não fez nada, que só estava lá porque quis conviver com um patrício amigo, não tinha sentido. Porque para a gente, amizade é amizade. Ele não foi fazer nada, ele não tinha nada nas mãos, nem nos pés, nem em nenhum lugar, e acharam que era um inimigo a ser abatido. Essa coisa nunca me saiu da cabeça”, conta-nos na sua casa, no Mindelo. Todas estas circunstâncias alimentaram a coragem dos que acreditaram na luta. Muitos deles, depois de terem passado no Liceu Gil Eanes, em São Vicente, depois na Casa dos Estudantes do Império, em Portugal, acabariam por "dar o salto". Em 1961, dezenas de angolanos, mas também moçambicanos e cabo-verdianos nacionalistas fogem clandestinamente de Portugal e protagonizam uma fuga massiva histórica para França nas barbas do salazarismo. Vários acabaram por ser figuras de destaque nas lutas de libertação nacional e, mais tarde, ocuparam também postos de relevo nos novos Estados. Pedro Pires foi um dos que escolheu seguir Amílcar Cabral, o líder da luta de libertação da Guiné e Cabo Verde. Era o momento de deixar tudo para trás e arriscar por uma causa. “Chegou um momento em que era preciso alguém correr riscos. Não quer dizer que todos iam correr riscos, mas tinha chegado o momento em que aqueles que achassem que podiam correr riscos ou aqueles que achassem que estivessem no dever de correr riscos, no dever da solidariedade e no dever de serviço em favor do seu país, do seu povo, decidiu correr o risco. Mas o risco é inerente a qualquer decisão e aí nós optamos ou ficar parados e não fazer nada ou então agir e correr riscos. Eu acho que tem sempre resultados, com maiores ou menores dificuldades. O facto de corrermos risco, podemos mudar muita coisa. Foi o que aconteceu connosco. Nós éramos um grupo que saiu na mesma altura ou no mesmo dia, éramos cerca de 60 jovens que decidiram correr o risco”, resume o antigo comandante. Osvaldo Lopes da Silva, comandante de artilharia mobilizado na Guiné, também correu o risco e esteve nessa fuga. Ele recorda esse pontapé de saída para a luta de libertação. “Atravessámos a fronteira de autocarro. Foram vários grupos, cada um foi à sua maneira. Depois, estivemos concentrados nas cercanias de San Sebastian. Quando íamos atravessar a fronteira, o elemento na fronteira que devia facilitar a nossa saída, tinha desaparecido. De forma que fomos presos. Estivemos dois dias na prisão central de San Sebastian e, às tantas, de repente, aparece o director da prisão com um discurso todo terceiro-mundista que 'o povo, o governo da Espanha estiveram sempre ao lado daqueles que lutam pela liberdade, pela independência, etc, etc'. Para nós, foi uma grande surpresa e fomos postos em liberdade. E a verdade é que, pelos documentos que reuniram, viram que essa gente não são maltrapilhos quaisquer, são gente com qualificação”, lembra. Muitos dos que estiveram nessa fuga, tinham frequentado e cultivado a reafricanização dos espíritos num dos principais berços da contestação ao colonial fascismo português: a Casa dos Estudantes do Império. Foi criada em 1944, em Lisboa, pelo próprio regime ditatorial para apoiar os jovens “ultramarinos” que fossem estudar para a “metrópole”, e encerrada em 1965. Duas décadas em que foi uma escola de consciencialização política do nacionalismo africano, fosse na sede lisboeta ou nas delegações de Coimbra e no Porto, ajudando à criação dos movimentos de libertação das colónias portuguesas em África. Outro centro de pensamento anticolonial foi o Centro de Estudos Africanos, em cujo grupo fundador esteve o futuro pai das independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Amílcar Cabral foi também vice-presidente da Casa dos Estudantes do Império em 1951. A sua segunda esposa, Ana Maria Cabral, também por lá passou e recorda a importância do local para a contestação. “Fui levada pelos meus irmãos mais velhos e não havia só bailes, havia encontros, havia reuniões sobre a situação dos nossos países, em especial quando os franceses e os ingleses começaram a dar a independência às suas antigas colónias. Seguimos todo o processo dessas independências. Nós todos éramos Lumumba e Nkrumah. Nós seguíamos a luta dos outros povos, dos povos das colónias e não só das colónias em África”, explica Ana Maria Cabral. Muitos dos que passaram pela Casa dos Estudantes do Império vieram a assumir importantes responsabilidades na luta anticolonial e de libertação dos antigos territórios em África, como Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Mondlane, Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano e Miguel Trovoada. Pedro Pires também conheceu de perto a Casa dos Estudantes do Império. Aquele que foi comandante e destacado dirigente político-militar do PAIGC na luta de libertação, assim como o principal arquitecto do Acordo de Lisboa para a independência, resume que a luta contra a opressão colonial foi desencadeada pelo próprio colonialismo. “É o próprio sistema colonial, que não dava resposta às necessidades e às dificuldades, enfim, às crises por que passava a Cabo Verde, mas também que não se interessava especialmente em encontrar soluções para esses problemas. O percurso histórico de Cabo Verde é trágico, em certa medida, porque os cabo-verdianos tiveram que enfrentar situações extremamente complicadas e difíceis de fome, secas, fugas, ter que buscar por outras vias as soluções e o próprio sistema que não dava resposta às necessidades e às exigências, para não dizer também aos sonhos daqueles que queriam ver o país numa via diferente. Portanto, o colonialismo era um sistema de bloqueio e era indispensável lutar contra ele, a fim de abrir novas perspectivas ao país para realizar os seus objectivos, os seus sonhos, mas também por uma coisa muito simples: para ter uma vida melhor”, considera Pedro Pires. Foi para buscar essa “vida melhor” que estes homens e mulheres abrem o caminho para a luta de libertação, da qual vamos recordar alguns momentos nos próximos episódios.   Pode ouvir aqui as entrevistas integrais feitas aos diferentes convidados.

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