De segunda a sexta-feira, sob forma de entrevista, analisamos um dos temas em destaque na actualidade.

“Cabo Verde, crises e resiliência – erupção vulcânica, secas, Covid-19, guerras na Ucrânia e no Médio Oriente” é o título do livro onde o primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva, faz um exercício de balanço de como Cabo Verde e o seu Governo enfrentaram as diferentes crises. A obra, que é um contributo para documentar a História de Cabo Verde, é também um registo da coragem e capacidade de sacrifício de um povo. A erupção vulcânica, as secas, a pandemia de Covid-19, os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável, a riqueza dos recursos naturais e a pobreza em África ou a acção climática e ambiental, são alguns dos temas desenvolvidos no livro. Ulisses Correia e Silva esteve recentemente em Portugal para apresentar a obra. Em entrevista à RFI, o primeiro-ministro de Cabo Verde, entre outros temas, fala de como lidou com as crises que enfrentou enquanto chefe de Governo, de transição energética, de água, de alterações climáticas, do posicionamento de Cabo Verde perante os conflitos entre Rússia e Ucrânia e entre Israel e Palestina, a importância da diáspora cabo-verdiana e o crescimento de Cabo Verde. RFI: O que o motivou a escrever este livro? Ulísses Correia e Silva, primeiro-ministro de Cabo Verde: A motivação tem a ver com o momento excepcional e especial do período em que Cabo Verde, e também o mundo, atravessou crises muito graves. A gente vai falar da pandemia da Covid-19, uma das maiores crises mundiais depois da Segunda Guerra Mundial. Cabo Verde foi exposto e teve um impacto muito forte na sua economia, no quadro social. Estamos a falar de secas severas, mas que não são secas severas quaisquer. De 2017 a 2021, nós sofremos as piores secas dos últimos 40 anos, também com impacto muito forte. Depois, já temos aquilo que é o resultado da tensão geopolítica, a guerra na Ucrânia, que provocou uma crise inflacionista em 2022, que fez a nossa inflação disparar de 1% para 8%, com impactos muito graves, e são basicamente estas crises que conformam a estrutura do livro. Para deixar retratado, testemunhado aquilo que foram os impactos muito fortes num país como Cabo Verde, que conseguiu fazer face e recuperar, relançar a sua economia e a vida social que continua hoje e com muito mais resiliência. RFI: Quais são as lições que, Cabo Verde, os cabo-verdianos, o Sr. Primeiro-Ministro foram obrigados a tirar destas crises? Ulisses Correia e Silva: As lições têm a ver com o reconhecimento, de facto, que as alterações climáticas e as mudanças climáticas são um facto. Nós, não só sofremos os impactos de secas severas, mas, como mais recentemente, o que já não faz parte do livro porque aconteceu depois, tivemos o impacto de tempestade Erin, em São Vicente, Santo Antão e São Nicolau, um dos piores fenómenos meteorológicos extremos que Cabo Verde vivenciou. É o contraste da seca, portanto, é chuva torrencial a cair em pouco espaço de tempo, e que provocou até 9 mortos e com muita destruição. E tivemos, mais recentemente, também chuvas torrenciais em Santiago, em Santiago Norte, com impactos muito fortes. Portanto, a nível das alterações climáticas há necessidade de reforçarmos a resiliência, quer a nível da preparação, quer a nível das infra-estruturas para adaptação e mitigação para conseguirmos estar mais preparados em todas as frentes para eventuais cenários extremos, tendo em conta, sempre, que nenhum país consegue estar totalmente preparado. Isto acontece também na Europa, acontece nos Estados Unidos, mas é sempre melhor reforçar a resiliência do que manter o 'status quo'. Depois, nós temos também uma outra lição que é a confiança no país. Com os nossos meios, com o apoio dos nossos parceiros, com a nossa economia, conseguimos recuperar, relançar e temos hoje uma economia a crescer de uma forma robusta, com o desemprego a reduzir-se, com a pobreza extrema em fase de eliminação. Essa é uma confiança de um país que consegue recuperar face a choques externos fortes e consegue também fazer apostas de resiliência no futuro, particularmente a nível da transição energética e da estratégia da água, para sermos menos dependentes desses fenómenos e dos choques externos. RFI: Como é que projecta enfrentar esses que identifica como os principais desafios, a questão climática e energética? Ulisses Correia e Silva: Primeiro a transição energética. Nós já tínhamos traçado, mesmo antes da guerra na Ucrânia que provocou essa crise inflacionista, um objetivo muito claro de atingirmos em 2026 mais de 30% da produção de electricidade através de energias renováveis. Nós vamos fechar em 2025, aliás, com cerca de 35%. Depois chegarmos a 2040 com mais de 50% da produção de electricidade através de energias renováveis e chegarmos a 2040 com mais de 80%. Isto é significativo porque reduz a independência do país aos combustíveis fósseis, reduz a exposição a choques externos energéticos, nomeadamente choques inflacionistas e aumenta a nossa contribuição para a redução da emissão de carbono. Depois temos a questão da água. Um país que está localizado na zona do Sael, que sofre as influências de secas periódicas. Nós virámos mais para o mar, para a dessalinização da água, a sua utilização na agricultura associada às energias renováveis para baixar o custo da produção de água; utilizarmos o máximo de reutilização e eficiência hídrica para podermos também estar mais preparados para a situação de seca. Estas duas vertentes colocam Cabo Verde no futuro com resiliência acrescida. Depois a terceira tem a ver com a diversificação da economia, que não fica apenas dependente de um único sector como é o turismo, por isso estamos a apostar fortemente na economia azul, na economia digital. São estas três grandes áreas que vão fazer com que Cabo Verde cresça ainda mais, aumentar o seu potencial de crescimento e cresça de uma forma mais diversificada. RFI: Qual é o papel da diáspora nessa aposta no desenvolvimento e num outro vector que o Sr. Primeiro-Ministro referiu na apresentação do livro, na vertente desportiva? Ulisses Correia e Silva: A diáspora é fundamental, não só com a sua contribuição para a economia, hoje cada vez mais dirigido para o investimento produtivo, através das remessas familiares, mas na amplificação do capital humano. Significa que a Cabo Verde é muito mais do que as 10 ilhas, é muito mais do que os 500 mil habitantes residentes, nós temos competências e capacidades em todo o mundo. E o futebol, por exemplo, o basquetebol, o andebol, são exemplos disto. A nossa capacidade de recrutar, para além do espaço interno dos residentes no país, recrutamos também em Portugal, em França, na Irlanda, nos Estados Unidos, lá onde temos cabo-verdianos de origem ou cabo-verdianos descendentes de cabo-verdianos, filhos, netos, bisnetos, trinetos, podem-se candidatar, primeiro, a obter a sua nacionalidade, depois a representar o país. Isto é que aumenta a capacidade de recrutamento a nível do futebol, a nível do basquetebol, a nível do andebol, mas aumenta a capacidade de recrutamento também do país, do aumento do seu capital humano em todas as outras áreas, na área da medicina, na área tecnológica, na área do empreendedorismo, dos negócios. Portanto, capacidade de ter uma selecção nacional abrangente com interesses dos cabo-verdianos no seu país e com portas abertas para poderem investir, poderem participar, poderem competir com a bandeira e o sentido da nação cabo-verdiana. RFI: Falando da política internacional, do papel de Cabo Verde e também da CPLP. Na guerra na Ucrânia, na situação em Gaza, qual é que poderia ser o papel da CPLP? Há quem aponte que tem sido pouco presente. Ulisses Correia e Silva: A CPLP, relativamente a essas situações que são de tensões geopolíticas, casos da guerra na Ucrânia, os países em si, individualmente, se posicionaram. Cabo Verde teve um posicionamento muito claro desde a primeira hora e mantemos a nossa posição. Individualmente, os países, praticamente todos, também se confluíram no sentido de reconhecer a gravidade da situação, a ilegitimidade da invasão de territórios alheios e de ocupação. Esses são princípios que nós não defendemos e que nós fazemos questão de pôr em evidência de que são contrários à Carta das Nações Unidas, são contrários ao direito internacional e devem ser devidamente sancionados politicamente. Mas é realidade que nós temos uma conjuntura extremamente difícil que tem que ter uma solução, que tem que ser necessariamente negociada no campo diplomático para encontrar a melhor posição. Dentro da situação em Gaza, também o nosso posicionamento sempre foi claro relativamente à condenação de qualquer situação que possa levar à destruição completa de territórios e de vidas humanas e procurar uma melhor solução para o Médio Oriente. RFI: Enquanto Primeiro-Ministro, daqui até ao fim do seu mandato, quais são os grandes desafios para os quais procurará encontrar solução? Ulisses Correia e Silva: As eleições serão entre Março e Maio. Conseguirmos concluir grandes projectos que estão em curso, pelo menos, ou vão então arrancar. Estou a falar, por exemplo, do pacote da Global Gateway, que são cerca de 400 milhões de euros que estão no sector dos transportes marítimos, nos portos, na economia azul, na economia digital e tem um impacto muito forte sobre a resiliência e o desenvolvimento da economia, e tem também uma componente da transição energética. É um pacote forte, os concursos vão ser lançados ainda este ano, estou a falar dos portos. Depois temos vários outros pacotes de investimentos que estarão na fase de lançamento e de continuidade da sua execução para o futuro próximo, depois a gerir. Agora de entrada de 2026, nós temos um orçamento muito forte para o ano de 2026, porque os governos e o país não podem parar por causa das eleições. Portanto, mantemos a continuidade da governança. Depois, competindo para o resultado eleitoral, que nós esperamos que nos seja favorável. O livro “Cabo Verde, crises e resiliência – erupção vulcânica, secas, Covid-19, guerras na Ucrânia e no Médio Oriente” foi editado pela Pedro Cardoso – Livraria

A Rádio França Internacional recebeu nesta quinta-feira nos seus estúdios Messias Uarreno, secretário-geral do ANAMOLA, Aliança Nacional para um Moçambique Livre e Autónomo, partido de oposição moçambicano fundado este ano e liderado por Venâncio Mondlane, responsável político que reclama a vitória nas presidenciais do ano passado e que liderou os protestos pós-eleitorais que marcaram os últimos meses de 2024 e o começo deste ano. De passagem por Paris onde efectuou uma série de contactos em nome do ANAMOLA, Messias Uarreno evocou com a RFI os desafios enfrentados por esta nova formação que se reivindica como um partido "jovem", a sua ideologia e seus projectos, o processo de diálogo inclusivo encaminhado pelo Presidente da República e algumas das problemáticas que afligem o país, nomeadamente o terrorismo no norte. RFI: O que é que veio cá fazer a Paris? Messias Uarreno: O ANAMOLA vem a Paris numa missão muito específica que é a busca da abertura e alargamento das suas parcerias, em particular diplomáticas, porque trata-se de um partido que tem uma visão bastante clara para o futuro de Moçambique e achamos que não podemos fazer um Moçambique sem os nossos grandes parceiros. E a França, como país, é a uma referência bastante importante. RFI: Esteve em contacto com que entidades ou pessoas aqui em França? Messias Uarreno: Algumas entidades tiveram contactos connosco e obviamente ainda há um certo receio de partilhar assim publicamente, mas a nível institucional nós estivemos já na Embaixada (de Moçambique em Paris), podemos ter uma conversa com o embaixador e a sua equipa, mas também algumas instituições ligadas aos Direitos Humanos ou outras ligadas à questão da democracia, que têm interesses específicos que, na sua maioria, são instituições que na verdade já trabalham connosco quando ainda nem partido éramos. E para nós interessa continuar a estreitar as nossas relações. RFI: O ANAMOLA é um partido jovem, um partido que apareceu recentemente durante este ano de 2025 e também o partido que se assume como um partido de jovens, formado essencialmente por jovens. Quais são os desafios que enfrenta um partido que está em plena formação? Messias Uarreno: Uma das questões que eu enquadro como um problema primário é a questão mesmo da formação de quadros. Nós temos jovens bastante motivados e, como sabe, o ANAMOLA é um partido de massas. É um partido em que não é só numa questão da acessibilidade na zona urbana, mas também na zona rural. Nós temos um grande apoio das nossas bases e, a cada dia, nós vamos conseguindo implantar mais o partido. No contexto em que o ANAMOLA surge, durante as manifestações pós-eleitorais, aquela crise vivenciada, o receio que nós temos é que esse ambiente possa se tornar cíclico. Então é necessário formar os nossos quadros do partido a compreenderem que o ANAMOLA é um partido democrático, é um partido que vem implantar mais paz, mais concordância entre os actores políticos no país e para membros que, por sua natureza, não têm um contacto, um conhecimento claro sobre essas matérias, é preciso nos focarmos numa formação, num acompanhamento, em capacitação contínua. Mas isto está relacionado também com recursos. Um partido tão jovem, tão novo, precisaria de muitos recursos para conseguir formar, do topo à base, os seus quadros a assumirem essa política com uma postura democrática no verdadeiro sentido da palavra, e não ser confundido com o que nós temos chamado aqui, entre aspas, de vândalos. Porque nós somos realmente aquilo que é a esperança do povo moçambicano. E isto tem que se revelar de dentro para fora. Então eu classificaria a questão da formação um grande desafio para nós. Agora, temos também outro desafio, não menos importante, que é a questão daquilo que é o espaço político, que é muita das vezes manipulado sob o ponto de vista de captura das instituições em Moçambique. E eu acredito nessa nossa luta, a luta que o Presidente Venâncio Mondlane muita das vezes tem levado nestes últimos tempos, a despartidarização das instituições do Estado, porque enquanto as instituições forem partidarizadas, a acção política torna-se fragilizada, não só para o ANAMOLA, mas para qualquer outro partido dentro de um determinado território. E em Moçambique, infelizmente, até hoje nós sentimos que há partidarização. Ela atingiu dimensões inaceitáveis e o Presidente Venâncio tem lutado para este desafio. RFI: Também falou dos desafios de um partido que acaba de aparecer. Um deles, lá está, mencionou-o, é a questão dos recursos. Como é que são financiados? Messias Uarreno: Até agora, a base de apoio do partido ANAMOLA é identificada em dois prismas. O primeiro é aquilo que nós chamamos de contribuição, outros chamariam de quotização. Mas os nossos membros, ao se filiar ao partido, eles contribuem com valores simbólicos e estes valores têm suportado até agora aquilo que são parte das nossas actividades, mas é preciso compreender que também nós temos simpatizantes. Temos pessoas que acreditam na causa e que vão fazendo algumas doações. E essas doações têm apoiado aquilo que é o grande número das nossas despesas. E, como sabe, tem muitas instituições que financiam partidos políticos. RFI: Quais são os vossos objectivos em termos concretos e imediatos? Messias Uarreno: São vários. Eu vou citar aqui assim alguns rapidamente. A primeira prioridade, para nós, está ligada neste exacto momento, após a criação do partido, à questão da nossa Constituição da República. Como sabe, o ANAMOLA submeteu um grande dossier de propostas de reformas de leis de Estado que visam eliminar a grande porta de entrada dos problemas que Moçambique vive. Porque já é costume as nossas eleições serem caracterizadas com aspectos que indicam claramente fraudes e nós podemos eliminar essas fragilidades a partir da lei. O ANAMOLA tem trabalhado neste aspecto. Agora, é preciso compreender que, como partido, nós temos um foco de organização a nível territorial para que possamos nos preparar para as eleições 2028 que são as autárquicas, e em 2029, que são as gerais e legislativas. Estas eleições são muito importantes para nós, como um partido recentemente criado, porque precisamos ocupar este espaço político e assumir o nosso projecto de governação. RFI: Outro dos objectivos tem a ver com o diálogo inclusivo que foi encaminhado este ano. O que é que pretendem fazer relativamente a este diálogo inclusivo? Messias Uarreno: Quando falamos de diálogo inclusivo em Moçambique, pessoalmente, como secretário-geral, eu tenho trazido aqui dois aspectos claros. Primeiro é que o ANAMOLA foi excluído do diálogo. E isto nós repudiamos desde o princípio. Fizemos o nosso TPC (Trabalho de Casa), que foi uma acção popular onde fomos recolher a real intenção das famílias moçambicanas para o nosso país, compilamos e fizemos a entrega recentemente à liderança da COTE (Comissão para o Diálogo Nacional Inclusivo). Eu acho que ainda temos tempo para que tanto os grandes parceiros que financiam a COTE e também os próprios membros da COTE, a nível nacional, possam reflectir sobre esta questão, sobre esta voz que não pára de ecoar sobre a inclusão da ANAMOLA. Porque nós somos o grande motivo para que fosse criado este diálogo. RFI: Relativamente ao estado do país, o Presidente Daniel Chapo fez uma comunicação sobre o estado da Nação. Ele disse que não foi possível fazer tanto quanto gostaria de ter feito, designadamente, por causa dos incidentes pós-eleitorais que marcaram não só o final do ano passado, como também o começo deste ano. O que é que tem a dizer quanto a isso? Messias Uarreno: Dificilmente confronto aquilo que são os posicionamentos do Presidente da República por uma questão mesmo de desgaste, desgaste como político, desgaste como académico, desgaste como jovem moçambicano. Porque ao avaliar só aquilo que é a actuação do Presidente da República Daniel neste período, vai constatar gastos excessivos em viagens com membros que seriam, na minha óptica e na nossa óptica, como partido, dispensáveis, e converter estes recursos em acções concretas para o país. Estes recursos poderiam ser utilizados neste período ainda para coisas como a melhoria da qualidade das nossas escolas, a colocação de medicamentos nos hospitais e materiais. Fiz recentemente uma visita a um hospital para ver as mães parturientes e vi uma situação deplorável, em que as parteiras até têm problemas de luvas. Coisas básicas. Portanto, custa-me acreditar que saiu da boca do Presidente da República uma abordagem semelhante de que teve dificuldades por causa desse aspecto. Mas eu acho que é tempo de o Presidente mudar de narrativa e procurar trabalhar mais e falar menos. RFI: Relativamente às problemáticas que existem em Moçambique, uma delas é a questão do terrorismo em Cabo Delgado. Como é que vê o tratamento dessa problemática? Já há mais de oito anos que estamos nesta situação em Cabo Delgado. Messias Uarreno: A primeira coisa que eu queria dizer sobre o terrorismo é que, como partido, nós lamentamos as grandes perdas humanas que nós temos e, mais do que isso, lamentamos também aquilo que é a interferência do terrorismo nos grandes investimentos que muitas instituições, ao exemplo da Total Energies, têm feito e eu acho que deveria também continuar a fazer é não recuar. Relativamente à questão do terrorismo em Moçambique, é uma questão que, a nível doméstico, nós poderíamos ter tratado, porque eu acredito que a nossa interferência interna, ela fala mais alto do que a interferência externa. Esta é a primeira opção que eu tenho sobre este aspecto, mas, no entanto, é de lamentar que o Governo do dia, nos discursos que podemos encontrar, diga que a situação está calma, que a situação está boa, que já não há terrorismo. São as últimas manchetes que nós vimos. Mas, em contrapartida, nós continuamos a receber, obviamente, evidências de que o terrorismo continua a assolar não só a Cabo Delgado, mas a tendência é para alastrar para a província de Nampula. E isto deixa realmente a desejar. Quando reparo para os grandes parceiros na área, por exemplo, de extracção em Cabo Delgado e eu acho que, como partido ANAMOLA, na nossa perspectiva, uma das grandes vontades seria manter uma abertura clara para os que já estão a trabalhar, mas também com a abordagem um pouco mais para o desenvolvimento local e devolver a estabilidade àquela região. RFI: Estas últimas semanas evocou-se a hipótese da Total retomar efectivamente as suas actividades em Cabo Delgado. Como é que vê esta perspectiva? Julga que não será prematuro, até porque a Total reclama uma série de novas condições para retomar as suas actividades. Messias Uarreno: Penso que, como investidor, é justo que reclame que hajam melhores condições para a sua actuação. Pessoalmente, eu acredito que numa visão política, um país precisa que os seus investimentos avancem e não que sejam interrompidos. E o retorno da Total poderia constituir a continuidade de um projecto importante para o país. As actividades não podem parar e nós temos que gerar alguma coisa para resolver problemas concretos que o país tem. Simplesmente impedir isso, seria adiar aquilo que são respostas que nós queremos com esses investimentos. RFI: Voltando agora à vida interna do partido, um dos desafios que têm enfrentado ultimamente é a saída já de alguns dos seus membros, em particular em Cabo Delgado. Como é que explica esta situação? O que eles alegam é que há falta de consideração pelos quadros dentro do partido. Messias Uarreno: Pessoalmente, recebi também no meu gabinete várias cartas. Não são assim tantas como a media também tem tentado propalar, mas eu acredito que para um partido em construção, para um partido bastante novo, são fenómenos a considerar como normais do ponto de vista de vida de um partido político. Qualquer partido político já teve dissidência, já teve renúncias e o ANAMOLA não pode ser uma excepção. É preciso também perceber que um partido que está a começar com uma força como a nossa é vítima, obviamente, de ataques de outras organizações políticas que têm interesse em ver reduzir do nosso esforço a nada. E, obviamente, maior parte dos membros que conseguiram fazer-se identificar como membros do ANAMOLA podem utilizar este caminho para desacreditar aquilo que é a coesão interna do nosso partido. Este é um dado. Outro dado muito importante é que, como humanos, algumas pessoas vêem o partido como uma forma ou um caminho para atingir objectivos pessoais. E eu vou lhe recordar uma coisa: o presidente Venâncio Mondlane é um indivíduo, um cidadão moçambicano que largou a maior parte dos seus benefícios como actor político moçambicano para abraçar uma causa que tem como foco responder aqui às necessidades do povo moçambicano, o que quer dizer que a disciplina interna, ela está caracterizada por indivíduos que vão trabalhar em prol do crescimento de um partido que vai responder às necessidades das famílias moçambicanas. Então, todo aquele que não está preparado para esta abordagem e pensa que o partido é um local onde vai resolver os seus problemas, como por exemplo, um cargo de chefia imediato, porque estamos agora em eleições internas a nível do distrito, obviamente encontra como uma forma de manifestação a saída do partido. E eu posso-lhe confirmar de que a maior parte dessas narrativas em Cabo Delgado e um pouco espalhadas pelo país estão relacionadas com esse aspecto. Não temos uma dissidência por um motivo diferente deste. O que justifica que nós continuámos ainda mais coesos e vamos ficar realmente com qualidade e não com quantidade. RFI: Relativamente ainda à vossa vida interna, o vosso líder, Venâncio Mondlane, tem sido acusado, a nível judicial, de incitar a desordem no país. Pode haver algum tipo de condenação. O partido ANAMOLA está preparado para a eventualidade de ficar sem o seu líder? Messias Uarreno: O presidente Venâncio Mondlane não fez nada mais nada menos do que sua obrigação em todo o processo. E, aliás, estas acusações que pesam sobre o presidente Venâncio Mondlane são acusações que, a nível da Justiça, vai ser comprovado num futuro breve, que são infundadas porque aquelas famílias que estavam na rua no período das manifestações, elas estavam, por consciência própria e plena de que Moçambique precisa de mudança. Foi um recado claro, dado num momento específico, num contexto bem localizado, que eram depois das fraudes eleitorais, de que 'Olha, nós estamos cansados e basta'. A soberania reside no povo moçambicano. E se esse recado for mal recebido pela justiça moçambicana que é de continuar a levar este caminho de tentar sacrificar o líder Venâncio Mondlane, isto vai dar a uma situação de grande risco para o actual governo, por uma razão muito simples: porque o povo só está à espera de que eles façam isso. Agora, se estamos preparados ou não, eu acho que, como partido, ficaria com receio de responder. Eu acho que gostaria de colocar esta questão ao povo moçambicano: se está preparado para prender o presidente Venâncio Mondlane. Eu não sei se há alguma barreira física que pode parar o povo quando isso acontecer. Agora, a nível de liderança interna, o presidente Venâncio Mondlane tem trabalhado para capacitar os membros, tem trabalhado para recrutar pessoas qualificadas, competentes, que podem sim, dar continuidade ao projecto político, mas não porque teme uma prisão, mas porque nós, os humanos, somos finitos. Amanhã podemos não estar aqui. E o líder Venâncio é um homem com uma visão a longo termo sobre Moçambique e ele sabe muito bem preparar e está a fazer esse trabalho muito bem. RFI: No começo da nossa conversa, nós evocamos os contactos que têm feito, designadamente aqui em França. Ainda antes da fundação oficial do ANAMOLA, o vosso presidente, Venâncio Mondlane, esteve em Portugal e esteve em contacto com o partido Chega (na extrema-direita). Qual é a relação que existe entre o ANAMOLA e o Chega? Messias Uarreno: O presidente Venâncio Mondlane esteve em Portugal, Sim. E teve contacto com Chega, teve contacto com a Iniciativa Liberal, tivemos com o PSD e a abordagem foi a mesma. Não existe um contacto exclusivo com o Chega. Existiu contacto com partidos políticos na diáspora e maioritariamente da oposição. E o partido Chega, assim com o partido Iniciativa Liberal e os outros, foram parceiros e continuarão sendo parceiros para aquilo que constituir um aprendizado para um líder político visionário que pretende fazer uma grande revolução num país que, por sinal, é um país que foi colonizado por Portugal. Então temos alguma coisa, sim, a aprender. E até então o Chega tem conseguido olhar para aquilo que são os objectivos do ANAMOLA e dar o devido apoio, tanto a nível do Parlamento português, assim como Parlamento Europeu. E as nossas relações baseiam-se neste apoio mútuo para garantir a democracia em Portugal e a democracia em Moçambique por via de canais legais. RFI: Como é que se traduz esse apoio, concretamente do Chega relativamente ao ANAMOLA? Messias Uarreno: O grande suporte é no domínio da justiça, nos processos em que nós estamos. Como sabe, o Presidente Venâncio Mondlane reivindicou a sua vitória e até hoje o Conselho Constitucional não se pronunciou claramente, apenas fez o anúncio dos resultados. Nós estamos à espera de uma resposta clara sobre os 300 quilos de documentos que nós deixamos no Conselho Constitucional, que foram praticamente marginalizados. E o Chega, assim como outros partidos, tem sido uma voz que continua a gritar em prol da devolução da Justiça Eleitoral em Moçambique. RFI: Como é que se assumem no xadrez político moçambicano? Diriam que estão mais à esquerda, no centro, à direita? Estava a dizer que esteve em contacto com uma série de partidos que se situam mais no centro-direita ou até na extrema-direita, no caso do Chega em Portugal. Messias Uarreno: Nós temos discutido internamente esta questão da ideologia do nosso partido e, brevemente, nós teremos posicionamentos muito claros sobre a nossa ideologia. O que eu posso-lhe dizer é que há um esforço interno em mobilizarmos posicionamentos políticos que venham responder às reais necessidades das famílias moçambicanas. E, como sabe, se reparar um pouco por todos os partidos políticos em África, de uma forma muito rápida, vai compreender que nós não nos movemos muito com a questão de esquerda ou direita. Movemo-nos por outros valores, mas precisamos de evoluir. Precisamos dar um passo à frente. E eu acho que temos encontrado similaridades em alguns pontos de agenda que vão nortear aquilo que é a nossa posição final, que obviamente, como pode perceber, nós não temos aqui uma apresentação oficial de se nós pertencemos à esquerda, à direita, centro-esquerda, centro-direita actualmente. Mas estamos a trabalhar para fazer esse alinhamento e, quando for oportuno, obviamente o mundo saberá qual é, afinal, a grande linha ideológica que nos dirige. RFI: Estamos prestes a terminar este ano 2025. Quais são os seus votos Messias Uarreno para 2026? Messias Uarreno: Tem aqui três esferas dos meus votos. A esfera global é que eu espero que o mundo esteja mais equilibrado. Temos várias guerras, vários desafios, conflitos políticos um pouco por toda a parte. Eu espero que os líderes mundiais possam procurar em 2026 reduzir esta intensidade de conflitos e procurar mais diálogo, um diálogo mais sereno e realístico sobre os grandes projectos das grandes nações, que muita das vezes está por detrás dos grandes conflitos também. Segundo, há uma dimensão dos meus votos que se dirige aos grandes parceiros internacionais um pouco espalhados pelo mundo. Como um partido, nós estamos abertos a continuar a trabalhar com grandes parceiros que já actuam em Moçambique. E a única coisa que vamos fazer é procurar melhorar o ambiente desta parceria. E esta abertura é uma abertura legítima e uma abertura real. É por isso que temos viajado. Eu, pessoalmente vou continuar a viajar para, com estas grandes organizações, procurar estreitar esses laços e manter a sua actuação no nosso país, mas com um paradigma diferente. E por fim, é uma questão doméstica. A todas as famílias moçambicanas, nós desejamos muita força. Devem continuar a acreditar que um processo de libertação leva tempo. Vamos continuar a defender a verdade até ao fim e, acima de tudo, procurar ser um partido que, quando chegar ao poder, vai responder realmente às necessidades das famílias moçambicanas. Que 2026 seja realmente próspero e seja tão próspero como as grandes nações têm experimentado aquilo que é a sua evolução.

Histórico militante do MPLA, participante na luta de libertação e depois preso e perseguido pelo regime que ajudou a instalar, Justino Pinto de Andrade tornou-se uma das vozes críticas do poder em Angola. Hoje, como político e analista, fala a partir de uma experiência marcada pelo exílio, pela repressão e por décadas de oposição. O político angolano sustenta que o país vive um "multipartidarismo formal" e não "uma democracia efectiva". Para Justino Pinto de Andrade, o ponto de partida do debate político em Angola está viciado. “É exagerado falar-se em democracia angolana”, afirma, considerando que o país dispõe apenas de “um sistema multipartidário”. A distinção é central: “Uma coisa é um sistema de partidos políticos, outra coisa é um regime democrático”. Na sua leitura, a democracia pressupõe condições que continuam ausentes. “Há um conjunto de condimentos que faltam muito”, observa, referindo-se à inexistência plena de “liberdade de escolha, de opinião, de expressão” e de circulação das forças políticas. O quadro actual é, assim, o de um processo incompleto, que “não me parece que esteja concluído em Angola”. A inexistência de alternância no poder é, para Justino Pinto de Andrade, o sinal mais evidente dessa falha estrutural. “As democracias caracterizam-se por haver alternância. Aqui nunca houve”, recorda, sublinhando que o país vive “há 50 anos com a mesma força política”, determinada a manter-se no poder “por todos os meios”. Esse domínio prolongado reflecte-se no terreno político. “Isto restringe as outras forças políticas”, afirma, denunciando “impedimentos, restrições, constrangimentos e infiltrações”. Para o analista, estas práticas são incompatíveis com qualquer regime democrático: “Não acredito que, nas democracias, os partidos governantes se infiltrem nos partidos que pretendem concorrer à governação”. O pluralismo partidário, sustenta, tem sido instrumentalizado. “Vemos a emergência de um conjunto de forças políticas inexpressivas”, criadas para “debilitar a força política com capacidade de se transformar numa alternativa”. Tudo isto acontece num contexto pré-eleitoral que considera particularmente sensível. A confusão entre Partido e Estado é outro dos eixos centrais da sua crítica. Apesar da introdução do multipartidarismo nos anos 90, “isso não se traduziu em democracia”. O motivo é claro: “Todo o aparelho de Estado está capturado pelo partido no poder”, que “domina a economia, a justiça e a polícia”. No plano institucional, o bloqueio é quase total. “Não há possibilidade de se fazerem alterações constitucionais sem o assentimento do partido no poder”, observa, lembrando que a maioria parlamentar existente “tem força suficiente para impedir qualquer mudança estrutural”. O espaço da oposição e da sociedade civil existe, mas “com muitas limitações”. A explicação, segundo Justino Pinto de Andrade, está numa “cultura anti-democrática” herdada de um modelo político que “nunca permitiu alternância” e que continua a moldar o exercício do poder. A sua ruptura com o MPLA surge como consequência dessa trajectória. “Percebi isso desde muito cedo”, recorda, evocando a repressão sofrida logo depois da independência. “Desejo um país democrático, não um país de absorção completa da sociedade”, afirma, explicando a opção pela oposição, mesmo quando isso significou prisão e marginalização. Apesar de décadas de dificuldades, mantém uma postura de resistência: “É difícil, muito difícil, mas estimulante”, confessa. Dirigindo-se aos mais jovens, lembra que muitos “não conheceram algo diferente” e vivem sob “uma única referência”. Ainda assim, insiste: “Alguém tem que lutar”, porque sem essa luta Angola continuará presa a um sistema que se apresenta como democrático, mas que, nas suas palavras, “não é democracia”.

Nos últimos dias, a Guiné-Bissau foi palco de duas actualidades distintas. Na primeira, a ex-primeira Dama, Dinísia Embaló, foi constituída arguida em Lisboa, no caso da mala dos cinco milhões encontrada no jato privado em que viajava. Na outra actualidade, a CPLP suspendeu oficialmente a Guiné-Bissau da organização, retirando ao país a presidência rotativa. Este passo foi dado no dia seguinte à decisão das as autoridades guineenses, que tinham anunciado a suspensão de todas as actividades do país no seio da CPLP, o que foi visto por muitos como uma "auto-suspensão". A CPLP suspendeu oficialmente a Guiné-Bissau da organização e elegeu Timor-Leste para a Presidência, que até agora era assumida pela Guiné-Bissau. Numa altura em que deve chegar a Bissau uma missão da CEDEAO, outra organização da qual a Guiné-Bissau faz parte, existe também a possibilidade de a CPLP fazer o mesmo. Solicitada pela RFI, a organização não confirma de forma oficial o envio de uma missão de alto nível a Bissau, como foi decidido na reunião extraordinária da comunidade, a 5 de Dezembro. "Convém que esta missão se desloque o mais rápidamente possível" disse José Ramos Hora, presidente timorense e agora presidente em exercício da CPLP. O dirigente reconheceu que "toda a deslocação terá de ser feita em concordância com os militares, que controlam as fronteiras e o espaço aéreo". José Ramos Horta foi categórico: "Não é possível mostrar flexibilidade. Não é possível ficarmos indiferentes perante a arrogância da clique militar que há cinquenta anos não deixa o país retomar um rumo normal". "Há violaçao flagrante do processo eleitoral, houve interrupção e até mesmo assalto [do processo eleitoral], porque o candidato dos militares perdeu. Agora, vão ficar completamente isolados", concluíu José Ramos Horta, referindo-se à crescente pressão internacional. Garantias de vida dos presos políticos Da reunião virtual dos chefes de estado da CPLP, a 16 de Dezembro, outros pontos devem ser destacados. Nomeadamente, pela primeira vez, a exigência "com carácter de urgência, da apresentação de provas de vida e garantias quanto à integridade física de todos os detidos", bem como a sua libertação "imediata e incondicional", já exigida pela CEDEAO. "É o mínimo", considera, em Bissau, Armando Lona, jornalista, investigador e coordenador da Frente Popular. Como todos sabem, estes detidos não são criminosos, são políticos. Apenas participaram no processo eleitoral. O lugar deles não é prisão. Quem deveria estar na prisão são esses senhores e senhoras que hipotecaram o futuro da Guiné-Bissau durante esses anos todos. Nós saudamos essa posição da CPLP mas pensamos que, para além dessa exigência, é preciso fazer um seguimento. Os presidentes de São Tomé e Príncipe, de Portugal, de Cabo Verde, do Brasil, da Guiné Equatorial, de Moçambique e de Timor Leste, assim como o ministro dos Negócios Estrangeiros de Angola. Os dirigentes lusófonos exigiram, uma vez mais, a "retoma urgente da ordem constitucional", alinhando-se com os estatutos democráticos da organização. O que nem sempre foi o caso, denuncia Armando Lona. Isto é interessante. A retoma da legalidade democrática e da ordem constitucional é o que nós guineenses exigimos. Eu encorajo a CPLP a ir nessa direção, porque o que conta é a legitimidade popular. Esta decisão da CPLP é responsável, é oportuna. Porque, como sabemos, a CPLP tem tido uma atitude de cumplicidade. Mas acho que nunca é tarde para retomar o caminho do respeito dos estatutos que regulam os comportamentos de cada Estado membro. Esta turma agora que fala em nome da Guiné-Bissau, é uma turma de golpistas. Não tem nenhuma responsabilidade para falar em nome da Guiné-Bissau. Esta dita turma de golpista não passa de uma aberração inqualificável, que nenhum guineense de bom senso estaria interessado a ouvir. E para o investigador Armando Lona, não há como fazer parte de uma organização sem respeitar os estatutos e textos da mesma.Ora "aquilo que se tem passado na Guiné-Bissau é intolerável e inaceitável e enquanto cidadãos da CPLP e das outras organizações, exigimos que se respeite a democracia e os direitos humanos". A 5 de Dezembro, a CPLP decidiu enviar uma missão de alto nível a Bissau para acompanhar o processo de reposição da ordem constitucional. A decisão foi tomada antes da auto-suspensão e da oficialização da suspensão da Guiné-Bissau na CPLP. Mas estes últimos acontecimentos podem comprometer a vinda desta delegação, já que dependerá da boa vontade e da autorização das autoridades guineenses que os membros da CPLP aterrem ou entrem em Bissau. Mas acho que toda a tentativa de impedir a chegada de uma missão, seja ela da CPLP, da CEDEAO, será uma prova de frustração. Esse grupo [de militares] sabe que está num isolamento total. Não tem legitimidade interna, não tem reconhecimento internacional. Portanto, resta lhe tentar fazer esses subterfúgios fúteis, mas que não, não vão ter sucesso porque o povo já boicotou tudo. O povo guineense está farto desse grupo. Hipotecaram o futuro dos guineenses, sobretudo da juventude, que agora só pensa em emigrar. Essa junta militar... Eu tenho dito e repito que não existe nenhuma junta militar na Guiné-Bissau. Esse grupo não não representa nem 5% dos efectivos das forças guineenses. Armando Lona diz que estes militares no poder são meras individualidades no seio de toda a corporação militar, não representam portanto as Forças Armadas da Guiné-Bissau. E por outro lado, são milícias que tomaram o poder. Não refletem a realidade sociológica das nossas Forças Armadas. Nós tínhamos a certeza que mais dia menos dia, o regime ia cair. Caiu, como o povo demonstrou de forma brilhante, de forma patriótica, nas urnas. O jornalista prossegue: ao contrário do que foi dito pelo primeiro-ministro Ilídio Té Vieira, à imprensa guineense, no dia seguinte à cimeira da CEDEAO, "os militares temem sim as ameaças de sanções financeiras". Têm que temer. Não conseguem fazer nada sem apoio externo. Endividaram a Guiné-Bissau. Levaram o nosso plafond de dívidas para quase mais de 100% do Produto Interno Bruto. Todos os dias estão a emitir títulos de tesouro no mercado regional! Portanto, é um grupo que vive só desses esquemas. Logo, com sanções económicas e financeiras não podem sobreviver. O coordenador da frente popular destaca outro ponto: a existência de uma força da CEDEAO na Guiné-Bissau. Esta é composta por contingentes da Nigéria e do Senegal e os seus membros, fardados e armados, já eram visíveis nas ruas da capital antes das eleições gerais, durante, e depois. Questionamos o real mandato desta força da CEDEAO. Não vale a pena termos uma força paga pelas contribuições dos cidadãos da África Ocidental, quando na realidade está ao serviço de um ditador, que agora ninguém duvida de que era um ditador, mas também um campeão do crime do crime organizado e do branqueamento de capital. Aqui, Armando Lona faz referência à detenção de Dinísia Embaló, a ex-primeira dama, mulher do ex-presidente deposto, que continua em parte incerta. Dinísia Embaló foi constituída arguida por suspeita de contrabando e branqueamento, no caso das malas com 5 milhões de euros encontradas no jacto privado em que viajava. Voo esse que partiu de Marrocos, último país, aliás, onde se soube do paradeiro de Umaro Sissoco Embaló. Fez depois escala em Bissau e seguiu para Lisboa. Um caso que impactará muito provavelmente a imagem e o poder diplomático de Umaro Sissoco Embaló e do seu entourage. Não há julgamento maior do que esse julgamento da opinião pública internacional. Para nós isto basta. Infelizmente, sentimo-nos atingidos porque somos guineenses. Temos orgulho enquanto povo, temos dignidade, e lutámos pela nossa liberdade. Mas por acidente da história temos tido gente que não tem a preparação para estar a nossa frente.

Terminam dois dias de negociações em Berlim, sobre a guerra na Ucrânia. Volodymir Zelensky reuniu-se, na capital alemã, com dirigentes europeus e emissários de Donald Trump. As negociações entre o presidente ucraniano e os emissários norte-americanos Steve Witkoff e Jared Kushner permitiram alcançar várias pontos, disse Zelensky, que em nome do seu país, acrescentou: "fomos ouvidos". Por outro lado, os dirigentes europeus comprometem-se a mobilizar uma força multinacional para apoiar o exército ucraniano. Tudo parece portanto estar a progredir no sentido de se alcançar um acordo de cessar-fogo. Mas algumas questões ficam por responder. Os líderes dos principais países europeus assinaram um documento conjunto que estabelece, entre outros, a mobilização de uma força multinacional para apoiar o exército ucraniano, limitado actualmente a 800 mil militaires. A força multinacional, composta por nações voluntárias, conta com o apoio de Washington. Será vocacionada também para a segurança do espaço aéreo e marítimo ucraniano. Não se trata da primeira vez que os dirigentes europeus debatem esta questão de uma força internacional, mas a proposta parece estar a concretizar-se. O director da licenciatura em Relações Internacionais na Universidade do Minho, José Palmeira, considera que se trata de um sinal encorajador. José Palmeira: Eu diria que sim. Estão em cima da mesa as garantias de segurança da Ucrânia. Isto é, a partir do momento em que fica vedada a sua entrada na Aliança Atlântica (NATO), que lhe permitiria ficar protegida pelo artigo quinto, a ucrânia quer, como contrapartida, que lhes sejam oferecidas garantias de segurança e, designadamente pelos Estados Unidos. RFI: Tanto que a questão da integração da Ucrânia na NATO está excluída. Conforme os interesses da Rússia. Exactamente. E a alternativa que a Ucrânia coloca, uma vez que não integram a NATO, são as garantias de segurança, similares às do ponto 5 da NATO. E quem é que poderá dar essas garantias? Os Estados Unidos. E aparentemente, os Estados Unidos terão evoluído no sentido de dar essa garantia. É verdade que os Estados Unidos dizem que não colocam tropas no terreno nem no apoio à Ucrânia, mas aí a Europa jogará um papel fundamental. Nesse aspecto, a Ucrânia terá alcançado o seu objectivo. Resta saber se o Kremlin aceita esta formulação e se poderemos estar próximo de um acordo nesse ponto. RFI: O que se sabe concretamente das garantias de segurança concedidas pelos Estados-Unidos a Kiev? A Ucrânia já foi atacada em 2014 com a anexação da Crimeia e mais tarde no Donbass em 2022. Embora existisse um compromisso que fazia com que as potências mundiais, como os Estados Unidos, potências europeias e a própria Rússia, protegeriam à Ucrânia em caso de agressão, uma vez que, na base desse entendimento, a Ucrânia cedeu as armas nucleares que estavam no seu território. Mas essas garantias de segurança não foram suficientes, como se nota. Nesse sentido, a posição dos Estados Unidos é importante, mas não basta uma posição da actual administração. Convém que seja o próprio Congresso dos Estados Unidos a aprovar. Para que numa futura administração não haja uma alteração do quadro da segurança ucraniana. RFI: Tudo parece estar a concordar no sentido de progressos em vista de um acordo de paz. Mas o documento assinado pelos dirigentes europeus omite totalmente a questão das concessões territoriais da Ucrânia reclamadas pela Rússia. Isto quererá dizer que os dirigentes europeus vão continuar a evitar esta questão sensível? Essa é a questão central. Em teroria, a Ucrânia aceita perder território de facto, não de direito. Mas apenas o território que a Federação Russa conseguiu ocupar e não aquele que reivindica para além disso, na região do Donbass. Resta saber até que ponto esse aspecto vai ou não ser um factor que bloqueia o acordo com a Federação Russa. É verdade que estão a ser avançadas várias possibilidades para esse território ainda não conquistado pela Federação Russa. Criar ali uma espécie de uma zona intermédia que não seja nem russa nem ucraniana. Fala-se numa zona económica para aquela região. Sem influência directa nem da Rússia nem da Ucrânia. Não sei até que ponto vai a criatividade dos negociadores para criar uma solução que seja aceitável, quer pela Ucrânia, quer pela Federação Russa. Mas se isso acontecer, naturalmente que a questão que se vai colocar é o levantamento das sanções. E, aparentemente, nem a União Europeia nem o Reino Unido estão dispostos a levantar sanções porque há uma violação do direito internacional. Diferente é a posição dos Estados Unidos que, aparentemente estarão dispostos a retomar as relações com a Federação Russa. RFI: Sobre esta questão, Volodymyr Zelensky afirmou que "ainda existem questões complexas, particularmente as que dizem respeito aos territórios. Continuamos a ter posições muito diferentes dos Estados Unidos". Parece que o entrave vem de Washington. Concorda com esta visão? Aparentemente, a posição da Casa Branca é mais favorável àquilo que defende a Federação Russa, que é o objetivo que a Ucrânia entregue à Federação Russa os territórios que ainda não ocupou no Donbass. Os Estados Unidos, estão a forçar um acordo que passe por essa cedência também. RFI: Os próximos passos e assuntos que ficam por resolver prendem-se com a questão do congelamento dos activos russos. Os europeus não chegaram a acordo sobre esta questão. São vários os países, aliás, desfavoráveis a esta questão. Para além da Bélgica, a Itália, Bulgária e Malta enviaram uma carta à Comissão Europeia para advertir sobre as consequências financeiras e jurídicas negativas da utilização destes bens russos como base para apoios financeiros à Ucrânia. Como vê a evolução desta proposta? Já houve uma evolução no sentido de que o congelamento já foi aprovado. O que não foi aprovado ainda é usar as verbas congeladas para apoiar a Ucrânia. Aí é que de facto há divergências, porque países como a Bélgica, onde estão a maior parte desses activos, têm receio de que amanhã um tribunal declare que a Rússia tem direito a aceder a essas verbas. E a Bélgica é que teria que indemnizar a Federação Russa. Portanto, aquilo que a Bélgica alega é que só aceita essa solução se implicar a solidariedade da União Europeia. Ainda não houve, de facto, esse avanço. De qualquer forma, para além dessa questão, eu acrescentaria um objectivo que a Federação Russa pretende também. É que a Ucrânia e a comunidade internacional não reclamem em tribunais internacionais a alegada violação do direito humanitário por parte das forças russas que invadiram a Ucrânia. RFI: Isto é uma exigência por parte da Rússia? Exactamente. A Rússia quer que qualquer queixa seja levantada nos tribunais internacionais, designadamente no Tribunal Penal Internacional. RFI: E os dirigentes europeus estão dispostos a ceder a esse pedido? Não estão dispostos, como é óbvio. Mas os Estados Unidos aparentemente poderiam secundar esta posição russa, porque Donald Trump quer é um acordo de paz a qualquer preço, praticamente.

A CEDEAO reuniu-se em Abuja, na Nigéria, e ameaçou os aliados dos militares com “sanções específicas” após a tomada de poder na Guiné-Bissau. Estas medidas, assim como a condenação da acção do militares, mostram que esta organização regional não apoia esta desestabilização em Bissau. A Comissão da Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO) reuniu-se neste fim de semana, em Abuja, na Nigéria, para discutir a situação na Guiné-Bissau e ameaçou impor ao país “sanções específicas” a quem entrar no processo de transição e condenou de forma veemente a mudança inconstitucional de Governo na Guiné-Bissau. Em entrevista à RFI, o jurista Fodé Mané, considera que esta resolução da CEDEAO pode parecer à primeira vista benévola em relação às forças militares actualmente no poder, no entanto, o objectivo desta organização internacional na sua perspectiva é “estrangular” internacionalmente a Guiné-Bissau, retirando qualquer margem de manobra aos líderes actualmente no poder. "As duas partes tinham expectativas diferentes. Os que deram este dito golpe de Estado tinham uma estratégia de que podia haver uma decisão que fosse pelo restabelecimento do poder que estava e, consequentemente, fazer o Governo anterior voltar. Mas a única coisa que conseguiram é aquela possibilidade de alargar a transição por um ano. Também os que estão contra o regime estavam à espera de que ia pelo menos ser tomada uma decisão de intervenção mais musculada, à semelhança do que houve em relação ao Benim. E também a possibilidade de serem proclamados ou de ser divulgados os resultados das eleições. No entanto, é importante precisar que no caso do Benim, a Nigéria e a França estão interessados em agir. No caso da Guiné-Bissau, o Senegal ou a Guiné Conacri podiam servir de plataforma para uma acção militar, mas não estão interessados, até pelo contrário. O Senegal até ganhou com esta situação porque quem devia nomear ou indicar o presidente da Comissão devia ser a Guiné-Bissau, mas por ser suspenso de todos os órgãos, perdeu essa prerrogativa. Então isso foi passado para o Senegal, que vai indigitar o presidente da Comissão da CEDEAO", indicou Fodé Mané. Segundo o jurista, o regime militar no poder não foi assim legitimado pela CEDEAO desta vez, o que significa que, tendo em conta que a Guiné-Bissau é muito dependente do exterior a nível financeiro, o país será "estrangulado" o que "dificulta" a levada a cabo de decisões por partes do militares e dos seus aliados. Na véspera deste encontro da CEDEAO e já antecipando esta decisão que não proferiu o regresso ao poder de Umaro Sissoco Embaló, um cidadão guineense próximo do antigo Presidente foi detido em Lisboa ao sair de um avião com malas que transportavam cinco milhões de euros. Para Fodé Mané trata-se de um acto de desespero por parte do antigo líder. "Depois da reunião do Conselho de Ministros da CEDEAO que prepara as resoluções para os chefes de Estado sabemos que houve movimentações, pessoas que estiveram em Abuja depois de perceberem que a sua estratégia de voltar ao poder não ia ser possível, houve fretamento de aviões que vieram a Bissau para levar alguns bens. E num desses aviões que viajou, a pessoa foi apanhada com o dinheiro. Então, não há dúvida quanto o relacionamento daquele caso com a situação que se vive aqui em Bissau, principalmente com a falha das comunicações. O plano B era retirar todos os bens e colocar em lugares onde podem usar facilmente e, por isso, este acto está a ser visto como uma actuação de desespero", concluiu Fodé Mané.

Esta quinta-feira é dia de Greve Geral em Portugal. Uma paralisação que se faz sentir com particular incidência nos transportes, na saúde e na educação. Na origem da greve está o facto de o Governo de direita do primeiro-ministro Luís Montenegro querer avançar com um pacote laboral que os sindicatos consideram ser um assalto aos direitos fundamentais. Há doze anos que as duas centrais sindicais Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical Nacional (CGTP-IN) e União Geral de Trabalhadores (UGT) não se juntavam para promover uma greve geral. Agora, as centrais sindicais juntam forças e exigem a retirada do pacote laboral apresentado pelo Governo, que consideram que, se fosse posto em prática, representaria um enorme retrocesso nos direitos dos trabalhadores. Os sindicatos identificam que esta é uma uma greve geral por mais salário, mais direitos e mais serviços públicos, e que é também uma forma de luta contra os despedimentos sem justa causa, contra a imposição do banco de horas, contra a destruição da contratação colectiva, contra os ataques aos direitos de maternidade e paternidade, contra a precariedade e pela defesa do direito à greve e liberdade sindical. José Manuel Oliveira, Coordenador Nacional da Fectrans (Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações) – estrutura sectorial da CGTP - explica os motivos desta greve: A questão central que está em cima da mesa é as propostas de alteração do Código de Trabalho. E, quando as discutimos com os trabalhadores, reconhecemos que, efetivamente, se estabelece uma grande preocupação no mundo do trabalho. Questões de destruição da contratação colectiva, tal como hoje. Existe a possibilidade de os patrões poderem suspender a negociação coletiva e alterá-la em caso de argumento de dificuldades económica. As questões dos despedimentos, portanto, em que o trabalhador pode ser despedido, fica com menos proteção na sua defesa e depois, mesmo que o Tribunal venha a declarar ilegal o contrato, as empresas não ficam obrigadas a readmiti-los. Se o trabalhador quiser recorrer tem que depositar uma caução, algo que até agora não acontecia. Portanto, as questões do aumento do horário de trabalho, portanto, com a introdução do Banco de Horas, que na prática vai servir para que os trabalhadores tenham menos rendimentos; com isto as empresas têm a possibilidade de prolongar o horário de trabalho sem qualquer pagamento. Portanto, quer dizer que no final do mês há uma redução da remuneração dos trabalhadores. Portanto, as questões de se poder diluir o pagamento dos subsídios de Natal e de férias em duodécimos. Isto, apesar de ser apresentado com o argumento que é para quem quiser, portanto, tem que ser a iniciativa do trabalhador, para nós é uma falsa questão porque, quase de certeza, nos novos contratos de trabalho, a condição à partida que é posta a um trabalhador que anda à procura de emprego é precisamente essa. Portanto, isto diz que, num curto espaço de tempo, efetivamente, em vez das 14 remunerações que hoje tem, passa a ter apenas 12. Portanto, há maior desprotecção relativamente aos trabalhadores na situação de maternidade e de paternidade. E uma questão que para nós também é importante, que é, isto para as novas gerações, é o acrescimo da precariedade, porque se pode colocar como possibilidade de um jovem que entra hoje no mercado de trabalho ser contratado eternamente com contratos a prazo, com o argumento que nunca teve um posto de trabalho efetivo. E, por último, no fundo, também a limitação que o Governo pretende fazer da ação sindical para que os trabalhadores tenham menos capacidade de se organizar e de resposta a toda esta violência ofensiva. Por isto, há razões para que haja a greve geral, não é por acaso que, tendo a CGTP partido com esta discussão mais cedo e pela necessidade de evoluir na luta, fizemos lutas em setembro, fizemos em novembro e depois colocamos esta questão da greve geral, ela teve também uma adesão muito significativa dos sindicatos que até não são filiados nem na CGTP nem na UGT, o que demonstra que é um tema transversal e que preocupa, digamos, de certa forma o mundo do trabalho. Por isso, estarmos neste quadro de uma forte convergência para a greve geral O Governo diz que não há razão para esta greve porque diz que estarem a existir negociações. A questão é que pode haver muitas reuniões, isto não quer dizer que haja negociação. Negociação presssupõe ver se as posições de ambas as partes evoluíram. O Governo apresentou esta proposta em inícios do ano e ela chega a este período de tempo praticamente igual ao que estava. Portanto, não há negociação. Nem há nesta proposta que o Governo faz qualquer abertura, ou pelo menos não tem havido qualquer abertura para aquilo que pelo menos a CGTP tem apresentado, que é inclusivamente a abordagem de temas que temos colocado relativamente à questão do tratamento mais favorável, às questões da caducidade, etc, para se poder negociar isso. Portanto, o que eles querem efetivamente é a destruição da atual contratação coletiva, substituí-la por outra a partir do zero e precarizar mais as relações de trabalho e ter a possibilidade de trabalhar mais e receber muito menos. Portanto, não há uma negociação, pode ter havido muitas reuniões. Na minha opinião, não há negociação, porque a negociação não é a imposição de uma das partes. O que vai acontecer daqui para frente eu acho que também vai depender muito daquilo que for o impacto, e pensamos que vai haver um grande impacto da greve geral, portanto, será um ponto importante. Não será, digamos, a questão final, até porque o Governo tem um objetivo muito claro, se não for desta maneira irá procurar outra por meio da Assembleia da República. Portanto, pôr lá as suas propostas e depois, na atual correlação de forças, procurar conseguir os seus objetivos. Portanto, queremos que vai ser importante esta luta, vai marcar para o futuro, mas eventualmente podemos ter a necessidade de continuar a lutar contra estes objetivos. O Governo encara a contratação coletiva como um obstáculo e que o não ter de seguir as linhas de uma contratação coletiva seria um agilizar de processo, é assim? A leitura que fazemos é de uma forma global. Portanto, há aqui objectivos de reduzir a capacidade de negociação coletiva, digamos, e dar poder ao patronato, às empresas, para no fundo impor as suas regras. Aquilo que nós dizemos é que o problema central não é a contratação coletiva. Aliás, qual é que é a questão que se coloca essencialmente, falta de investimento, falta de trabalhadores porque os salários ao longo dos últimos anos foram baixos e ainda continuam a ser baixos, portanto, e isso levou ao afastamento de muitos trabalhadores. O que entendemos é que era necessário, de facto, haver negociação coletiva efetiva nas empresas a todos os níveis, quer públicas, quer privadas, para se caminhar no sentido de valorizar o trabalho, valorizar as profissões, até com esta questão de que o desenvolvimento da economia nacional faz com o aumento do poder de compra. Portanto, é isto que é preciso fazer, que é, digamos, as pessoas terem poder de compra para conseguirem uma vida digna e, com isso, dinamizarem a economia nacional. Posto dessa maneira, parece que pode haver uma certa falta de visão do Governo tendo em conta a perspectiva do desenvolvimento da economia portuguesa. Na nossa opinião, sim. Para já, pensamos que o Governo deve governar para as pessoas e deve ter em conta o bem-estar das pessoas e não apenas de um determinado núcleo. E hoje, claramente, este Governo está a proteger quem já tem muito em detrimento de quem vive do seu trabalho. Há uma diferença na nossa visão relativamente àquela que o Governo tem e, por isso, acharmos que era preciso apostar e valorizar o trabalho, até para não acontecer aquilo que está a acontecer hoje, que é muito do saber do nosso país, pago como fortes contributos do dinheiro público para a formação de novos quadros, que estão a ir para fora. Portanto, nós não estamos a ter um retorno daquilo que é o investimento que fazemos, que o país faz ao nível do ensino, da formação de novos quadros, nas universidades, etc. Apesar de hoje o acesso às universidades cada vez ser mais difícil, vimos o que é que se passou este ano, com menos acesso à universidade do que os anos anteriores. Isso acho que também é um problema que temos, não é? Portanto, achamos que tem que haver uma nova visão para o país e apostarmos na valorização do trabalho de forma a captarmos os melhores quadros para cá, porque, efetivamente, como se diz, temos a geração mais bem preparada, mas ela não fica cá, vai para o estrangeiro. O Governo, até agora, não se apresenta disponível para discutir o pacote laboral, que são mais de 100 medidas. Se se mantiver assim, esta posição do Governo, há a perspetiva de outras greves? Nós estamos aqui, agora, com duas linhas de trabalho. Uma delas é como é que o Governo se vai posicionar relativamente à legislação laboral. A direcção da CGTP acho que vai reunir já para a próxima semana, dia 17, onde fará a avaliação da greve e perspectivará o trabalho para a frente e a articulação com as suas estruturas intermédias. Mas, entretanto, também se vai abrir o processo das negociações coletivas, da revisão dos salários nos próximos tempos, não é? Portanto, podemos ter, com isto tudo junto, o caldo para grande conflitualidade social nós nos próximos tempos.

A crise na Guiné-Bissau agrava-se enquanto a CEDEAO é acusada de cumplicidade por não reagir às violações democráticas do regime. O secretário-geral do Movimento Cívico Pó di Terra, Vigário Luís Balanta, denuncia manipulações institucionais, perseguição política e influência do narcotráfico. Critica o poder militar e apela à intervenção internacional. A crise política e militar na Guiné-Bissau aprofunda-se à medida que a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) mantém um silêncio que muitos consideram ensurdecedor. Para o secretário-geral do Movimento Cívico Pó di Terra, Vigário Luís Balanta esta atitude confirma “a cumplicidade da CEDEAO” perante um regime que, diz, “tem violado direitos humanos, perseguido jornalistas e manipulado instituições sem qualquer intervenção séria da organização”. O contraste com a actuação rápida no Benim, no passado domingo, é para Vigário Luís Balanta prova de que “há pesos diferentes” dentro da diplomacia regional. O dirigente cívico recorda que a missão da CEDEAO deveria passar por “garantir estabilidade e proteger o povo”, mas, nos últimos anos, a organização optou por “proteger apenas o Presidente da República”. Para Vigário Luís Balanta, o mandato de Umaro Sissoco Embaló “acabou a 27 de Fevereiro”, sendo prolongado através de “manipulação do Supremo Tribunal de Justiça”. A ausência de reacção externa perante as duas dissoluções parlamentares e sucessivas denúncias de abusos reforçou “a demonstração de que há interesses inconfessos”. A recente tomada de poder pelo Alto Comando Militar, depois de um alegado autogolpe de Novembro, não altera o diagnóstico. Vigário Luís Balanta defende que se trata de “uma continuação do regime vigente desde 2020”, sublinhando que os actuais responsáveis militares “são figuras ligadas à presidência, alguns deles envolvidos directamente na campanha de Umaro Sissoco Embaló”. Assim, rejeita a narrativa oficial de combate ao crime organizado: “Isto é tudo menos combater o tráfico de droga; é perseguição política e concentração de poder”. O narcotráfico continua, para o secretário-geral do movimento 'Pó di Terra', a raiz da instabilidade nacional. “O maior cancro da estabilidade política guineense é o narcotráfico”, afirma, explicando que “pessoas ligadas às redes de droga acabam na arena política e interferem directamente na vontade popular”. A Guiné-Bissau, enquanto ponto estratégico entre América Latina, África e Europa, permanece vulnerável a redes internacionais que operam com cumplicidades locais. “O povo sozinho não vai conseguir; é preciso apoio internacional”, reconhece. É nesse contexto que surge a carta aberta dirigida ao Presidente dos Estados Unidos. Apesar de alguns considerarem a iniciativa um gesto extremo, Vigário Luís Balanta entende-a como necessária: “O problema da Guiné-Bissau já está fora do alcance nacional”. Defende que a comunidade internacional, incluindo EUA, ONU e parceiros regionais, tem responsabilidade em agir, já que “há muito tempo há cumplicidade no silêncio perante as violações da ordem democrática”. Para o dirigente, internacionalizar o problema é também “garantir que a verdade seja conhecida e que a vontade popular respeitada”. A repressão à comunicação social reforça o clima de alerta. O recente comunicado do Alto Comando Militar, ameaçando fechar órgãos que divulguem apelos à desobediência civil, é para Vigário Luís Balanta um sinal de agravamento: “Quem não deve não teme. Proibir informar é agravar a situação”. Recorda que rádios e jornalistas críticos têm sido perseguidos, enquanto meios alinhados com o regime “falam tudo e nunca são incomodados”. Aos militares, dirige um apelo firme: “Voltem para o quartel. Se querem fazer política, tirem a farda”. Quanto aos caminhos para uma saída da crise, Vigário Luís Balanta diz não haver “transição legítima nem credível”. O único passo aceitável é “publicar o resultado eleitoral”, já que todas as atas de mesa e apuramentos regionais estão concluídos. Uma transição de um ano, como propõe a junta militar, é rejeitada: “Não é isso que o povo votou”. A sociedade civil assume, por isso, um papel central. “Temos obrigação de continuar a denunciar e a mobilizar”, diz o secretário-geral do Movimento Cívico Pó di Terra, garantindo que as manifestações se vão manter em todo o território: “O povo guineense sempre resistiu. Não vai ser agora que vamos ceder”. A união entre jovens, mulheres e organizações será determinante: “A luta não pode ser de um grupo restrito; tem de ser colectiva para que a vontade do povo seja respeitada”.

Há um ano, a Síria entrou numa nova fase da sua história, após mais de meio século de ditadura do clã Assad e quase catorze anos de guerra civil. A 8 de Dezembro de 2024, os rebeldes do grupo islâmico Hayat Tahrir al-Sham avançaram sobre Damasco e declararam a libertação do povo sírio. O movimento foi liderado por Ahmed al-Charaa, antigo jihadista que, entretanto, assumiu o cargo de Presidente interino do país. Doze meses depois, mais de um milhão de sírios já regressou ao território nacional, numa tentativa de participar na reconstrução de um Estado profundamente fragilizado pelos desafios políticos, económicos e sociais que persistem. Marcos Farias Ferreira, professor universitário e especialista em relações internacionais, afirma que este movimento de retorno não resulta apenas da mudança de cenário interno, sublinhando que as políticas europeias cada vez mais restritivas em relação aos migrantes também contribuíram para acelerar o regresso de muitos sírios. Em que condições regressa a população e que país encontra? Estes sírios que estão a regressar saíram do seu país durante os quase 14 anos de guerra civil e, portanto, também temos que compreender que são pessoas que saíram, mas sempre com a expectativa de regressar. Por outro lado, a situação destes sírios que saíram do país foi sempre precária, sobretudo nos últimos anos, em que os países europeus, sobretudo, recusaram o peso da presença de comunidades migrantes cada vez maiores e, portanto, a pressão na Europa para o regresso dos sírios -na Alemanha, mas também na Turquia e em países mais próximos, como a Jordânia foi sendo muito maior. Agora, o país que estes refugiados encontram é um país devastado material e economicamente por 14 anos de guerra civil e é um país que ainda não encontrou o equilíbrio, a estabilidade e a prosperidade económica que estes recém-chegados procuram. É esta estabilidade que procura o Presidente interino sírio? Desde que chegou ao poder, Ahmed al-Charaa foi recebido por vários chefes de Estado -França, Estados Unidos, Rússia. Discursou diante das Nações Unidas, um discurso que já não acontecia desde 1967. Que imagem está Ahmed al-Charaa a construir junto da comunidade internacional e o que é que ele procura? [Ahmed al-Charaa] procura apoio político e apoio económico para a consolidação de um novo regime político e a reconstrução económica, em primeiro lugar. Certamente que procura o apoio das potências regionais, dos Estados do Golfo, sobretudo, para essa reconstrução económica e para o apoio político. É claro que, tendo caído o regime de Assad, o novo Presidente procura novas alianças e novos apoios na zona. Se Bashar al-Assad se apoiava sobretudo no Irão e na Rússia, fora da região, agora o novo Presidente al-Charaa procura alianças mais abrangentes e procura, obviamente, afastar-se desse alinhamento mais estrito com o Irão. Procura, além disso, uma coisa muito importante, que é afastar as sanções políticas e económicas que tinham sido aprovadas pelos Estados Unidos. Daí que a sua visita aos Estados Unidos tivesse sido muito focada no levantamento das sanções que o país colocou sobre a Síria e sobre ele próprio, porque ele era considerado um terrorista, antigo jihadista. Tinha, claro, a cabeça a prémio e, portanto, não haverá um futuro viável para o novo regime político sem o levantamento desta série de sanções. Julgo que ele tem sido hábil nesta relação que quer estabelecer com os Estados Unidos, mas também, ao mesmo tempo, não depreciando aquilo que é a relação com a Rússia. A Rússia tem interesses militares na zona, tem bases, e tem havido também contactos para que isso possa continuar e, portanto, não deixar de lado as relações tradicionais que a Síria tem com a Rússia. A coligação que Ahmed al-Charaa preside é composta por um grupo de rebeldes de Idlib. O Presidente interino diz que está disposto a construir um Estado de Direito, a a respeitar as minorias, os direitos das mulheres. Esta coligação vai permitir-lhe cumprir essa agenda, que também é fundamental junto da comunidade internacional? Claro. Um dos dois grandes desafios da Síria é precisamente alargar essa coligação que derrubou Bashar al-Assad. O início deste processo é um início violento, um início de milícias que lutam contra o regime. Aliás, a Síria está retalhada em muitas milícias. Algumas delas continuam ainda a lutar em zonas específicas, têm interesses específicos e, portanto, a construção de um Estado viável é o alargamento dessas coligações que leva ao estabelecimento de instituições sólidas que possam fazer funcionar o país. Exige muita habilidade política e exige compromisso de al-Charaa, que ele diz que está disposto a assumir. No entanto, é preciso lembrar que Ahmed al-Charaa não controla a totalidade do país. Que desafio representa esta situação para o modelo da futura sociedade síria? O desafio é convencer estes diferentes grupos, que têm interesses muito diferentes, muitos deles têm até a intenção de fundar um Estado autónomo, como os curdos. Convencê-los de que há mais benefícios em manterem um Estado unitário, descentralizado e com autonomia, mas fazendo com que as estruturas políticas e militares que, durante estes últimos 14 anos, se foram desenvolvendo nestas zonas sejam integradas no Estado sírio. Os curdos, em Maio, acederam a este objectivo, mas esta integração de estruturas militares e políticas curdas está a sofrer bastantes atrasos. E no Sul acontece o mesmo com os drusos, que têm uma identidade muito forte, são apoiados por Israel e, portanto, também estes grupos têm apoios externos que muitas vezes podem ir contra o objectivo de unificação da Síria. A situação dos drusos, que contam com o apoio de Israel, pode fragilizar o poder de Ahmed al-Charaa? Claro que sim. Eu julgo que é precisamente esse o objectivo de Israel: utilizar uma parte da comunidade drusa. A comunidade drusa também tem interesses bastante diferentes; não podemos assumir uma unidade de acção, uma unidade estratégica por parte dos drusos. Mas o objectivo de Israel, como, aliás, tem mostrado no último ano, é utilizar o pretexto da protecção dos drusos para interferir permanentemente na Síria, para estabelecer zonas de exclusão, zonas tampão. É o caso dos Montes Golã? Claro, alargou nos últimos meses a sua presença nessa região. E, explicitamente, o governo de Israel diz que procura uma zona de exclusão no Sul da Síria, que chega até Damasco, sempre com o pretexto de garantir a segurança dos drusos. Mas sabemos que este é o modo de actuação de Israel no Líbano, na Palestina, obviamente. E, portanto, há aqui um objectivo do governo de Israel, que é evitar o fortalecimento de um Estado sírio. A queda do regime de Assad pareceu positiva a Israel, num primeiro momento, mas imediatamente a seguir percebeu-se que o objectivo era mesmo o enfraquecimento e a fragmentação da Síria, e a neutralização da Síria como uma possível ameaça futura. No fim-de-semana passado, al-Charaa, no Fórum de Doha, teve palavras muito duras contra Israel. Parecia que, num primeiro momento, al-Charaa podia ser um aliado de Israel, porque acedeu a uma série de pretensões de entrega dos Montes Golã. Neste momento, as relações estão muito tensas entre Israel e o novo poder na Síria, e eu julgo que isso pode perfeitamente ser um novo foco de tensão no médio prazo. O país realizou eleições parlamentares, onde houve denúncias da falta de representatividade de género e de outras religiões. O país deverá realizar eleições presidenciais, dentro de quatro anos. Este é um desafio, uma eleição mais inclusiva? Claro. Em primeiro lugar porque, depois de 14 anos de guerra civil, o país não está propriamente preparado para uma eleição por sufrágio universal directo. Os cadernos eleitorais certamente estão desactualizados. Há todo um trabalho de conhecimento das instituições básicas para levar a cabo um novo recenseamento, para garantir até que se realize com segurança esse acto e que ele seja justo e representativo. Por isso é que estas primeiras eleições foram indirectas. Agora, também há um problema: umas eleições indirectas obviamente reflectem interesses parciais. Foram cerca de 6 mil pessoas que participaram numa eleição indirecta, com listas aprovadas previamente e, portanto, este princípio de novo processo democrático já está muito limitado por interesses sectoriais, que deixaram de lado mulheres, por exemplo, que tradicionalmente na Síria têm uma participação muito grande e uma força muito importante na sociedade, e que neste momento foram marginalizadas nesta primeira eleição. O poder e al-Charaa dizem que são as condicionantes do momento que se vive. E nesse mesmo Fórum de Doha, al-Charaa disse que se espera que, nos próximos anos, fosse aprovada a Constituição e, a partir daí, a realização de eleições directas para os vários órgãos, para o Presidente, para a Assembleia, para os municípios. Isso aconteceria no prazo de quatro anos. Ou seja, os próximos quatro anos seriam o prazo de aprovação da Constituição e a preparação para eleições de acordo com uma nova Constituição. Também temos que compreender que não existe, politicamente falando. Base da nova sociedade. É preciso criar condições? Criar as condições, mas também estabelecer as regras. Não podemos querer que as eleições se realizem de um dia para o outro se ainda não há uma Constituição. Mas isto torna o desafio ainda muito maior, porque quem ocupa o poder, neste primeiro momento, vai ter muitas vantagens em estabelecer as regras, aprovar a nova Constituição e, portanto, se por um lado há condicionantes que justificam que estas eleições tenham sido indirectas e limitadas, com poucos eleitores, também é verdade que é um momento muito sensível, que determina as regras que vão vigorar no futuro.

Em Londres, a Ucrânia e os seus parceiros europeus vão olhar hoje para o plano de paz apresentado por Donald Trump e tentar encontrar novas formas para continuar a financiar o apoio a Kiev. O objectivo é tentar evitar a capitulação da Ucrânia às exigências russas. Os parceiros europeus vão voltar a reunir-se hoje, em Londres, com o Presidente Volodymyr Zelensky para analisarem os avanços do plano para a paz proposto por Donald Trump, mas também para encontrarem uma solução para o financiamento dos esforços - e possível reconstrução - de Kiev. A Comissão Europeia apresentou na quarta-feira uma proposta de empréstimos conjuntos dos países europeus tendo como garantia os bens russos, algo que parece não agradar à generalidade dos 27. Em entrevista à RFI, Sandra Dias Fernandes, professora no Departamento de Ciência Política da Universidade do Minho e especialista nas relações entre a Rússia e a União Europeia, explica que todas estas vias de negociações em curso actualmente, entre norte-americanos e russos, norte-americanos e ucranianos, e europeus têm de continuar e encontrar soluções militares e financeiras viáveis de forma a evitar "a rendição da Ucrânia". "A reunião de hoje em Londres tem por objectivo precisamente tomar conta desse plano, olhar para essa proposta. Este é um movimento indispensável: a diplomacia e o diálogo, já que sem isso não há qualquer perspectiva de acordo sobre o futuro da Ucrânia e, no imediato, o cessar-fogo. Por outro lado, há uma questão da posição de força nestas negociações. De facto, não adiantam muitas conversações se à volta da mesa os mais fracos não têm capacidade de criar a sua pressão. E porque é que os europeus e os ucranianos dialogam? É precisamente nesse sentido de poder colocar na mesa, efectivamente, recursos financeiros e militares que permita à Ucrânia simplesmente não aceitar uma rendição, que é isso que a primeira versão, que foi apresentada há três semanas apresentava", explicou a docente universitária. A Bélgica continua a opor-se a uma mutualização das garantias dos empréstimos europeus baseados nos cerca de 200 mil milhões de bens russos congelados na Europa, já que é uma entidade belga que tutela actualmente estes activos. Para o primeiro-ministro belga, Maxime Prévot, esta é a pior das soluções para financiar a Ucrânia já que é uma solução "que nunca foi tentada antes" e não se sabe como será recebida pelos mercados. Para além das questões financeiras, essenciais para a Ucrânia neste momento, há também a difícil questão da cedência de territórios por parte de Kiev. Este continua a ser o ponto de maior desacordo no plano elaborado pelos Estados Unidos da América, sendo que não só limitaria o território ucraniano como também permitiria apresentar o cessar-fogo - e possível fim da guerra - como uma vitória para Rússia. "O plano de paz, tal como ele foi apresentado pela administração americana e nós sabemos que foi um plano que foi a montante trabalhado com os russos e é um princípio básico em qualquer negociação, seja ela internacional, empresarial ou pessoal: quem apresenta a primeira versão de termos a ser negociados tem uma mão alta, ou seja, tem uma vantagem na negociação. É evidente que este plano de paz é altamente favorável a Putin. Dito isto, qualquer formulação do plano de paz é sempre uma oportunidade para o Kremlin, para os dirigentes russos, de apresentarem uma vitória ao seu povo. A forma como o sistema político funciona e a propaganda funciona. Putin tem sempre à sua disposição, em qualquer momento, a possibilidade de apresentar qualquer resultado como uma vitória para os russos, desde que, evidentemente não perca a Crimeia e não perca os territórios que já conquistou", concluiu a investigadora.

A Guiné-Bissau vive um “golpe paradoxal”, descreve Carlos Lopes, depois de os militares terem interrompido as eleições, destituído o Presidente e instalado um regime de transição. O economista guineense alerta para a fragilidade institucional, a personalização do poder e o risco de colapso económico, criticando a resposta “demasiado diplomática” da CPLP e a incapacidade regional para restaurar a ordem constitucional. A Guiné-Bissau entrou, no final de Novembro, num novo período de convulsão política após a intervenção directa dos militares, que dissolveram as instituições civis, interromperam o processo eleitoral e destituíram o Presidente Umaro Sissoco Embaló. A invasão da Comissão Nacional de Eleições (CNE) por homens armados e encapuçados, acompanhada da destruição de materiais eleitorais, levou à suspensão da contagem e abriu caminho à instalação de um Alto Comando Militar para a Restauração da Segurança Nacional e da Ordem Pública, que nomeou um general como Presidente de transição. A comunidade internacional reagiu de imediato. A CPLP reuniu-se de emergência para ponderar sanções e exigir a “restauração da ordem constitucional”, incluindo a libertação de detidos e a reconstituição dos resultados eleitorais. A instabilidade reacendeu preocupações históricas sobre a fragilidade institucional do país. O economista e académico guineense Carlos Lopes faz-nos uma leitura da crise, que descreve como “um golpe paradoxal”, uma expressão que, segundo explica, reflecte a natureza inédita dos acontecimentos. Carlos Lopes rejeita classificações simplistas sobre o que vários analistas definem como auto-golpe. Na sua leitura, “não é natural que um golpe tenha as características que estamos a registar”. A primeira anomalia, afirma, é o silêncio quase total sobre o dirigente deposto: “Normalmente, num golpe, existe uma narrativa sobre a figura derrubada; neste caso, não há nenhuma. Há até um certo silêncio em relação ao Presidente deposto.” O segundo paradoxo emerge do próprio pretexto usado pelos militares. Embora aleguem irregularidades eleitorais, “as únicas interferências assinaladas são as de homens encapuçados que destruíram o material da CNE”, diz Carlos Lopes, sublinhando que o novo regime não demonstrou qualquer intenção de investigar o ataque. Pelo contrário, observa que o comportamento das autoridades militares “quase assume que foram parte do seu próprio golpe”. A composição do poder instalado pelos militares reforça a contradição, uma vez que as figuras centrais do novo governo são, segundo o economista, “todas muito próximas do Presidente deposto; o director de campanha de Embaló é hoje primeiro-ministro”. Para Carlos Lopes, esta proximidade directa levanta uma questão inevitável: “Durante todo o processo eleitoral não acharam que houvesse nada de estranho. Apenas horas antes da proclamação dos resultados decidiram invocar irregularidades.” A fragilização do sistema judicial é outro sinal de ruptura, o economista lembra que o novo Procurador-Geral foi nomeado com poderes excepcionais: “Pode arrestar juízes, deslocá-los, demiti-los; acaba com todo o processo formal do sistema judiciário.” Perante este quadro, conclui que “não estamos perante um golpe de Estado tradicional”. Carlos Lopes admite preocupação profunda, classificando esta crise como “mais um episódio de uma longa trajectória de rupturas da Constituição e das instituições”. O principal problema, afirma, é a tendência estrutural para substituir instituições por indivíduos: “A política na Guiné-Bissau está pessoalizada. As instituições são secundárias e o espaço político é ocupado por personalidades que impõem a sua vontade.” O surgimento inesperado de um general sem carreira política como chefe de Estado ilustra esse fenómeno: “Ninguém na Guiné-Bissau imaginaria que o actual general viesse a ser Presidente.” Para o economista, esta personalização do poder “mantém o país na sua fragilidade”. A instabilidade crónica guineense não surgiu do vazio. Carlos Lopes identifica raízes profundas no movimento de libertação nacional: “Há um mundo de traições dentro do movimento que deu origem ao partido do poder.” Ao longo das décadas, sucessivas dissidências fracturaram o sistema partidário e aprofundaram a distância entre a ala militar e a ala política. O resultado, diz, é uma cultura política imprevisível: “A Guiné-Bissau vive em traições permanentes. Quase nunca é possível descrever com clareza a posição de uma personalidade, porque já fez tudo e o seu contrário.” A crise actual repete padrões conhecidos, mas acrescenta factores inéditos. Entre eles, o “autoritarismo e a extrema personalização do poder por parte do Presidente Embaló”, que, na opinião de Carlos Lopes, retirou ainda mais capacidade ao aparelho do Estado. Acresce a crescente vulnerabilidade perante o narcotráfico: “O país ficou muito mais exposto ao tráfico de droga e às pressões associadas.” Outro elemento novo é o peso das redes internacionais construídas por Umaro Sissoco Embaló: “Ele tinha uma grande rede de contactos internacionais, fruto da sua trajectória anterior. Isso acrescenta uma dimensão externa à complexidade interna.” A capacidade de resposta da CEDEAO e da União Africana é limitada. Para Carlos Lopes, “a CEDEAO está muito fragilizada”, tanto pelas saídas recentes de três Estados-membros como pelas crises internas que afectam praticamente toda a região. A Nigéria enfrenta terrorismo e instabilidade económica; a Costa do Marfim ainda cura feridas da guerra civil; o Senegal viveu uma transição conturbada. Neste contexto, conclui o académico, “nenhum país está em condições de dar lições ao outro”. A posição da CPLP, que pondera suspender a Guiné-Bissau e enviar uma missão de "bons ofícios", é, para Carlos Lopes, insuficiente: “Parece-me demasiado diplomática. Considerar a suspensão não é suspender.” Acrescenta que falar de bons ofícios “é estranho quando o essencial seria exigir a libertação imediata dos presos políticos, detidos apenas por serem vencedores das eleições”. Sobre o périplo internacional de Umaro Sissoco Embaló, cuja rota passou pelo Senegal, Congo e Marrocos, com possíveis deslocações para França ou Portugal, Carlos Lopes evita especulações, mas admite que “ele beneficiou de facilidades fora do quadro diplomático habitual”, tanto de países africanos como europeus. E remata: “As evidências falam por si.” O economista alerta que a dimensão económica da crise pode tornar-se explosiva: “Vai ser muito difícil evitar regimes de sanções, e esses regimes podem impedir o acesso da Guiné-Bissau ao mercado de capitais da UEMOA.” Se isso acontecer, o Estado perde a sua principal fonte de financiamento: “O regime tem vivido de empréstimos trimestrais. A dívida interna é gigantesca. Sem essa válvula, não há sobrevivência económica.” O impacto sobre a população seria imediato: “A precariedade já era manifesta. Boa parte dessa dívida financiou despesas militares, viagens presidenciais e subsídios políticos. O que se gasta em despesas de prestígio é superior ao orçamento da educação.” Face a um quadro institucional debilitado, um sistema partidário fragmentado, organizações regionais fragilizadas e um risco económico crescente, a Guiné-Bissau enfrenta uma encruzilhada histórica. Reconstruir instituições credíveis vai exigir rupturas profundas num país habituado à instabilidade. “A Guiné-Bissau continua vulnerável porque não resolveu as suas fragilidades estruturais. E esta crise é mais uma demonstração disso.”, conclui.

A intervenção do Alto Comando Militar na Guiné-Bissau desencadeou uma crise institucional profunda: criação de um Conselho Nacional de Transição, dissolução de órgãos judiciais e concentração de poderes no novo Procurador-Geral da República. Beatriz Furtado da Ordem dos Advogados alerta para uma “ruptura inconstitucional” e para a “morte do poder judicial”, num contexto de detenções sem mandado, suspensão pela CEDEAO e crescente isolamento internacional. A Guiné-Bissau entrou, desde o final de Novembro, num novo ciclo político marcado pela intervenção directa das Forças Armadas no quadro institucional do Estado. A decisão do Alto Comando Militar de criar um Conselho Nacional de Transição e de impor alterações ao funcionamento da justiça desencadeou uma contestação generalizada. As medidas foram justificadas pelos militares como necessárias para “restaurar a ordem pública” e responder ao que consideram ser um colapso institucional. No entanto, o alcance dessas decisões, que incluem a dissolução do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público e a concentração de amplos poderes no novo Procurador-Geral da República, levantam dúvidas quanto ao respeito pela Constituição. Para Beatriz Furtado, da Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau, o quadro não deixa margem para dúvidas: o país vive uma ruptura constitucional. A advogada reconhece que, em contextos de golpe, é frequente surgir um documento orientador, mas sublinha que isso não autoriza a alteração da ordem constitucional. “Num regime militar com golpes de Estado é normal a existência de uma carta de transição”, afirma, antes de acrescentar que “a própria Constituição não dá competência aos militares para suspenderem parcialmente a Lei Magna”. Para Beatriz Furtado, a actual situação configura uma usurpação de poderes: “Os militares estão submetidos à Constituição, devem respeitar a Constituição, não podem mexer numa lei magna.” A advogada considera que o acto de substituir as instituições eleitas por instrumentos definidos unilateralmente pelas Forças Armadas representa “uma ruptura inconstitucional da ordem democrática”. O novo Conselho Nacional de Transição surge como peça central do dispositivo militar. No entanto, o seu papel e legitimidade suscitam contestação. Segundo a advogada, “há riscos enormes” associados à criação do Conselho Nacional de Transição, sobretudo porque as medidas que o acompanham alteram o equilíbrio institucional. A dissolução do órgão colegial que supervisionava a magistratura do Ministério Público é um dos exemplos mais graves, a seu ver. “Essa nova configuração tem tudo menos legal”, diz, explicando que o novo modelo permite ao Procurador-Geral nomear magistrados sem concurso nem formação específica. “Um procurador que pode escolher qualquer cidadão para ser magistrado, pode pôr, tirar, nomear, exonerar… tem carta branca. Isso é tudo menos legal.” Para a advogada, estas decisões não visam reforçar o Estado, mas antes fragilizá-lo. “Restaurar a paz e a ordem pública não passa pela criação e dissolução dos órgãos constitucionalmente existentes”, argumenta. A transformação do Ministério Público num órgão de comando unipessoal é, para Beatriz Furtado, a consequência mais perigosa do actual processo. A extinção do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público elimina, afirma, o princípio de colegialidade que garante independência judicial. “O Conselho Superior da Magistratura é um órgão colegial. Ninguém toma uma decisão separado.” A sua dissolução deixa o sistema dependente de uma só pessoa. “O poder fica concentrado num procurador. Estamos perante a morte do poder judicial na Guiné.” O novo Procurador-Geral, anteriormente presidente do Tribunal de Contas, acumula agora atribuições excepcionais. “Hoje pode mandar prender, abrir processos, movimentar magistrados, indicar onde vai um, onde vai outro. Pode fazer tudo”, resume a jurista. O ambiente institucional adensou-se com relatos de detenções sem mandado judicial desde 26 de Novembro, envolvendo políticos, advogados e cidadãos comuns. Beatriz Furtado lembra que a lei guineense não permite detenções para além de 48 horas sem acusação. “Podemos considerar sequestro dessas pessoas. Não há prisão legal. Não há nada.” A Ordem dos Advogados tentou verificar as condições dos detidos, mas foram repetidamente bloqueadas. “Não tivemos acesso. Não sabemos as condições de detenção. Não sabemos o motivo”, explica. Segundo a jurista, o Ministério do Interior remeteu a responsabilidade para o Alto Comando Militar, que não respondeu aos pedidos de audiência. “Não podemos avançar razões ou fundamentos. O processo é completamente opaco.” A Guiné-Bissau permanece suspensa da CEDEAO, que avalia sanções contra a liderança militar. Beatriz Furtado reconhece o impacto negativo de tais medidas, mas considera que a pressão internacional é inevitável. “Quem vai sofrer é o povo da Guiné”, afirma, mas ressalva que o país não se pode afastar das normas democráticas. “Temos de perceber que vivemos no concerto das nações. Temos de respeitar as regras democráticas.” A advogada recorda o histórico de instabilidade política: “A Guiné-Bissau já conheceu vários golpes. Temos de sair disso. Estamos a viver num regime militar que agora deu a cara e disse: somos nós. Mesmo que soframos, a comunidade internacional tem de apertar", concluiu.

Durante vários anos, João Lourenço tentou mediar a paz entre a República Democrática do Congo e o Ruanda, no entanto, o acordo de paz será assinado hoje, em Washington, após a intervenção dos Estados Unidos neste conflito. O Presidente angolano e líder da União Africana estará presente, mas esta "não é uma vitória" para o continente. Em Washington, vai ser hoje assinado o Acordo de Paz entre a República Democrática do Congo e o Ruanda. João Lourenço, o Presidente angolano e líder da União Africana, que durante vários anos tem tentado mediar este conflito, estará presente ao lado dos seus homólogos Félix Tshisekedi, da RDCongo, e Paul Kagamé, do Ruanda. Com o acordo a ser firmado em solo norte-americano, Osvaldo Mboco, especialista em Relações Internacionais ligado à Universidade Técnica de Angola, considera que não se trata de uma vitória africana ou angolana, mas sim a demonstração da importância que os Estados e a economia têm na resolução de conflitos. "Eu não chamaria uma vitória para a União Africana e nem para o presidente João Lourenço, independentemente dos esforços implementados pelo Presidente João Lourenço para a mediação, mas o facto deste acordo não ser assinado em solo africano por intervenientes africanos, do ponto de vista de mediação, retira toda e qualquer, digamos, brilho. Porque nós, os africanos, temos que aprender e encontrar soluções africanas para os problemas africanos, como uma das máximas da própria União Africana. [...] A lição que fica para a União Africana, é a demonstração clara que nós temos estado a fracassar naquilo que são as resoluções dos problemas africanos com os instrumentos e mecanismos africanos e até é um cartão de incompetência daquilo que é a nossa capacidade de mediar os problemas africanos", explicou o investigador. O acordo será firmado no Instituto da Paz dos Estados Unidos da América (USIP), instituição que promove a paz e a resolução de conflitos a nível global, e acontece após os Estados Unidos terem entrado na mediação do conflito que acontece no Leste da República Democrática do Congo. No entanto, o M23, movimento rebelde apoiado até aqui pelo Ruanda, não está incluído no acordo e ainda esta semana fortes confrontos foram registados na fronteira entre os dois países. "O M23 não vai desarmar, o que pode acontecer com M23 é deslocar-se para outras regiões da RDC se se sentirem pressionados pelas forças governamentais e talvez com uma aliança feita com o do Ruanda, com os Estados Unidos. Também não me parece que o presidente Kagame esteja tão disposto em desarmar ou ajudar a eliminar o ano 23. Não me parece, porque este grupo é instrumento importante. Actualmente, as pretensões do Ruanda, não são simplesmente o acesso dos recursos minerais na RDC. Mas hoje já se fala que o Ruanda tem vindo a discutir algumas parcelas de terra que, segundo a visão deles, pertencem a Ruanda e que, durante a Conferência de Berlim de 1885, foram de forma bruta entregues à RDC. E também quando nós olhamos para o Ruanda, é um país pequeno, e vai ter problemas demográficos nos próximos anos. O Ruanda vai para este acordo para tentar acalmar as águas com algumas aspas. Poderá dar-se o caso do M23 reduzir aquilo que têm sido as suas acções combativas no terreno ou deslocar-se para outro local ou hibernar durante durante este período, mas vai reaparecer", explicou Osvaldo Mboco. Durante o período de mediação, Angola levou a cabo a sua diplomacia "pacifista" e tentou assegurar os seus interesses, ou seja, a paz na República Democrática do Congo, com quem partilha uma fronteira de mais de 2.000 quilómetros. No entanto, o Presidente João Lourenço e Paul Kagamé terminam este processo de costas viradas, algo que Mboco pensa ser possível resolver com um novo Presidente em Angola já em 2027. "O Presidente João Lourenço seguiu aquilo que é a matriz pacifista angolana. Se olharmos para a história diplomática de Angola, nós temos vários exemplos de acções de solidariedade e pacificação da própria região, que vai desde o presidente Agostinho Neto ao Presidente Eduardo dos Santos até ao Presidente actual. Fica também aqui demonstrado que Angola é o mediador natural na República Democrática do Congo. O que pode acontecer são dois cenários. É notável que o Presidente João Lourenço e o presidente Kagame, se indispuseram. Agora, o que pode acontecer em Angola é que vai haver eleições em 2027. A mudança do novo presidente pode reaproximar aquilo que pode ser a mediação de Angola. Porque a RDC é extremamente importante para Angola, já que toda e qualquer alteração securitária e política que decorre na RDC tem implicações para Angola. Nós partilhamos uma fronteira de aproximadamente 2511 km de extensão. Pode existir transposição do conflito. Então há interesse de Angola de manter a sua presença e a sua influência no quadro da RDC porque não é simplesmente uma zona da influência de Angola. É um espaço vital para Angola", concluiu o académico.

Várias organizações subscreveram o que chamam de “pacto histórico” da sociedade civil para exigir o regresso à legalidade constitucional na Guiné-Bissau. O pacto foi anunciado na terça-feira, o dia em que a Comissão Nacional de Eleições disse não ter condições para divulgar os resultados das eleições gerais de 23 de Novembro, alegando que as actas eleitorais foram confiscadas por homens armados. O pacto inclui organizações não governamentais, religiosas, sindicatos, partidos políticos, representantes da juventude, dos chefes tradicionais e da diáspora. Sabino Gomes Júnior, presidente do Fórum dos Quadros das coligações API-Cabas Garandi e PAI-Terra Ranka, é um dos signatários e explicou à RFI em que consiste este pacto da sociedade civil. RFI: Quem são os signatários deste pacto e porque dizem que é histórico? Sabino Gomes Júnior: “O pacto é histórico porque é a primeira vez na Guiné-Bissau que estamos a ver todas as ‘mouvances' de forma extrapolada no país a se unirem. Estamos a falar de estudantes, políticos, Liga dos Direitos Humanos, associações académicas, sindicatos, associações de mulheres, associações religiosas, todo o mundo junto para falar de uma só voz, para exigir de uma só voz que a vontade popular deve ser respeitada, que a Guiné-Bissau quer a democracia, o povo quer a democracia, quer saber o resultado dos votos, quer que as pessoas presas injustamente sejam libertadas, querem que as pessoas que estão a ocupar o poder neste momento entreguem o poder aos civis, mas também que mandem parar as milícias de maltratar as pessoas pura e simplesmente. É histórico, é todo o mundo, não é só uma pessoa ou outra. A Ordem dos Advogados também vai assinar o pacto porque é um pacto em movimento, não é um pacto em que as organizações que já assinaram vão ser as únicas que vão assinar o pacto.” Como é que pretendem alcançar esses objetivos perante a força dos militares e perante a inversão da ordem constitucional à força? “A primeira etapa é a união nacional, é unir todas as ‘mouvances'. Isto é o que o pacto social está a representar. A sociedade civil quer unir todas as ‘mouvances' do país. Depois, é sentar e traçar um plano, um plano que vai ser traçado rapidamente para que as próximas etapas, as próximas decisões, sejam tomadas e sejam implementadas em conjunto, que passa forçosamente depois por desencadear actividades e acções que vão ser levadas a cabo, mas de forma conjunta.” No comunicado, vocês dizem querer fazer pressão, nomeadamente junto de organizações como a CEDEAO, mas, por exemplo, a delegação da CEDEAO que esteve em Bissau não se reuniu com nenhuma figura da sociedade civil em Bissau, nem com Fernando Dias, obrigado a estar escondido e que reivindica a vitória nas presidenciais, nem com Domingos Simões Pereira, que continua detido. Além disso, a a delegação foi a Bissau sem os presidentes de Cabo Verde, Senegal, Togo e Serra Leoa. O que é que pode a CEDEAO? “Na verdade, eu penso que o pacto social quer deixar claro que o destino da Guiné-Bissau não depende apenas da CEDEAO. É a sociedade civil, é o povo da Guiné-Bissau a tomar o seu destino em mãos. Agora, claramente que se vai exigir também que as organizações que representam o povo da África Ocidental tomem também as suas responsabilidades e que realmente façam o que devem fazer que é repor a legalidade na Guiné-Bissau, repor a vontade do povo porque o povo já escolheu. Se está nas disposições da CEDEAO tomar medidas para que essas vontades exprimidas claramente nas urnas do povo sejam respeitadas nós vamos exigir que a CEDEAO faça a sua parte, mas o povo guineense não vai ficar só a espera da CEDEAO.” No comunicado, exigem a publicação e o respeito dos resultados oficiais das eleições gerais de 23 de Novembro. Que meios é que a sociedade civil tem para restabelecer a ordem constitucional e exigir os resultados eleitorais quando a CNE diz não ter as actas? “Claramente não vamos ainda, nesta fase, revelar quais são as medidas claras que o pacto social vai tomar porque serão medidas que serão comunicadas de forma colectiva.” O que esperam da CNE, se a CNE disse que não tem as actas? “Isso ficou claro. O povo da Guiné-Bissau sabe claramente qual foi a sua escolha. O povo da Guiné-Bissau não se está a organizar, a sociedade civil não se está a organizar apenas para começar a emitir comunicados. É para depois implementar acções que vão defender a vontade do povo. O povo da Guiné-Bissau sabe qual foi claramente a sua escolha, a CEDEAO também sabe claramente qual foi a escolha do povo, a CNE sabe. Estamos aqui, nesta fase, a organizar-nos. Agora, que fique claro que o pacto social depois vai tomar medidas e, de forma coordenada, é toda a sociedade civil da Guiné-Bissau que vai emitir de forma organizada e unida quais são as medidas que vão ser tomadas. Nós estamos a organizar-nos ainda, mas é claro que o povo da Guiné-Bissau vai defender a sua vontade.” Até agora houve, nomeadamente, jovens que se tentaram mobilizar para manifestar, mas acabaram detidos. Eu queria saber se eles ainda estão detidos e se as pessoas estão dispostas a dar o corpo ao manifesto e a ir para a rua manifestar-se se as manifestações são reprimidas. “Como acabei de dizer, uma coisa é ter apenas um grupo de jovens a manifestar, outra coisa é ter toda a sociedade guineense, incluindo neste pacto social a juventude também está dentro. A juventude já assinou o pacto social ontem [terça-feira], várias associações académicas assinaram o pacto social ontem e ainda estamos a contar com mais associações juvenis que vão ainda integrar o pacto social. Uma das coisas que o pacto social está a exigir e vai exigir é a liberdade, não somente para os presos políticos, mas também para as pessoas que foram presas de forma injusta.” Quantas pessoas estão presas no total? “São vários jovens foram presos, vários políticos também. Está completamente difícil para nós poder dar um número. Claramente uma das acções que vamos tomar é exigir que essas pessoas possam ter assistência médica e que sejam libertos.” A libertação imediata e incondicional de todos os prisioneiros políticos e activistas detidos no contexto pós-eleitoral é uma das exigências do pacto, mas há outras exigências. Quais são? “Claramente nós estamos a dizer libertação imediata e incondicional de todos os presos políticos e activistas no contexto pós-eleitoral; respeito pelos resultados eleitorais e a imediata publicação porque todo o mundo conhece as actas; retorno imediato ao controlo dos civis. Mas também estamos a pedir e a promover um diálogo, queremos que logo depois disso se lance um diálogo nacional verdadeiramente inclusivo e que os guineenses comecem realmente a conversar, que tomemos conta da nossa terra e que paremos de continuar a contar que a solução virá sempre de fora. É claro que também vamos pedir, vamos exigir mesmo, que se faça uma investigação profunda sobre as violações de direitos humanos porque vários jovens foram espancados durante estes dias. Vamos, ao mesmo tempo, organizar-nos para que as acções que o pacto vai tomar sejam transmitidas logo a seguir a esta fase em que estamos a organizar-nos e a fazer assinar ao máximo de entidades possíveis o pacto. Neste momento, a Ordem dos Advogados pediu também que quer fazer parte do pacto, as organizações sindicais já assinaram ontem, as organizações dos direitos humanos, as religiosas também, uma parte da juventude. Vamos continuar com esta fase e, logo a seguir, ainda esta semana, vamos passar por uma próxima fase que é comunicar quais são as acções em conjunto que o pacto social vai tomar.” Como está o ambiente em Bissau e o que é que prevalece: o medo ou a determinação? “Cada um poderá falar por si, mas, do meu lado, julgo que são as duas coisas. Há o medo, sente-se o medo em muitas pessoas, famílias que estão completamente a temer que os filhos não voltem, há os quadros que não conseguem falar por medo... Mas também se sente a determinação. Há, ao mesmo tempo, as duas coisas. Há a determinação de que temos que voltar à ordem constitucional, temos que dialogar na verdade das urnas. Queremos que se promova o diálogo, mas também que se respeite a vontade popular, que é, mais uma vez, o que foi exprimido nas urnas no dia 23 de Novembro. Sente-se também uma vontade clara da própria população de ultrapassar o medo para exigir que as pessoas que estão presas, que foram maltratadas, que ainda estão a sofrer e que precisam de medicamentos, como o Domingos Simões Pereira, o Octávio Lopes, o Roberto Mbesba, ou pessoas que nem sequer estamos a chamar o nome, ou pessoas comuns, que sejam libertos. Não há necessidade de mantê-los na prisão. Não há necessidade nenhuma. Que sejam libertos. Podemos engajar um processo de diálogo nacional, mas que sejam libertos e que se respeite a vontade popular. Então, é este sentimento que está a pairar aqui em Bissau.”

A Comissão Nacional de Eleições da Guiné-Bissau deu uma conferência de imprensa nesta terça-feira, 2 de Dezembro, para anunciar que não tem condições para divulgar os resultados eleitorais das eleições gerais de 23 de Novembro. Armando Correia, sociólogo e professor na Universidade Lusófona da Guiné-Bissau, afirma que a decisão da CNE está a ser "condicionada pelos golpistas que assumiram o poder". A Comissão Nacional de Eleições da Guiné-Bissau deu hoje uma conferência de imprensa onde disse que não tem condições para divulgar os resultados eleitorais das eleições gerais de 23 de Novembro, que deviam ter sido divulgados na semana passada. O que é que aconteceu para a CNE voltar atrás na decisão? No dia 26 de Novembro, a CNE sofreu uma invasão, as instalações foram vandalizadas e agora vêm dizer que não receberam as actas das comissões regionais das eleições, nem da diáspora. Esta situação terá impossibilitado a CNE de divulgar o resultado das eleições. A Comissão Nacional de Eleições pode estar a ser condicionada pelo poder militar? Há um condicionalismo por parte dos golpistas que assumiram o poder, impossibilitando a publicação dos resultados. No entanto, os resultados das actas da Comissão Regional das Eleições já tinham sido postos a circular, e o candidato vencedor, que é o Fernando da Costa, já tinha anunciado os resultados de acordo com os seus delegados. Recordo que não há nenhum impedimento, por parte dos candidatos, em anunciar que é o vencedor, uma vez que não há nenhum elemento jurídico que o impossibilite de o fazer. Agora, quem tem legitimidade oficial e institucional para publicar os resultados oficiais é a Comissão Nacional de Eleições. Mas a CNE afirma que essas actas foram interceptadas… Vão dizer isso porque há um certo condicionalismo. Isto não ficou claro na conferência de imprensa da CNE, mas há aí um condicionalismo por parte do próprio membro da Comissão Nacional de Eleições. Uma delegação da CEDEAO reuniu-se ontem, 1 de Dezembro, com o Alto Comando Militar e com o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Transição, João Bernardo Vieira. A situação político-militar da Guiné-Bissau está dependente das decisões da próxima cimeira da organização, agendada para 14 de Dezembro. A CEDEAO volta a mostrar que não é capaz de dar uma resposta imediata à crise política que se vive na Guiné-Bissau? Apesar de o Protocolo Suplementar de 2001 atribuir à CEDEAO mecanismos claros para a prevenção, gestão e resolução de crises -ncluindo a mediação, a intervenção diplomática precoce e a defesa da boa governação- , na última década a organização tem demonstrado limitações na sua capacidade de responder eficazmente aos conflitos nos Estados-membros. Por isso, persiste uma certa ambiguidade entre o que o protocolo prevê e o que a CEDEAO efectivamente consegue implementar no terreno em matéria de gestão e resolução de conflitos. Mas quando fala de ambiguidade, refere-se a quê, em concreto? À capacidade da organização na resolução dos conflitos. Inicialmente, quatro chefes de Estado -Cabo Verde, Senegal, Togo e Serra Leoa- deviam integrar a delegação da CEDEAO. No entanto, a missão chegou ao país apenas com o Presidente em exercício da organização, o chefe de Estado da Serra Leoa, Julius Maeda. Isto revela também que a CEDEAO está fragilizada? Está totalmente fragilizada. No dia 27 houve uma comunicação a condenar o golpe e um apelo à restauração da normalidade constitucional, com a protecção dos indivíduos que faziam parte, por exemplo, do Governo e também do antigo chefe de Estado, Umaro Sissoco Embaló. Porém, a própria composição da missão da CEDEAO mostra uma certa fragilidade em função daquilo que se vive dentro da própria organização regional, colocando-a num abismo, não só do ponto de vista institucional, mas também da sua incapacidade na resolução dos conflitos que pairam sobre os membros da própria organização. Nós não estamos a falar aqui de uma organização que tem uma legitimidade pequena, mas de uma organização que tem legitimidade. O Presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, decidiu afastar-se da missão de alto nível da CEDEAO, alegando as relações históricas entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau e dizendo que seria mais prudente não integrar a delegação. Não devia ser precisamente o contrário? Devia ser o contrário, porque temos uma relação histórica com Cabo Verde, não só do ponto de vista da luta de libertação nacional, mas também ao nível das ligações que os guineenses -como nação- têm com Cabo Verde. Ao assumir esta posição, o Presidente de Cabo Verde está a escolher uma certa neutralidade, num momento de crise política no país. Cabo Verde ou está ao lado do opressor, ou está ao lado do oprimido. Não deve haver uma certa neutralidade, e parece que é o que está a acontecer com os chefes de Estado da CEDEAO. Considera que, de certa forma, o chefe de Estado de Cabo Verde está a legitimar esta situação? Há aqui uma questão implícita. Por exemplo, está a dizer que não pode participar porque tem uma relação histórica. Há uma certa desconfiança relativamente à influência de participar na resolução dos conflitos, dos problemas internos do país. Há uma certa conivência e solidariedade entre os Presidentes que fazem parte desta organização. Creio que o Presidente de Cabo Verde deveria ter um papel mais activo e intervencionista no que diz respeito aos assuntos que atrelam a população da Guiné-Bissau. Uma missão de mediação da CEDEAO, encarregada de ajudar a resolver uma crise política, não deveria reunir-se com todas as partes envolvidas? Como se explica que a delegação não tenha encontrado nem os líderes da oposição nem representantes da sociedade civil, num momento em que o candidato presidencial Fernando Dias da Costa se encontra refugiado na embaixada da Nigéria e o líder do PAIGC, Domingos Simões Pereira, permanece detido, alegadamente sem se alimentar há 24 horas? Uma missão de mediação para a saída da crise política de um país não devia encontrar-se com todas as partes. Claro que a CEDEAO deveria reunir-se com todas as partes, sobretudo quando se trata de uma missão de mediação de conflitos num contexto em que existem presos políticos, ao contrário do que a própria organização tem afirmado. A sua nota de 27 de Novembro ignora, por exemplo, a detenção de opositores como Domingos Simões Pereira, presidente do PAIGC, que apoiou o candidato Fernando Dias, e de Octávio Lopes, mandatário do PAIGC. Além destes, há ainda outros detidos, incluindo técnicos da própria Comissão Nacional de Eleições. Enquanto cidadãos atentos à realidade política e social da Guiné-Bissau, é evidente que uma missão de mediação não pode, em circunstância alguma, basear as suas decisões unicamente na versão apresentada pelo comando militar. O que se pode esperar, então, da cimeira marcada para o dia 14? Muito pouco, porque, até agora, a CEDEAO dispõe apenas da informação fornecida pelo comando militar e não teve acesso às posições da oposição, do candidato nem da CNE. E como é possível chegar a uma conclusão credível sem ouvir todas as partes directamente envolvidas na crise? O que devem fazer os guineenses? Qualquer iniciativa deve partir dos guineenses e, aí, as organizações internacionais entram para assessorar a nossa luta. Não há nenhuma luta, não há nenhuma democracia que tenha sido construída a partir de fora.

Algumas rádios na Guiné-Bissau estão a retomar as suas emissões, embora sem certos programas onde pode haver críticas à situação actual já que isso pode levar a repressão. O actual contexto na Guiné-Bissau, sob o domínio do Alto Comando Militar, tem levado também a perseguições dos jornalistas nas redes sociais. O regime actualmente em vigor na Guiné-Bissau, com o Alto Comando Militar no poder, interrompeu a ordem constitucional e impediu a livre difusão e circulação de informação por parte dos jornalistas guineenses. As rádios estão, aos poucos a ser restabelecidas no país, mas há receios quanto a uma possível represessão, como explicou Diamantino Lopes, Secretário-Geral do Sindicato dos Jornalistas e Técnicos da Comunicação Social, em entrevista à RFI. "Algumas rádios estão a retomar suas actividades pela informação que estamos tendo, mas no momento que se vive não se pode esperar muito dos jornalistas. O momento é tão complexo que há um sentimento de insegurança e que leva à autocensura. É claro que muitas [rádios] ainda permanecem paradas onde encerraram as suas emissões. A Radio Sol Mansi retomou ontem, mas tudo indica que não pode ir ao fundo do programa. Considerando-se o contexto, qualquer abordagem crítica sobre o contexto, por exemplo, programas de debate, pode levar a uma repressão, considerando o conteúdo que irá ser produzido", explicou o líder sindical. Ao mesmo tempo, muitos jornalistas guineenses estão a ser atacados nas redes sociais e o clima de insegurança leva à auto-censura, segundo Diamantino Lopes. "Pela informação que tivemos, não há nenhum jornalista preso nesse momento. E também não houve casos, por exemplo, de espancamento aos jornalistas. Mas já há ataques psicológicos nas redes sociais. O nosso colega Alison Cabral foi alvo de insultos e acusações por um grupo de perfis falsos que apoiam o regime político no país. Portanto, isto acontece. Isto verifica-se. Este é um outro factor que leva à resignação. As pessoas tentam resguardar-se para não serem alvos de ataques nas redes sociais", explicou. O Sindicato dos Jornalistas e Técnicos da Comunicação Social está em contacto com outros sindicatos internacionais, assim como com organizações como Reportéres Sem Fronteiras, com quem mantêm projectos, com estas organizações a serem informadas sobre a situação dos profissionais de informação na Guiné-Bissau. Diamantino Lopes pede o regresso à ordem constitucional para normalizar a actuação dos jornalistas no país, mas também para a população em geral. "O caminho para que tudo isto se observe é o retorno à ordem constitucional, porque é isto que garante a qualquer cidadão ou a qualquer instituição o normal funcionamento. Portanto, o retorno à ordem constitucional é a saída para que cada um execute com maior segurança as suas atividades profissionais. Não só a imprensa, mas todo o sector profissional e a vida pública em si. Isso é indispensável", concluiu.

Na Guiné-Bissau, os tribunais estão encerrados, com cinco magistrados a serem libertados hoje, assim como o presidente da Comissão Nacional de Eleições e outros membros do seu secretariado. Falta agora conhecer o paradeiro do Procurador-Geral da República que ainda se encontra desaparecido. Na Guiné-Bissau, os cinco magistrados detidos pelo Alto Comando Militar já foram libertados, assim como o presidente da Comissão Nacional de Eleições e os membros do secretariado executivo desta instituição, segundo disse Januário Correia, bastonário da Ordem dos Advogados, em entrevista à RFI. "Pude confirmar que efectivamente já estão livres os colegas magistrados do Ministério Público, os cinco magistrados. E ainda hoje de manhã pude falar com o presidente da CNE. E confirma-se que também já se encontra livre conjuntamente com os seus membros do Secretariado Executivo, então presos, quiçá, até ontem", disse o bastonário. Continua agora por apurar o paradeiro do Procurador-Geral da República, numa altura em que ainda há pessoas detidas pelos militares e os prazos legais para as detenções provisórias já foram altamente ultrapassados, já que os tribunais não estão actualmente a funcionar. "Os serviços estão a funcionar, nomeadamente os bancos, alguns escritórios e uma parte do serviço público. É pena que os tribunais ainda continuam cancelados por uma questão de segurança. Aliás, até esta semana, os magistrados estavam detidos ou sequestrados. Naturalmente não têm condições para pôr a funcionar os tribunais. E, neste momento, ninguém sabe também do paradeiro do Procurador-Geral da República. Tentamos também perguntar ali, acolá. Ninguém sabe dizer. É que isso tem vindo a criar transtornos enorme a nível do funcionamento do serviço público, dos tribunais", indicou. Para o bastonário, esta instabilidade política e a falta de divulgação dos resultados das eleições só vai contribuir para o agravamento dos problemas no país, especialmente em sectores já fragilizados como a justiça. "Faço aqui um vibrante apelo ao Alto Comando Militar, no sentido de não pensarmos no hoje e esquecer o amanhã. Porque na verdade, o que nós estamos a fazer prejudica de certa forma o futuro dos nossos filhos. Trata-se do presente e do futuro dos nossos filhos. Portanto, não faz qualquer sentido. A Guiné-Bissau não pode continuar nesse ciclo de instabilidade que tem sido a causa principal dos atrasos registados no nosso país em todos os sectores, basta pensar na Justiça", concluiu.

Foi nomeado neste sábado, 29 de Novembro, o novo Governo de transição da Guiné-Bissau, liderado por Ilídio Vieira Té, antigo ministro das Finanças do executivo deposto. O analista político guineense Rui Jorge Semedo, denuncia “a encenação golpista” e espera que a missão de alto nível da CEDEAO, que deve chegar ao país em breve, "faça cumprir a legitimidade das urnas". Que comentário lhe merece este novo governo de transição? É a confirmação dessa encenação golpista e que está fortemente ligado com as estratégias do ex-Presidente Umaro Sissoco Embaló para continuar a controlar o poder. A começar pelo primeiro-ministro Ilídio Vieira Té- que foi director de campanha do Sissoco Embaló- e alguns membros desse governo de transição, além de figuras também ligadas ao sector castrense. Portanto, isso na verdade, não é um governo legítimo. Como todos sabem, é um governo imposto que não cumpre com a legitimidade, nem com a vontade saída das urnas. Portanto, eu acho que os guineenses defensores da democracia e dos direitos humanos estão a acompanhar impávidos e serenos, convictos de que a situação será revertida. Obviamente com o esforço dos próprios guineenses, mas também com o apoio da comunidade internacional. Este que esse governo simboliza a encenação em que os guineenses foram colocados desde o dia 26 de Novembro. Um governo sem credibilidade? Sem credibilidade e sem legitimidade. Acabamos de sair do processo eleitoral na votação do dia 23 de Novembro e os guineenses merecem ter um governo que não seja imposto pela vontade das armas, mas sim pela vontade popular. Eu acho que mais tarde ou mais cedo, os guineenses terão essa oportunidade de reverter esta situação vergonhosa e grave. Estamos perante um atentado grave contra a democracia. Como é que vê esta nomeação do João Bernardo Vieira para a pasta dos Negócios Estrangeiros? O João [Bernardo Vieira] sempre suportou as agendas autoritárias do Presidente Sissoco Embaló. Portanto, é um prémio que ganhou e está muito feliz, contente. Porém, é um prémio sem legitimidade. A meu ver, ele acabou por cometer um grande erro da sua vida. Porque sendo um político, formado na área do direito, talvez deveria ser o primeiro a defender a legitimidade democrática. Ele sabe quem ganhou as eleições. mas como o interesse dele, como outras figuras, é chegar sempre ao poder, então o importante é pensar em si e não no bem comum dos guineenses. João Bernardo Vieira, enquanto responsável pela diplomacia, não terá nenhuma influência junto da comunidade internacional. Então, estamos diante de um governo de fachada e a contribuição de João Bernardo Vieira será insignificante, tanto ele como os restantes membros do executivo. Este governo -e as pessoas que ali estão, não tem pernas para andar. CEDEAO adiou para segunda-feira a chegada a Bissau, o que é que se espera desta missão de alto nível? Que faça cumprir a legitimidade das urnas. É o mínimo que se espera. Na verdade, chegámos onde chegámos pela cumplicidade da comunidade internacional. É preciso ser honesto e frontal. Umaro Sissoco Embalá e toda a sua equipa desrespeitarm a Constituição da República da Guiné-Bissau, acabarão com a legitimidade democrática arruinaram o Supremo Tribunal, o Parlamento e o Executivo. Durante todos esses anos, nenhuma governou sem considerar a questão da República. A comunidade internacional, com as suas representações aqui na Guiné-Bissau, nunca fiez nada; particularmente, a CEDEAO. Portanto, chegámos onde chegámos por desleixo da comunidade internacional e agora nós esperamos uma contribuição valiosa, não uma contribuição irresponsável, uma contribuição contundente para poder contornar esta situação. Este novo executivo ou vai continuar a ser comandado por Umaro Sissoco Embaló a partir do Congo Brazzaville, como especula alguma imprensa guineense? A própria classe castrense está a ser comandada por Umaro Sissoco Embaló. Quem deu as ordens para colocar o Domingos Simões Pereira na cadeia? E as outras pessoas? Então, se ele está a comandar os militares, porque não faria o mesmo com o executivo de transição? Outro grande erro da CEDEAO foi preocupar-se com Embaló, mesmo sabendo que foi ele quem fez toda essa encenação, então deveria estar num lugar seguro, onde as suas comunicações iriam ser controladas, mas lhe deixaram-no ir para um país onde também não se respeita o Estado de direito democrático. Então ele está à vontade para fazer e continuar a fazer aquilo que ele tem feito com o povo guineense. A posição do antigo Presidente da Nigéria, Goodluck Jonathan, e a do primeiro-ministro senegalês, Ousmane Sonko, que falaram em encenação de golpe de Estado na Guiné-Bissau, acha que pode mudar o xadrez político? Acho que podem influenciar essas posições. Podem influenciar a percepção da comunidade internacional, relativamente ao que está a acontecer na Guiné-Bissau. Os guineenses gostaram muito da frontalidade e da transparência, mas sobretudo da coragem que estes dois dirigentes tiveram para denunciar o que está a acontecer na Guiné-Bissau. Portanto, esperamos que com estas duas declarações, estes dois posicionamentos, possam ter uma acção mais responsável, mais humana, perante aquilo que está a acontecer neste momento. Aliás, de acordo com a imprensa senegalesa, foram mesmo as palavras do Ousmane Sonko que levaram à saída do país do Umaro Sissoco Embaló…. Também não duvido. Acho que deve ser isso mesmo, porque Sonko, com as suas declarações assumiu, que é um defensor da democracia e dos direitos humanos. Mas que peso tem o Congo Brazzaville? O Congo não e um Estado democrático. Denis Sassou-Nguesso, no poder há mais de duas décadas, é o modelo de Sissoco Embaló. Como também os outros ditadores que se espalham pelo continente africano. Sissoco Embaló revê-se no comportamento dessas pessoas para poder aplicar o mesmo na Guiné-Bissau. E foi o que ele fez durante todo esse tempo. Por isso, talvez o Congo é o melhor refúgio para ele, para continuar a comandar de longe os militares e os políticos e a açambarcar os nossos direitos. Na sua opinião, qual é a solução para o país? A solução é respeitar a vontade das urnas, permitindo que a CNE anuncie os resultados eleitorais. Ficou claro, para todos nós, que o vencedor foi o Fernando Dias da Costa. Deve-se permitir que o Fernando Dias da Costa assuma as suas responsabilidades e contribua para a reorganização e revitalização dos órgãos da soberania. Só assim, os guineenses poderão começar a sentir-se mais seguros e poderão sonhar com um amanhã [melhor]. Acredita que as actas eleitorais continuam intactas, longe das mãos dos militares? Os homens da Comissão Executiva da CNE estão todos sob custódia dos militares, assim como alguns magistrados da Procuradoria-Geral da República que trabalharam no processo de fiscalização do processo eleitoral. Portanto, segundo algumas informações oficiais, os dados estão seguros. Esperemos que assim seja, para que se possa, quando se consiga fazer, reunir todas as condições, para que os resultados possam ser lidos e validados.

A saída de Umaro Sissoco Embaló para Dacar não prova qualquer golpe, defende o analista político Armando Lona, que garante tratar-se de “uma farsa” montada por um Presidente "derrotado nas urnas". Sem ruptura militar real, o coordenador da Frente Popular defende que o país aguarda pelo anúncio dos resultados eleitorais e que o povo guineense “derrubou a ditadura nas urnas”, exigindo agora que a ordem constitucional seja restaurada. O antigo Presidente da Guiné-Bissau, deposto por um grupo de militares chegou, ontem à noite, a Dacar num avião fretado pelo governo senegalês. Nos próximos dias, é esperada em Bissau uma missão de mediação da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), anunciada depois da cimeira de emergência entre os líderes regionais. O analista político guineense e coordenador da Frente Popular, Armando Lona, rejeita a leitura de que esteja em curso um golpe militar, descrevendo a situação como “uma farsa” atribuída a um Presidente “derrotado nas urnas”. Armando Lona começa por contrariar a interpretação de que exista uma crise institucional na Guiné-Bissau: “Nós não temos nenhuma crise. O que estamos a viver é uma farsa provocada por Umaro Sissoco Embaló, candidato derrotado nas eleições de 23 de Novembro”. Para o analista, a instabilidade das últimas semanas resulta de uma estratégia recorrente: “Ele perdeu as eleições. Ciente disso, voltou à sua técnica privilegiada. Ele é especialista na invenção de golpes. Inventou há três semanas um golpe e inventou outro há dois dias.” Segundo Armando Lona, Umaro Sissoco Embaló terá procurado manipular as comissões regionais de eleições e, posteriormente, a Comissão Nacional de Eleições (CNE). “Tentou (…) forjar resultados falsos e, com o fracasso, avançou para esse plano de golpe de Estado”, descreve. Contudo, rejeita que tenha havido qualquer tomada de poder por parte das Forças Armadas: “Como é possível falar em golpe de Estado de um Presidente que tem um exército atrás de si e um contingente de centenas de homens da CEDEAO, como se faz um golpe nesta situação?” Para Armando Lona, a explicação é simples: “Quem o derrotou não foram os militares, mas sim o povo da Guiné-Bissau.” Os membros da CEDEAO estiveram reunidos de emergência, esta quinta-feira ao final do dia, e anunciaram o envio de uma missão de mediação composta pelos presidentes de Serra Leoa, Senegal, Cabo Verde e Togo. Armando Lona reconhece que a organização actua em conformidade com o protocolo, mas acusa-a de falhar sistematicamente no país: “É uma obrigação da CEDEAO, que falhou várias vezes. (…) A força da CEDEAO está no país apenas para proteger o Presidente agora derrotado, Umaro Sissoco Embaló.” E questiona: “Como se pode permitir que chegássemos a este ponto com uma força incapaz de cumprir a sua função?” Apesar das críticas, considera necessária a decisão anunciada pelos líderes regionais: “A posição é clara: retorno à ordem constitucional, retomada do processo eleitoral e anúncio dos resultados da eleição de domingo, cujo vencedor já é conhecido.” Para Armando Lona, tudo depende agora da formalização dos resultados: “As missões de observação internacional têm os resultados. A CNE tem os resultados. Falta apenas anunciá-los para que o Presidente eleito tome posse.” “O povo guineense derrotou a ditadura nas urnas, derrotou o autoritarismo e derrotou o culto de personalidade”, acrescentando que “o povo guineense está disposto a novos sacrifícios para fazer respeitar a sua vontade. Não vamos permitir mais fintas”. Sobre a saída de Umaro Sissoco Embaló para Dacar, Armando Lona não exclui a hipótese de apoio internacional. “É uma suspeição legítima, tendo em conta o papel dúbio da França em relação à Guiné-Bissau”, observa, recordando que não seria a primeira vez que Paris actuaria nos bastidores de crises africanas. No entanto, distingue a França do Senegal: “Do Senegal não acredito. O Senegal tem uma opinião pública esclarecida (…) e uma consciência africana que não permite jogos obscuros.” Armando Lona rejeita a narrativa de perseguição apresentada pelo Presidente deposto: “O que ele fez foi para procurar proteção. Não teve coragem de abandonar o país reconhecendo a derrota e criou um quadro de vitimização, quando, na verdade, se tratou de um golpe fabricado por ele.” E recorda que tais episódios seriam recorrentes: “Toda a gente sabe. Não é a primeira vez; será a quinta ou sexta vez que inventa golpes.” Para o analista, a comunidade internacional tem agora um papel determinante: “Saudamos o posicionamento firme das missões de observação internacional, da CPLP, da União Africana e da CEDEAO.” Segundo o coordenador da Frente Popular, existe um alinhamento claro: “Encorajamos essas organizações a prosseguir para que sejam criadas condições para o anúncio dos resultados e a tomada de posse do novo Presidente.” Quanto à missão da CEDEAO que deve chegar a Bissau nos próximos dias, Armando Lona considera adequada a composição: “As pessoas envolvidas conhecem profundamente o país. Não são estranhas à Guiné-Bissau", reforçando que o país aguarda apenas o passo final: “Houve uma eleição transparente. Um candidato venceu. Resta criar condições para que a entidade competente anuncie os resultados.”

Após mais de 24 horas de instabilidade na Guiné-Bissau com a instalação de um Presidente militar, observadores e activistas guineenses defendem que o alegado golpe de Estado se trata de uma encenação. Sumaila Djaló, activista guineense, defende que a vitória nas eleições foi de Fernando Dias e que os militares devem agora "garantir que as eleições sejam concluídas" e que os resultados sejam divulgados. Em Bissau e nas comunidades guineenses espalhadas pelo mundo, crescem as acusações de encenação quanto ao alegado golpe de Estado a decorrer na Guiné-Bissau. Sabe-se que Domingos Simões Pereira, assim como mais de uma dezena de políticos, magistrados e activistas, estão detidos, enquanto que Umaro Sissoco Embaló continua a ligar para meios de comunicação internacionais, dizendo ter sido deposto. Em entrevista RFI, o activista guineense Sumaila Djaló descreveu o que se passou na Guiné-Bissau na quarta feira e assegura que, através das actas de votação entretanto divulgadas, a vitória nas eleições presidenciais é de Fernando Dias. "As projecções apontavam para uma maioria absoluta clara do Fernando Dias da Costa na primeira volta e a derrota de Umaro Sissoco Embaló. [...] A única coisa que faltava era a proclamação oficial, que é só um expediente de formalizar o que todos já sabíamos, todos as candidaturas sabiam [...] Começamos a tomar conta desta última encenação a partir de informações de que tiros estavam a ser ouvidos nas imediações do Palácio da Presidência. Mas acontece que colegas de Bissau, de movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos humanos e liberdades democráticas já tinham informações dos setores subalternos, das Forças Armadas de que havia uma orquestração nesse sentido. Portanto, estamos perante uma clara encenação que, mais uma vez, procura inviabilizar o processo eleitoral e, acto subsequente, ter formas de prender arbitrariamente e colocar nas prisões, como agora está a acontecer, os principais adversários", detalhou o investigador. Tendo em conta a recente designação do general Horta Inta-A e controlo total do país por parte dos militares, Sumaila Djaló pede que estes autorizem a divulgação dos resultados eleitorais e que restabeleçam a ordem constitucional no país. "As chefias militares estão a cumprir as ordens do seu chefe nos últimos seis anos. Mas a Constituição da República da Guiné-Bissau atribui às Forças Armadas a defesa da integridade territorial e, quando necessário, a defesa da constitucionalidade. [...] Isso deve passar por garantir que as eleições sejam concluídas porque estavam praticamente encerradas e permitir que a Comissão Nacional de Eleições proclame o vencedor das presidenciais e os resultados das legislativas em segurança e de acordo com os resultados apurados nas mesas de voto", defendeu o activista. Organizações internacionais e parceiros da Guiné-Bissau têm estado a dizer que olham com preocupação para a situação, mas ainda não foram exigidas ao novo regime militar instalado no país quaisquer garantias nem prazos para assegurar a continuidade do Estado de Direito. "As entidades chamadas organizações da comunidade internacional, sobretudo no caso da Guiné-Bissau, a CEDEAO, que até tem a delegação das Nações Unidas e União Africana para acompanhar os Estados membros, mas a própria União Africana, as Nações Unidas e a própria União Europeia ou a CPLP, são entidades guiadas pelo domínio dos Estados membros mais fortes no cenário geopolítico. A CEDEAO depende de Estados, sobretudo com ligações ao velho aparelho franco-africano, a CPLP é claramente dominada por Estado português. E a própria União Africana não é isenta dessa dominação dos Estados mais fortes em África. E esses Estados determinam o que é o posicionamento nestas circunstâncias. [...] Essas disputas internas nas próprias instituições determinadas pelos Estados mais fortes, interessados em capturar os Estados mais fragilizados por interesses económicos ou por interesses geopolíticos estratégicos, acabam por esvaziar as possibilidades de intervenção destes espaços no sentido de garantir o que, no papel, dizem defender, ou seja, os valores da democracia, os valores da liberdade, os valores dos direitos humanos, que são valores sempre postos em causa nestes seis anos na Guiné-Bissau", concluiu.

Em Moçambique, milhares de pessoas refugiaram-se no distrito de Eráti, em Nampula, no norte do país, depois de ataques registados entre 10 e 17 de Novembro no distrito de Memba. Entre os deslocados, há relato de mortes devido à fome. O activista social e dos direitos humanos Gamito dos Santos, director da Associação Kóxukhuru, em Nampula, admite que “a situação de fome é uma realidade” e alerta que “o governo não está a mostrar capacidade suficiente para dar resposta à situação humanitária”. A Associação Kóxukhuru, em Nampula, lançou uma campanha de angariação de donativos para ajudar os milhares de deslocados dos mais recentes ataques terroristas em Memba. No terreno, “a fome é uma realidade”, explica Gamito dos Santos, director da associação, que fala em cerca de 70.000 pessoas a necessitarem de ajuda urgente. O activista também alerta que é necessária a abertura de um centro de deslocados na cidade de Nampula, para além dos existentes em Eráti e Namialo. Gamito dos Santos avisa, ainda, que “não é seguro voltar” ao distrito de Memba. RFI: A Associação Kóxukhuru lançou uma campanha para angariar donativos. Quer falar-nos da iniciativa? Gamito dos Santos, director da Associação KÓXUKHURU: “Estamos envolvidos nessa situação de ajuda humanitária para os deslocados de Memba e Eráti e estamos a trabalhar na mobilização de recursos, sejam eles financeiros, como em géneros alimentícios ou mesmo em vestuário, para apoiar os deslocados que estão neste momento a necessitar de todo o tipo de apoio por causa dessa situação de terrorismo que assola ao distrito de Memba”. Como é que está a situação? Há muitos relatos de fome no terreno... “A situação nos dois distritos - estou a falar de Memba e Eráti - a situação de fome é uma realidade, como é notório, porque esta situação do terrorismo chegou de uma forma desprevenida, em que a população não estava preparada para encarar esta situação. E nós estamos a falar de um período em que a maior parte daquela população pratica a agricultura e este é o período propício, em Nampula, para começar a limpeza dos campos, para fazer a sementeira nos próximos dias, que poderá chover assim que puder. É nesta senda que a fome é uma realidade naquele território e naquela situação porque a população não tem outra fonte de sobrevivência senão a agricultura e, em Memba, um pouco de pesca. Então, deslocando-se de Memba para Eráti, uma vez que eles praticam a pesca e a agricultura, são forçados a deixar todas as actividades, todos os seus bens, todos os seus pertences, para procurar refúgio ou algum lugar que lhes possa conceder alguma segurança. Quando chegam naquele lugar, o número de deslocados é muito maior, tanto que o governo não está, neste presente momento, a mostrar capacidade suficiente para dar resposta à situação de apoio humanitário naqueles locais.” Estamos a falar de quantos deslocados e quantas pessoas que poderão estar sujeitas a esta situação de fome? “Neste momento, no centro de deslocados de Eráti, estamos a falar de cerca de 58.000 pessoas, segundo os dados que recolhemos no terreno, assim como em parceria com algumas organizações não governamentais, estamos todos no terreno para fazer todo levantamento possível. No centro de deslocados de Namialo, estão lá cerca de 10.000 pessoas também, fica a cerca de 80 quilómetros da cidade de Nampula. Então, totalizando, estamos a falar de 68.000 deslocados que neste presente momento estão a necessitar de apoio de todos os quadrantes.” Mas não há três centros no distrito de Eráti? “Sim. São 58.000 pessoas em todos os três centros de Eráti. Em Namialo, no distrito de Meconta, há três centros também, onde estão 10.000 pessoas. Em Nampula, não temos um centro oficial, mas as pessoas continuam a chegar e algumas estão sendo alojadas com os seus familiares e os outros estão à deriva porque não têm onde parar, porque estão à procura de refúgio e acabam procurando por pessoas conhecidas para serem alojados. Neste presente momento, nós como sociedade civil, estamos com contactos permanentes com as autoridades para que se crie também um centro permanente em Nampula cidade.” Ou seja, está a pedir às autoridades para criar este centro porque há pessoas na rua? “Exactamente. Há pessoas na rua. Há pessoas que estão a viver com pessoas desconhecidas e isto pode provocar também algum caos nos próximos dias. Então, estamos mesmo a exortar as autoridades governamentais para que criem um centro aberto em Nampula para alojar as pessoas que estão em Nampula e que não têm onde ficar.” Voltando à questão da fome e da crise alimentar, há notícias de que há pessoas, nomeadamente crianças, a morrer. Quer falar-me sobre isso? “Sim. Neste presente momento, nós não temos dados confirmados, mas há relatos, sim. Há crianças a morrer por causa da fome. Para além da questão da fome, há pessoas que estão a morrer por cansaço porque, de Memba a Eráti, as pessoas estão a deslocar-se a pé, por longas distâncias. E neste recurso de deslocamento a pé e por causa de cansaço, algumas pessoas acabam lançando os seus filhos nas matas. Nós temos algumas pessoas que estão a relatar isto, que nas matas há crianças perdidas, há famílias perdidas, sobretudo também pessoas portadoras de deficiência que não conseguem alcançar os centros de acolhimento.” O que é que o Governo está a fazer para tentar resolver a situação? “Neste presente momento, a única acção do governo que é notória aqui é a campanha que foi lançada pelo governador da província de Nampula de angariação de alimentos que, até ontem, a Assembleia da República abriu as portas e doou cerca de 60 toneladas de alimentos. O próprio governador já mobilizou os empresários locais para doarem alguns alimentos. Esta é a única actividade que nós estamos a notar ao nível do governo de Nampula. O Governo anunciou ontem a retoma da população no distrito de Memba porque, segundo ele, as condições estão criadas para as populações voltarem aos seus lugares de proveniência, mas nós, como sociedade civil, não concordaríamos tanto com esse discurso, porque nós precisamos de ter muita cautela por causa da situação de tensão que se vive no distrito de Memba porque acreditamos que existem focos de terroristas naquele local.” Ou seja, não é seguro voltar? “Exactamente, não é seguro voltar. Nós não aconselharíamos às autoridades de avançarem com essa incursão de devolver a população aos locais de proveniência e intensificaríamos a angariação de donativos para apoiar estas famílias para que elas possam ficar mais tranquilas nos lugares onde estão, enquanto se preparam os lugares da sua proveniência para que retornem lá com a maior tranquilidade e a maior segurança possível.” Em Julho, foi noticiado que 46,7% das crianças em Nampula já sofriam de desnutrição crónica. A situação então piorou ainda mais? “De certa forma, isso é verdade, isso é uma realidade. Nós vamos ter Nampula a aumentar a situação da desnutrição crónica por este deslocamento de um lado para o outro. Tanto que o governador de Nampula já havia lançado uma campanha de redução da situação de desnutrição crónica e acreditamos que, com esta situação do terrorismo, vamos elevar o índice de desnutrição crónica, seja em crianças, seja em adolescentes, porque estamos a ver pessoas que se vão alimentar de qualquer maneira só com o intuito de manter apenas o estômago, não vão escolher o que elas podem comer, vão ser forçadas a comer tudo o que por algum momento lhes vier à frente. Então, estamos a dizer que Nampula é a maior província com desnutrição crónica e vamos ter esta situação cada vez mais a agravar-se.” Também houve relatos de refugiados e requerentes de asilo estrangeiros que estavam abrigados no centro de Maratane, em Nampula, que além de denunciarem fome e redução de assistência por parte do Programa Alimentar Mundial, por exemplo, também denunciaram uma suposta discriminação por parte dos moçambicanos e a proibição do uso da terra para a agricultura de subsistência. Confirma? “Sim, confirmo. Tanto que eu trabalhei no centro de refugiados de Maratane. Fui para lá para viver 'in loco' nessa altura que havia estas situações de relatos em que os refugiados reclamavam desta situação de terras que estavam sendo proibidas, porque o governo cedia as terras sem conversar efectivamente com os nativos. Sabemos que em Moçambique, a lei defende que a terra é propriedade privada do Estado, mas nem por isso o Estado tem que atribuir sem conversar efectivamente com os nativos. E o que acontecia é que entrava em colisão entre os refugiados e os nativos donos, herdeiros da terra e aí os refugiados eram forçados a abandonar as terras. Daí que havia esta confusão. Trabalhámos lá, confirmámos esse incidente e estamos a trabalhar com a Direção Provincial de Terra e Ambiente para ver se é possível haver uma negociação entre as comunidades e os refugiados.” Ou seja, a situação ainda não está resolvida? “Não está resolvida, não.” Como é que vê os próximos tempos? O que é mais urgente fazer? “O mais urgente - olhando na perspectiva do terrorismo - o mais urgente, neste momento, é colocar o país seguro. Não é só Nampula, ns estamos a falar de todo o país em que, nos últimos momentos, está-se tornar uma realidade a questão da insegurança. Não estamos a falar só do terrorismo, mesmo a criminalidade está semeada em Moçambique de tal forma que já é perigoso investir em Moçambique. Tanto que a maior parte dos investidores estão a fechar as suas empresas, voltando para seus países de origem. Então, a prioridade das prioridades, é que o governo tem que trabalhar na questão de segurança para garantir que os investidores voltem a investir em Moçambique. Segundo, se garantir a segurança, aí vamos colocar também a população a voltar às suas providências e aí elas vão poder tomar as suas actividades normais, estamos a falar na questão da agricultura, para que eles intensifiquem a produção e produtividade. Nesta produção e produtividade, o governo tem que incentivar, tem que investir, tem que financiar, patrocinar a população para que melhore a forma de praticar a agricultura. Ao invés de praticarmos de cabo curto, que coloque uma agricultura mecanizada para que essa população melhore a prática da agricultura.”

Termina esta terça-feira, 25 de Novembro, em Luanda, a 7.ª Cimeira União Africana–União Europeia, sob o lema “Promover a Paz e a Prosperidade através do Multilateralismo Eficaz”. Sérgio Calundungo, Coordenador do Observatório Político e Social de Angola, afirma que esta reunião de alto nível “é o palco ideal para se fazer um reset, dado o seu simbolismo pós-colonial, e criar uma parceria mais justa e equilibrada”. A cimeira de Luanda marca os 25 anos da parceria estratégica União Europeia–União Africana. Que balanço se pode fazer desta parceria? Devia haver o reconhecimento de que o modelo anterior, muito assente na ajuda dos países da União Europeia África, está esgotada do ponto de vista moral e político. Acredito que a cimeira de Luanda é o palco ideal para se fazer um reset, dado o seu simbolismo pós-colonial. Um reset para uma parceria mais justa, mais equilibrada? Sim. Eu acho que o sucesso desta cimeira, ao contrário do que se fazia anteriormente, já não se mede pelo volume de fundos prometidos, mas pela demonstração de que há uma clara mudança de mentalidade. Ou seja, há uma predisposição do lado da União Europeia para abordar a relação não mais como aquele projecto de caridade, como o grande doador, mas como um investimento estratégico, num parceiro que é fundamental para os desafios globais. Estamos a falar da segurança climática, do problema das migrações e da inovação digital. Há aqui uma clara tendência de mudança que deve evoluir de um instrumento de influência para um mecanismo de corresponsabilidade, porque muitas vezes a ajuda que era prestada a esses países era vista sobretudo como um instrumento de influência. E aí poderá estar o ponto de viragem. Esta reunião acontece numa altura em que a União Europeia tenta impor-se face a concorrentes como a China, a Rússia e outros países. Exactamente. Eu creio que deve haver um novo paradigma. Em vez de a União Europeia chegar com soluções ou com a sua agenda de interesses, a cimeira deve lançar bases para o diálogo permanente sobre temas específicos: transições energéticas; quais são os interesses dos países africanos? Quais são os interesses da União Europeia para haver uma transição energética justa? Criação de emprego jovem, governação em termos de assuntos globais. Penso que europeus e africanos, independentemente de depois virem os asiáticos, os norte-americanos ou outros povos, deviam estar nesta fase a desenhar juntos políticas e investimentos cujo objectivo final é uma parceria perceptível e benéfica para cidadãos comuns que estão em Luanda, em Paris, em Lisboa. Que as pessoas pensem que, desta parceria, os cidadãos dos diferentes Estados europeus e africanos sintam melhorias concretas. No centro da agenda está o mecanismo Global Gateway. Este mecanismo poderá contribuir para uma parceria mais justa? A expectativa é que este mecanismo global signifique também uma mudança não só de narrativa, mas sobretudo de mentalidade na interacção entre os povos. Mas, por enquanto, por mais queiramos ser optimistas, a prudência ensina-nos a dizer: “Está lançada uma base. Vamos ver como é que isto se materializa”. A presidente da Comissão Europeia afirmou que a economia global está mais politizada do que nunca, com tarifas e barreiras comerciais utilizadas de forma agressiva. Ursula von der Leyen admitiu que, face a este cenário, a resposta está numa parceria mais forte entre o continente africano e a Europa. O ponto de partida é o comércio. Acredita que esta é a melhor solução para os dois continentes? O comércio foi sempre o grande mote que impulsionou a interacção entre os povos. Quando os navegadores europeus se lançaram pelos mares e tiveram contacto com outros povos, foi exactamente o comércio a mola impulsionadora. Agora é urgente um outro tipo de comércio que assente em vantagens mútuas, dos vários países. Um comércio feito com corresponsabilidade de ambos os povos e assente noutras bases. É preciso que o continente africano também ganhe com este comércio? Eu acredito que há aqui elementos que têm de ser tidos em conta. O primeiro é que esta prosperidade gerada pelo comércio não foi partilhada historicamente - e esta é a grande queixa dos países africanos, ainda que também haja responsabilidades próprias. Não podemos culpar apenas os outros povos. A prosperidade rendeu para alguns povos e para algumas pessoas de ambos os lados; não foi é justamente partilhada. Portanto, a prosperidade partilhada, a responsabilidade com as questões ambientais e sociais inerentes ao comércio e aos projectos é essencial. Ou temos a capacidade de transformar o peso histórico das relações comerciais, que teve muitas vezes um peso negativo, ou não avançamos. É preciso uma parceria comercial entre entes verdadeiramente iguais - e isto nem sempre foi assim. A grande queixa de África é precisamente essa. Reconhecer as mais-valias do continente em termos de recursos minerais, energias renováveis e até também o seu papel nas questões de segurança. É isso a que se refere? Exactamente. É importante incluir abordagens como a capacitação humana. Os nossos recursos naturais são importantes, mas mais importantes ainda são os africanos, as pessoas, e as pessoas contam. É importante trazer ao debate a sustentabilidade, a igualdade de género. Mais do que recursos minerais, mais do que recursos naturais, importa considerar a implicação da exploração desses recursos na sustentabilidade. Que cada negócio com África tenha em conta, no mínimo, três elementos: se é economicamente viável, se é socialmente justo e se é ambientalmente sustentável. A questão migratória está também no centro desta cimeira. O que se pode esperar da política migratória da União Europeia para com o continente africano? A política migratória é incontornável. Há uma crise do paradigma da política migratória europeia. África está num impasse porque a migração foi sempre tratada como uma questão de segurança e controlo, e não como uma questão de desenvolvimento humano, de oportunidades. A nível da União Europeia, sobretudo na ala mais conservadora, o tema é movido pelo pânico político interno. Isto não é apenas uma questão de segurança e controlo de fronteiras; é uma questão de desenvolvimento humano e de oportunidades para os africanos. Há africanos retirados das condições básicas no seu próprio território, o que os obriga a migrar. E era importante deixarmos de olhar para isto com hipocrisia. Temos de debater as causas profundas. Que levam os africanos a deixar o país? Sim. As guerras em África têm uma dimensão internacional muito grande, com vários tipos de interesses. Muitas vezes podem não ser muitos Estados, mas há instituições e empresas ligadas à União Europeia com interesses… Ganham com a instabilidade no continente? Exactamente. Veja o que acontece na RDC, a exploração do Congo. Eu acredito que os países têm de olhar para isto sem grandes complexos e apontar as causas. E dar as respostas certas? Dar as respostas certas, sim. Acho que é isso. A cimeira é também uma oportunidade para se falar desses aspectos. O chefe de Estado de Angola, que lidera a presidência rotativa da União Africana, apelou a mecanismos de reestruturação da dívida mais justos e a uma reforma da arquitectura financeira mundial, dando mais peso aos países africanos nas instituições financeiras internacionais. O apelo de João Lourenço será levado em conta? Eu acredito que o Presidente esteve muito assertivo e corporiza muito do que várias vozes africanas têm defendido. E, antes de falar da reforma da arquitectura financeira internacional, fala-se já da reforma dos grandes sistemas - como o sistema das Nações Unidas. Não faz sentido termos um sistema montado desde 1945 ou 1947 pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial. A União Europeia tem vários países membros do Conselho de Segurança. Sem hipocrisias, poderia ser a primeira a dar o empurrão para que essa reforma ocorra. A segunda reforma necessária é claramente a do sistema financeiro internacional. Os africanos já perceberam que aquilo que recebem, como ajuda ou doação, é muitas vezes inferior ao que sai dos seus países, por vezes de forma ilícita. Há uma fuga enorme de capitais. Há um sistema internacional que, por vezes de forma ilegal, facilita isso. É uma hemorragia de recursos financeiros do nosso continente. Faz sentido, portanto, repensar. E há ainda a questão da Ajuda Internacional ao Desenvolvimento. Eu acho que o Presidente da República de Angola assume aqui um posicionamento que tem sido defendido por muitas vozes em África e também, embora minoritárias, na Europa. Ou seja, que seja reconhecido o peso do continente africano? Que seja reconhecido o peso e que seja reconhecida a necessidade de uma nova arquitectura financeira. No fim destas cimeiras fazem-se grandes promessas, renova-se a esperança e o compromisso. Mas, com este sistema financeiro, não chegamos lá. Há que o renovar. O sistema financeiro é um instrumento fundamental para materializar aquilo a que nos comprometemos neste tipo de cimeiras. A FLEC-FAC instou a União Europeia e a União Africana a tomarem medidas práticas para garantir o processo de descolonização de Cabinda, permitindo ao povo de Cabinda exercer o direito à autodeterminação. Acha que esta questão estará em cima da mesa? Tenho muitas dúvidas de que esta seja uma questão que estará em cima da mesa, até porque imagino que Angola, nesta cimeira, está reunida entre pares e, até onde sei, todos os países reconhecem o território angolano como uno e indivisível. Portanto, não vejo como poderá ser acolhida. Entendo que, para a FLEC, é sempre uma boa oportunidade para lançar ao público a sua reivindicação histórica. Mas não acredito que os líderes presentes nesta cimeira dediquem tempo a discutir isso, até porque este é um tema tabu e muitos entenderiam esta discussão como ingerência em assuntos internos do nosso país.

O dia de voto na Guiné-Bissau decorreu num clima de calma relativa, apesar dos múltiplos relatos de irregularidades. Alguns eleitores queixam-se de ter "desaparecido" das listas eleitorais ou de terem visto o seu local de voto alterado. Os resultados oficiais ainda não foram divulgados pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), que diz fazê-lo na quinta-feira, 27 de Novembro. O dia de votação decorreu sem incidentes relevantes. A CNE, em conferência de imprensa este domingo à noite, afirmou que o processo de votação tinha decorrido "sem irregularidades relevantes". No entanto, circulam denúncias de irregularidades, intimidações e tentativas de detenção de quadros políticos. A missão de observação da sociedade civil foi impedida de estar no terreno. Analisamos o decorrer do dia de votação com o investigador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), de Bissau, Mamadu Jao. RFI: Como analisa o decorrer do dia da votação de ontem? Mamadu Jao: Acho que foi tranquilo no geral. A votação começou às 07h00 e terminou às 17h00. Havia muita gente nas mesas de voto já antes das 07h00. Porque houve uma participação quase jamais vista nas eleições da Guiné-Bissau. Há dados? Sim, há dados preliminares que apontam para cerca de 68%, mas ainda não são oficiais. Houve participação, houve tranquilidade e não houve sobressaltos que comprometessem o processo. Podemos considerar o processo, até aqui, muito positivo. A Comissão Nacional de Eleições (CNE) disse que não houve irregularidades relevantes, apesar de relatos de problemas, como pessoas que não encontraram o seu nome nas listas. O que pensa disso? Na minha zona não constatei isso. Fui votar ao meio-dia, sem problemas. Mas se há motivos para reclamação, as pessoas têm direito de reclamar, e as reclamações devem ser atendidas. Temos pouca informação sobre como decorreu o processo. Podemos concluir isso? Não. Houve observadores credenciados que puderam circular. É preciso ouvir estas entidades independentes que estiveram no terreno. As missões da CPLP, CEDEAO e União Africana darão os primeiros resultados apenas na terça-feira, em princípio. Este ano não há missão da União Europeia. Já os observadores da sociedade civil tiveram as acreditações retiradas. Trata-se de uma observação parcial? As regras democráticas são regidas por normas. É preciso ver se a lei permite que a sociedade civil faça observação eleitoral. O próprio presidente da sociedade civil disse: não foram aceites porque não estavam cobertos pela lei. Mas até agora houve sempre missões da sociedade civil? É preciso ver a lei. Não posso afirmar exactamente o que ela diz sobre observação nacional. Há relatos de ameaças contra membros da coligação PAI-Terra Ranka. Como interpreta isto? Ouvi isso pela rádio. É preciso saber porquê. Nenhum cidadão deve ser perseguido sem motivo. A oposição é um direito. Se for perseguir só por perseguir, condeno. O Presidente Umaro Sissoco Embaló foi visto em comícios rodeado de militares com distintivos de apoio. O que pensa disso? A segurança é crucial, mas isso não dá direito aos militares de exibirem símbolos de apoio político. Que mensagem quer deixar? A Guiné-Bissau precisa de tranquilidade. A CNE é a única entidade autorizada a publicar resultados. As pessoas devem aguardar com calma e aceitar resultados justos e transparentes para o bem do país.

Na Guiné-Bissau, a campanha eleitoral tem decorrido com comícios dentro e fora da capital, muitos discursos e algumas tensões políticas. A sociedade civil denunciou declarações de teor divisionista, incluindo referências étnicas. Temas bem conhecidos por Magda Correia, porta-voz do Conselho de Mulheres Mediadoras, organização que promove o diálogo político e, em parceria com a Rede das Mulheres Guineenses, ajuda a mediar conflitos comunitários nas aldeias. Faltam poucos dias para as eleições gerais na Guiné-Bissau, que se realizam num contexto inédito marcado pela exclusão de partidos e candidatos, entre os quais o PAIGC e o seu líder, Domingos Simões Pereira. A campanha eleitoral tem sido caracterizada por comícios dentro e fora de Bissau, muitos discursos e algumas querelas políticas. A sociedade civil denunciou, por exemplo, algumas afirmações divisionistas, com referências de carácter étnico. Estes são temas que Magda Correia conhece bem — ela é porta-voz do Conselho de Mulheres Mediadoras da Guiné-Bissau, uma estrutura que apoia o diálogo entre responsáveis políticos e que, em colaboração com a Rede das Mulheres Guineenses, contribui para a mediação de conflitos comunitários nas tabancas, termo utilizado para designar as aldeias. É sobre estas questões que nos fala Magda Correia.

A campanha eleitoral na Guiné-Bissau está a chegar ao fim. Os candidatos à presidência têm multiplicado apelos à neutralidade das Forças Armadas e a sociedade civil exige união nacional e menos discursos de ódio com referências étnicas. Nas ruas, nos táxis e locais públicos as conversas giram à volta destas eleições. O presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos Bubacar Turé esboça as necessidades urgentes dos cidadãos guineenses. As ruas e fachadas de Bissau cobriram-se de cartazes eleitorais, nas ruas, nos táxis e locais públicos as conversas giram à volta destas eleições, com um duelo a captar todas as atenções, Umaro Sissoco Embaló contra Fernando Dias. Os candidatos à presidência têm multiplicado apelos à neutralidade das Forças Armadas e a sociedade civil exige união nacional e menos discursos de ódio com referências étnicas. Um acontecimento recente tem sido muito evocado por cá e chocou a opinião pública: trata-se da reunião que o chefe de Estado Maior das Forças Armadas Biague Na Ntan convocou com os anciões balantas, em Cuméré, perto de Bissau. O objectivo: proceder às alegadas confissões dos militares que alegadamente protagonizaram uma tentativa de golpe de estado na véspera desta campanha eleitoral, também eles de etnia balanta. Os militares foram tirados das suas celas para o efeito. Uma encenação que o presidente da Liga guineense dos Direitos Humanos diz ser “humilhante” e “inaceitável”. Falamos destes temas na Casa dos Direitos de Bissau, com Bubacar Turé, que esboça ainda as necessidades urgentes dos cidadãos guineenses.

Foi apresentada, esta segunda-feira, 17 de Novembro, uma queixa-crime contra a multinacional francesa TotalEnergies, junto do Ministério Público francês. A queixa refere factos de “cumplicidade em crimes de guerra, tortura e desaparecimentos forçados” em Moçambique e foi apresentada pela organização não-governamental Centro Europeu para os Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR). Esta é a segunda ação judicial, em França, contra a operação moçambicana da Total em 2025. O novo processo, segundo a ong, refere-se a factos ocorridos entre Junho e Setembro de 2021, quando dezenas de homens, que fugiam com as suas famílias da milícia Al-Shabab, foram sequestrados e mantidos em contentores metálicos à entrada do complexo da TotalEnergies, na península de Afungi, em Cabo Delgado. Aí, permaneceram famintos, espancados e torturados, segundo testemunhos corroborados por vídeos e imagens de satélite. A segurança do local estava a cargo da Joint Task Force (JTF), uma unidade militar criada através de um acordo entre Moçambique e o gigante francês. Esses soldados, sob o pretexto da missão de protecção, cometeram actos de violência e barbárie. Na sequência dos acontecimentos, a TotalEnergies é acusada de ter “financiado directamente e apoiado materialmente” a unidade militar que teria “detido arbitrariamente em contentores, torturado e matado dezenas de civis”. A empresa fornecia alojamento, alimentação e equipamento à JTF. A ECCHR considera que a TotalEnergies “sabia” que as forças de segurança moçambicanas, incluindo a JTF, eram acusadas de actos violentos contra civis, mesmo antes do “massacres dos contentores” e, por isso, estava consciente dos riscos de lhes delegar a segurança do campo. A cooperação com o exército prolongou-se até Outubro de 2023. Em declarações à RFI, Daniel Ribeiro, coordenador técnico da ong moçambicana Justiça Ambiental, sublinha que existem relatos de violações de direitos humanos no terreno e que o trabalho de documentação destes casos é complexo e arriscado. “As vítimas estão a pedir justiça pelo que sofreram. O nosso papel é apoiar e garantir que jornalistas e instituições credíveis possam levar estes casos para frente”. Sobre esta nova queixa com a gigante francesa, Daniel Ribeiro explicou que “a Total exigiu a Moçambique para melhorar a segurança do seu projecto. O problema é que quando se pede a um país com recursos limitados para melhorar a segurança, isso implica, normalmente, que focam todos os seus poucos recursos para proteger o projecto. A consequência é a falta de protecção das comunidades”. O especialista sublinhou a necessidade de esclarecer o apoio financeiro prestado pela empresa francesa às forças de segurança: “a Total estava a dar apoio financeiro, alojamento, comidas e bónus aos soldados. Nós temos que perceber melhor essa ligação. Ver se essa ligação justifica a cumplicidade com as acções das Forças Armadas”. Além disso, refere que a “Total sabia que as forças de segurança no local estavam a cometer violações de direitos humanos. Regularmente comunicaram isso a certos fornecedores. Temos que perceber se sabiam deste caso específico ou não. São preocupações e informações importantes e preocupantes que é preciso investigar”. Daniel Ribeiro reforça a necessidade de investigação sobre a responsabilidade da TotalEnergies na protecção das comunidades locais e na actuação das forças de segurança em Moçambique. Acrescentando que “esse assunto foi publicado já no ano passado e a Total e o Estado” em vez de admitirem o problema “fugiram da responsabilidade”. Caso contrário teriam “avançado com uma investigação”, conclui. Esta acção judicial surge num momento delicado para a TotalEnergies, após o levantamento do “estado de força maior” no campo de Afungi e antes do relançamento do projecto Mozambique LMG, suspenso durante quatro anos. Até ao momento, a TotalEnergies não comentou esta queixa apresentada pelo Centro Europeu para os Direitos Constitucionais e Humanos. .

A Guiné-Bissau vai a eleições num contexto de crescimento económico, de cerca de 4% do PIB, mas em que mais de metade da população vive abaixo do limiar de pobreza, com menos de três dólares por dia, de acordo com o Banco Mundial. A instabilidade política recorrente, com três alegadas tentativas de golpes de Estado no último mandato presidencial dificultam a atracção de investimentos estrangeiros e o desenvolvimento económico do país. Um país muito dependente da exportação de castanha de cajú, mas que conta com recursos naturais inexplorados. Como alavancar a economia do país? As promessas eleitorais que o economista José Nico, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas de Bissau (INEP) destaca prendem-se com a diversificação de práticas agrícolas. A Guiné-Bissau tem uma monocultura, a economia é muito dependente da exportação da castanha de cajú. Num país em que mais de metade da população depende do sector agricola, “seria necessário diversificar a agricultura”. Mas existe outra solução, aponta José Nico: transformar localmente a castanha de cajú. “Uma percentagem muito fraca da transformação da castanha de caju é feita na Guiné-Bissau, grande parte desta actividade é também exportada e feita no estrangeiro. Se um país tivesse condições de transformação local, não haveria tanto desemprego”. Sector da pesca é marginalizado Outro sector de importância para a economia guineense: o sector da pesca. A Guiné-Bissau tem grandes recursos haliêuticos, mas pouco explorados. A associação nacional de pescadores tem denunciado acordos passados com o Senegal, à margem do Parlamento, que trazem grandes desvantagens para os pescadores guineenses. Cerca de 90% do peixe pescado em águas guineenses é desembarcado em Dacar, por falta de um porto industrial e infrastruturas na Guiné-Bissau. Ainda de acordo com a associção de pescadores guineenses, o sector da pesca poderia render milhões de euros ao Estado anualmente. Porque razão tem sido este sector marginalizado? O economista José Nico diz que “não existem condições favoráveis”, o sector privado é “débil” na Guiné-Bissau, o que não atrai investimentos estrangeiros. A instabilidade política (Umaro Sissoco Embaló é apenas o segundo presidente a terminar o seu mandato) não permite que haja mudança e desenvolvimento do sector. Projecto de construção do Porto do Biomba representa “explosão” de oportunidades Mas o projecto de construção do porto comercial do Biombo - um dos grandes projectos de infrastruturas implementados por Umaro Sissoco Embaló - representa uma “explosão de oportunidades económicas para o país”. Este porto poderia oferecer condições de desembarque de navios de grande porte. Permitindo, consequentemente, o estabelecimento de ligações comerciais com países da região sem acesso a oceanos, como o Mali ou o Burkina Faso. “É uma das melhores decisões tomadas na Guiné-Bissau nos últimos cinco anos”, considera José Nico. O lançamento do projecto já foi oficializado, mas as obras de construção ainda não começaram. Que outros recursos naturais? Em Julho de 2025, Umaro Sissoco Embaló esteve nos Estados-Unidos, juntamente com outros chefes de Estado de Africa Ocidental. Na Casa Branca, o presidente guineense disse a Donald Trump que a Guiné-Bissau é “rica em recursos naturais”, apelando o presidente dos Estados-Unidos a investir no país. Actualmente, não existe nenhuma infrastrutura para extracção de recursos naturais na Guiné-Bissau. Se a Guiné-Bissau é rica em recursos naturais, como os países vizinhos da região, como se explica que estes recursos ainda não tenham sido explorados para o bem da economia nacional? “Dizem que a Guiné-Bissau é rica em recursos naturais. Eu discordo: a Guiné-Bissau tem à disponibilidade da economia um conjunto de recursos. Mas isso ainda não é riqueza”, analisa o economista. “Para ser riqueza precisa de intervenção qualificada”. Intervenção essa que ainda não aconteceu, nomeadamente devido às crises políticas que o país vive desde a independência, considera ainda José Nico. Recordando que Umaro Sissoco Embaló é o segundo chefe de Estado a terminar o mandato presidencial (depois de José Mario Vaz em 2019) e que nestas condições, é difícil desenvolver uma indústria. De acordo com os últimos estudos realizados, a Guiné-Bissau tem petróleo, bauxite e areias pesadas.

Falta menos de uma semana para os guineenses elegerem o seu futuro presidente e os 102 deputados do Parlamento, dissolvido há dois anos e sem funcionar desde então. Que balanço fazer do primeiro mandato de Umaro Sissoco Embaló? Por que razão o PAIGC escolheu apoiar Fernando Dias e não outro candidato? Quais têm sido os temas em debate durante esta campanha eleitoral? A corrida presidencial tem captado todas as atenções, e nomeadamento o duelo Umaro Sissoco Embaló e Fernando Dias, presidente cessante contra candidato independente, apoiado pelo PAIGC. À RFI, o analista Tamilton Teixeira, docente na Universidade Amílcar Cabral, apontou aquelas que considera ser as lacunas e metas não alcançadas do primeiro mandato de Umaro Sissoco Embaló. Considera que o chefe de estado “perdeu a oportunidade de fazer uma ruptura com a velha política”, ele que é o presidente mais jovem da Guiné-Bissau. Para esta “ruptura”, seria preciso que Sissoco Embaló “não procurasse ser o executivo, não mantivesse a tradição de uma sociedade militarizada e deixasse os tribunais fazer os seus trabalhos”, diz Tamilton Teixeira. A campanha eleitoral tem sido ritmada pelos comícios dos 12 candidatos à presidência. Nos seus discursos, os candidatos fazem promessas políticas em caso de eleição, mas os guineenses têm muito comentado, nas redes sociais, as referências a etnias feitas por alguns candidatos. “Uma estratégia divisionista e errada”, diz Tamilton teixeira, para quem o mais importante é criar discursos de unidade nacional num país que conta com várias etnias que tudo opõe. Para criar um discurso nacional, o analista considera que se deve pegar na história da luta pela independência, e portanto o legado de Amílcar Cabral. Mas este tem sido desprezado pelo actual presidente, refere o professor. Ao longo da campanha, “as pessoas têm lidado com sentimentos de desconfiança” devido a uma sociedade “cada vez mais militarizada” e, continua Tamilton Teixeira, são vários os exemplos concretos de ameaças directas, que passa a enumerar. É na juventude que reside a esperança e quem melhor para o dizer do que ele, que lecciona na Universidade Amílcar Cabral mas também na Universidade Católica de Bissau? Ouça a entrevista:

O Mês da Identidade Africana chega ao fim este sábado. A 4º edição do evento criado para “questionar, reflectir e pensar o futuro da existência da comunidade afro-descendente e africana”, tem uma programação, de entrada livre, que junta arte, cinema, literatura, infância, formação e música. A iniciativa da Bantumen tem-se desenrolado no centro da capital portuguesa, na Casa do Comum, no Bairro Alto. A RFI falou com Vanessa Sanches, administradora de projectos e co-fundadora da Bantumen. Uma ocasião para percebermos melhor o que é esta plataforma, as iniciativas futuras, e, acima de tudo, ficarmos por dentro de alguns dos pontos altos da programação do Mês da Identidade Africana e de como este surgiu. Vanessa Sanches, administradora de projectos e co-fundadora da Bantumen: O MIA surgiu em 2022, pouco depois da pandemia, pouco depois de todas aquelas questões sobre o movimento negro, de George Floyd. Surgiu numa altura em que a equipa da Bantumen começou a reflectir sobre a necessidade de em Portugal haver também um momento em que pudéssemos questionar, refletir e pensar o futuro da existência da comunidade afro-descendente e africana, sobretudo pelo facto de não ser uma comunidade que é reconhecida como estando cá há tanto tempo, é sempre reconhecida como uma comunidade estrangeira, quando não é. Eu, por exemplo, nasci em Portugal, vivi aqui toda a minha vida, portanto, é um país que também me pertence. Então, nestas conversas sobre este assunto, achávamos que fazia todo o sentido criarmos algo que noutros países já existe, como por exemplo o Black History Month nos Estados Unidos e no Reino Unido, assim como no Brasil lá há o Mês da Consciência Negra. E achávamos que aqui também está na hora de podermos conversar abertamente e sem pudor sobre este assunto. Esta fotografia multicultural que existe em Portugal, mas que ainda muitos têm receio de mostrar, de identificar e de nomear também. Então, este MIA surgiu nesta vertente cultural porque a cultura está sempre de braços abertos para toda a gente. Portanto, essa é a nossa intenção, é mostrar o que a comunidade africana e afro-descendente tem feito por aqui através da cultura e abraçarmos todos os que quiserem se aproximar e conhecer. RFI: O MIA, Mês da Identidade Africana, está na 4ª edição. O que é que a Bantumen propôs, o que é que há em cartaz? Vanessa Sanches: A intenção do MIA é propor sempre uma exposição, que é a base do ciclo de eventos, dentro desse ciclo depois há sempre conversas. Este ano, por exemplo, tivemos uma conversa sobre a parentalidade, sobre o brincar com a identidade, porque é que é importante as crianças se reverem em termos de representatividade em diferentes esferas. Tivemos também o lançamento online de uma biblioteca, a Biblioteca Negra, onde há todo um acervo de livros que falam sobre estes temas da afro descendência, da negritude. Vamos ter também neste sábado, dia 15, uma sessão de leitura para crianças. Portanto, tentamos sempre ter eventos que possam chamar até nós do mais pequeno ao mais velho e que possam proporcionar alguma reflexão. O tema central deste ano é os 50 anos da independência dos PALOP, o tema que atravessa de alguma forma todos os eventos. RFI: Esta exposição de que falou, onde é que está a acontecer e quais são os artistas que podem ser vistos lá? Vanessa Sanches: Todo o ciclo de eventos acontece na Casa do Comum, no Bairro Alto, em Lisboa. A exposição está patente também até este dia 15. As obras que apresentamos são dos artistas Ricardo Parker, é português mas tem origens em Cabo Verde, a Gigi Origo, francesa e cabo-verdiana, o Sai Rodrigues também, que vive na Holanda mas tem origens cabo-verdianas também, e da moçambicana Naia Sousa. RFI: Em relação à conversa sobre a parentalidade, como é que decorreu? O que é que se discutiu? Vanessa Sanches: Na conversa sobre parentalidade “Brincar com Identidade”, porque era este o tema da conversa, tivemos a psicoterapeuta Henda Vieira Lopes, tivemos a Bárbara Almeida, que tem o projecto TitaCatita, para crianças e pais e cuidadores de crianças, e tivemos a Ângela Almeida, que é assistente social, e a intenção foi, nesta conversa moderada pelo Wilds Gomes, jornalista da Bantumen e apresentador de televisão do Bem Vindos, foi perceber quão importante é criar, de alguma forma, representatividade em diferentes esferas para os mais pequenos. Quando, enquanto crianças, não nos revemos a fazer determinadas coisas, não imaginamos que é possível fazermos essas determinadas coisas, eu se nunca tiver visto um médico negro vou achar que a única coisa normal é aquela possibilidade, portanto não vou sonhar que também eventualmente posso fazê-lo, sobretudo quando estamos a falar num país em que a comunidade negra é minoria de facto, portanto, a necessidade de podermos proporcionar às crianças modelos de representatividade e levá-los a espaços onde isto é possível acontecer. Onde é possível, também, abraçar a sua própria identidade, explicando que o cabelo, por exemplo, que é um tema super importante dentro da comunidade afro-ascendente, que o seu cabelo é bonito, que o seu cabelo tem milhões de possibilidades, por exemplo, as crianças mais dificilmente terão alguns traumas, digamos assim, que levam até à idade adulta. Portanto, este foi o tema central da conversa. RFI: Para quem estiver interessado em descobrir e ler algo mais sobre a africanidade, foi também apresentada a Biblioteca Negra. Como é que funciona esta Biblioteca Negra? Vanessa Sanches: A Biblioteca Negra é um projecto que foi pensado e materializado pelo realizador Fábio Silva. Ela parte da experiência pessoal do próprio Fábio, ele começou a compilar, num simples Excel, alguns livros que ele ia lendo sobre esta temática da africanidade, da negritude, porque nem sempre é fácil chegar a estes livros numa livraria normal. Então, ele achou que faria todo o sentido começar a compilar estes títulos. Entretanto, o ano passado, se não estou em erro, decidiu que faria todo o sentido lançar um site onde as pessoas pudessem facilmente encontrar uma panóplia de livros que abordassem então estes temas. É assim que nasce, então, a Biblioteca Negra, onde ele compila uma série de livros, com as sinopses desses livros, e onde é possível encontrar também casas parceiras, que actualmente são três, onde eventualmente podem encontrar alguns destes livros à disposição e onde também podem efectuar doações, caso tenham os livros em casa e já não os queiram mais, podem doar esses livros a estas casas parceiras. RFI: Casas parceiras na Grande Lisboa, para já, e qual é o site? Vanessa Sanches: O site é muito simples, http://www.bibliotecanegra.pt RFI: O filme do brasileiro Lázaro Ramos, Medida Provisória, foi exibido nos encontros MIA. Foi um momento muito participado? Vanessa Sanches: Bastante, bastante. Na verdade, nós tínhamos uma lotação para 50 pessoas e houve um dado momento em que houve pessoas a sentarem-se no chão porque os lugares estavam absolutamente lotados. Acho que é um filme que muita gente ainda queria ver, não teve a hipótese de o ver, e aproveitou então este ciclo de eventos do MIA para poder ver o filme. Tem um tema que nos leva à reflexão de algo que, provavelmente, muitas vezes já nos passou pela cabeça de forma inconsciente, que é; Todos os negros serão realmente de África? Porque, no filme há uma medida provisória que diz às pessoas negras brasileiras que, se calhar, o melhor para o futuro delas seria voltarem para a África. E então há toda uma panóplia de circunstâncias que acontecem ali, porque estamos a falar de pessoas que pertencem àquele país há centenas de anos. Então, é um debate que merece ser tirado do ecrã para o físico e convidámos o actor e cineasta Welket de Bungé e a actriz Cléo Diára para poder, então, conversar sobre este tema. Então foi um momento especial, não só pela lotação mas pelo tema abordado em si mesmo. RFI: Dia 15, sábado, encerra-se o MIA deste ano, o que é que foi pensado para o encerramento? Vanessa Sanches: Encerramos em grande com um momento dedicado às crianças, com uma sessão de leitura com a actriz, jornalista e autora Aoani Salvaterra, com origens santomenses. Vamos ler o livro da Nuna, A Aventureira Marielle, e logo de seguida, um bocadinho mais tarde, encerramos em grande com festa, como gostamos, com os sons da Independência. Basicamente, é um DJ set do DJ Camboja, que tem um acervo gigantesco de músicas que surgiram na altura das Independências e que têm, justamente, como moto a liberdade, a independência e o anticolonialismo. RFI: O Mia é apenas um dos momentos em que a Bantumen dá a conhecer o trabalho que desenvolve. Depois deste Mês da Identidade Africana, o que é que a Bantumen vai propor? Vanessa Sanches: Eu vou começar por explicar, dado que há algumas pessoas que têm alguma dificuldade em entender o que é a Bantumen. A Bantumen é, no fundo, uma plataforma de cultura e de informação. Portanto, online nós temos uma revista, mas no plano físico nós também fazemos algumas coisas. Portanto, resulta, então, neste MIA. E no final do ano temos o nosso maior evento, que é a Powerlist 100, a iniciativa que pretende prestar homenagem a 100 personalidades negras da lusofonia. Este ano a lista vai ser, então, revelada no dia 6 de Dezembro, a nível digital, no seu site próprio, podem encontrá-lo facilmente em bantumen.com. Ao mesmo tempo, irá acontecer também uma Gala para que algumas destas 100 personalidades possam, então, se sentir homenageadas de viva voz e olho no olho por esta comunidade, que se revê no seu trabalho de excelência, que tem feito e que é um espelho também para nós, as actuais gerações e para, quem sabe, futuras gerações. RFI: São personalidades que actuam nas mais diversas áreas, alguns exemplos? Vanessa Sanches: Nas mais diversas áreas. Já tivemos uma empregada doméstica, temos pessoas vindas do percurso associativo, como temos advogados, como temos cientistas, músicos, dançarinos. Nós tentamos não ter Categorias justamente para isso, para que possa ser o mais ampla possível esta lista final dos 100 homenageados. Link site Bantumen : https://www.bantumen.com

O escritor franco-argelino Boualem Sansal foi libertado esta semana e está de regresso à Europa, após ter sido condenado a cinco anos de prisão por atentar contra a unidade nacional na Argélia. Sansal é crítico do regime argelino e acabou por ser apanhado entre o fogo cruzado diplomático entre Paris e Argel. A sua libertação foi facilitada pela Alemanha, especialmente pelo Presidente Steinmeier, como explicou o jornalista e especialista em países africanos, Rui Neumann, em entrevista à RFI. O escritor franco-argelino Boualem Sansal foi libertado esta semana após ter cumprido um ano de prisão na Argélia, tendo sido originalmente condenado a cinco anos de prisão por atentar contra a unidade nacional. Bansal tornou-se um dos danos colaterais da deterioração da relação entre Paris e Argel, com a Alemanha a ter de intervir de forma a facilitar a libertação do escritor. Em entrevista à RFI, o jornalista e especialista em países africanos, Rui Neumann explicou a importância do papel da Alemanha na libertação de Boualem Sansal e as dificuldades entre Paris e Argel. "A mediação da Alemanha sem dúvida que teve um peso muito importante, porque as relações entre a Argélia e a França podem caracterizar-se como múltiplas reconciliações que acabam sempre em súbitas rupturas. Portanto, desde 1962, há uma relação muito tumultuosa entre a França e a Argélia, que neste momento está numa situação muito crítica. O Presidente alemão não é uma figura conhecida em França e na Argélia também não. [...] Há uma relação pessoal muito forte com o presidente argelino Abdelmadjid Tebboune. E isto aconteceu no período do covid em que o Presidente argelino ficou gravemente doente com o covid e foi tratado na Alemanha, numa logística que foi muito organizada pelo Presidente alemão. E aqui houve laços que se estabeleceram, laços pessoais e até mesmo políticos. Apesar da limitação que tem o próprio presidente alemão. Portanto, quem beneficiou, de certa forma foi a França, com a libertação de Boualem Sansal. Mas, por outro lado, mostra também a grande fragilidade da França na resolução de diferendos diplomáticos e, neste caso, para a libertação de Sansal. Lembro também que ainda há um jornalista francês que está detido na Argélia, o Christophe Gleizes, que para já, ainda não existem indícios da sua libertação", explicou o jornalista. Um dos mais recentes pontos de discórdia entre Paris e Argel é o apoio da França ao processo de autonomia do Sahara Ocidental proposto por Marrocos e entretanto aprovado no Conselho de Segurança das Nações Unidas, já que a Argélia apoia a Frente Polisario que é pela independência deste território. Mesmo com a aprovação desta resolução, Rui Neumann não acredita que se esteja mais perto da resolução deste conflito que dura desde 1975 - o fim da colonização espanhola -, sendo actualmente o único território do pós-colonial no continente africano sem estatuto definido. "Quando conhecemos bem a Frente Polisário e os seus dirigentes, obviamente que não vão baixar as armas. Quando eu digo as armas, são as armas no sentido bélico da expressão, mas também no sentido político, aqui há um posicionamento principalmente do Conselho de Segurança da ONU, em que se, digamos, de uma forma quase ambígua, se posiciona ao lado do plano da autonomia marroquino, em que considera que é o plano mais credível para o Sahara Ocidental. Há sempre a Argélia, o grande pilar de apoio da Frente Polisário. E eu recordo que a Frente Polisário é reconhecida pela própria ONU como a única organização que tem legitimidade histórica para representar a população sarauí. Não falamos de uma resolução, mas de instrumentos de enorme pressão contra a Frente Polisário para aceitar não o plano que propõem Marrocos, mas um outro cenário negociado", detalhou Rui Neumann. O plano marroquino visa fazer do Sahara Ocidental uma região autónoma, com mais poderes para autoridades locais e a gestão do seu próprio orçamento, guardando para Marrocos a capacidade de impor a sua bandeira, a moeda e ainda outras capacidades constitutivas do Estado como as relações internacionais, a defes ae a segurança. A Frente Polisário disse que até poderia aceitar esta opção, mas só se ela fosse a referendo e aprovada pelos cerca de 600 mil habitantes do Sahara Ocidental.

Dez anos depois dos atentados que mataram 130 pessoas e fizeram mais de 400 feridos em Paris e Saint-Denis, o filho de uma das vítimas mortais denuncia a exploração da emoção em torno dos ataques e pede “pensamento crítico e analítico sobre o que aconteceu”. Michaël Dias afirma que não se procuraram respostas sobre as causas e o financiamento dos ataques e alerta que não foi feito “um trabalho para lutar contra a polarização da sociedade” de modo a “evitar que pessoas nascidas em França atentem contra o próprio país”. O filho do português que morreu no Stade de France questiona “como é que “um país como a França não foi capaz de antecipar uma operação terrorista desta dimensão” e não acredita que hoje a situação esteja melhor. Foi há dez anos que três comandos de homens armados mataram 130 pessoas e fizeram mais de 400 feridos em Paris e Saint-Denis. Primeiro, no Stade de France, depois em bares e restaurantes e na sala de concertos Bataclan. Os ataques de 13 de Novembro de 2015 foram, então, reivindicados pelo autodenominado Estado Islâmico. Dez anos depois, como contar e lembrar o que aconteceu e como estão os familiares das vítimas? Para falar sobre o assunto, convidámos Michaël Dias, filho de Manuel Dias, a primeira vítima mortal daquela noite junto ao Stade de France, em Saint-Denis, nos arredores de Paris. RFI: Dez anos depois, como é que está o Michaël Dias e a sua família? É possível reconstruir-se dos atentados? Michaël Dias, filho de Manuel Dias: “Enquanto estamos vivos, é sempre possível reconstruir-se e continuar a viver, mas acho que isso é bastante universal em todos os lutos. Não me parece que este luto seja muito diferente de outro. As circunstâncias podem ser mais inesperadas, mas o ser humano passa por um luto que é seu, que é íntimo, que é pessoal e todos os ouvintes um dia passarão por isso.” Que memórias é que ainda guarda daquela noite? “É uma noite de espera até termos a confirmação. Não guardo nada para além dessa lembrança, mas não traz nada à reflexão sobre o assunto, o sofrimento das vítimas ou da família das vítimas. A gente vimo-lo na televisão e na rádio nos últimos dez anos, várias vezes. Não há nada que seja muito útil ao explorar esse sentimento, nem vejo uma grande utilidade de fazer um tutorial sobre como fazer o luto em circunstâncias excepcionais.” Mas se houver alguma coisa que tenha falhado, por exemplo, a forma como as autoridades comunicaram com as famílias, seria bom tirar lições. Ou não? “Não acho que houvesse um protocolo que tenha falhado ou que fosse importante fazer alguma coisa na altura. Soube-se quando tinha que se saber e não é por aí. Não acho que seja um ponto que tenha falhado em particular, é muito mais o facto de um país como a França não ter sido capaz de antecipar uma operação terrorista desta dimensão e coordenada e sincronizada desta forma.” Mas, por exemplo, a sua irmã disse-nos [numa entrevista em 2021] que o número de emergência não funcionou e ela estava em Portugal... “Sim, mas se não somos capazes de antecipar um acto terrorista ou vários numa mesma noite, quanto mais as questões puramente logísticas de números de telefone e de quem centraliza a informação, etc. Desde então, certamente com o número de atentados que já houve em França, eles hão-de ter criado um processo bastante mais eficaz.” Dez anos depois, diz que não houve antecipação. Como é que está a França hoje? “Quando isso acontece, a gente sempre espera que seja o último, que não haja mais, como é óbvio. Mas depois eles foram-se multiplicando, chegando a uma banalização. Acho que ninguém saberia listar o número de atentados que houve em França, de pequena ou grande dimensão, nos últimos dez anos. Portanto, não só não anteciparam esse, como falharam em vários outros níveis. Certamente que também terão evitado outros atentados, mas não acredito que estejamos numa melhor situação hoje do que há dez anos, com muito mais ameaças, com um sentimento de insegurança que foi sempre crescendo. Estamos longe de termos melhorado em qualquer um dos aspectos.” O que é que falha concretamente? O que é que é preciso fazer para antecipar? “Esse é o trabalho de quem zela pela segurança da população, é um trabalho da Inteligência, um trabalho de procura das causas de quem pode estar a financiar, quem pode estar a dar apoio logístico, etc. E todo o outro trabalho que tem que ser feito para lutar contra a polarização da sociedade e para evitar que pessoas nascidas no próprio país atentem contra outros cidadãos que não têm nada a ver com o assunto.” Como é que a memória colectiva deve recordar estes momentos sem que eles sejam, digamos, politicamente utilizados para fracturar uma sociedade que já está polarizada há muito? “Essa questão do dever de memória, eu acho acho curioso. Relembrar o quê? Relembrar que não foram capazes de evitar vários atentados que fizeram mais de 120 mortos numa mesma noite? Não esquecer tudo o que está por trás disso e como nunca fomos capazes de pensar nas origens, de fazer essa genealogia dos acontecimentos, saber quem financiou, quem deu apoio logístico? Continuamos com essa historinha de que três ou quatro parvos num kebab terão imaginado um dia fazer um atentado sozinhos. Isso é absurdo. Forçosamente houve quem financiou e quem deu apoio, mas em nenhum dos momentos a gente pensa essas causas, em nenhum momento o julgamento pensou essas causas profundas e continuamos com a mesma moralização de sempre nos ‘media' e a tentar sempre entrar no acontecimento pela emoção, em vez de pensar isso de forma crítica.” Além do luto individual, os atentados deixaram uma marca indelével na sociedade francesa. Foram os piores atentados na história de França. Até que ponto é que não se poderiam tirar lições, mesmo em termos políticos, do ocorrido e também lembrar das pessoas? No julgamento, a sua irmã disse-nos que pouca gente sabe que houve uma vítima no Stade de France. Como é que se devem lembrar estas pessoas? “Lembrarão essas pessoas quem sente a falta delas. De forma colectiva, ficarão na História pelo que se viveu naquela noite, mas não tem grande interesse tentar personificar um atentado porque isso não traz nada ao debate político, não diz nada sobre a sociedade. O luto é uma coisa completamente individual, pessoal e essa reflexão incapacita as pessoas de pensar de forma crítica, vamos falar de como dói perder uma pessoa sem pensar porque é que isto aconteceu e quem são as pessoas que poderiam ser responsabilizadas por isso de forma política e não só. De resto, é uma questão de luto pessoal. Um dia seremos só uma foto numa estante e no dia a seguir não seremos mais nada.” O seu pai não é apenas uma foto numa estante. O seu pai tem uma placa de homenagem a lembrar o nome dele junto ao Stade de France... “Sim, mas certamente ela um dia será tirada de lá. Não serve de grande coisa pensarmos em toda esta questão de uma forma emocional porque esse trabalho foi feito a vários níveis. Foi feito naquela noite para quem viu na televisão aqueles atentados em directo e sentiu essa emoção, portanto não precisa de voltar a senti-la hoje. Viveu também de forma muito sofrida todas as pessoas que perderam alguém ou estiveram lá naquelas noites e, portanto, não precisamos de mais emoção para perceber o assunto. A gente percebeu bem o que é viver aquilo. Agora, precisamos é de pensamento crítico e analítico sobre o que aconteceu e a emoção impede que isso aconteça.” Foi convidado para as cerimónias de homenagem? O que está previsto? “Acho que há várias comemorações, como sempre, em todos os sítios onde aconteceu, e depois acho que há a inauguração do Jardim da Memória, algo assim.” Lá está, a memória... “Sim, mas essa memória é a memória emocional de quanto se sofreu que vai impedir de pensar de forma crítica ou é a memória de não termos sido capazes de antecipar isto, de não termos sido capazes de gerir isto, de termos obrigado as vítimas a submeterem-se a um processo longo e indecente de responder a todos os inquéritos para poder aceder, possivelmente, a uma indemnização?” Como assim? O que é que aconteceu? Como é que foi esse processo, o acompanhamento para terem as ajudas terapêuticas e financeiras? “As vítimas, na sua maioria, tiveram de esperar quase dez anos para serem, em parte, ressarcidas e terem acesso, às vezes, a apoios psicológicos e a outras compensações. Para isso, muitas delas tiveram de se submeter a todo um processo que incluía encontros com médicos e outros profissionais e todo um inquérito sobre questões muito pessoais que roça a indecência só para se poder provar quase o que se sofreu e a dificuldade em reconstruir-se. Isso é muito absurdo e se temos que ter um dever de memória é para com isso. É para com a incapacidade de antecipar vários atentados e com a incapacidade de gerir de forma digna as compensações que iriam surgir.” Convosco também foi o caso? “Não porque eu não me quis submeter a nada disso, ms conheço pessoas que sim.” Um ano depois dos atentados, durante uma homenagem francesa ao seu pai, na qual foi colocada uma placa com o seu nome no Stade de France, o Michaël fez um discurso em que disse que os que perpetraram os atentados eram apenas “carne para canhão ao serviço de interesses obscuros”. Na altura, também deixou a mensagem – que dizia que herdada do pai – de que “para viver sem medo e em liberdade é preciso parar de estigmatizar o outro”. Esse seu discurso ecoou de alguma forma? Ou nada mudou? “Não acho que tenha mudado seja o que for. Em dez anos, se mudou foi para pior. Temos uma sociedade muito mais polarizada hoje em dia em França do que tínhamos em 2015. De resto, eu não sei se ecoou, não tenho essa pretensão, mas é uma questão que já referi várias vezes que é: como é que pessoas que nascem em França são capazes de realizar atentados ou de se virar contra outros cidadãos que não têm nada a ver com a temática? É preciso pensar como é que chegámos a este ponto, como é que pessoas que nascem em França não se vão identificar como franceses ao ponto de poder realizar algo contra o próprio país supostamente. Nesse sentido, até é muito estranho porque, sim, são carne para canhão porque eles estão a defender interesses que são, às vezes, interesses políticos, interesses mafiosos, interesses que eles nem conhecem e só o fazem por ideologia, neste caso. Mas é sempre curioso perceber como é que pessoas que nascem num mesmo sítio crescem de forma tão diferente.” Numa conversa que tivemos em 2017, criticou o Presidente francês, Emmanuel Macron, pela supressão do Secretariado de Estado de Ajuda às Vítimas. Na altura, falou-me numa “vontade explícita” de fazer cair as vítimas e as famílias num certo “esquecimento”. Teve uma posição bastante crítica com o Presidente. Mantém-na? “Quando ele foi eleito e acabou com a Secretaria de Estado, ele disse que queria acabar com essa cultura de vítimas porque na altura ainda era algo muito presente. Isso não é muito relevante no sentido em que depois houve outros atentados e ele teve que voltar a falar sobre o assunto, etc, mas é mais que o pesou na relação das vítimas com o Estado, no sentido de todas as indemnizações e da ajuda que era suposto vir. Tudo foi complicado e várias vezes tiveram que falar com os ministros e o governo para pedir uma série de coisas que deviam ter acontecido muito mais rápido. Então, o que eu observo é o que eu estava a falar há bocado, é que todo o processo do pedido de ajudas e indemnizações foi muito mais demorado, muito mais complicado do que certamente teria sido com o governo anterior.” Como é que olha para o julgamento? Houve alguma forma de reparação? “Eu fiquei bastante à margem do julgamento pessoalmente. É o que eu sempre disse: vamos julgar as pessoas que estiveram envolvidas directamente nesse atentado e está muito bem fazê-lo, mas eu procurava respostas que nunca chegaram a aparecer porque são questões políticas muito mais profundas e não há interesse sequer em encontrar ligações políticas e económicas a esses atentados. Então é melhor falar das três ou quatro pessoas que pudermos julgar, mas isso não responde em nada às perguntas que eu teria.” Que perguntas são essas concretamente? “São perguntas simples. Quem acredita que três ou quatro desgraçados são capazes de organizar um atentado desta dimensão ou outros atentados que aconteceram depois é ingénuo porque forçosamente há uma complexidade económica e logística que não são acessíveis de forma fácil. Mas nunca sequer essa questão é feita. Quando eu faço essa questão, a maior parte dos jornalistas responde: ‘Ah, não, mas é que a gente não pode na nossa rádio ou televisão falar desse tipo de assuntos. A gente não pode fazer essas perguntas...” Mas eu estou-lhe a pedir essa pergunta. “Sim, mas eu não tenho a resposta. A minha questão é: por que é que nunca se fala de quem poderá ter financiado isto e por que é que sempre que eu faço essa pergunta, os jornalistas me respondem que não podem falar disso? É muito curioso, não chamo a isso censura, mas é curioso.”

A delegação da Fundação Gulbenkian em Paris organiza este fim de semana na capital francesa um festival de música e debates à volta dos 50 anos da independência dos diferentes países africanos de língua portuguesa, dando carta branca a Dino D'Santiago para trazer os sons mais actuais do funáná e do batuque. O Festival Lisboa nu bai Paris vai decorrer Sábado e Domingo no espaço Gaîté Lyrique. Esta foram duas noites imaginadas por Dino D'Santiago para encerrar o ciclo dos 60 anos da Fundação Gulbenkian em Paris, mas também para celebrar os 50 anos da independência de São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola e Cabo Verde. A directora da delegação da Fundação Gulbenkian em Paris, Teresa Castro, disse em entrevista à RFI que o músico luso-cabo-verdiano teve "carta branca" para organizar as festividades. "Achámos que seria uma forma bonita de, na verdade, assinalar mais uma vez os nossos 60 anos, dando ao Dino D'Santiago uma carta branca para ele organizar esta seleção musical. E temos muita vontade, obviamente, de assinalar também estes 50 anos das independências dos países africanos lusófonos, entre os quais, obviamente, Cabo Verde. Vamos assinalar este evento com um debate entre Dino D'Santiago e Luísa Semedo, que é filósofa, que é também jornalista. Em torno sobretudo da figura do Amílcar Cabral, que foi de facto uma figura e é ainda uma figura importantíssima na história das independências africanas, um teórico importante também da revolução. E temos vontade", detalhou Teresa Castro. Nas duas noites haverá actuações de artistas como Fattu Djakité, Kady, Nidia, EU.CLIDES ou Umafricana. No Sábado, às 17:30, acontecerá um debate entre Dino D'Santiago e Luísa Semedo, filósofa e activista instalada em Paris, sobre Amílcar Cabral. O convite é aberto às comunidades lusófonas em França, mas também aos franceses que apesar de conhecerem bem a morna, podem nestas duas noites conhecer melhor o que de mais actual se passa na música lusófona, nomeadamente entre Lisboa e a Praia. "É um festival que esperamos que atraia as comunidades. Antes de mais, as comunidades cabo-verdiana, portuguesa, mas todas as comunidades dos países africanos lusófonos. Mas, obviamente, é um festival que está mais do que aberto ao público francês que, no que diz respeito. Na verdade, no que diz respeito à música cabo verdiana, os franceses conhecem muito bem a morna, mas talvez conheçam menos bem todo este panorama extremamente dinâmico em torno do batuque e do funaná. Portanto, estão todos obviamente convidados a participar nesta festa", concluiu a directora da delegação da Fundação Gulbenkian em Paris.

O Instituto Pró-Onça trabalha no Cerrado brasileiro de forma a conservar os jaguares presentes neste que é o segundo maior ecossistema do Brasil, logo a seguir à Amazónia. Esta conservação passa pelo empoderamento das mulheres locais que são a base do núcleos das famílias rurais e também líderes comunitárias. O Cerrado é o segundo maior ecossistema do Brasil, sendo considerado como o berço das águas, já que aqui nascem rios essenciais para as bacias hidrográficas de todo o país. No entanto, e devido a esta confluência de águas e terras férteis, é do Cerrado que vem 60% da produção agrícola do Brasil o que empurra as espécies autóctones, como o jaguar, ou a onça no português do Brasil, para perigo de extinção. Há dois anos nasceu o Instituto Pró-Onça que tem como principal missão a conservação das chamadas onças pintadas, no estado de Góias, promovendo sobretudo esta conservação através do empoderamento das mulheres localmente, mas também sessões de informação para escolas e a reflorestação do Cerrado brasileiro. A bióloga, fundadora e directora deste instituto, Letícia Benavalli, esteve em Paris para participar no Fórum da Paz e em entrevista à RFI falou da importância da conservação dos jaguares para um ecossistema mais saudável. "A onça pintada é um predador do topo da cadeia alimentar. Então, quando a gente tem a conservação dela, a ocorrência dela no ambiente, a gente consegue ter todo um ecossistema conservado também, justamente porque ela precisa de outros requerimentos ecológicos. Então, quando ela está lá, ela consegue controlar a população de presa. A gente consegue ter uma água mais limpa, um ar mais purificado também, como consequência disso tudo. Então, se a onça pintada está ali, o ambiente é bom. A ideia é realmente esse amor que a gente tem pela espécie, pelo que ela representa, tanto culturalmente quanto historicamente para o nosso país", explicou a bióloga. De forma a manter este "amor" pelos jaguares ou onças, o Instituto Pró-Onça trabalha o papel das mulheres como líderes comunitárias e como força da conservação da natureza, fazendo delas aliadas na preservação deste animal. "[O Cerrado] É um ambiente extremamente masculino. Dentro da ciência de maneira geral é assim, mas principalmente no campo, nós temos poucas mulheres. E as mulheres que estão ali muitas vezes elas não são reconhecidas como líderes. E a nossa ideia é justamente mudar isso e fazer com que as pessoas consigam entender que mulheres não só podem andar nesse ambiente, como elas são líderes nisso. Elas são 'experts' no que elas fazem. O nosso trabalho também envolve muito as próprias mulheres reconhecerem o seu direito, o seu direito da terra, o seu direito económico social que ela tem e o seu papel como principal aliada também dentro da conservação, dentro daquilo que a gente vai fazer das nossas actividades. Porque as mulheres elas são a base do núcleo rural. Quando a gente fala de família rural, a comunidade rural, nós temos os homens que saem para fazer o trabalho e nós temos as mulheres que ficam em casa fazendo comida, cuidando da família, que cria essa base da subsistência. E aí é justamente com essas mulheres que a gente pensou em trabalhar e vem trabalhando, porque são essas mulheres que vão falar para os seus filhos, para seus netos, que as coisas devem ser feitas de maneira diferente. E a gente bate muito nessa tecla da mulher conseguir reconhecer o seu direito de fala, de voz activa e da terra", indicou Letícia Benavalli. O Instituto Pró-Onça já permitiu aumentar em média aumentar para 600 dólares o rendimento das mulheres que seguem as suas formações, tendo trabalhado com mais de 100 pessoas em cinco comunidades diferentes no Cerrado. Este instituto segue 11 jaguares e vigia ainda outras 16 espécies locais, algumas delas também em vias de extinção. No total, esta instituição já restituiu cinco hectares de floresta ao Cerrado. Quanto à COP 30, cuja reunião de líderes começa hoje em Belém, no Brasil, esta investigadora explica que há motivos para regozijo, mas também para preocupação, nomeadamente no que diz respeito a acordos recém-assinados sobre a exploração de recursos fósseis no rio Amazonas. "Eu acho que pra gente é uma grande vitória, porque o último evento que a gente teve dessa magnitude para falar de acções climáticas no Brasil foi em 1932. Então, assim, colocar o Brasil nesse espaço de líder global em acções climáticas é mostrar o que a gente vem fazendo e ter o nosso espaço para falar que também trabalhamos com alterações climáticas e somos bons nisso. Eu acho que é fundamental e cada vez mais nós temos que falar, porque nós fazemos muitas coisas. A América Latina, de maneira geral, vem desenvolvendo muito trabalho, vem trazendo muita inovação para cá nesse sentido. E mais, eu acho que também fica um alerta, porque preços superfaturados e aí logo com a COP aqui e agora, em Novembro, temos a liberação para explorar petróleo na foz do rio Amazonas. Então, assim, ao mesmo tempo que estamos nesse local de luta, de mostrar que devemos ser reconhecidos, trazemos uma adenda de que estamos abertos a explorar um dos lugares, um dos locais mais diversos do mundo, em prol de um tipo de energia que a gente já sabe que não funciona. Tudo isso em prol de um capitalismo. Então também fica esse alerta de que a gente está caminhando, mas ao mesmo tempo parece que são dois passos a frente, um para trás", concluiu a biológa.

O eurodeputado socialista português Francisco Assis foi o autor de uma resolução do Parlamento Europeu condenando a RCA pela violação dos direitos humanos em relação a Joseph Figueira Martin, sequestrado no ano passado, no leste da República Centro-africana. Este antropólogo tendo sido condenado nesta terça-feira por um tribunal de Bangui a 10 anos de trabalhos forçados e ao pagamento de 50 milhões de francos cfa por preparar uma quadrilha e atentar contra a segurança interna. O eurodeputado socialista português Francisco Assis começa por reagir à sentença proferida contra o luso-belga, Joseph Figueira Martin. Em primeiro lugar, queria salientar o seguinte: Ele esteve muito tempo à espera deste julgamento. Finalmente, o julgamento ocorreu... em condições extremamente precárias, pela informação de que disponho e a defesa já anunciou que vai recorrer, porquanto as acusações que foram formuladas não foram provadas. E a sentença, na óptica da defesa, é profundamente injusta e desprovida de fundamento legal minimamente válido. Para além disso, julgo que tem de prosseguir a acção diplomática, quer da União Europeia, quer dos governos de Portugal e da Bélgica, porque nós estamos perante uma situação que atenta contra os direitos humanos. Falar de trabalhos forçados é algo de absolutamente inconcebível no contexto epocal em que nos encontramos. Portanto, eu julgo que, para além da questão do ponto de vista estritamente judicial, em que o advogado de defesa já manifestou a intenção de imediatamente recorrer desta decisão, que é profundamente, na óptica dele e na minha óptica, que acompanhei o processo profundamente injusta. Para além disso, deve haver uma ação diplomática, tendo em vista até encontrar também uma solução nesse plano. Parece me fundamental que o Joseph Figueira possa sair o mais rapidamente possível da República Centro-Africana e possa vir para um país europeu. Tem algum contacto com a ONG norte americana para a qual ele trabalhava para poder apurar também algo do que lhe foi acontecendo: ele ter sido sequestrado no leste da RCA pelas Wagner, depois ser entregue às autoridades da RCA? E os contactos que tem mantido tem sido com a família. É através da família têm sido prestadas todas as informações sobre a actividade que ele desenvolvia sobre a ONG a que ele estava associado. Tudo o que foi o seu percurso de vida. Estamos a falar de um antropólogo que se dedica fundamentalmente ao estudo do fenómeno da transumância, que fez vários estudos neste domínio e que naquele momento estava até a desenvolver um trabalho de natureza humanitária naquela região e que foi apanhado no meio de um conflito gravíssimo entre as forças rebeldes o Estado da República Centro-Africana e o Grupo Wagner. Como sabemos, é um grupo russo, de mercenários russos que tem operado agora com outra designação. Tem operado, opera já há uns anos naquela região de África. Ele é vítima de tudo isto. É uma vítima de um processo bastante político, bastante complexo. E é como vítima que tem que ser visto. E nós temos, creio eu, nós quer a nível da União Europeia, quer a nível de Portugal e da Bélgica... temos absoluta obrigação de fazer tudo quanto estiver ao nosso alcance para o retirar o mais depressa possível das prisões da República Centro-Africana. E, portanto, naquela área onde ele se encontrava quando ele acabou por ser sequestrado, poderia haver conflitos étnicos entre comunidades locais, é isso que se presume ? É uma zona de conflito. Nós estamos a falar de uma zona de grandes conflitos e conflitos complicados, porque são conflitos entre movimentos jihadistas, o Estado, o grupo Wagner. Agora com outra designação também envolvido. Portanto, eu tenho consciência que o problema é complexo e que ele foi... E ele, que estava a desenvolver um trabalho humanitário, foi apanhado no meio daqueles conflitos. Agora, o que eu não tenho dúvidas nenhumas é que as acusações que impendem sobre ele são destituídas de fundamento. Porque acompanhei o caso, falei com as pessoas, sei qual é o trabalho que ele desenvolveu, percebi qual é a natureza da sua personalidade. É alguém que estava estritamente a desenvolver um trabalho humanitário. Eu julgo que no final deste processo, o que tem que prevalecer é a preocupação dos Estados de Portugal e da Bélgica, porque tem a dupla nacionalidade. E da União Europeia, porque ele é um europeu. Temos que fazer tudo, tudo o que estiver ao nosso alcance para que ele possa sair da República Centro-Africana o mais depressa possível. Eu acredito que isso possa vir a suceder. O advogado de defesa Nicolas Tiangaye contestava a validade das provas que foram apresentadas para justificar a acusação. Falava-se, por exemplo, de um par de óculos que era suposto serem de José Figueira e que ele nem sequer reconhece. Portanto, elementos de provas que a defesa diz terem sido orquestrados, por exemplo, blocos de notas, dois telemóveis com imagens tidas como sensíveis, Uma "maquinação" diz a defesa, não é ? Sim. E eu estou absolutamente certo que assim foi. Isto tudo num contexto de uma guerra que está a ser travada naquela zona, de um confronto que é um confronto muito complexo e que evidentemente gera situações desta natureza. Lamentavelmente, agora aqui a questão fundamental para mim: esta não tenho dúvidas nenhumas que o Joseph Figueira é vítima no meio deste processo todo. foi injustamente condenado. Está há muito tempo já preso em condições indignas de uma prisão na República Centro-Africana. E nós temos obrigação absoluta de desenvolver, sobretudo a partir de agora, todo um trabalho diplomático, tendo em vista permitir a sua saída da República Centro-Africana. E estou convencido que isso é possível. O senhor eurodeputado Francisco Assis foi autor da resolução do Parlamento Europeu que condenou a RCA por violação dos direitos humanos em relação a Joseph Figueira Martin. Porquê esta iniciativa? Precisamente porque tinha consciência do que se estava a passar. Tinha sido alertado para esta situação. Estudei-a e falei com várias pessoas. Apercebi-me da natureza do problema. Entendi que estávamos perante um atropelo claro aos direitos humanos de uma pessoa em concreto. Tê-lo-ia feito se fosse de outro país. Tenho feito, aliás, imensas propostas em relação a cidadãos dos mais diversos pontos do mundo. Mas tinha uma responsabilidade, neste caso, acrescida pela circunstância de estarmos a falar de um cidadão português e portanto, acho até estranho, muito estranho, que em Portugal ninguém se mobilize. As pessoas estão sempre disponíveis para se mobilizarem para determinadas causas, e bem. Mas depois, neste caso concreto, por razões que eu não descortino, praticamente ninguém fala no assunto. O que eu acho absolutamente lamentável. E espero que a partir de agora se inicie uma campanha para que ele rapidamente saia da República Centro-Africana. Que leitura é que se pode fazer do facto de que o embaixador belga é o representante da União Europeia estiveram presentes durante o julgamento. O embaixador português na RDC não esteve apenas. O cônsul de Portugal em Kinshasa se deslocou no início da audiência. Que olhar é que tem sobre efectivamente o acompanhamento que a diplomacia portuguesa está a dar a este caso ? Ainda não compreendi a razão de ser da falta de acompanhamento por parte da diplomacia portuguesa. Tenho constatado isso. É um facto objectivo e o apoio da diplomacia belga tem sido bastante maior do que da parte da diplomacia portuguesa. Mas é um assunto que ainda procurei esclarecer. Acha que neste momento, de facto, a República Centro-Africana é uma área para se desaconselhar a qualquer cidadão europeu? À luz do que está a acontecer e nomeadamente também em relação ao caso do sequestro e do encarceramento do Joseph Figueira Martin ? Todas as zonas de conflito... e há uma parte da República Centro Africana que está a ser... E não estou com isto, a atacar as autoridades da República Centro-Africana porque também estão a confrontados com um conflito grave. A verdade é que todas as zonas de conflito são zonas desaconselháveis. É, aliás, uma zona toda de África que é hoje dominada por conflitos graves. E, portanto, o risco de ocorrer a qualquer pessoa algo de idêntico ao que ocorreu ao Joseph Figueira é real. E nessa perspectiva, evidentemente teremos. As pessoas devem ponderar seriamente para onde se deslocam.

O PAIGC formalizou o apoio ao candidato presidencial independente Fernando Dias da Costa. O acordo surge depois da rejeição da candidatura do presidente do PAIGC às presidenciais e da coligação PAI-Terra Ranka às legislativas. Em entrevista à RFI, Domingos Simões Pereira, presidente do partido PAIGC, explica que “perante a supressão quase total dos direitos fundamentais, não há sacrifício que não possa ser consentido” para “combater esta tentativa de impor tiranias no nosso país”. O Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo verde, PAIGC, formalizou esta segunda-feira, 03 de Novembro, o apoio ao candidato presidencial independente Fernando Dias da Costa, herdeiro do barrete vermelho de Kumba Ialá e dirigente de uma das alas do PRS, Partido da Renovação Social. O acordo surge depois da rejeição da candidatura do presidente do PAIGC, Domingos Simões Pereira, às presidenciais e da coligação PAI-Terra Ranka às legislativas. RFI Português: Em que é que consiste este acordo? Domingos Simões Pereira, presidente PAIGC: Quem acompanha a actualidade política guineense deve saber que através de uma manipulação flagrante e escandalosa da nossa Corte Suprema, o PAIGC, os partidos que constituem a coligação e o seu respectivo candidato às eleições presidenciais, que era eu próprio, foram impedidos de participar nas eleições marcadas para o dia 23 de Novembro. Durante as últimas semanas, demos a conhecer o carácter escandaloso dessa decisão porque, por exemplo, no caso do candidato presidencial, a sua candidatura nem chegou à plenária do Supremo Tribunal de Justiça. Portanto, é este o quadro político actual na Guiné-Bissau. O PAIGC e, mais uma vez, os partidos que constituem a nossa condição compreendem que têm uma missão, têm uma missão de representar o povo guineense, de convocar o povo guineense para resgatar a liberdade, os direitos fundamentais e repor a normalidade constitucional. Para esse efeito, dos cinco candidatos que manifestaram interesse de poder contar com o nosso apoio, a nossa análise conduziu-nos à retenção do Fernando Dias da Costa, como o que está melhor posicionado, o que reúne os critérios que nós estabelecemos para decidir aportar-lhe o nosso apoio. Prefiro precisar da seguinte forma: em vez de dizer que nós estamos a aportar o nosso apoio, nós achamos que o Fernando Dias da Costa é a personalidade que neste momento encaixa melhor na nossa estratégia para continuar esta luta e poder resgatar o Estado de Direito Democrático na Guiné-Bissau. Quais foram os compromissos estabelecidos com esta formalização do apoio do PAIGC ao candidato Fernando Dias da Costa? Há aqui um compromisso para a campanha eleitoral, mas para o pós-eleitoral, em caso de vitória, também há? Sim. No pré-eleitoral nós aportamos o apoio possível, convocamos os nossos apoiantes, militantes, simpatizantes, o povo em geral a se juntar a nós e a votar no candidato Fernando Dias da Costa. E o Fernando Dias da Costa se compromete a repor a normalidade constitucional: a permitir que a Assembleia Nacional Popular possa ser restabelecida e, uma vez estabelecida, os outros órgãos de soberania possam funcionar em estrito respeito da nossa Constituição, o que não tem sido o caso. Portanto, temos todos os órgãos da soberania ameaçados ou condicionados no seu funcionamento. Mas quem é que ganha com este acordo? É o PAIGC ou é Fernando Dias? Espero que seja o povo guineense a quem nós estamos a dar uma opção. Porque não participar seria pedir ao povo guineense que seja o próprio a decidir de que forma enfrentar este quadro ditatorial. Sabemos que estamos perante um quadro difícil de explicar. Sabemos que estamos constrangidos a realidades que não são as normais. Compete a partidos políticos, neste caso com a missão histórica que o PAIGC tem, apresentar um quadro que facilite essa decisão junto do povo. É o que nós tentamos fazer. Portanto, não estamos aqui numa avaliação de quem ganha. Estamos numa lógica de propor ao povo guineense uma solução que possa manter-nos activos na luta política para o restabelecimento da normalidade. É a primeira vez que o PAIGC se vê impedido de participar numas eleições na Guiné-Bissau. Estavam esgotadas todas as diligências na Justiça? E porque não o boicote em vez de apoiarem um candidato? Se estavam esgotadas? Eu estou inclinado em dizer-lhe que não. Até porque até este momento, enquanto falamos, não há nenhuma decisão do Supremo Tribunal de Justiça a dizer por que razão é que eu não sou candidato e a participar das eleições presidenciais. Portanto, nós conhecemos as regras e se há uma entidade que se devia sentir obrigada a respeitar as regras, devia ser o Supremo Tribunal de Justiça. Mas esta é a realidade que nós vivemos na Guiné-Bissau. Uma realidade em que é impossível convencer a plenária do Supremo, uma vez que os dossiers não chegam à plenária do Supremo. Portanto, esta é a realidade. Fala-me em boicote e eu garanto-lhe que nós consideramos essa opção. Mas o fenómeno boicote funciona bem e tem impacto nos países onde há uma prestação de contas, onde há um acompanhamento, onde a ética e a moral acompanham o exercício político. E, portanto, a partir de uma determinada fasquia de abstinência, se consideraria pouco legitimada a decisão popular. Mas nós sabemos o que temos em frente e sabemos que, mesmo que fossem só 10% dos guineenses a votar, Umaro Sissoco Embaló iria se autoproclamar como legítimo, plenamente reconhecido no cargo. Por isso é que depois de analisar todas as opções, os partidos que constituem a nossa coligação entendem manter-se no activo neste processo político e escolher ir ao combate e tentar, por via do Fernando Dias da Costa, que o povo guineense tenha a opção de poder derrotar Umaro Sissoco Embaló nas urnas. Esta decisão não pode, eventualmente, deixar o eleitorado guineense confuso. Como é que o PAIGC vai convencer os seus eleitores a votar em Fernando Dias? Trata-se de uma candidatura independente, mas Fernando Dias é o herdeiro do barrete vermelho de Kumba Ialá e representa uma ala do PRS. Até agora; PRS e PAIGC eram rivais políticos, deixaram de o ser? Obviamente que não. Até porque se estivéssemos a falar de eleições legislativas, estaríamos a falar de outra forma. Mas deixe-me expandir esta minha análise em três grandes momentos. Penso que há uma coisa que não deve surpreender aos guineenses, desde 2014 que eu fui escolhido para dirigir o PAIGC, em três ocasiões vencemos eleições legislativas e eu nunca deixei de convidar outros partidos, nomeadamente o PRS, a nos acompanhar na governação. Tanto em 2014 como em 2018, como em 2023. Portanto, há aqui um princípio estabelecido de juntar a família guineense e propor soluções que sejam nacionais. Por outro lado, é importante que as pessoas conheçam a própria resenha histórica, o PRS sai do PAIGC. No período da luta de libertação, aquele a que nós designávamos por combatente, juntava, de um lado, o político e, do outro, o guerrilheiro. Com o evento da independência e posteriormente com o fenómeno democrático, o PAIGC foi o partido que se sentiu obrigado a separar de novo o político do combatente, aquele que passou a ser membro das Forças Armadas. Essa imposição foi exclusiva ao PAIGC, o que levou a que muitos militantes do PAIGC, por força da sua pertença às Forças Armadas, abandonassem o PAIGC e isso favoreceu a criação do PRS. Portanto, pode ser que até esta circunstância venha a favorecer uma reunificação que poderia ter um impacto político importante. Há ainda um outro elemento que eu não considero menos importante: todo o guineense é obrigado a acompanhar os últimos seis anos, que são os anos do mandato de Umaro Sissoco Embaló. E compreender que, perante aquilo que nós temos vivido, que é a supressão quase total dos direitos fundamentais, não há sacrifício que não possa ser consentido. Nós estamos a convocar a nação guineense para, todos juntos, esquecermos um bocado as nossas diferenças e salvarmos aquilo que é essencial. Ou seja, pôr de lado as diferenças em nome de um bem maior. Absolutamente. Eu penso que não encontro dificuldade nenhuma em sustentar esta tese, porque esta tese corresponde àquilo que eu sempre representei no contexto político da Guiné-Bissau. Enquanto presidente do PAIGC vai participar na campanha eleitoral? Absolutamente. Sou um cidadão livre e militante de um partido que está a aportar o seu apoio a um candidato. E, portanto, obviamente que vou participar da campanha eleitoral. E não é uma campanha com sabor amargo por ter sido excluído da corrida? É muito amargo. Mas, tal como estou a convidar a nação guineense, devemos transformar esse amargo numa determinação para lutar e não o contrário. Devemo-nos mobilizar, devemos compreender que há uma coisa que não nos conseguem tirar, que é o direito ao voto. E esse voto deve servir de arma para, de facto, combater esta tentativa de impor tiranias no nosso país.

'Baía dos Tigres' é a mais recente longa-metragem de Carlos Conceição. O realizador aclamado em festivais de cinema como Cannes, Berlinale ou Locarno, decidiu apresentar 'Baia dos Tigres', em estreia mundial, recentemente, no festival DocLisboa. Nas palavra de Carlos Conceição, “o filme tenta ir atrás dessa ideia que está a ser gravada uma nova existência por cima de uma existência prévia, mas estão lá fantasmas abstratos, sobrespostos, ruidosos, e que são fantasmas da história do século XX transversais a várias culturas.” Baia dos Tigres foi inteiramente rodado em Angola, país onde Carlos Conceição nasceu e que serviu de fonte de inspiração. A RFI falou com o realizador na capital portuguesa. Carlos Conceição começa por explicar como surgiu o filme 'Baia dos Tigres'. Carlos Conceição: O filme surgiu numa fase que eu, agora, já considero ultrapassada da minha carreira. Uma fase em que eu não tinha grandes perspectivas de como subsidiar o meu trabalho e que, por isso, apostava em ideias que eu conseguisse concretizar com pouco, com elementos que fossem reduzidos, mas intensos, como uma boa malagueta, que é capaz de fazer o melhor por um prato, só aquela malagueta. E a Baía dos Tigres sempre foi um mito para mim. Eu ouvia falar na Baía dos Tigres enquanto sítio desde que era criança. E por volta de 2015, 2016, provavelmente, fiquei, por portas e travessas, familiarizado com duas histórias que acabaram por ter uma grande ressonância na minha vida, ambas japonesas. Uma é o significado da palavra johatsu, que significa evaporação. É uma prática que acontece exclusivamente no Japão e, muitas vezes, com a ajuda de empresas especializadas. Consiste na pessoa eclipsar-se da sociedade, desaparecer. Essa empresa trata do desaparecimento total desta personagem, desta pessoa que os contrata. Isto acaba por ter um contorno que talvez seja comparável aos programas de proteção de testemunhas, porque todas estas pessoas acabam por assumir uma nova identidade, uma nova vida, uma nova história, um novo passado. Escolhem desaparecer pelas mais diversas razões, uma relação fracassada, dívidas de jogo, dívidas ao banco. Aquela coisa muito asiática que é a honra e que nós, na Europa, perdemos no século XV. Parece-me um conceito que, não estando completamente disseminado, não sendo exterior à cultura japonesa, parece-me um conceito interessante para os tempos de hoje. Não me interessa a mim como cidadão, interessa-me como leitor, como espectador, fazer uma história sobre uma pessoa que faz isso, que resolve desaparecer, que organiza o seu desaparecimento. E, paralelamente a isso, a descoberta da história verdadeira do soldado Hiroo Onoda, que foi um soldado japonês que esteve 30 anos perdido numa ilha das Filipinas, convencidíssimo por não ter contato nenhum com ninguém, aliás, inicialmente ele não estava sozinho, mas acabou por ficar, porque os dois companheiros com quem ele estava acabaram por morrer, e ele sozinho permaneceu 30 e tal anos nessa ilha selvagem, nas Filipinas, convencido que a guerra (2ª Guerra Mundial) continuava, e completamente fiel aos seus propósitos e àquilo que tinha sido formado para fazer. Foi uma grande dificuldade convencer o Onoda, quando ele foi descoberto, de que o assunto da Guerra Mundial já tinha acabado, e que aqueles credos todos dele estavam ultrapassados há 30 anos. Isto também é uma ideia que me interessa, como é que uma personagem percebe o tempo quando está isolada. Uma, no caso de uma das personagens do filme, é o desejo que o tempo pare, e, no caso da outra personagem, o desejo que o tempo ande mais depressa. Portanto, acho que o filme é sobre essa diferença, a diferença entre querer que o tempo pare e querer que ele ande mais depressa. RFI: A Baia dos Tigres é em Angola, no sudoeste de Angola. O que é que levou o Carlos Conceição a escolher ir filmar em Angola? Qual é a linha que se constrói que liga Angola a esta personagem? Ou a estes personagens, pois são dois personagens. Carlos Conceição: Podem ser, ou duas versões da mesma personagem. Eu filmo em Angola da mesma maneira que o Woody Allen filma Manhattan, ou o João Rosas filma Lisboa. É natural para mim, porque foi onde eu cresci. É mais fácil para mim filmar em Angola, em particular no sul, em particular no deserto, do que filmar em Lisboa. Para mim é mais difícil enquadrar em Lisboa. Ali sinto que estou muito seguro e, para onde quer que eu olhe, eu sei como é que o plano deve acontecer. E as narrativas que a maioria das vezes me surgem para contar são de alguma forma relacionadas com a minha própria vivência e, como tal, Angola está sempre envolvida de alguma maneira. Portanto, os meus filmes têm tido essa relação com Angola pelo menos os últimos três. O Serpentário, que é a minha primeira longa, e o Nação Valente, acima de tudo, e este filme. Que seria logo seguinte ao Serpentário, mas que estreia depois do Nação Valente, porque a vida dá muita volta, porque as coisas atrasam-se e metem-se pandemias e metem-se prazos e coisas do género. Mas acho que são dois filmes que são feitos num só gesto, de certa forma. Acho que a questão da Baía dos Tigres tem a ver com misticismo. Desde criança que eu ouvia falar da Baía dos Tigres como sendo uma ilha deserta, uma aldeia abandonada, uma cidade fantasma, como algumas que se vê nos westerns, relativamente perto, mas muito inacessível, muito difícil de lá chegar. Sempre foi uma ambição minha conhecer o sítio em si. E quando conheci, a primeira coisa que senti foi ... isto é um filme inteiro, este sítio é um filme. Eu já sei qual é o filme e tenho-o dentro de mim, tenho de o fazer e se não fizer vou morrer. Foi assim que o filme surgiu. Curiosamente, houve duas fases de rodagem. Na primeira nós não chegámos a conseguir ir à Baía dos Tigres. Estivemos na Floresta do Maiombe, em Cabinda. Estivemos no Uige, estivemos em Malanje, nas Quedas de Calandula, as Cataratas de Calandula. Depois filmámos muitas coisas à volta da zona onde eu cresci, que foi no Lubango, na Comuna da Huíla, na zona do ISPT, que é o Instituto Superior Politécnico de Tundavala e que tem uma mata enorme atrás, usámos como backlot. Obviamente, só depois disso é que conseguimos, numa segunda viagem, organizar a chegada à Baía dos Tigres, que envolve toda uma logística complicadíssima. Entre muitas aventuras possíveis, chegar à Baía dos Tigres, à Ilha dos Tigres, que tem cerca de 30 km de comprimento por uns 11 Km de largura, mas que tem construções concentradas... chegar de barco implicava sair da povoação mais próxima, num barco, que provavelmente seria uma traineira, que levaria 6 a 7 horas a chegar à ilha. Fazer um percurso longitudinal desde o Parque Nacional da Reserva Natural do Iona até ao embarcadouro, que se usa para ir para a Ilha dos Tigres, seria impensável porque a costa continental é toda cheia de poços de areia movediça. Então, a única maneira de chegar ao embarcadouro, sem ser engolido pelas areias movediças, é fazê-lo a uma certa hora da manhã, quando durante cerca de 50 minutos a maré está baixa. Temos de ir quase em excesso de velocidade, em veículos 4x4, pela zona molhada de areia, a partir da cidade do Tômbua, e fazer um percurso que demora mais de uma hora a fazer dentro daquela janela temporal. Caso contrário, ficamos ou atolados pelas ondas ou atolados na areia, onde, aliás, se conseguem ver muitos destroços de experiências fracassadas neste género. Ao chegar ao tal embarcadouro, que é um sítio muito tosco, muito improvisado, está lá alguém com quem nós marcamos. É uma pessoa que se contrata com um barco, uma espécie de lancha. Depois fazemos um percurso de quase uma hora de barco por entre bancos de areia, num mar muito, muito agressivo, cheio de fauna, orcas, focas que espreitam da água a olhar para nós, pássaros que passam rasantes, chuva constante, até que, de repente, começa no horizonte a surgir aquela cidade fantasma, assim, meio embrulhada no nevoeiro. Vê-se logo uma igreja amarela, uma coisa assim … , parece uma aparição. Há um misticismo à volta da experiência de lá chegar que o meu filme nunca conseguirá mostrar, por mais que eu me esforce, e que é muito difícil de captar. Eu tento, no filme, captar esse misticismo e essa fantasmagoria de maneiras diferentes. Criando alegorias, como o filme tem esta ideia da memória que se apaga. Eu imagino o filme um bocadinho como uma cassete ou uma bobina daquelas antigas, que tem de ser desmagnetizada, mas às vezes não fica completamente desmagnetizada, e, por isso, quando vamos gravar algo em cima, sobram restos de fantasmas de gravações passadas. Fisicamente, o filme tenta ir atrás dessa ideia que está a ser gravada uma nova existência por cima de uma existência prévia, mas estão lá fantasmas abstratos, sobrespostos, ruidosos, e que são fantasmas da História do século XX, transversais a várias culturas. RFI: São fantasmas do período em que a Angola estava colonizada por Portugal? São fantasmas da Guerra da Libertação? Carlos Conceição: É impossível não serem também esses fantasmas. Mas eu acho que são fantasmas do mundo contemporâneo, são fantasmas de 2025, são fantasmas do que está a acontecer em Gaza, do que está a acontecer na Ucrânia, são fantasmas deste ressurgimento da extrema-direita, são fantasmas do novo espaço que as ditaduras estão a ganhar, são fantasmas de coisas que deviam estar enterradas e não estão, e são fantasmas com várias origens. O filme tem, em certos momentos, elementos sonoros que vêm de discursos do Hitler, de Mussolini, de Oliveira Salazar, o Savimbi, a voz da Hanoi Hannah, que era uma vietnamita que transmitia mensagens aos soldados americanos a dizer, “vão-se embora, porque vocês vão morrer, o vosso governo traiu-vos”, e ela também aparece como um fantasma neste filme. Portanto, são esses fantasmas todos que, vindos do passado, constroem o presente. O momento presente que nós estamos a viver no mundo, é todo feito desses restos, na minha opinião, mal enterrados. RFI: O cinema é uma ferramenta para lidar com esses fantasmas? Carlos Conceição: Há uma certa obrigação antropológica em algum cinema, há uma responsabilidade histórica que o cinema deve atentar, mas eu não creio que o cinema deva ser uma arte utilitária exclusivamente. Acho que o cinema é mais interessante quanto mais livre for, e se calhar quanto mais fútil for. Eu vejo o cinema como uma espécie daqueles discos que se gravam e se mandam para o espaço, e acredito que daqui a uns anos, quando nós já cá não estivermos, vai aparecer uma espécie alienígena qualquer, ou uma espécie mais inteligente que nós, que tem estado aí escondida, que não aparece por nossa causa, e que vai descobrir uma carrada de filmes, e vai dizer, olha que interessante que era esta espécie que se autodestruiu. E é para isso que eu acho que o cinema serve. Eu vejo cada filme que faço como uma espécie de filho, até porque fazer um filme é uma espécie de gestação, dura o tempo de uma gestação, alguns mais, alguns trazem as minhas dores de cabeça comparáveis. E às vezes nós perguntamos para quê. Para mim essa é a resposta: é para deixar qualquer coisa, para deixar um legado, para deixar uma marca. Para deixar qualquer coisa que ajude a perceber como é que as coisas eram, como é que deviam ter sido, como é que não foram, por aí fora. RFI: Os primeiros filmes do Carlos Conceição foram curtas-metragens, os últimos três trabalhos foram longas-metragens. Não há uma vontade, não pode haver um desejo de voltar às curtas? Carlos Conceição: Eu penso que o universo das curtas, a existência cultural das curtas, é interessante, mas limitada. Eu fui muito feliz a fazer curtas-metragens, cheguei a dizer que me apetecia fazer curtas para sempre. O meu penúltimo filme, na verdade, não é uma longa-metragem, é uma média-metragem, tem 59 minutos, e eu tenho outro filme com 59 minutos para lançar em 2026. Esse formato de uma hora, para mim, é perfeito. Permite-se uma estrutura de curta-metragem em que nem tudo precisa de lá estar, de ser causa e efeito, nem de estar pejado de consequências, nem hiper-explicado, e ao mesmo tempo também não abusa das boas-vindas que recebe do público.Portanto, gosto de filmes que contêm esse universo mais curto, de certa forma. Para além do filme de 59 minutos que quero estrear para o ano que vem, se tiver sorte, também tenho uma ideia para uma curta-metragem que é toda feita com material que eu já tenho filmado, e que tem a ver com Angola também, curiosamente. Mas é uma curta muito mais sensorial e vai ser como música visual, vai ser baseado em ritmos de planos, e tempos e durações de planos, e o que é que corta para onde. Isso é um exercício que eu sinto que me agrada e que é uma coisa que eu quero fazer, que eu consigo fazer sozinho também. Até porque acho que estou precisando tirar umas férias depois desta maratona que têm sido os últimos três anos, talvez. RFI: Fazer sozinho é? Carlos Conceição: Quando eu digo fazer sozinho, às vezes refiro-me a ser só eu com uma câmera na mão, por exemplo, mas isso não quer dizer que depois a montagem vá ser eu sozinho. Eu gosto de pedir opinião às pessoas e depois já me aconteceu em determinados projetos eu saber exatamente como é que a montagem tende a acontecer, e seria eu dizer à pessoa que está comigo a montar que devíamos fazer assim, devíamos fazer assado, de forma a ir ao encontro da minha ideia. Já me aconteceu, como também acontece em particular no filme Baía dos Tigres, eu ter uma ideia e ficar à espera de ver o que é que a Mariana Gaivão tem para propor dentro da mesma ideia, enquanto montadora o que é que ela me vai contra-propor. E ela diz-me, dá-me dez minutos e volta daqui a dez minutos. E eu volto e ela tem uma proposta para fazer. A maioria das vezes estamos completamente síncronos. Acho que é muito importante essa parceria. Portanto, nós nunca estamos realmente sozinhos. Quando eu digo que posso fazer essa curta sozinho, eu acho que é material que eu fui juntando de outras rodagens, de outras coisas que não utilizei no Nação Valente, de coisas que não utilizei neste filme, e que eu acho que consigo sozinho em casa juntar e criar algo interessante com aquilo. É nesse sentido que digo fazer sozinho. Mas a verdade é que eu dependo sempre, obviamente, do meu colega Marco Amaral, que é o colorista que vai depois pôr aquilo com bom aspecto porque eu não sou diretor de fotografia, por isso ele tem de me salvar, de certa forma. Dependo, obviamente, de quem vai ajudar a fazer a montagem de som e a mistura de som. E, normalmente, eu trabalho com um núcleo muito duro, quase sempre a mesma família. Portanto, quando digo sozinho, às vezes posso estar a dizer que estou a autoproduzir, ou posso estar a dizer que é algo que eu consigo, se calhar, manufaturar, fazer de uma forma menos comunitária, menos convencional, menos industrial. RFI: O Carlos Conceição gosta de trabalhar com um núcleo duro, um núcleo próximo, o ator João Arraias faz parte desse núcleo. O que é que o faz investir nessa relação? Carlos Conceição: Há duas, três dimensões na resposta que eu posso dar. Em primeiro lugar, o João é um ator com capacidades únicas, que eu reconheço como muito valiosas e isso para um realizador é ouro. Pedir a um ator uma ação com meia dúzia de palavras e ele dar-nos exatamente aquilo ou, se calhar, melhor, não acontece todos os dias. Portanto, quando um ator tem esse super poder, nós agarramos nele e nunca mais o deixamos ir. A segunda questão tem a ver com o facto que eu me revejo imenso no João. Ele tem menos de 15 anos do que eu, quase 16, e houve uma altura, quando ele tinha 16, 17, era impossível, para mim, olhar para ele e não me estar a ver a mim. Houve vários filmes que surgiram por causa disso, nomeadamente o Versalhes, o Coelho Mau, e o Serpentário sem dúvida nenhuma. A terceira coisa é que nós somos muito amigos e trabalhar com amigos é o maior prazer do mundo. RFI: Baía dos Tigres teve a estreia mundial no Festival Internacional de Cinema DocLisboa, na origem dedicada aos documentários. Podemos identificar a Baía dos Tigres como um documentário? Carlos Conceição: O Godard dizia que todos os filmes são documentários sobre a sua rodagem, o seu processo de serem feitos. O Baía dos Tigres é uma ficção filmada segundo alguns credos do documentário. É tudo quanto posso dizer. Por ser o realizador do filme e o argumentista do filme, talvez não seja a pessoa mais indicada para o definir nesse sentido. Aliás, os filmes, normalmente, e é uma ideia que eu costumo tentar vender, os filmes não são como são por acidente ou por ingenuidade ou porque a pessoa que os fez não soube fazer melhor. Os filmes são normalmente resultado de um período de deliberação que é longo, ardo, obsessivo e desgastante para o seu realizador. Portanto, não há filme nenhum que seja como é porque o realizador não sabia fazer melhor. Isso quer dizer que, de certa forma, cada filme dita a sua própria gramática. E eu acho que é muito interessante que possa haver fusões entre os sistemas clássicos narrativos e as formas do documentário, o cinema mais contemplativo. Eu gosto, por exemplo, do cinema do Andy Warhol. Eu nunca me sentei a ver o Empire State Building durante oito horas, mas só saber que existe … Eu já vi aos bocados, não é? Mas saber que este filme existe e que pode ser visto dessa maneira, para mim, é uma fonte de inspiração enorme. Da mesma maneira, o James Benning, vários filmes da Chantal Akerman, tudo isso são manifestações cinematográficas de fusão que eu considero que quebram todas as gaiolas e acho que importante, se calhar, para lutar contra o mainstream. Eu acho o mainstream um bocadinho o inimigo principal do crescimento da arte. O mainstream obriga a fazer comparações, obriga a manuais. Acho que não há nada melhor para quebrar com essas gaiolas do que revisitar estes filmes de que eu estava a falar. RFI: Em relação a novos projetos, o que é que está a acontecer? Em off, tinham-me falado de um projeto sobre ópera. O que é que está para vir? Carlos Conceição: Eu tenho, neste momento, três projetos para serem lançados. Um é uma media-metragem de 59 minutos, do qual já tínhamos falado há pouco. O outro é um filme, uma longa-metragem que é uma experiência em linguagem mainstream, por assim dizer, que se chama Bodyhackers. E o terceiro projeto. que é o mais recente, ao qual eu dediquei os últimos 14 meses da minha vida, é um projeto para televisão e para cinema que envolve ópera. São narrativas separadas, autónomas, todas elas com um compositor português, algumas baseadas em fontes literárias, algumas dessas óperas, mas são essencialmente segmentos operáticos que resultarão simultaneamente num filme e numa série de televisão. RFI: O Carlos Conceição nasceu em Angola, viveu em Angola até hoje 22 anos, vai frequentemente a Angola. Qual é a imagem que tem do cinema produzido em Angola? Como é que olha para aquilo que acontece em Angola a nível da produção cinematográfica? Carlos Conceição: Gostava de ver mais, gostava de ver em mais sítios e gostava de ver mais pluralidade. Acho que estamos num momento perfeito para que se revelem novos talentos e comecem a aparecer mais pessoas e mais pessoas arrisquem. Qualquer pessoa com um telemóvel, neste momento, consegue fazer um filme e acho que não deve haver o medo de partir para essa aventura. Hoje em dia temos o HD disponível nos nossos telemóveis, nos smartphones, até nos mais corriqueiros. O que eu acho é que o cinema mais interessante, às vezes, surge daí, surge justamente daquela recusa à inércia. Há um filme dentro de nós, ele pode sair de qualquer maneira e sai. Basta nós queremos que ele saia e ele vem cá para fora. RFI: Já teve oportunidade de visionar algum produto assim feito, feito em Angola? Carlos Conceição: Sim, em particular um filme que eu comprei num semáforo em DVD e que me parece que não era uma versão final de montagem porque tinha a voz do realizador a dar instruções aos atores. Era um filme absolutamente inacreditável sobre uma mãe e umas filhas à procura de vingança por uma coisa que lhes tinha acontecido. Uma mulher que tinha sido injuriada a vida inteira, que usava uma pala no olho e as filhas quando tinham um desgosto morriam com uma hemorragia através da pele. O filme é de tal maneira incrível na sua imaginação que eu fiquei absolutamente estarrecido, senti-me uma formiga perante aquele filme que foi feito num subúrbio de Luanda para ser consumido num subúrbio de Luanda. Eu senti que a genialidade por trás daquilo era uma coisa que devia ser descoberta e valorizada. Ou seja, isso existe em Angola, por isso acho muito importante ir à descoberta disso.

Lutero Simango, líder do MDM, Movimento Democrático de Moçambique, na oposição, esteve em Paris nestes últimos dias para participar nomeadamente no Fórum para a Paz organizado pelo executivo francês, com na ementa questões como a protecção do meio ambiente ou ainda o multilateralismo num mundo fragmentado. Nesta quinta-feira 30 de Outubro, o líder do quarto partido mais votado nas eleições gerais de 2024 em Moçambique esteve nos estúdios da Rádio França Internacional. Lutero Simango abordou com a RFI alguns dos destaques da actualidade do seu país, designadamente a situação em Cabo Delgado e o regresso da TotalEnergies anunciado há uma semana. Ele sublinhou a este respeito a necessidade de se conhecer os termos exactos do contrato existente entre o Estado Moçambicano e o gigante dos hidrocarbonetos. Neste sentido, ele vincou que é preciso "garantir a transparência". O responsável político evocou igualmente o contexto económico e social um ano depois da crise pós-eleitoral, com dados oficiais a indicarem que cerca de 3 mil pessoas permanecem sem emprego nem compensações depois da vandalização das suas empresas. Um desafio perante o qual Lutero Simango considera que é preciso criar um ambiente de negócios mais atractivo, para impulsionar a economia. "Nós temos que criar um ambiente em que a população tenha acesso ao emprego, que a população tenha acesso aos alimentos e que a população também tenha acesso à dignidade", insistiu. Antes destes aspectos, o líder do MDM começou por evocar de forma breve o motivo da sua deslocação a Paris. RFI: Esteve nestes últimos dias aqui em Paris, a participar, designadamente no Fórum para a Paz. Como é que foi este fórum? Lutero Simango: Foi interessante e esse fórum teve o lema de reinventar a diplomacia em fase de mudanças. RFI: Relativamente ainda à sua estadia aqui em Paris, manteve também encontros com as autoridades aqui em França. Lutero Simango: Sim. Tive um encontro no Ministério dos Estrangeiros, nomeadamente no Departamento africano. RFI: E, portanto, qual é o balanço que faz deste encontro? Alguma novidade? Lutero Simango: Novidades como tal ainda não existem, mas foi importante de partilhar o nosso pensamento sobre a situação política socioeconómica de Moçambique. E também falámos sobre a situação mundial e do papel que o MDM está a desempenhar no processo do Diálogo nacional inclusivo em Moçambique. RFI: Antes de evocarmos essa questão, se calhar iríamos fazer um pouco um balanço deste ano que passou. Há precisamente um ano, estávamos em plena crise pós-eleitoral. Um ano depois, qual é o balanço preliminar que se pode fazer? Lutero Simango: Um balanço? É difícil fazer. Mas o que se pode assegurar é que a situação está calma. Mas essa acalmia não significa que o descontentamento não existe. Ainda persiste. As pessoas estão saturadas e os níveis da pobreza tendem a subir. Como é sabido, já há dez anos atrás os níveis andavam em 40% e ultimamente andam na casa de 60 a 70%. Há duas semanas foi publicado o índice da pobreza e a posição em que se encontra Moçambique não é boa e também não podemos ignorar os níveis de corrupção generalizada que persiste e os níveis de desemprego. Tudo isto cria uma situação difícil para a nossa população. RFI: Nestes últimos dias foram publicados dados sobre o balanço para a população de Moçambique de todos estes incidentes e nomeadamente, o facto de persistirem 3 mil pessoas sem indemnizações, sem emprego, depois de as suas empresas terem sido destruídas. Lutero Simango: É isso mesmo. Essa é uma situação dramática. É uma situação difícil que nós vivemos. Para ultrapassar, isso requer políticas de reformas e, acima de tudo, requer que o governo assuma o compromisso de um combate real à corrupção e também crie um ambiente propício para os negócios. Porque neste momento que estou a falar aqui consigo, torna-se muito difícil investir em Moçambique pelos níveis de corrupção, pelos níveis de sequestro e rapto, pelos níveis da criminalidade. No entanto, é preciso que se dê uma volta em relação a tudo isto. Nós precisamos de criar um ambiente de segurança e também criar um ambiente de confiança nas instituições públicas. RFI: A União Europeia retirou nestes últimos dias Moçambique da sua "lista cinzenta" em termos de criminalidade ligada, por exemplo, com lavagem de capitais. Julga que isto pode ser um bom sinal? Lutero Simango: Bem, eu também vi a retirada da "zona cinzenta", mas o problema não está por aí, porque nós temos que criar um ambiente em que a população tenha acesso ao emprego, que a população tenha acesso aos alimentos e que a população também tenha acesso à dignidade. Nós sabemos de antemão que em Moçambique muitos trabalham de um dia para se alimentar no dia seguinte. E há níveis de corrupção. E também a nossa economia não está a gerar oportunidades de negócios, muito menos de emprego. E a pergunta se coloca é esta como é que as pessoas estão a sobreviver? Quais são os meios que usam para a sua sobrevivência? Portanto, eu penso o grande desafio que nós temos todos fazer, é trabalhar, é criar um ambiente para que a nossa economia seja, de facto, uma economia vibrante. É a condição necessária de criar oportunidades e emprego aos cidadãos. Quando o índice de desemprego tende a aumentar cada vez mais, cria um maior espaço para o branqueamento do capital. Cria maior espaço para o desemprego. Portanto, eu penso que não basta retirar Moçambique da "zona cinzenta". É preciso criar condições para que a nossa economia possa potenciar as pequenas e médias empresas. Esta é a condição necessária de promover o emprego aos cidadãos. RFI: Entretanto, o Governo também diz que está a envidar esforços, designadamente com gabinetes exteriores, para tornar a dívida do país mais sustentável. O que é que acha deste anúncio? Lutero Simango: A dívida, para que ela seja sustentável, mais uma vez, requer que tenha uma economia vibrante. Enquanto o Estado moçambicano continuar a criar empréstimos junto dos bancos comerciais para garantir salários aos funcionários públicos, torna-se muito difícil atingir esse objectivo. Enquanto o Estado moçambicano não conseguir reembolsar o IVA aos empresários a tempo útil, torna-se muito difícil atingir esse objectivo. Portanto, mais uma vez, nós precisamos estabelecer uma estratégia que possa garantir incentivos para as pequenas e médias empresas. E temos que ter uma estratégia que possa garantir uma revisão da política fiscal que não seja uma política fiscal punitiva, mas sim, promova a entrada dos investimentos nacionais e estrangeiros. RFI: Relativamente à qualidade do diálogo entre o partido no poder e os restantes partidos, como é que estamos neste momento? Lutero Simango: Até esse momento, o diálogo está no seu curso. Está-se a realizar a auscultação pública e, acima de tudo, esse diálogo vai requerer e vai exigir a todos nós, a vontade política de assumirmos de que temos que fazer as reformas no nosso país. Esta é a condição necessária para devolver a confiança nas instituições à população moçambicana. É a condição necessária de garantir que as liberdades e a democracia sejam respeitadas. E, por isso, o grande desafio que nós temos ao longo deste diálogo nacional inclusivo, é assumirmos de que temos que fazer as reformas, quer na área constitucional, quer no pacote dos assuntos eleitorais e também no sistema judiciário. E acordarmos sobre as grandes políticas públicas na educação, saúde, na exploração dos nossos recursos e na política fiscal, em que o rumo nós queremos que o nosso país possa e deve seguir. Porque nós não podemos pensar só em nós. Temos que começar a montar as bases para que as futuras gerações possam ter um ambiente de dignidade, de felicidade e o bem-estar. RFI: Tem alguma proposta concreta em termos de reformas? Lutero Simango: Claro. O meu partido tem propostas concretas e nós sempre debatemos ao longo desses últimos anos, desde a nossa criação, de que nós precisamos ter uma Comissão da República que respeite os princípios e os valores de um Estado de Direito, que respeite os princípios da separação dos poderes, em que nós tenhamos um sistema judiciário com autonomia administrativa e financeira e que os presidentes dos tribunais sejam eleitos entre os seus pares e não na base de uma confiança política. E também nós somos pela revisão da política fiscal. E também defendemos de que é preciso despartidarizar o Estado moçambicano. Nós não podemos continuar a ter um Estado moçambicano que dependa de um partido político. Nós queremos que tenhamos um Estado moçambicano que não esteja sob o controlo de um partido político, porque a democracia é isso. A democracia que nós queremos é que haja, de facto, alternância democrática. E essa alternância democrática tem que ser via as urnas e não por uma imposição. Portanto, o desafio que nós todos temos é que as reformas sejam feitas como a condição necessária de garantir a paz efectiva, a estabilidade, para que se torne Moçambique numa sociedade dialogante, inclusiva e participativa. E pessoalmente, tenho a fé e tenho a confiança que é possível fazer. E se não o fazemos agora, vamos perder a grande oportunidade de resolver os nossos problemas. E se não fizermos as reformas agora, nas próximas eleições corremos o risco de transformar o país num caos e entrar num novo ciclo da violência. RFI: O governo disse ultimamente que iria fazer um balanço do que sucedeu, que vai fazer um relatório sobre os Direitos Humanos em Moçambique. Julga que isto, de facto, vai ser fiel aos acontecimentos? Lutero Simango: O relatório não pode ser elaborado por quem é um actor do processo. Seja qual for o relatório, para que seja um relatório independente, que dê garantia, que dê confiança, tem que ser feito por uma entidade independente, por uma entidade que não tem interesse no processo. RFI: Ainda relativamente à questão dos Direitos Humanos, fez este mês oito anos que começou a onda de violência em Cabo Delgado. Nestes últimos meses, esta situação tem vindo a piorar e inclusivamente estendeu-se também à zona de Nampula. Qual é a avaliação que se pode fazer da situação neste momento no norte de Moçambique? Lutero Simango: É uma situação difícil. É uma situação complexa. É uma situação que nos remete a uma análise profunda, objectiva e mais realística, porque a experiência da vida nos ensina que um qualquer movimento de guerrilha ou uma insurreição armada, quando consegue sobreviver a esse tempo, neste caso concreto, de oito anos, temos que nos questionar e temos que perceber que, queiramos ou não acreditar, tem um certo apoio da base local. Nenhum movimento de guerrilha sobrevive muito tempo se não tiver apoio local. Eu, muitas vezes, dou um exemplo concreto do Che Guevara quando tentou lançar a guerrilha na Bolívia, não sobreviveu porque não teve apoio local. Vamos ser honestos, quem consegue conduzir essa insurreição armada durante oito anos, sobrevive e não consegue ser eliminado, tem apoio local. Então, temos que ter a coragem de usar a nossa inteligência para perceber e compreender qual é a motivação deste conflito e quem são as pessoas que apoiam e qual é a sua retaguarda segura em termos de logística, em termos do apoio e também de treinamento. Em função disso, tomar uma decisão política que para mim, passa necessariamente em abrir uma janela de diálogo. Temos que abrir uma janela de diálogo. RFI: Mas dialogar com quem? Lutero Simango: É por isso que a nossa inteligência tem que investigar para perceber qual é a motivação, qual é a origem deste movimento e qual é a sua retaguarda de apoio. E é possível encontrar com quem se dialogar. RFI: Há também quem acredite que, paralelamente, lá está, a todo esse trabalho de inteligência, é preciso também criar condições socioeconómicas para incentivar a juventude de Cabo Delgado a não ir para as fileiras dos jihadistas. Lutero Simango: Concordo. E é por isso eu disse de que se esse movimento conseguiu sobreviver a esses oito anos, é porque teve ou continua a ter um certo apoio local. E esse apoio local resulta pela incapacidade do Estado moçambicano em satisfazer as condições básicas da população destas zonas de conflito. E por isso é que a nossa inteligência tem que ser muito hábil para responder a essas questões que eu coloquei. E em função disso, temos que abrir uma janela de diálogo e o diálogo é importante para resolver o problema. RFI: Quanto à vertente militar? Lutero Simango: Na vertente militar, nós temos que ter a coragem de reconhecer de que o nosso exército precisa de mais formação, precisa de equipamento e também voltamos à base das reformas. Temos que ter a coragem de fazer reformas nas nossas forças de defesa e segurança. Temos que ter um exército terrestre com capacidade combativa. Temos que ter uma Força Aérea e temos de ter uma força naval e para isso temos que criar condições para isso. O que significa também que é preciso encontrar recursos, não só recursos humanos, que já existem, mas também os recursos financeiros. Portanto, nós temos que discutir seriamente que tipo de exército, que tipo de forças Armadas, nós precisamos para Moçambique. E não podemos esquecer que Moçambique possui uma longa costa e que ela tem que ser protegida. RFI: Julga que há vontade política para apostar em mais meios para, de facto, tirar Cabo Delgado dessa espiral de violência? Lutero Simango: Aqui não se trata de vontade política. Trata-se de uma questão de soberania e da segurança do nosso povo. Se nós queremos ter a garantia da nossa soberania, se nós queremos garantir a segurança para a nossa população, então temos que ter as forças de segurança em altura para garantir a segurança, a estabilidade, a paz em Moçambique. RFI: Entretanto, é precisamente nesse contexto delicado que a TotalEnergies levanta a cláusula da "força maior" através da qual manteve as suas actividades suspensas desde 2021. Portanto, está prestes a retomar as suas actividades em Cabo Delgado. A seu ver, como é que se pode explicar essa escolha numa altura em que há violência em Cabo Delgado? Lutero Simango: Parece que eles têm a certeza de que a existência das tropas estrangeiras, nesse caso, as tropas ruandesas, garantem a segurança. Mas eu gostaria de olhar em relação a esse assunto de uma forma global, porque Cabo Delgado faz parte de Moçambique. Cabo Delgado é um território dentro do território moçambicano. Então, quando nós falamos da segurança e da soberania, estamos a falar do todo o território nacional, do Rovuma ao Maputo, do Zumbo ao Índico. Portanto, eu prefiro discutir o assunto no âmbito da segurança geral do país em defesa da nossa soberania. RFI: A TotalEnergies tornou pública uma carta que mandou às autoridades, condicionando o seu regresso à concessão de mais de dez anos para explorar o gás em Cabo Delgado. O que é que acha dessa iniciativa? Lutero Simango: Ela pode ser boa ou pode ser má. O dilema que nós temos relativamente a todo o processo de exploração dos nossos recursos é a ausência de transparência. Eu não conheço o contrato que foi assinado, nem sei em que termos foi assinado, em que condições foi assinado. Portanto, é importante que, quando se trata desses grandes negócios, haja transparência. É com a transparência no domínio dos contratos que todos nós estaremos em condições de dar uma opinião mais correcta. Agora, se quer ficar mais dez anos, o que implica isso? Dêem-nos o contrato para a gente ter acesso e para podermos falar. RFI: ONGs consideram que a TotalEnergies está praticamente a fazer Moçambique refém das suas vontades. Lutero Simango: Isso só pode acontecer se não houver transparência. E por isso, eu estou a falar aqui de que nós temos que conhecer os contratos. Temos que conhecer o conteúdo, os termos de referência, para podermos estar à altura, para dar uma opinião mais justa. E também há outro elemento que é sabido e que o MDM sempre defendeu em particular. Quando eu fui candidato às presidenciais, defendi com muita garra que é preciso renegociar os contratos. Entretanto, se quiserem ficar mais dez anos, então vamos renegociar o contrato e estabelecer os novos termos, as novas modalidades. RFI: Pensa que as autoridades neste momento instaladas em Maputo, terão mais abertura, mais condições para efectivamente tornar públicas ou, pelo menos, divulgar aos deputados aquilo que foi acordado com a TotalEnergies? Lutero Simango: Têm a obrigação. Porque se não divulgarem, se não tornarem o contrato do domínio público, ninguém vai acreditar no posicionamento do governo. Portanto, a melhor forma de resolver esse problema é tornar o contrato público, é garantir a transparência e também poderá ser o grande instrumento de combate à corrupção. RFI: De forma mais global, e para concluirmos esta entrevista, como é que olha para a actualidade do seu país neste momento? Lutero Simango: Nós todos temos que trabalhar no sentido de renovar a esperança. Nós temos que renovar a esperança nos moçambicanos e por isso estamos engajados neste processo de diálogo nacional inclusivo e queremos que todos tenham a vontade política de resolver os nossos problemas. E os moçambicanos devem participar de uma forma activa e devemos evitar diabolizar o processo. Se diabolizarmos o processo, estaremos a cometer o mesmo erro que foi cometido em 1974 e 1975 quando Moçambique estava num processo para alcançar a sua independência nacional. É por isso que esse processo tem que ser inclusivo, tem que ser participativo e ninguém deve ficar fora. E ninguém deve diabolizar o outro, para permitir que todos os moçambicanos participem de uma forma efectiva, para que as reformas possam ocorrer. E nesse processo, não pode haver os mais importantes, os menos importantes. Todos temos responsabilidades, todos temos o dever e o direito de contribuir para que Moçambique possa atingir as reformas que se pretendem, pôr Moçambique nos carris do desenvolvimento, da paz, da estabilidade e da segurança para todos.

O Chefe de Estado dos Camarões, Paul Biya, acaba na segunda-feira de ser declarado oficialmente vencedor das presidenciais com um pouco mais de 53% dos votos, face ao seu principal rival Issa Tchiroma Bakary, com um pouco mais de 35% dos sufrágios. Biya, 92 anos, encaminha-se deste modo para um oitavo mandato de sete anos, apesar de o seu adversário Tchiroma ter vindo a reclamar a vitória antes mesmo da divulgação dos resultados definitivos das eleições de 12 de Outubro e apesar da forte contestação na rua, com um balanço de pelo menos quatro mortos e múltiplos danos materiais. A repressão das manifestações da oposição no passado fim-de-semana com denúncias de um uso excessivo da força pelas autoridades mereceram condenações por parte da União Africana e da União Europeia que se declararam "preocupadas com as violações dos Direitos Humanos", enquanto as Nações Unidas apelaram, por sua vez, à "contenção, à abertura de investigações e ao fim da violência". Apesar de o poder ter anunciado que pretende responsabilizar penalmente Tchiroma pelos incidentes dos últimos dias, o líder de oposição apela os seus apoiantes a permanecer "determinados mas pacíficos". Este contexto tenso vem sobrepor-se a uma situação já por si delicada, num país onde se estima que 40% dos habitantes vive abaixo do limiar da pobreza, onde permanece activo o conflito entre a maioria francófona e a minoria anglófona da população e onde ataques esporádicos de grupos jihadistas colocam em questão a segurança do território. Para o professor de Relações Internacionais na Universidade Técnica de Angola, Osvaldo Mboco, a reeleição de Paul Biya pode ser um indicador das "fragilidades das instituições africanas". RFI: Depois de mais de quarenta anos no poder, Paul Biya foi reeleito para um oitavo mandato. Como se pode interpretar esta situação? Osvaldo Mboco: A vitória do Presidente demonstra, até certo ponto, as fragilidades das instituições africanas na corporação do próprio processo eleitoral. Durante os 42 anos de governação, o país não tem conhecido grandes avanços significativos do ponto de vista económico, social e político. E isto agrava-se em função daquilo que é a visão dos jovens que querem mudança. Ou seja, se maioritariamente os eleitores são jovens, que não estão comprometidos com a história e que já nasceram com o Presidente no poder, esses jovens querem a alternância política. Então, é uma vitória, até certo ponto, agridoce, à medida em que há vários distúrbios e até pessoas que morreram, fruto das reivindicações daquilo que provavelmente foi um resultado eleitoral que não corresponde à vontade popular dos eleitores nas urnas. E tanto era assim que o seu principal opositor Issa Tchiroma reclama a vitória e cenários como estes têm estado a acontecer não só agora nestas eleições. Se nós nos lembrarmos Maurício Kamto, que no processo eleitoral passado foi o segundo candidato mais votado, também reclamou e juridicamente foi impedido de concorrer às eleições deste ano. O Presidente tem uma idade já avançada e é o Presidente que está no poder há mais tempo a nível do continente africano. Está agora com 92 anos. Quando terminar o seu mandato, estará aproximadamente com 99 anos. E todos nós sabemos as limitações humanas de um indivíduo que já está com uma idade acima dos 90 anos. Isto também não é bom para a consolidação do Estado de Direito democrático e pensamos que este mandato será completamente desastroso em função das reivindicações, das críticas e das reclamações que apontam irregularidades e a falta de transparência no próprio processo eleitoral. RFI: O principal rival de Paul Biya, Issa Tchiroma Bakary, reclama para si a vitória nas presidenciais. É previsível que as manifestações continuem, que haja uma espécie de movimento de desobediência civil que venha a prolongar-se e que haja mais incidentes? Osvaldo Mboco: A reclamação da oposição ou de quem está na oposição em África dos resultados eleitorais é comum e é transversal em muitos países africanos. Normalmente, os partidos políticos na oposição e os candidatos na oposição reclamam as irregularidades do processo, a falta de transparência e, muitas vezes que os resultados atribuídos não representam a vontade popular expressa nas urnas pelos eleitores. Mas em muitos casos, elas têm fundamento em função do próprio processo eleitoral, que não é inclusivo, não é participativo. Em alguns momentos, não é transparente e há alguns incidentes que decorrem do próprio processo eleitoral. Entretanto, as manifestações poderão continuar ao nível do país, com uma situação tensa. Também a África já nos brindou com muitos exemplos em que as manifestações pós-eleitorais normalmente não alteram o resultado eleitoral. Elas continuam. Muitas pessoas morrem, o governo aumenta aquilo que é o aparato policial e militar, também acaba por militarizar as ruas. Mas ainda assim, não recua do ponto de vista dos resultados eleitorais, porque entende que este é um período de tensão, de crise e que atinge o seu momento mais alto, mas depois, tendencialmente vai decrescendo e depois volta-se à normalidade do próprio país. RFI: Julga que o poder vai negociar com a parte adversa para se chegar a um entendimento e acalmar a rua? Osvaldo Mboco: Bem, eu penso que é uma das saídas, mas se ela (a oposição) faz essa negociação, ela automaticamente também perde o apoio popular ou do segmento da população que está a manifestar. E se cai no descrédito, é muito perigoso para querer se reeleger daqui a sete anos. Pode pagar uma factura muito alta do ponto de vista político, daquilo que são as suas pretensões e ambições. Não estou aqui a defender que o candidato da oposição deve empurrar os jovens às ruas para manifestarem como se fossem carne de canhão. Mas estou aqui a dizer que ele deve se posicionar como um político na oposição e pressionar a acção governativa. Não deve estar a mentalizar os jovens para ir às ruas, porque os jovens reconhecem e sabem o seu posicionamento, a sua visão enquanto eleitores. Mas estou aqui a dizer que ele deve também se posicionar enquanto líder na oposição que vai reivindicar aquilo que são os resultados eleitorais. Mas é importante sublinhar que nenhuma campanha política, nenhuma ambição política de se chegar à presidência, deve estar acima daquilo que é o interesse nacional, deve estar acima daquilo que é a segurança e a estabilidade do próprio país, deve estar acima daquilo que é o bem maior que é a vida humana. Então, é fundamental que o líder da oposição não apele para manifestações violentas ao nível das ruas dos Camarões. RFI: Para além da crise pós-eleitoral, os Camarões também enfrentam uma crise socioeconómica com, em pano de fundo, o eterno conflito entre a parte anglófona do país é a parte francófona. Osvaldo Mboco: Sim, esse tem sido também um dos grandes problemas a que a liderança do próprio Presidente Paul Biya não conseguiu dar respostas. E a forma de governação também afasta um segmento do ponto de vista da unicidade do próprio país. Porque, como fez referência, os Camarões, basicamente, são um país dividido com uma parte anglófona e outra francófona. E isto pode e cria algum desequilíbrio de estabilidade. Mas a par disto, à má gestão, à corrupção que se instalou no próprio país, tem também as questões em volta de um terrorismo que vai preocupando o país e, sem grande resposta do ponto de vista de segurança, isto põe em causa a própria estabilidade do país e cria alguma fragilidade do ponto de vista da segurança do próprio país.

Em Portugal foi aprovada a 28 de Outubro a Lei da Nacionalidade, com 157 votos "a favor" dos partidos de direita, e 64 votos "contra" de todos os partidos de esquerda. A lei altera as regras para os estrangeiros obterem cidadania portuguesa e complexifica os critérios para quem não tem origem portuguesa. A proposta tem ainda que ser promulgada pelo Presidente da República, que poderá optar por remetê-la para o Tribunal Constitucional. RFI: Professor José Palmeira, politólogo e investigador na Universidade do Minho, antes de mais, quais são as motivações de quem pretende obter a nacionalidade portuguesa? José Palmeira: As motivações são as mais diversas. Se um cidadão imigrante vem para Portugal e se instala em Portugal, constitui família, tem o seu emprego em Portugal, naturalmente poderá ter o desejo de obter a nacionalidade portuguesa, sobretudo se for um cidadão de fora da União Europeia. Ao obter a cidadania portuguesa, obtém também a cidadania europeia, na medida em que os cidadãos dos Estados-Membros da União Europeia beneficiam de um conjunto de prerrogativas que lhes permitem circular pela Europa e ter acesso a um conjunto de regalias. Têm também obrigações, é verdade. Portanto, desde logo, tem essa vantagem de maior estabilidade do ponto de vista profissional, e do ponto de vista familiar. RFI: Com esta nova Lei, para pedir a nacionalidade portuguesa será necessário ser residente em Portugal há dez anos, em vez dos cinco anos actuais, para os estrangeiros de todos os países. Serão exigidos sete anos de residência para cidadãos dos países de língua portuguesa e da União Europeia. Como interpreta esta distinção em função da origem? José Palmeira: Eu diria que há um objectivo de fazer uma discriminação positiva. No caso dos cidadãos de países de língua portuguesa, têm desde logo, conhecimentos da língua. Por outro lado, esses países de língua portuguesa foram antigas colónias portuguesas. Houve também uma interligação cultural forte com esses países. Nesse sentido, cria-se esta proximidade. E no caso da União Europeia, terá a ver com o facto de que existe a cidadania europeia, isto é, já existe uma proximidade maior entre os cidadãos portugueses e os cidadãos dos outros países da União Europeia. Há então também um objectivo de dar um tratamento de favor a esses cidadãos quando requerem a nacionalidade portuguesa. RFI: Para além destes critérios sobre os prazos de residência, passam a existir novas exigências. Por exemplo: o conhecimento da língua portuguesa, o conhecimento da cultura, organização política e valores democráticos. Os candidatos à nacionalidade portuguesa deverão também assinar uma "declaração solene de adesão aos princípios da República". Isto quer dizer que, por exemplo, um ucraniano, um búlgaro ou um moçambicano que queira pedir a nacionalidade portuguesa terá que a conhecer de cor os nomes de todos os rios portugueses ou, por exemplo, o nome dos reis de Portugal? José Palmeira: O critério vai ser definido pelos autores da regulamentação da lei. Agora, não me parece que seja de exigir a quem vem de fora mais do que aquilo que se exige aos nacionais. Mas por outro lado, se o país precisa - e isso está reconhecido - de imigrantes para alcançar todos os seus objectivos e particularmente os objectivos económicos, então há um objectivo de bem integrar essas pessoas. Devemos criar condições favoráveis a essa integração. RFI: A integração passa pelo conhecimento dos valores democráticos, da organização política e da cultura portuguesa? José Palmeira: No entendimento do legislador, sim. Esses valores não têm que ser assimilados. Isto é, ninguém vai ter que mudar de religião ou mudar de um conjunto de princípios para obter a nacionalidade portuguesa, mas deverá respeitá-los. Aquilo que o legislador pretende é que essa identidade portuguesa não seja colocada em causa, ainda que essa identidade não signifique, como é óbvio, que haja uma única cultura. Hoje as sociedades são multiculturais. Hoje, os países são cosmopolitas e, portanto, depende depois do critério das tais provas de acesso à nacionalidade portuguesa. RFI: A política migratória portuguesa está a evoluir. A Lei de Estrangeiros já está em vigor. A Lei da Nacionalidade foi aprovada a 28 de Outubro. Está em preparação a Lei de Retorno e afastamento de estrangeiros. E foi também recentemente aprovada a lei que proíbe o uso da burca no espaço público. Está Portugal a viver uma ofensiva anti-imigração? José Palmeira: É verdade que é um pouco o ar dos tempos. Portugal e a Europa em geral estão a virar à direita em termos político-partidários. E aquilo que estamos a assistir no caso português é evidentemente um reforço desses valores. Convém também referir que é bom que haja legislação para contemplar situações como, por exemplo, o repatriamento de cidadãos estrangeiros. Muitas vezes isso é efectuado sem que haja respeito pela situação do cidadão que vai ser repatriado. E, portanto, o facto de existir uma lei é muitas vezes para proteger as condições em que acontece. RFI: Falemos agora dos cartazes do Chega. André Ventura, o líder do partido de extrema-direita, tem-se avistado em cartazes eleitorais, com vista às presidenciais de 2026, com mensagens como "Ciganos têm de cumprir a lei" e "Isto não é o Bangladesh". Este tipo de cartaz deve ser considerado como crime ou como liberdade de expressão? José Palmeira: Ora bem, estamos aí numa fronteira que não é fácil definir. Eu diria que compete às entidades judiciais, ao Ministério Público, avaliar até que ponto isso cai numa situação de crime. No passado já tivemos um caso relativamente a cartazes do Chega que acusavam os líderes do PS e do PSD de "corruptos" e o Ministério Público considerou que isso estava dentro do foro político, e que não cabia no foro criminal. RFI: Mas este caso não implicava a existência de um potencial racismo, punível pela lei. José Palmeira: Claro que pode haver, agora esse julgamento compete ao tribunal. Do ponto de vista da política, é inaceitável que haja candidatos ou partidos que discriminem países ou etnias. Não é aceitável do ponto de vista político, numa sociedade que deve ser integradora e não, pelo contrário, afastar pessoas. Agora, o julgamento político é feito pelos eleitores em actos eleitorais e cabe também, se for o caso, um julgamento judicial, se os tribunais entenderem que isso viola leis da República Portuguesa. RFI: Ainda há alguns anos Portugal era visto, nomeadamente por Bruxelas (UE), como uma excepção num panorama de ascensão de partidos de extrema direita e de ideologias racistas. Já não é o caso. Em 2019, pela primeira vez desde o fim da ditadura salazarista, foi criado um partido de extrema direita. Em apenas seis anos o Chega conseguiu eleger 60 deputados e tornar-se o segundo partido na Assembleia da República. Paralelamente, os discursos e actos de racismo têm vindo a ganhar visibilidade na sociedade portuguesa. O racismo não existia antes em Portugal ou estava simplesmente invisibilizado? José Palmeira: O racismo sempre existiu. Aqui a novidade é haver um partido político, um candidato presidencial que utiliza uma linguagem que permite que haja esse tipo de julgamento relativamente às suas opiniões políticas. Por outro lado, essas posições têm registado um crescimento eleitoral muito significativo. Por exemplo, estamos numa pré-campanha para as presidenciais e admite-se a possibilidade de André Ventura chegar à segunda volta destas eleições. Isto de facto não era expectável há poucos anos, como referiu, mas hoje é uma possibilidade que existe, sem dúvida.

Aos 21 anos, o tubista português José Guilherme Neves, natural de Leiria, Cidade Criativa da Música pela UNESCO, integra a nova geração de músicos que alia técnica e curiosidade artística. Em Paris, na Casa de Portugal, André de Gouveia, da cidade universitária, apresenta um programa que cruza Henry Eccles, Telmo Marques, Jacques Castérède e Étienne Crausaz, num diálogo entre o barroco, a modernidade e o folclore, acompanhado pela pianista Ana Teresa Pereira. Nos estúdios da RFI, em Paris, José Guilherme fala com serenidade e humor: “Quando o professor levou o instrumento para a aula, eu disse logo: ‘Mãe, mãe, eu quero tocar isto!'”, recorda. “Acho que foi o som, que me prendeu", acrescenta. A sua iniciação musical aconteceu em Leiria, no projecto Berço das Artes, coordenado pelo professor Paulo Meirinho. “Os meus pais queriam que eu tivesse muitas actividades diferentes: desporto, cultura, música. Nesse projecto, cada semana o professor levava um instrumento novo: uma flauta, um violino, um clarinete. Até que um dia levou a tuba. E foi amor à primeira nota”. Aos oito anos começou pelo eufónio, “porque era demasiado pequeno para tocar a tuba”, e só aos doze o instrumento dos sonhos cabia nos seus braços. “Desde aí nunca mais parei. A tuba tornou-se a minha voz”, conta. A sua relação com o instrumento é física, quase sensorial. “Acho que o que me fascinou foi o som grave e a dimensão. É um instrumento enorme, exige o corpo todo. É um instrumento de respiração. E, ao mesmo tempo, é um instrumento de calma.” Quando fala, há uma doçura inesperada em cada frase, um contraste entre o peso do metal e a leveza da ideia. Hoje, José Guilherme Neves vive em Amesterdão, onde estuda no Conservatorium van Amsterdam, nos Países Baixos. É parte dessa geração de músicos portugueses que se forma fora do país, aprendendo com a exigência das escolas do norte da Europa, mas mantendo uma identidade portuguesa. “Como tubista, o nosso caminho é quase sempre o da orquestra. Somos formados para as provas orquestrais, para conseguir um lugar. Mas eu gosto de explorar outras peças, algumas portuguesas, outras menos conhecidas. Senão uma pessoa acaba por se aborrecer. Está sempre a tocar as mesmas seis ou sete obras e perde-se a curiosidade.” O concerto de Paris é uma afirmação estética, “quis cruzar obras portuguesas e francesas”, explica. “Apesar de o suíço Étienne Crausaz não ser português, a sua obra foi escrita para um festival em Portugal, para um tubista português. E isso faz dela, de certa forma, uma obra portuguesa.” O repertório inclui ainda a Sonatine de Jacques Castérède, “uma das peças francesas mais importantes para o repertório da tuba” e uma obra recente de Telmo Marques, escrita em 2002 e rapidamente adoptada por concursos internacionais. “É uma peça muito bem composta, equilibrada, e pensei que seria interessante juntá-la às outras duas. E as Danças de Crausaz têm uma energia incrível. É uma boa forma de terminar o recital”, explica. A escolha não é aleatória. Há nela um gesto de identidade, um reconhecimento daquilo que o moldou. “Leiria sempre investiu muito na cultura. Desde que foi classificada pela UNESCO, tem criado festivais, concursos de composição, eventos para filarmónicas. Eu cresci nesse ambiente. Toquei em bandas, participei em projectos de música contemporânea e em música de câmara. Tudo isso me formou.” No seu discurso há rigor e método, mas também entusiasmo e humanidade e quando fala das provas de orquestra, a voz ganha outro peso: “Uma prova de orquestra é um processo muito exigente. Normalmente começa com uma ronda por vídeo, temos de enviar gravações com excertos orquestrais difíceis. Depois, se formos escolhidos, há várias rondas presenciais. Muitas vezes, a primeira é feita com cortina, para o júri não ver quem está a tocar. É uma forma de garantir justiça. Tocamos sozinhos, sem ver ninguém. Só se ouve o som. É um momento de muita concentração.” Mesmo quando se vence um concurso de orquestra, o trabalho não termina, “Depois há um período de meses ou até de um ou dois anos em que tocamos com a orquestra. Uma fase em que o músico tem de se integrar, de perceber como respira a secção. O mais difícil não é tocar bem, é saber ouvir os outros.” Essa consciência colectiva é, para José Guilherme Neves, essencial. “Um músico profissional tem de saber o seu papel. Não é só tocar as notas, é entender o que se passa à volta, juntar-se à secção, ouvir o conjunto. É quase um trabalho de escuta. Às vezes é intuição, às vezes é disciplina.” Quando perguntamos o que o tuba representa para ele, a resposta é directa: “Para mim, é o instrumento que mais se aproxima da respiração. Mesmo quando penso: ‘Vou tirar férias do instrumento', acabo sempre por tocar. Dá-me alegria. É o meu modo de estar no mundo.” Essa alegria, contudo, vive lado a lado com a solidão: “Ser músico é um trabalho muito solitário. Quando estamos na universidade, temos colegas, há uma competição saudável, mas quando chega a altura de preparar uma prova, temos de nos isolar. É inevitável.” Ainda assim, não há espaço para amargura, “aprende-se a viver com isso. E a música de grupo ajuda, os quartetos, as orquestras, os ensaios. Mesmo quando estudamos sozinhos, há sempre alguém invisível a ouvir connosco.” Fala do estudo como um acto de paciência, “gosto do processo de evolução. Trabalhar todos os dias, perceber que o que era difícil ontem se torna natural amanhã. Há sempre uma pequena evolução. E é isso que me motiva. Gosto de descobrir até onde essa evolução me pode levar.” Para José Guilherme Neves, a tuba é mais do que um instrumento, é uma linguagem, uma forma de estar no tempo. “A tuba pode ser poesia. Pode contar histórias. Pode transformar o silêncio em som.” Ao ouvi-lo falar, percebe-se que não há nada de acidental na sua escolha. O concerto em Paris será a primeira vez que apresenta este programa completo fora dos Países Baixos. “Estou entusiasmado. É um programa que mostra a versatilidade da tuba, mas também um pouco de quem eu sou: português, europeu, curioso. É isso que quero partilhar.”

Em São Tomé e Príncipe, João Pedro Cravid foi afastado da chefia do Estado-Maior do Exército, numa decisão tomada, esta segunda-feira, em conselho superior de defesa nacional, que esteve reunido no Palácio do Povo, sob a presidência de Carlos Vilanova, que é também Comandante Supremo das Forças Armadas. Numa análise em entrevista à RFI, Abílio Neto, analista político são-tomense, considera que João Pedro Cravid é a primeira vítima colateral do processo de 25 de Novembro de 2022, que resultou na morte de quatro civis no quartel das Forças Armadas. RFI: Considera que falamos de uma primeira vítima colateral do caso de 25 de Novembro de 2022? Abílio Neto: [Eu diria que sim]. O Chefe de Estado Maior demitido foi nomeado pelo seu perfil para tentar, de alguma forma, dar sentido a tudo o que aconteceu no quartel, a partir do dia 22 de novembro de 2022. Ele não foi posto naquela posição para resolver aquele problema. Ele foi posto para dar sentido àquele problema. O que é dar sentido? Dar sentido é fundamentalmente, em primeiro lugar, tornar possível resolver juridicamente e judicialmente aquela situação, o que nós ainda não conseguimos fazer tudo no país. Só conseguimos fazer uma metade do processo. Falta a outra metade, que é a parte militar e a parte, digamos que mais dura do processo, a parte que implica as quatro mortes, as agressões, a tortura e etc. Tudo dentro do quartel e feito por militares, como é sabido, militares que necessariamente tem que ser julgados. A segunda parte era a parte de apaziguar, de alguma forma, a relação entre os militares e o poder político, também pelo perfil tranquilo, sereno, de João Pedro Cravid. Não consigo perceber porque é que nesta altura terá acontecido essa demissão. Quer dizer, consigo perceber, de acordo com, digamos, uma agenda muito de redes sociais, muito de plateia, mas que não pode ser uma agenda de decisões, de pessoas que têm que decidir responsavelmente sobre questões de Estado, sobre questões de soberania, sobre questões que têm que ver com assuntos muito delicados na gestão de questões que são questões de Estado. É evidente que aconteceu um roubo de uma parte do processo físico, que estava no Estado-Maior do Exército, mas não podemos ter essa ideia e pensar necessariamente e pensar em consequência e em reacção, que o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas deve ser responsabilizado por um assunto que é claramente, também ele, um assunto de cariz fundamentalmente jurídico e judicial, que foi efectivamente um furto de um processo. RFI: Falou aqui de uma parte importante, do desaparecimento de peças do dossier. No seu ponto de vista, este desaparecimento pode significar a impossibilidade de julgar este caso? Abílio Neto: Não creio, suponho eu, e conhecendo bem os procuradores são-tomenses, que é provavelmente do sector da justiça e, não só, na nossa administração pública, se calhar os que melhor alimentam a ideia das boas práticas, quase de certeza absoluta, diria eu, não tendo a confirmação, que terão uma cópia física do processo. E terão também, isso é óbvio e evidente, uma cópia digitalizada do processo porque toda a gestão documental da Procuradoria tem sido feita com base já na digitalização de peças processuais. Portanto, eu diria que a situação tornar-se-ia grave se efectivamente não houvesse essa espécie de backup de documentos. RFI: Isto acontece numa altura em que decorrem no país tramitação para a realização do julgamento das pessoas envolvidas no acontecimento de 25 de Novembro, sobretudo dos militares envolvidos, mas ainda persistem discussões sobre se este caso será analisado no Tribunal Cívil ou no Tribunal Militar. Aquilo que lhe pergunto é se, na sua opinião, o Tribunal Militar terá condições para julgar este caso? Qual é a sua opinião? Abílio Neto: Não tem condições e eu sou muito frontal relativamente a esse assunto. Eu sou daqueles que defende que o caso deveria ter sido julgado em tribunais civis exactamente porque são muito mais capazes de o fazer. E também porque o nosso tribunal Militar nem sequer existia, nem sequer existe. Existia no papel. Existia formalmente, mas não existia objectivamente. Estar agora forçar a criação de um tribunal militar com características, diria eu, um pouco frágeis para ter capacidade de resolver uma situação tão complexa como essa situação é, logo dever-se-ia ter tido o cuidado especial, dentro do sistema judicial e judiciário, de manter o processo dentro dos tribunais civis e não sair daí. A opção, parece-me a mim que foi essa, muito por via da pressão dos próprios militares. Isto também é especulativo que estou a dizer, mas dá para perceber que se tivesse sido assim e estamos agora nesta posição de ser quase que impossível julgar em tribunais comuns, até porque já se esgotaram os recursos para o Supremo e para o Tribunal Constitucional e terá mesmo que ser a opção do Tribunal Militar a funcionar, se quisermos (e esta é a minha opinião), fazer um frete a alguns sectores das Forças Armadas e eu acho que não se deve fazer um frete numa situação dessas, logo ponderaria que existisse uma reflexão nacional relativamente forte, no sentido de se ir, por via da possibilidade de se criar um tribunal Ad Hoc para o efeito. Muita gente é contra essa ideia. RFI: Na sua óptica, seria a melhor opção? Abílio Neto: Eu não gosto de tribunais Ad Hoc. Também confesso isso, mas eu acho que é a única forma mais justa hoje de se poder resolver a situação porque se for o Tribunal militar a julgar, ficará sempre na ideia ou no consciente de muitos são-tomenses, que se teria feito um favor a pessoas que não mereciam favor nenhum e que deveriam ser julgadas com toda a força da lei e naturalmente tendo todas as garantias de um julgamento justo, mas também que não fosse um julgamento light para lavar consciências e para também lavar a imagem de umas forças Armadas que precisam efetivamente de lidar com uma realidade e de se conformar com o Estado de Direito, conforme ele é, e conforme as próprias Forças Armadas de São Tomé e Príncipe vinham fazendo ao longo da sua história, salvo algumas excepções momentâneas, mas que sempre conduziu os oficiais e os quadros militares àquilo que a Constituição pede e exige deles. Eu penso que temos que começar já a olhar para o futuro. E quando eu digo olhar para o futuro é tentar de alguma forma, precaver e antecipar o que podem ser ocorrências do mesmo tipo. Não com a mesma gravidade, mas até com gravidades diminutas, mas tentar antecipar já a ideia de um tribunal militar objectivamente útil, bem pensado e bem feito. Daí a proposta sobre a qual eu tenho trabalhado com alguns colegas são-tomenses, a ideia de ter o Tribunal Militar como uma secção do Supremo Tribunal de Justiça. Como não há muitos casos, nem muitos processos sobre os militares, também não há muitos processos sobre o Supremo Tribunal de Justiça. Portanto, não haveria uma carga de imensos processos sobre o Supremo Tribunal e que ele não pudesse julgar a partir daí. Mas é realmente criar essa secção do Supremo Tribunal de Justiça e resolver de uma vez por todas, a questão da realização e da objectificação do Tribunal Militar. RFI: Acha que este caso continua a ser uma sombra sobre este governo da ADI, com um Conselho Nacional marcado para dentro de pouco mais de uma semana e o hipotético regresso de Patrice Trovoada que estava no poder precisamente na altura do caso? Abílio Neto: Essa questão é a questão fácil de resolver, na minha perspectiva. Hoje está a falar-se muito das legitimidades e das legitimações. O que está aqui em causa é o facto de tudo ter acontecido naquele governo com maioria absoluta e um governo (esse é que o drama da política são-tomense em muitos momentos da nossa história) repare-se que o governo tinha apenas 20 dias de governação, com um programa muito ambicioso, com muitos quadros jovens, muito capazes, e, de repente, acontece essa tragédia logo no início da governação. É evidente que o governo fica marcado por essa tragédia, mas a verdade, e é essa que é a complexidade, dos Estados de direito, é que o governo não pode julgar a separação de poderes. O que o governo pode fazer é influenciar o máximo possível o poder judicial, no sentido de resolver aquela questão. Eu acho que a melhor conclusão é pensar realmente no futuro e pensar que uma nova legitimidade do poder em São Tomé e Príncipe pode resolver muita coisa. E nós temos um ano porque não creio mesmo que se consiga julgar o processo com dignidade num ano, mas a verdade é que num ano, nós temos as duas eleições democráticas mais importantes do país, as legislativas e as presidenciais. Renovando o quadro político, eu julgo que se dará uma oportunidade ao país para sair dessa espécie de psicopatia colectiva em que estamos. Sair dessa dor tremenda que o país vive e é uma dor palpável, que é a dor de ter visto, quase que ao vivo, para nossa tristeza, aquela situação horrorosa, daquelas mortes. Não podemos continuar a querer ter um país bom enquanto não resolvermos essa situação.

Numa carta dirigida na passada sexta-feira ao governo moçambicano, a TotalEnergies anunciou o levantamento da cláusula da "força maior" que motivou a suspensão nestes últimos quatro anos do seu projecto de exploração de gás natural em Cabo Delgado, devido aos ataques terroristas. Fica assim aberta a via para o gigante dos hidrocarbonetos retomar as suas actividades, a TotalEnergies estimando que a primeira entrega de gás liquefeito deveria acontecer no primeiro semestre de 2029. Este regresso da multinacional não deixa, contudo, de ser aparentemente submetido a algumas condições, a empresa tendo formalmente pedido que a sua concessão de exploração seja prolongada por 10 anos, de modo a "compensar parcialmente" um prejuízo estimado em quase 4 mil milhões de Euros pelos quatros anos de suspensão das suas actividades. Na óptica de Fidel Terenciano, director executivo do Instituto de Desenvolvimento Económico e Social em Cabo Delgado (IDES), o levantamento da cláusula da "força maior", apesar do recrudescimento da violência naquela província, relaciona-se com a percepção de que o terrorismo não pode paralisar a actividade económica num país muito expectante quanto aos rendimentos que o gás pode gerar. RFI: Como se pode explicar que a TotalEnergies levante a clausula de "força maior", numa altura em que há um recrudescimento da violência em Cabo Delgado? Fidel Terenciano: Esta pressão e recrudescimento dos ataques em grande escala, provavelmente pode-se consubstanciar com o pensamento de que, enquanto os ataques terroristas acontecem e passam a se transformar no 'modus vivendi' da sociedade de Cabo Delgado, e enquanto não temos uma acção activa do Ruanda do ponto de vista do contra-ataque às incursões terroristas, é preciso que os recursos também continuem a ser explorados. É preciso que esse projecto continue a avançar, porque o risco que corremos é continuarmos a pensar que um dia vamos aniquilar o terrorismo na sua totalidade e nunca isso acontecer e consequentemente, o projecto também estar paralisado na sua totalidade. Então, de longe, parece-nos que a pressão que o governo de Moçambique sofreu veio de todos os lados, tanto do lado dos ataques, como de não iniciar o processo de exploração, o lado de não receber concretamente os impostos e as taxas que tinha que receber pelo início da exploração dos recursos naturais e, consequentemente, o governo de Moçambique tinha que ceder. Então a impressão, pelo menos, que eu tenho como membro da comunidade de Cabo Delgado, é de que havia aqui um conjunto de jogo ocultos, um conjunto de jogo de interesses que provavelmente a transição do governo de Moçambique do anterior para o actual, mesmo que seja do mesmo partido, não foi muito favorável para Moçambique como nação e consequentemente, teve que ceder a um conjunto de exigências dessas instituições multinacionais e outros actores interessados com a exploração de recursos naturais, do gás em Palma, para que, de alguma maneira, o actual governo consiga entrar na esteira das negociações e, consequentemente, ter alguma vantagem no meio disso. O que que pode acontecer se o governo moçambicano não ceder nos termos das pressões que acontecem na sua multiplicidade, é que simplesmente o Estado moçambicano poderá entrar em colapso. Pelo que o que não estamos a compreender é que o Estado moçambicano hoje está dependente das receitas do gás e de outras receitas da exploração de recursos naturais que acontece ao longo do país. Então, aqui a multiplicidade de interesses, multiplicidade de jogos e o que eu percebo é que o governo moçambicano ainda não compreendeu o jogo por detrás dos ataques terroristas, por detrás da pressão da Total, por detrás de um conjunto de pressões que ocorrem no contexto de Cabo Delgado. RFI: Relativamente a uma das cedências que é formalmente pedida pela TotalEnergies ao Estado moçambicano, a questão de prolongar por mais dez anos a concessão à TotalEnergies para "compensar parcialmente" o impacto económico da suspensão do projecto, este pedido é um pedido que ainda tem que ser analisado ou, no fundo, isto é apenas uma formalidade de algo que já foi acordado entre a TotalEnergies e o Estado moçambicano? Fidel Terenciano: A impressão que eu tenho é que isso já foi discutido nos encontros que têm ocorrido com a participação do Presidente da República de Moçambique, ou do ministro que supervisa a área de exploração de recursos naturais, sobretudo energia e mineração. Mas eu tenho uma interpretação adicional a isto: que se estenda a exploração do gás e todo outro tipo de recursos a serem explorados em Cabo Delgado, desde que isso beneficie de facto as comunidades locais. A grande discussão não é sobre se esse benefício é para quem. A grande discussão não é sobre se vai se estender mais dez ou vinte anos. Mas se essa extensão significa essencialmente a melhoria das condições de vida das populações locais, a melhoria das condições de vida dos jovens, das mulheres e dos homens que residem em Cabo Delgado, em Moçambique como um todo, eu penso que até pode se estender aos próximos vinte, trinta, quarenta anos, mas o problema no contexto de Moçambique é que essa extensão vai beneficiar apenas uma parte das populações e, sobretudo as elites políticas, em detrimento de beneficiar a toda a população moçambicana. É aí onde começa o grande conflito. Então eu penso que -um- essas negociações já vêm ocorrendo sem o conhecimento público -dois- essas negociações vão ser aprovados -três- que é preciso que as negociações beneficiem, de facto, as populações locais. Se essas negociações e essa solicitação da Total forem, mais uma vez, tendentes ao que estamos a ver actualmente, e não beneficiarem directamente as populações, não vale a pena. Porque isso vai fazer surgir um outro conflito. Pode não nascer um conflito terrorista nos termos que estamos a ver agora, mas um outro conflito que pode, mais uma vez, colocar embaraços à nossa própria província. Eu acho que um dos conflitos que é patente no contexto de Cabo Delgado, é um conflito étnico-geracional. É a questão dos jovens começarem a colocar em causa o papel real dos adultos e velhos, mas também as pessoas que se localizam em Cabo Delgado, Macondes, Macuas, Mwanis começarem a colocar em causa as outras comunidades que são de etnia e cultura diferente, particularmente os jovens que são originários da província de Maputo, que são considerados os que mais têm oportunidades se comparados com os Macuas, Mwanis e Macondes que se localizam em Cabo Delgado. Pelo menos na História, indicadores mostram que têm sido os excluídos nas grandes oportunidades de desenvolvimento social em Moçambique. RFI: Relativamente, lá está, à situação das populações locais. A TotalEnergies não se manteve totalmente inactiva. Encomendou, depois dos ataques de 2021, um relatório independente sobre a situação das populações locais. De acordo com este relatório, o que ficou estipulado e o que a TotalEnergies diz -pelo menos- estar a aplicar, é um plano de desenvolvimento local que prevê, designadamente, compensações para as populações afectadas directamente pelas suas actividades. Este plano está a ser aplicado? Há realmente algo acontecer com as populações que são afectadas por essas actividades? Fidel Terenciano: A estrutura da Total em Moçambique é muito estranha aos olhos do cidadão comum. Eles têm escritórios centrais em Maputo, têm um escritório transitório em Pemba e parece-nos que não têm um escritório funcional em Palma, em Mocímboa da Praia. Ou seja, quem está a implementar efectivamente as iniciativas de desenvolvimento financiadas pela Total e que existem, são organizações oriundas de Maputo. As pessoas que lideram a selecção dos projectos de financiamento são pessoas oriundas da capital do país, Maputo. As pessoas que estão a receber o financiamento directo para implementar as iniciativas são jovens de Maputo, de Nampula, de Pemba e que se instalaram em Palma e têm acesso à informação e conseguiram o financiamento. Genuinamente falando, ainda não começámos a implementar genuinamente o plano de desenvolvimento e de compensação às comunidades. Ninguém está a sentir que a Total já está a apoiar os planos de desenvolvimento da comunidade. As pessoas locais não têm a percepção de que a Total tem estado de apoiar. As pessoas locais colocam em causa, até hoje, qual é o papel estratégico da Total e, sobretudo, os milhões que tem-se falado nas grandes entrevistas e grandes notícias que passam nos média, particularmente a televisão e redes sociais. Resumindo, as pessoas são muito cépticas em relação ao papel real da Total no contexto de Cabo Delgado, e elas não sentem a presença real da Total nas suas próprias vidas. O entendimento que eu tenho é que a Total não pode se focar apenas na compensação das famílias reassentadas, porque o ponto extravasa o debate sobre o reassentamento. Eu penso que a Total, sobretudo o facto de ela ter um plano concreto de desenvolvimento comunitário ou de investimento comunitário, deveria se focar não só nas famílias que se beneficiam dos processos de reassentamento, mas todas as outras famílias que estão em redor e particularmente a questão da replicabilidade. O princípio de replicabilidade permite que não só as famílias directamente afectadas e outras famílias que se encontram em zonas circunvizinhas como comunidade ao redor, também se beneficiem das externalidades da exploração dos recursos naturais, particularmente o gás, no contexto de Cabo Delgado. E isso não é visível. O que se nota actualmente é que parece-nos que o foco da Total é simplesmente compensar apenas as famílias reassentadas e não as famílias que estão ao redor das zonas de reassentamento. Então, de modo geral, há a implementação de um plano concreto de investimento comunitário. Mas esse plano não é efectivo e as pessoas não sentem efectivamente que estão a ser compensadas por terem recursos na terra onde nasceram. RFI: O posicionamento que tem tido a TotalEnergies relativamente à situação em Cabo Delgado é que os ataques e a situação de instabilidade de Cabo Delgado são anteriores à chegada dos seus serviços à região. Implicitamente, o que está a dizer é que o Estado moçambicano é que tem que se responsabilizar pela população de Cabo Delgado e que a TotalEnergies tem apenas que se preocupar com as populações que estão directamente afectadas pelas suas actividades. Fidel Terenciano: Mas aí temos um antecedente: a Total adquiriu os serviços da Anadarko. Não é à toa. Adquiriu os serviços de outras instituições que já estavam a operar na zona. E não há aqui uma relação directa entre a exploração de recursos naturais e o conflito. Nós não estamos a dizer que desde que a Total entrou em Cabo Delgado, iniciou o conflito, não há uma tentativa de construção dessa narrativa. Mas a Total está explorando os recursos naturais numa zona específica, que vive um tipo de conflito. Apesar de serem empresas, o seu grande foco é o lucro, nada obsta deles também, subentendendo que eles podem comparticipar no processo de gestão de expectativas e solução das grandes externalidades negativas que acontecem na região onde eles estão a explorar os recursos naturais. O entendimento pessoal que eu tenho em relação a isso é de que a Total, sendo uma grande multinacional e conhecendo as grandes vantagens que ela pode tirar dessa exploração de recursos naturais, poderia comparticipar um bocadinho mais e envolver efectivamente as comunidades locais nos principais benefícios que podem surgir dessa situação. Aliás, quando há um entendimento de que o governo tem que liderar as acções para a promoção do bem-estar e desenvolvimento social das comunidades, é totalmente correcto. Mas ao mesmo tempo, este governo tem os seus parceiros e o que eu sei é que a Total não veio comprar uma parte do gás que temos na bacia do Rovuma. A Total é um parceiro estratégico do governo de Moçambique, é um parceiro estratégico da Empresa Nacional de Hidrocarbonetos e estão, em conjunto, a explorar os recursos que estão no alto mar. Ao mesmo tempo, mesmo que as percentagens a favor da Total sejam maiores se comparadas com o governo de Moçambique, no final do dia, compreendemos isso como uma comparticipação no processo de exploração de recursos naturais em Moçambique. Então, eu penso que a Total precisa reconstruir a sua narrativa e aceitar o governo como parte da sua acção no contexto de Palma e a partir daí, talvez também começar a olhar as preocupações da comunidade moçambicana como preocupações que afligem a eles próprios, sobretudo por se encontrar uma zona específica em que se vivencia uma situação de terrorismo. E nós todos sabemos que o terrorismo cria um conjunto de feridas na sociedade e todo um conjunto de actores que estão ao redor do espaço em que estão esses recursos. É preciso que eles se entreguem e apoiem de alguma maneira. Então, eu acho que a Total precisa redefinir a sua narrativa em relação à maneira como ela tem que participar na gestão e prevenção do conflito na zona de Palma.

Fez esta semana um ano que Odair Moniz, cidadão luso cabo-verdiano de 43 anos foi morto a tiro por um agente da Polícia de Segurança Pública na noite de 21 de Outubro de 2024 na Cova da Moura, na Amadora, nas imediações da capital portuguesa. Este acontecimento provocou na altura, vários dias de incidentes na zona de Lisboa, com os habitantes dos subúrbios a expressarem o seu descontentamento com o tratamento que lhes era reservado pelas autoridades. Um ano depois, são várias as organizações da sociedade civil que acusam o governo de nada ter feito para restabelecer a confiança entre os habitantes das periferias e as forças da ordem. A crispação é tanto mais palpável que o país tem estado a debater nestes últimos meses uma série de restrições a serem introduzidas tanto na lei de imigração como na lei de nacionalidade. É neste contexto particular que começou na quarta-feira o julgamento dos agentes policiais envolvidos na morte de Odair Moniz, um processo que cristaliza expectativas mas também questionamentos, com o réu principal a invocar que a vitima tinha na sua posse uma lâmina e que ele se sentiu ameaçado. Um dado que até agora não tinha vindo ao de cima e que na óptica de Rui Pena Pires, investigador ligado ao Observatório da Imigração em Portugal, é o prenúncio de que nunca se saberá ao certo o que aconteceu. RFI: O que se pode esperar do julgamento do caso Odair Moniz? Rui Pena Pires: Eu espero que o julgamento esclareça o que se passou. Prefiro sempre pronunciar-me sobre os resultados do julgamento e não a priori, e não fazer um incidente de suspeição antes do julgamento começar. Espero que esclareça bem o que se passou e que explique porque é que foi necessário recorrer a uma arma de fogo para resolver um problema que aparentemente não exigia nenhuma intervenção desse tipo. O Estado, nas sociedades democráticas, é a única entidade que tem poder de vida ou de morte, mas tem que usar com muita, muita parcimónia. Quando algum agente está envolvido na morte de alguém, essa morte tem que ser muito, muito bem explicada. Nós somos um país em que todas as polícias andam armadas com armas de fogo. Nem em todo o lado é assim. E essa é mais uma razão para que se exijam responsabilidades pelo uso das armas que são usadas no exercício das funções policiais. RFI: Durante o primeiro dia de julgamento, surgiu um dado novo: um dos réus afirmou que Odair Moniz tinha consigo uma lâmina e que ele considerou que ele representava uma ameaça à segurança dos agentes presentes. Rui Pena Pires: As versões que têm vindo a público sobre o que aconteceu têm mudado muito. E isso, por si só, não é uma boa notícia. Significa que nunca saberemos bem qual é o valor dessas declarações. Mas para isso existe o julgamento. Agora, há várias coisas que o julgamento não poderá fazer. Não faz parte do âmbito do julgamento. Não será no julgamento que se irá avaliar o treino e a formação que são dados aos agentes policiais para saberem reagir em situações em que haja alguma tensão, mesmo que resulte mais de percepções do que de perigos reais. Como sabemos, não será no julgamento que será discutido o uso sistemático de armas de fogo em todos os contextos, pelas forças de segurança e por aí adiante. E esses assuntos mereciam uma discussão, para além de se saber o que é que aconteceu naquele caso. Importava evitar que aqueles casos se repetissem. E para isso, se envolve outro tipo de discussões sobre o modelo de policiamento, sobre a formação dos agentes policiais, etc. etc. RFI: Na altura deste acontecimento houve uma série de manifestações e movimentos, inclusivamente, de revolta, nas imediações de Lisboa. Perante esta situação, o Governo prometeu ter mais atenção à situação dos habitantes dos subúrbios das grandes cidades, nomeadamente de Lisboa. Um ano depois, qual é o balanço que se pode fazer? Rui Pena Pires: Infelizmente, um ano depois, continuamos na mesma. Ou seja, houve um conjunto de revoltas que evidenciaram uma coisa, evidenciaram que as populações não têm confiança na actuação das forças policiais. E para ganhar essa confiança, eu não vi nenhuma iniciativa. Pelo contrário, o que se viram foram muitas vezes intervenções com transmissão em directo para as televisões e acções muito musculadas das forças policiais em contextos que não o justificavam e que estão a criar uma percepção de insegurança não só sobre a vida na cidade, mas sobretudo sobre a vida nos subúrbios, que não corresponde à realidade e que, no contexto de um aumento do discurso de ódio que caracteriza a ascensão da extrema-direita em Portugal, como noutros países da Europa, só irá agravar o mal-estar que existe na relação com a polícia. RFI: Um ano depois, Portugal está em pleno debate sobre a Lei de Imigração, a Lei de nacionalidade e há poucos dias ainda, foi adoptada na generalidade uma lei proibindo o uso da burca em locais públicos. O que é que se pode dizer sobre esta crescente crispação a nível político? Rui Pena Pires: Esta foi uma crispação que foi introduzida pelo crescimento da extrema-direita em Portugal. A extrema-direita em Portugal, como noutros sítios da Europa, encontrou na emigração bodes expiatórios para os problemas de mal-estar social que existem em qualquer sociedade mais ou menos desenvolvida. É um pouco irrelevante e tem vindo a produzir sobre a emigração um discurso de responsabilização dos emigrantes por tudo o que de mal acontece na sociedade portuguesa. As revisões das leis a que estamos a assistir são sobretudo o reflexo da adesão que este discurso de extrema-direita tem conseguido suscitar em importantes sectores do eleitorado. Primeiro, uma pequena minoria do eleitorado, mas hoje já numa fatia bastante maior do eleitorado nacional. Infelizmente, o centro-direita tem vindo a adoptar parcialmente como suas estas formas de actuação da extrema-direita. Um bom exemplo é o que aconteceu com a Lei da burca, aprovada na generalidade. O problema da burca não tem em Portugal qualquer dimensão social que justifique sequer que seja tratado. Já nem estou a falar sobre a forma como foi tratado. Não justifica pura e simplesmente ser tratado. Se o Estado intervém e produz leis, quando há, sobretudo todo e qualquer tipo de processo social microscópico, como é o caso burca em Portugal, rapidamente teríamos um Estado completamente totalitário no país. Portanto, esta utilização do discurso sobre a imigração para criar bodes expiatórios, para criar distracções, nós não estamos a discutir problemas complicados que existem em Portugal, como por exemplo, o problema do alojamento, que é um dos problemas mais importantes. Andamos entretidos com a agenda da extrema-direita que tem marcado a agenda política. Não havia nada que justificasse a alteração da lei da nacionalidade. A lei da nacionalidade pode ser mais perfeita, menos perfeita. Mas não há nada que vá melhorar com as mudanças que se estão a fazer ou discutir sobre a lei da Nacionalidade. Não é por as pessoas terem nacionalidade mais um ano depois ou um ano antes, que vai mudar qualquer coisa na integração dos imigrantes. Quer dizer, quando muito, aquelas mudanças que estão a fazer à lei da nacionalidade, o que evidencia é uma má vontade do Estado em relação à imigração e aos imigrantes, que terá consequências nos processos de integração dos imigrantes, que se sentirão mais afectados em relação à coesão nacional quando enfrentam este tipo de discurso negativo sobre si próprios. A lei da imigração precisaria de pequenos ajustes cirúrgicos, mas não de grandes alterações. E as alterações estão a ser feitas todas num clima emocional crispado, que era completamente desnecessário para resolver os problemas que existem na imigração, porque no caso, a imigração, a maior parte dos problemas têm pouco a ver até com a lei. Têm muito mais a ver com as políticas públicas de imigração. Há uma grande imigração irregular em Portugal. Porquê? Basicamente porque o sistema de vistos em Portugal nunca funcionou. Porque a regulação do mercado de trabalho em Portugal é fraca. E nenhum desses problemas encontra resposta nas alterações feitas à lei da nacionalidade. Aliás, não se resolve através da lei. Resolve-se através dos modos de funcionamento da administração pública. São leis que entraram no debate por esta capacidade que extrema-direita tem demonstrado em Portugal, infelizmente, de comandar a construção de uma agenda política. RFI: E lá está, o facto de a direita conservadora ter vindo a colar-se cada vez mais à agenda da extrema-direita é uma questão de convicção ou é um cálculo político? Rui Pena Pires: Às vezes não sei. Eu penso que, nalguns casos, nalguns agentes da direita conservadora, é uma questão de cálculo. Mas às vezes, não sei se noutros casos, para alguns outros dirigentes da direita clássica, não é mesmo uma mudança de convicções. E isso é algo que, apesar de tudo, me assusta mais do que a primeira alternativa. Acho que a primeira alternativa é um erro de cálculo. Acho que a segunda é mais grave, porque significa que começam a ser mais generalizadas as ideias que ainda há pouco tempo eram de uma minoria, mesmo muito pequena, dos actores políticos. RFI: Qual é o papel que têm desempenhado os contrapoderes, nomeadamente não só as associações, como também, e sobretudo, os órgãos de comunicação social em Portugal? Rui Pena Pires: O movimento associativo em Portugal é fraco e, portanto, tem procurado responder, mas não tem tido grande poder para construir uma resposta mais robusta. O papel dos órgãos de comunicação social é muito variado. Agora, aquilo que são alguns dos órgãos de comunicação social com maiores audiências, quer ao nível de imprensa, quer ao nível televisivo, para falar apenas dos media tradicionais, tem facilitado o desenvolvimento da extrema-direita e a extrema-direita procura sempre criar situações de grande tensão emocional que dão um bom espectáculo e muitos órgãos de comunicação social têm andado atrás desse espectáculo. E isso de uma forma completamente desequilibrada. Há uma jornalista no Público que faz o levantamento de vários modos de operação de outros jornais e de outros órgãos de comunicação social e que está farta de chamar a atenção para o peso completamente desproporcionado, por exemplo, que tem a exposição mediática do André Ventura, líder do Chega, quando comparada com a intervenção dos outros líderes partidários, mesmo quando esses líderes partidários lideram movimentos mais fortes que aqueles que são liderados pelo André Ventura. E, portanto, eu espero que os media no futuro não sejam apontados ou pelo menos uma parte dos média, para ser rigoroso, não venha a ser apontada como tendo contribuído para a erosão da democracia que é provocada por este crescimento da extrema-direita.

Nesta quarta-feira, o Museu do Louvre em Paris, reabriu as suas portas, após três dias de encerramento para dar tempo à investigação de recolher todos os dados sobre o espectacular assalto de que foi alvo no domingo. O que se sabe para já é que indivíduos invadiram pelo exterior a galeria onde se encontravam as jóias da Coroa de França. Para tal, utilizaram um elevador de carga, cerraram uma das janelas da sala, partiram os mostruários, levaram as jóias e fugiram de lambreta. Tudo isto em sete minutos. Até ao momento, não se conhece o paradeiro dos assaltantes e muito menos das jóias avaliadas em 88 milhões de Euros mas cujo valor patrimonial é considerado "inestimável". Tanto o Presidente da República como o próprio governo ordenaram o reforço da segurança deste museu que apesar da sua importância e apesar do número impressionante de visitantes -9 milhões em 2024- mostrou as suas fragilidades. Esta problemática, aliás, mereceu recentemente um relatório interno e as autoridades estavam cientes de que existiam falhas na segurança. Philippe Mendes, galerista luso-francês em Paris, considera que apesar do seu carácter espectacular, o assalto de domingo não foi tão minuciosamente preparado como parece à primeira vista. RFI: O que se pode dizer sobre o assalto ao Museu do Louvre no domingo? Philippe Mendes: Em termos de rapidez, eu acho que foi um assalto bem organizado, embora me pareça que não é de grande banditismo. Tenho a impressão que foi mais um roubo de bandidos mais básicos. Sabem que têm que ser muito rápidos porque os seguranças e a polícia, em menos de dez minutos, podem chegar. Portanto, eles fizeram isso muito rápido. Mas ao mesmo tempo, há muitas coisas que mostram que não são aqueles bandidos, tipo CNN. Toda a gente pensou que isto foi um roubo tipo Arsène Lupin. Não foi. Deixaram cair uma coroa importantíssima. Ao fugir, deixam os elementos que utilizaram para poderem entrar, a serra para o vidro, não conseguiram deitar fogo ao elevador que usaram para os levar até lá acima. Isto tudo mostra um bocadinho que isto está desorganizado. Foi pensado, mas não foi organizado. Eu acho que foi mesmo um assalto, um roubo de oportunidade. Sabiam que ao domingo há pouco trânsito em Paris, era muito fácil de fugir. Sabiam que havia falhas, porque isto já foi comunicado várias vezes nos jornais franceses. A presidente do Louvre, ela mesmo -acho que foi o grande erro dela- há um ano ou dois, alertou, mas alertou publicamente sobre as falhas, sobre os problemas de segurança no Louvre. Tendo feito isso, claramente que indicou a quem poderia pretender um dia a fazer um assalto ao Louvre, que era o momento. Devia ter alertado claramente o Ministério da Cultura, devia ter alertado a Procuradoria de Paris, mas não devia ter alertado, indo aos jornais, e fazer uma coisa pública, porque isso aí era o sinal que eles podiam lá ir e que havia várias falhas. E claramente que aquela janela da galeria de Apollon era um dos pontos fracos do Louvre. É uma janela que dá para aquela rua que ao domingo não tem trânsito. Sabia-se mais ou menos que as jóias estavam todas ali, que era o primeiro andar. Não é assim tão alto, portanto tinha ali tudo mais ou menos certo para eles. Portanto, nesse aspecto, acho que foi um assalto pensado mas pouco organizado. Conseguiram. Agora o que é gravíssimo é que atacaram não só o património francês ou a história de França. Atacaram não só o Louvre, mas atacaram também todos os franceses. Ao roubar o Louvre, roubaram a França. RFI: Isto acontece no Louvre, que é um dos mais conhecidos e prestigiados museus a nível mundial. É uma espécie de montra da França, praticamente ao mesmo título que Notre-Dame. O que é que isto significa para a França? Philippe Mendes: O Louvre, como Notre-Dame, é um dos monumentos principais de Paris, de França e um dos mais conhecidos no mundo. Portanto, falando do Louvre, estamos a falar ao mundo inteiro. Toda a gente sabe o que é o Louvre e o que é Notre-Dame. Portanto, claramente que é muito mais sensível e que o mundo inteiro está atento ao que se passa em monumentos como este, que é o maior museu e o mais visitado do mundo. Claramente que choca. O choque é muito maior e tem uma repercussão internacional muito forte e dá um mau sinal claramente do que se está a passar no património francês e a nível da cultura em França. Isso é uma pena, mas podia ter acontecido noutro museu qualquer. Os museus agora são muito vulneráveis. Eu acho que este roubo dá para reflectir sobre uma coisa muito importante: é que a economia internacional está mal, vai haver cada vez mais assaltos deste tipo e claramente que, por exemplo, na Praça Vendôme, em Paris, onde estão todas as grandes lojas de joalharia mais importantes, eles têm um sistema de alarme de segurança muito mais forte e bem organizado do que os museus franceses que não apostaram completamente na segurança, porque não têm meios para isso. Porque embora a França tenha um Orçamento de Estado para a cultura importante, não é assim tão importante como isso para ter a segurança que pretendia. Portanto, é muito mais fácil atacar um museu hoje em dia do que atacar uma joalharia em Paris. Foi o que aconteceu, porque estamos agora a falar do Louvre. Mas não se esqueça que há um ano e meio foram roubadas e falou se muito menos, sete ou oito caixas de rapé do Museu Cognacq-Jay, que é um museu não muito longe do Louvre. Duas delas pertenciam ao Louvre, outras duas, à Coroa Real inglesa, e foram roubadas por quatro pessoas, exactamente com o mesmo método. Quatro homens entraram mascarados em pleno dia, partiram os mostruários e fugiram com as caixas. Não houve tanta repercussão nos jornais internacionalmente, porque o museu, embora seja um muito um bom museu em França, não tem aquele impacto que teve o Louvre. Mas isto mostra que os museus são muito frágeis e são vulneráveis e são atacados regularmente. Foi atacado (no mês passado) o Museu de História Natural de Paris, onde roubaram pepitas de ouro. Desapareceram, foram derretidas. Claramente que agora nunca mais as vamos encontrar. Foram roubadas do Museu de Limoges, há alguns meses, porcelanas chinesas de grande valor que certamente foram -desta vez- uma encomenda para a China. Portanto, há assaltos regularmente nos museus, porque os museus não têm essa protecção, como devia ser. RFI: Disse-o há pouco, apesar da própria directora do Louvre ter alertado publicamente que havia falhas na segurança e apesar de ter havido inclusivamente um relatório interno referindo que o facto de se prescindir de 200 funcionários, nomeadamente na área da segurança, sobre um efectivo de 2000 funcionários nestes últimos 15 anos no Louvre, podia também representar um problema para a segurança do museu e apesar de as próprias autoridades terem sido alertadas, nada foi feito e só agora é que está a pensar em reforçar a segurança do Museu do Louvre. Philippe Mendes: Sim, já devia ter sido feito. Depois, só agora é que se está a pensar. Sim, mas é sempre assim. Agora estamos a falar porque houve um assalto. Mas imagine que amanhã há uma inundação em Paris e o Louvre fica inundado. Vai se criticar porque não foi feito nada antes para proteger o Louvre das inundações e outros. Embora haja um plano, eu acho que ele não é o melhor. Há sempre razões para criticar a falta de fundos para isso. Mesmo que houvesse mais guardas no Louvre, os guardas não podem intervir. Portanto, o que é que eles poderiam ter feito? Não sei bem se é uma questão só de falta de pessoal no Louvre. Acho que não. Eu acho que se podia pensar melhor na segurança do Louvre, a nível de organização, menos humana, mas mais técnica. RFI: Estão a monte três ou quatro assaltantes com jóias estimadas em 88 milhões de Euros e sobretudo com um valor patrimonial "inestimável". As jóias são conhecidas, as fotografias destas jóias andam por todo o lado, no mundo inteiro. O que é que eles vão fazer com essas jóias? Philippe Mendes: Eu acho que a única possibilidade que eles têm é de desfazer as jóias todas e vender diamante por diamante, safira por safira. Não podem vender as jóias tal e qual como obra de arte, porque em si elas têm um valor de 88 milhões de Euros, porque são obras que ainda por cima foram compradas pelo Estado para o Museu do Louvre nos últimos 30 anos. Portanto, tinham já um valor de mercado. Mas entrando no Louvre, têm um valor inestimável histórico, agora patrimonial. Portanto, esse valor de 88 milhões de Euros no mercado de arte é zero, porque as peças tal e qual não podem ser vendidas, ninguém vai comprar. Portanto, eles vão desfazer completamente peça por peça e vão tentar vender no mercado. RFI: Está prestes a abrir mais uma edição da Feira Internacional de Arte Contemporânea de Paris (a Art Basel no final da semana). Como é que se pode avaliar o ambiente em que decorre este evento este ano? Philippe Mendes: Tendo acontecido o que aconteceu, vão certamente reforçar a segurança à volta deste evento. É um evento que acaba por ser equivalente a um dos maiores museus do mundo, durante os dias de abertura, com obras de uma importância financeira muito, muito, muito alta. Mas quem é que se vai atrever a entrar agora num assalto no Museu do Grand Palais? Ninguém. Eu acho que não é propriamente um problema nesse nível. Recordo-me que há três ou quatro anos, na Tefase, em Maastricht (nos Países Baixos), a feira internacional mais importante do mundo onde eu participei, houve um assalto, ainda por cima num stand da joalharia. Foi exactamente a mesma coisa. Eram quatro mascarados. Entraram em pleno dia. Chegaram, roubaram as jóias, fugiram e nunca mais apareceram. Nos dias seguintes, nunca houve um problema na Tefase. Foi um roubo de oportunidade. A Tefase reforçou a segurança e nunca mais houve nenhuma preocupação até agora a esse nível. Portanto, eu acho que vai correr muito bem a Feira Internacional de Arte Contemporânea, a Art Basel em Paris. Não é porque houve um assalto no Louvre que Paris está fragilizada a este nível. Acho que não. Não podemos entrar numa paranóia agora de que 'Paris está perigosa e há assaltos'. Não é por aí. Foi bem pensado. Foi uma ocasião que eles perceberam muito bem que estava ali. E aproveitaram.

O antigo Presidente Nicolas Sarkozy foi encarcerado esta manhã numa prisão em Paris. Para Rafael Lucas, professor catedrático na Universidade Bordéus III, tratou-se de um “espectáculo lamentável”, mas justificado já que se trata da democracia a funcionar. Uma multidão esperava esta manhã o antigo Presidente Nicolas Sarkozy, à saída da sua casa, no exclusivo 16º bairro de Paris, para o verem uma última vez antes da sua entrada na prisão de la Santé, a apenas alguns quilómetros de distância também na capital francesa. Entre gritos de apoio da multidão e lágrimas dos filhos, o antigo líder francês escreveu nas redes sociais que a justiça estava a prender não um antigo Presidente, mas sim um inocente. Estas imagens mantiveram os franceses agarrados aos ecrãs na manhã desta terça-feira, já que muitos pensavam não ser possível ver um antigo Presidente a ir para a prisão. Para Rafael Lucas, professor catedrático na Universidade Bordéus III, tratou-se de um “espectáculo lamentável”, mas justificado já que se trata da democracia a funcionar. "Tive duas sensações muito fortes. Primeiro, é a primeira vez que eu vejo um um Presidente ou o responsável supremo do Estado a entrar na prisão como um delinquente. De qualquer maneira, há um choque, uma comoção ver isto. Então, por um lado, é um espetáculo lamentável. Às vezes até tenho certa compaixão pela situação do alto responsável assim encarcerado. Mas por outra parte, é a democracia na mesma, porque já se vivemos num regime monárquico ou num regime autoritário, isto seria impossível", explicou o académico. Logo após a sentença, há cerca de duas semanas, numa sondagem para a televisão, 72% dos franceses disseram-se chocados com a possibilidade de ver um antigo Presidente na prisão, mas estavam divididos quanto ao facto de a sua condenação ser justa. Na prisão, Nicolas Sarkozy vai ficar sozinho na cela, devido ao seu estatuto, e poderá sair todos os dias para o pátio. A prisão de la Santé, em Paris, é conhecida por acolher figura de relevo no panoramo político e mediático em França. A condenação de um Presidente aliada à "crise generalizada" vivida no país, leva muitos analistas a questionarem o papel do Presidente e se não seria benéfico rever o sistema presidencialista gaulês, em que o Presidente detém muitos dos poderes, incluindo a escolha do primeiro-ministro. "Este regime presidencial à francesa, em que o Presidente é como um monarca republicano porque há um primeiro ministro, mas que é como um chefe de gabinete, é muito diferente das democracias modernas, em que o primeiro ministro assume a direcção e a responsabilidade do Governo e o Presidente tem mais um papel simbólico honorífico, como é o caso em em Portugal e em vários países. Em França, não. O presidente é o chefe [...] A França está a chegar a um ponto de esgotamento e a França vai ter que fazer aceitar uma espécie de revolução institucional para fazer como outros países, como Alemanha, por exemplo, em que eles já adquiriram uma cultura de coligação, em que não há uma figura tutelar assoberbando o resto da paisagem política, como é o caso com os presidentes franceses", concluiu Rafael Lucas.

Em Luanda, um grupo de activistas e defensores dos direitos humanos convoca uma vigília para este 17 de Outubro ao fim do dia, no Jardim de São Domingos, para apelar à libertação dos presos políticos em Angola. Estes últimos foram indiciados pelos crimes de "rebelião, vandalismo e apologia terrorismo". A activista Laura Macedo aponta que, com a entrada das férias judiciais, as detenções arbitrárias vão se prolongar. Em entrevista à RFI, Laura Macedo, uma das subscritoras da carta de convocação à vigília em solidariedade com os presos políticos, apela à mobilização de todos os angolanos no país ou na diáspora. Laura Macedo: Desde que eles foram presos que nós queremos que eles saiam. Porque não vemos motivo para indivíduos que têm família, têm mulher, têm filhos, serem presos porque dizem a verdade. O facto de dizerem a verdade é que os leva para a prisão. Neste momento há uma grande preocupação da nossa parte. Vêm as férias judiciais. O sector da justiça só reabre em Março. Portanto, os processos vão ficar parados, e não há necessidade de ficarem detidos. Podiam ser mandados para casa com termo de identidade e residência, como como aconteceu com o Gonçalves Frederico, que já está em casa. Porque é que aos outros lhes foi negado este direito? RFI: De momento, quanto presos políticos se encontram encarcerados e qual é a situação deles? As condições da cadeia são más e eu conheço-as, infelizmente. Já tive o prazer de as conhecer na ala feminina do Comando Provincial de Luanda (CPL). Não há água! As senhoras que não tem família têm que apanhar a água na descarga das latrinas! Como é que será na prisão dos homens? Eles não aceitam comer as comidas que lhes dão na cadeia. Não há nenhuma arca frigorífica para conservar a comida na cadeia, e quando chega lá já está feita há dias. RFI: Quantos presos políticos actualmente, sabemos? Não temos o número exacto. Até porque há muitos meninos presos também, que foram presos no âmbito das confusões à volta das manifestações. Eu não faço distinção entre os activistas e estes jovens desconhecidos que foram recolhidos na via pública. Muitos foram presos sem provas. RFI: São acusados de vandalismo? Sim. São presos e acusados de vandalismo. São também presos políticos. Nós não podemos deixá-los de fora. RFI: Tudo isto no âmbito dos protestos que foram organizados em Julho para protestar contra o aumento dos preços e, nomeadamente dos combustíveis, certo? Sim, o próprio Osvaldo Caholo está preso neste âmbito. RFI: Osvaldo Caholo, é um dos organizadores dos protestos contra o aumento dos combustíveis em Julho. Ele escreveu recentemente uma carta a partir da cadeia, anunciando a prolongação da sua prisão preventiva, devido nomeada a estas férias judiciais. Na carta, Osvaldo Caholo escreve que "os juízes julgam por suborno" e que "qualquer pessoa que ameace o status quo do MPLA será condenado". Como é que reage a isto? Suborno não se faz apenas com pagamento em dinheiro. Nós temos o suborno intelectual, o suborno mental, que é muito pior. Neste caso, é o próprio procurador aceitar condenar, mesmo vendo que as coisas não estão correctas, querer agradar ao chefe. Por exemplo, nós ouvimos dizer que quando o Gonçalves Frederico foi levado ao juiz de garantia, o juiz interrogou longamente e o Fred explicou tudo direitinho. E no fim, o juiz tirou um papel e leu a sentença. Ele já vinha com o papel, nem sequer tinha ouvido ainda o Frederico. Quer dizer, a decisão já estava escrita no papelote. RFI: Todos estes detidos políticos estão indiciados por "rebelião, apologia ao crime, vandalismo e terrorismo". São acusações graves? São acusações muito graves, sim. O problema em Angola é que não precisamos de prova para condenar. Esse é que é o grande problema. RFI: Estes detidos arriscam-se a passar longos anos em detenção? Sim, acho que sim. Se não fizermos pressão, se não estivermos aqui a contrapor, se a sociedade não se levantar contra isto, amanhã estamos todos na cadeia. Prendem-me a mim porque não gostaram do batom que pus nos lábios. Prendem outro porque não se sentou correctamente como eles queriam. Hoje, tudo pode ser considerado um acto de terrorismo e de vandalismo. RFI: E por isso mesmo lhe pergunto em relação à vigília que é organizada hoje à noite, temem alguma repressão? Não têm porque reprimir. Nós cumprimos a lei. Não recebemos nenhuma carta do governo da província, a quem escrevemos. Então, quem cala consente. A própria lei assume que quem cala consente. RFI: A 14 de Outubro, Angola foi eleita membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU, com 179 votos favoráveis e três abstenções. Que mensagem é que a comunidade internacional está a passar com esta eleição? A comunidade internacional continua a passar a mesma mensagem de que onde eles ganham, ninguém mexe. Angola é um país que lhes dá frutos, pese embora não dê frutos aos seus cidadãos, mas dá frutos a muitos países. Há muitas empresas internacionais e a única coisa que lhes interessa é manterem este governo que lhes permite estar de seringa a sugar o sangue. Eles sabem que com um governo sério não faziam metade das maracutaias que estão a fazer aqui. RFI: Que apelo deseja fazer aos cidadãos angolanos? Quero fazer um apelo à comunidade em Angola que compareça na vigília, à comunidade angolana no exterior que nos apoie, e a toda a comunidade internacional, que olhe para nós. Que obriguem os seus governos a rever as suas políticas com Angola. Porque são estas políticas que os governos têm com Angola que fazem perigar o nosso bem estar.

A UNESCO lança hoje três novos volumes d'A História Geral de África, efectuados com recurso a mais de 60 académicos em 28 países diferentes e de forma a aproximar este conhecimento sobre o continente africano dos mais jovens, a organização lança ainda um jogo de vídeo sobre a vida de 10 figuras de destaque em África, incluindo a rainha Nzinga. A UNESCO lança hoje na sua sede, em Paris, os volumes IX, X e XI d'A História Geral de África que começou a ser publicada em 1965, de forma a restabelecer e actualizar a história do continente africano vista e contada pelos africanos. Estes novos volumes vão incidir sobretudo sobre a história revisitada de África, com as mais recentes actualizações sobre este continente como berço da civilização, um outro volume é dedicada às diásporas africanas no Mundo e um último é consagrado aos mais recentes avanços no continente. Para acompanhar a publicação destes novos volumes, a UNESCO lança também um jogo de vídeo que estará disponível para iOS, Google Play ou ainda Xbox sobre o percurso extraordinário de 10 figuras africanas incontornáveis. Lídia Brito, antiga ministra moçambicana e actualmente sub-directora geral da UNESCO para as Ciências Exactas e Naturais falou na importância de serem os africanos a escrever a sua própria história. "Para a preparação destes novos volumes da UNESCO. Adoptou, como o fizemos antes, uma abordagem amplamente consultiva, organizando workshops, reuniões de especialistas e sessões ampliadas do Comité Científico que incluíram outros especialistas do continente e da diáspora. Este processo, a nosso ver, permitiu que investigadores de diferentes formações linguísticas, culturais disciplinares trocassem perspectivas e construíssem uma narrativa partilhada sobre o passado recente de África e das suas diásporas e os seus desafios contemporâneos. Como é sabido, os volumes anteriores concentraram-se principalmente na reconstrução da história africana, que por muito tempo foi negada ou distorcida, ou mesmo, eu diria, se calhar, falsificada. Tratou-se de um compromisso de uma geração inteira determinada a reconstruir a história das sociedades africanas em bases sólidas. Neste novo esforço, nestes três novos volumes, além de actualizar a colecção, eles mapeiam e analisam a história das diásporas africanas em todo o mundo. Estes volumes também expandem a narrativa do continente até ao período contemporâneo, explorando o papel de África na globalização, a vitalidade das suas diásporas e as transformações sociais, políticas e culturais que moldam o seu futuro. Em resumo, eu diria que esta iniciativa reafirma com força o princípio fundamental que os africanos devem ser os principais intérpretes da sua própria história", disse Lidia Brito. De forma a chegar aos mais jovens, a UNESCO lança também nesta sexta-feira um jogo, "African Heroes" ou "Heros Africains", contando o percurso extraordinário de 10 figuras africanas, incluindo a rainha Nzinga, símbolo da resistência em Angola. "É extremamente importante que os jovens africanos estudem a sua história a partir das perspectivas africanas. E, sem dúvida, que isso cria uma autoestima e desenvolve uma identidade africana. E é por isso que nós também decidimos, para além de trabalhar com os ministérios de Educação, com os manuais de como incluir a história geral da África no currículo, nós também decidimos que era importante encontrar os jovens onde eles estão e, portanto, desenvolvemos este este jogo que é que um experiência piloto, sobre heróis africanos. Através dos jogos e de maneira lúdica, os jovens podem conhecer a sua própria história naquilo que pensamos que é uma forma extremamente envolvente, acessível a todos", concluiu Lidia Brito.

“África-Europa: Acabar com a Dependência Estrutural: o Momento da Verdade face à Auto-ilusão” é o novo livro do economista guineense Carlos Lopes, que ocupou o cargo de Alto Representante da União Africana para as Parcerias com a Europa. A obra aborda a dependência estrutural nas relações entre África e Europa, propondo uma reflexão sobre a auto-ilusão e a necessidade de mudanças nas abordagens de ajuda e desenvolvimento. No livro, fala sobre a dependência estrutural nas relações entre África e Europa. De que forma se pode acabar com essa dependência? Essa dependência não pode ser explicada apenas com factos políticos ou com teoria económica. Necessita de mais profundidade para se poder entender que as narrativas foram construídas através de uma história muito complexa, dos dois lados, e que leva a que haja um determinado número de condicionalismos que fazem crescer uma mentalidade difícil de mudar. Tive de recorrer à psicologia para poder explicar alguns destes fenómenos. É por isso que o título do livro inclui a expressão "auto-ilusão", um fenómeno estudado na psicologia: quando as pessoas enfeitam a realidade e utilizam técnicas manipuladoras para que essa "verdade" construída seja a que prevalece. Infelizmente, encontrei esse defeito, se assim lhe podemos chamar, dos dois lados da equação: tanto do lado dos europeus, como do lado dos africanos. Por razões diferentes, evidentemente, mas ambos confortáveis com esta forma de interpretação das relações, o que impede a tal transformação estrutural. Fala na fragmentação das abordagens africanas, que têm sido estrategicamente exploradas pela Europa nas negociações. Como se pode ultrapassar essa divisão interna e criar uma posição mais forte entre os países africanos? Essa divisão dos africanos já é uma consequência. O principal problema é a ideia de que se pode, com altruísmo e uma certa forma de compensação pelos erros do passado, tirar os países africanos da sua condição de menos desenvolvidos. É essa a justificação ideológica da ajuda ao desenvolvimento. Pensa-se que, através dessa ajuda, se podem operar grandes modificações. Na realidade, essa ajuda insere-se num sistema que não permite mudanças estruturais, a não ser em casos muito excepcionais. Defende uma diplomacia africana mais proactiva. O que tem impedido os países africanos de adoptarem essa postura mais assertiva nas negociações com a União Europeia? O que impede é o facto de, devido às características que mencionei, a União Europeia conseguir escolher facilmente os interlocutores que falarão como gostaria de ouvir. Portanto, há auto-ilusão. Escolhem-se os países para determinados tipos de reuniões, conferências, eventos, dando-se atenção àqueles que se comportam "bem", para usar uma linguagem simples. As pessoas pensam que, ao fazerem aquilo que lhes pedem, vão receber compensações: mais ajuda, mais acesso, mais visibilidade, mais protagonismo. Este jogo faz com que África apareça sempre dividida. É evidente que os africanos poderiam ter o à-vontade político para superar isto, mas é preciso ver que estas divisões têm raízes históricas muito profundas, que descrevo em detalhe no livro, e que são difíceis de mudar. O conceito de “auto-ilusão” é central no livro. Pode explicar o impacto dessa “auto-ilusão” nas decisões políticas no continente africano e como se reflecte nas relações com a Europa? Esse conceito faz com que os europeus não mudem a sua postura em relação a África, e, portanto, estejam a perder terreno. Outros parceiros do continente, que não têm esse tipo de dificuldade nem esse “pedigree” histórico, abordam as coisas de forma diferente. No lado africano, como a Europa continua a ser o principal doador, o bloco com mais comércio e onde existe mais investimento (em termos de stock, não necessariamente em novos investimentos), a falta de uma relação clara e transparente com a Europa afecta também as relações com os outros parceiros. Essa é, digamos, a perenidade do problema. Temos de o superar através de várias formas de negociação, que tentei introduzir enquanto Alto Representante da União Africana, mas falhei. Por isso, senti a obrigação de explicar as razões mais profundas. Daí a ideia do livro. Estas razões passam também pelo legado colonial, tema presente no livro. De que forma as narrativas colonialistas moldam ainda hoje as relações entre os dois blocos, sobretudo em matéria económica? Sobretudo em matéria económica. Por exemplo, temos a teoria das vantagens comparativas, que é conhecida dos economistas, mas que no caso africano é usada para perpetuar a ideia de que as vantagens comparativas africanas são a exportação de matérias-primas, exactamente o modelo colonial. Mantém-se uma estrutura económica colonial que se traduz em várias práticas: em matéria de transportes, os investimentos mais importantes continuam a ser os que facilitam a exportação de matérias-primas para os portos, e não para servir a economia doméstica; as políticas macroeconómicas visam sobretudo garantir o cumprimento das obrigações internacionais e não necessariamente reduzir a pobreza da população. Acabamos por ser reféns de uma ideia colonial, apenas com uma nova roupagem. Critica a ajuda internacional e sugere que ela perpetua o subdesenvolvimento. Quais seriam, na sua opinião, os mecanismos mais eficazes para que a ajuda se torne uma força real para o desenvolvimento sustentável? Para mim, é relativamente fácil dizer onde a ajuda poderia ser importante, transformadora e significativa: na regulação internacional. Por exemplo, em matéria de comércio: os países africanos são penalizados de várias formas. A “Rodada de Doha”, aprovada há 17 anos na OMC, visava fazer do comércio um instrumento de desenvolvimento, mas nunca foi implementada, em parte por oposição de países europeus. Outro exemplo: a regulação financeira. Os países africanos enfrentam avaliações de risco que não condizem com a realidade. Comparando os dados macroeconómicos de África com os da América Latina ou da Ásia, vemos que as taxas de juro para os empréstimos africanos são muito mais elevadas, apesar de os indicadores africanos, por vezes, serem melhores. Também em matéria de investimento: o retorno sobre o investimento em África é dos melhores, segundo a Organização do Comércio das Nações Unidas. Mas isso não se traduz em mais investimento. Este ano, por exemplo, as projecções do Banco Mundial e do FMI indicam que África será o continente que mais crescerá, pela primeira vez, ultrapassando a Ásia. Mas esta não é a percepção generalizada. A França tem tido influência sobre muitos países africanos e é muitas vezes acusada de manter dinâmicas neocoloniais. Como vê actualmente a posição da França em relação a África? Vejo uma posição de perda de influência. Numa altura em que a França se dá conta de que deveria mudar a sua postura ,por ser considerada excessivamente marcada por uma visão neocolonial, fá-lo de forma atabalhoada, o que provoca o efeito contrário: um afastamento ainda maior. É um lugar-comum, mas os jovens africanos vêem a atitude francesa como demasiado intrusiva nos processos políticos dos seus países. Lamentavelmente, a França está em perda. E nos sistemas políticos não existe vácuo, esse espaço é rapidamente ocupado por outros. Mas existe espaço para uma mudança genuína na abordagem da França? Existe. Claro que sim. Bastava, por exemplo, que os bancos franceses mais importantes vissem em África como os turcos, chineses, vietnamitas ou indianos estão a ver: uma oportunidade de expansão. Mas, em vez disso, os bancos franceses estão a retirar-se. Isso revela uma percepção de risco contrária à tendência mundial. Sugere que África deveria explorar o seu potencial em comércio, tecnologia e ambiente. Quais são os obstáculos actuais para o continente afirmar-se internacionalmente? Antes de mais, é preciso reconhecer que, em qualquer das megatendências mundiais, demográfica, climática ou tecnológica, o mundo precisa de África. Demografia: o envelhecimento da população mundial favorece o crescimento do consumo em África, onde a população continua a crescer. O Clima: em energias renováveis e minerais críticos, África é essencial para a transição ecológica; Tecnologia: apesar da inovação não estar centrada em África, a complexidade crescente das tecnologias torna-as mais difíceis de absorver por populações envelhecidas. Ora, os nativos digitais do futuro estão em África. Em 2050, um em cada dois jovens no mundo será africano. Temos de repensar o conceito de risco. Este ainda é avaliado com base em parâmetros ultrapassados pelas megatendências actuais. Enquanto isso não mudar, continuaremos a negligenciar o papel central que África terá no futuro. Qual seria, a seu ver, o maior passo a ser dado pelos líderes africanos e europeus para garantir que as futuras gerações não herdem estas dinâmicas de poder desigual que ainda dominam estas relações? Acabar com a auto-ilusão. E isso começa por ter a noção de que a maioria dos conceitos que utilizamos hoje para interpretar o processo de desenvolvimento está errada. São conceitos que devem ser cada vez mais ancorados nas experiências recentes, nomeadamente nas transições bem-sucedidas dos países da Ásia, do Sudeste Asiático e, mais recentemente, da Índia. Temos, portanto, um corpo de conhecimento que nos permite sair da auto-ilusão com factos reais. Como foi possível, por exemplo, que um país como o Vietname se transforme num colosso exportador, como é hoje? Como foi possível que um país com índices de pobreza muito elevados, como o Laos, consiga alcançar, digamos, patamares aceitáveis de desenvolvimento? Como é que um país como Bangladesh, que era um dos países com maior densidade populacional entre os menos desenvolvidos, seja hoje uma potência industrial? Portanto, temos exemplos concretos. E esses exemplos, infelizmente, não são frequentemente encontrados em África.

Madagáscar vive uma fase de instabilidade política com a saída de Andry Rajoelina, forçada por três semanas de protestos da geração Z. O coronel Michael Randrianirina, 51 anos, crítico do antigo Presidente, assume esta sexta, 17 de Outubro, a liderança da “Refundação da República”, legitimado pelo Tribunal Constitucional. Promete governo de transição civil, referendo constitucional e eleições em até dois anos. A União Africana (UA) suspendeu esta quarta-feira, 15 de Outubro, Madagáscar por considerar a mudança política anti-constitucional, enquanto a União Europeia apela ao diálogo e ao respeito pelas regras democráticas, evitando classificar os acontecimentos como golpe de Estado. Para analisar a situação política em Madagáscar falámos com o professor de Ciência Política da Universidade de Rovuma, em Nampula, no norte de Moçambique, Arcénio Cuco, que contextualiza a crise malgaxe à luz de dinâmicas mais amplas do continente africano. Questionado sobre o facto de o exército afirmar responder às reivindicações populares, mas historicamente também ter desempenhado papéis de poder. Até que ponto é que este movimento pode ser considerado uma ruptura com o passado ou uma repetição de ciclos políticos malgaxes, o investigador responde ser preciso analisar a situação "olhando para eventos anteriores. Temos de nos lembrar que a chegada de Rajoelina ao poder também se deveu a uma reivindicação das massas em Madagáscar, e isso forçou a deposição de Ravalomanana.” Segundo Arcénio Cuco, os acontecimentos não podem ser lidos de forma isolada: “A outra questão fundamental é olharmos para os eventos que estão a acontecer nos últimos anos em África. Fica evidente que os africanos já não se revêem nos governos que estão no poder, justamente pela incapacidade em responder às demandas sociais e económicas dos seus países, e isso leva à reivindicação das populações. O exemplo do que estou a dizer é o que se assistiu no Sahel nos últimos anos e em Moçambique em particular, com manifestações violentas em 2023 e 2024. Aliás, mesmo com esses sinais, os governos não têm sido capazes de responder às ansiedades dos seus povos”. Essa incapacidade gera convulsões recorrentes, acrescenta. “Os nossos governos africanos não estão a conseguir responder às ansiedades dos seus povos, e isso leva a convulsões na maior parte dos países. Como aconteceu com Ravalomanana, que também fugiu para a África do Sul após ser deposto, e como se sente hoje com a União Africana a não reconhecer a chegada dos militares ao poder em Madagáscar. Mas a grande questão é o significado da presença militar no poder em África: em que medida isto será benéfico ou perigoso para os africanos?”, questiona. Os protestos das últimas três semanas foram marcados pela mobilização da geração Z. Para Arcénio Cuco, o fenómeno merece reflexão: “O que é que os movimentos que se levantaram durante a Primavera Árabe produziram em termos de resultados significativos para a transformação social e económica? Essa pergunta é fundamental também em relação a estas novas ondas de golpes em África: será que as pessoas que chegam ao poder através desses movimentos estarão em condições de responder às ansiedades daqueles que os apoiaram, como a geração Z em Madagáscar, ou estaremos a caminhar para a implantação de ditaduras no continente?” A saída de Andry Rajoelina do país contou com apoio logístico francês, facto que provocou reacções internas e externas. O académico considera problemática essa associação: “É uma questão delicada vincular a França à protecção de Rajoelina, porque entraríamos outra vez na discussão sobre a expulsão da própria França dos países do Sahel que passam por situações similares. Não sei se não deveríamos repensar a política externa francesa para África. Qual deve ser a posição da França em relação aos países africanos, sobretudo no que diz respeito aos interesses dos malgaxes em particular? Quando falo dos malgaxes, refiro-me também ao Níger, ao Burkina Faso. É preciso que a França se questione sobre a sua posição em África”, sublinha. A suspensão de Madagáscar pela União Africana pode, segundo Arcénio Cuco, revelar-se um erro estratégico: “É uma questão muito complicada porque poderíamos dizer que é uma reedição do que aconteceu quando a CEDEAO criticou e sancionou países que introduziram governos militares. Talvez a melhor medida não fosse a suspensão, mas sim criar-se uma comissão para entender melhor o que está a acontecer em Madagáscar. Dá a impressão de que as instituições multilaterais e regionais não trabalham no sentido de satisfazer os interesses dos povos, limitando-se a aplicar sempre as mesmas medidas: suspensão e tentativa de repor dirigentes depostos”. Em comparação, a resposta da União Europeia é vista, pelo investigador, de forma mais positiva. “Eu penso que sim, que é prudência. Esta posição da União Europeia é a que a União Africana deveria ter tomado. A prudência neste momento é necessária, como a UE está a demonstrar, procurando compreender porque é que a geração Z se levantou contra o governo e porque é que os militares colaboraram na deposição de Rajoelina. São questões fundamentais”, defende. Michael Randrianirina prometeu eleições no prazo de dois anos, mas o académico moçambicano mostra-se céptico: “É um pouco complicado. Temos de olhar para a experiência africana em contextos de golpes. Os militares quase sempre prometem eleições, mas, no fundo, percebemos que é uma promessa que depois não se cumpre. O Sahel é um exemplo inequívoco. Se os militares malgaxes cumprirem a promessa, será algo inédito e positivo, sobretudo no que diz respeito à devolução do poder a civis. Mas a experiência obriga a desconfiar”, concluiu.

Angola foi eleita, nesta terça-feira, 14 de Outubro, membro do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas para o triénio 2026-2028, durante a 18.ª reunião plenária da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. O país obteve 179 votos favoráveis e três abstenções, alcançando a quarta presença no órgão composto por 47 Estados-membros. As autoridades angolanas referem que esta eleição resulta do “reconhecimento dos avanços institucionais e do compromisso do país com a dignidade humana”, comprometendo-se a reforçar os mecanismos multilaterais e proteger os direitos das pessoas mais vulneráveis. David Boio, sociólogo angolano, mostrou-se surpreso com a eleição de Angola para esta organização e diz que "o país não respeita os direitos humanos". Angola foi eleita, nesta terça-feira, 14 de Outubro, membro do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas para o triénio 2026-2028, durante a 18.ª reunião plenária da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. O que representa esta eleição para o país e para os angolanos? Talvez, para o Governo, seja uma boa notícia em termos de imagem. Mas para o país, não. Porque o mais importante para o país não é Angola ser eleita para este tipo de organizações, mas sim que houvesse, de facto, respeito pelos direitos humanos e que as pessoas vivessem num país onde estes são efectivamente respeitados. E não é esse o caso. Qual será o papel de Angola enquanto membro deste Conselho? Eu não faço ideia de qual deve ser, ou qual poderá ser, o papel de um país que não respeita os direitos humanos numa organização como essa. É uma contradição. A eleição ocorre num momento em que o país enfrenta críticas internas e internacionais pela deterioração das liberdades civis e pela descida significativa em indicadores globais de direitos humanos e democracia. Esta eleição mostra que a ONU já não tem em conta estes indicadores quando se trata de eleger um país para integrar a comissão dos direitos humanos? Sim, penso que sim. A própria ONU também tem estado sob uma série de críticas. Questiona-se o papel do Conselho de Segurança da ONU, se ainda faz sentido tal como está hoje, no século XXI. Cinquenta anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a própria organização encontra-se, infelizmente, num contexto de descredibilização. E nomear um país que não respeita os direitos humanos para um órgão como este vem, mais ou menos, solidificar a ideia de que a ONU é, cada vez mais, uma organização não credível. De acordo com o World Human Rights Index, Angola caiu várias posições devido a restrições à liberdade de imprensa, detenções arbitrárias, censura e repressão a manifestações pacíficas. Esta nomeação poderá, de alguma forma, exercer pressão sobre as autoridades? [As autoridades] não vão, de forma alguma, recuar na sua natureza autoritária por causa desta nomeação. Esse tipo de nomeação apenas legitima, internacionalmente, a forma autocrática como governam. O Governo não vai mudar por estar num órgão das Nações Unidas. Por isso é que eu disse que o estranho é, de facto, Angola ser eleita, ou algo do género, por essa organização. No passado mês de Julho, o Conselho de Direitos Humanos da ONU reconheceu progressos em Angola, mas fez recomendações, nomeadamente quanto à actuação das Forças Armadas. Era também nesse sentido que lhe fazia a pergunta: o país poderá vir a respeitar essas recomendações? Não vai. Teria de existir algo mais profundo, uma mudança da natureza do regime. O Governo angolano actual não faz, nem tem feito, nada nesse sentido. Aliás, aproximamo-nos de um período eleitoral e aquilo que se espera é que o Governo se feche ainda mais, ou seja, que a sua natureza autocrática se aprofunde. O país está a viver uma profunda crise económica, com muita insatisfação da população, e a forma como o Governo lida com essas questões é sempre com o braço mais forte, e não com liberalização. Seria contra a natureza do regime. É também esta a posição dos activistas, que consideram que a nomeação de Angola contrasta com a realidade vivida no país. Um grupo de cidadãos da sociedade civil está a organizar uma vigília pela libertação dos presos políticos, marcada para sexta-feira, 17 de Outubro. É também este o seu sentimento – que a nomeação de Angola contrasta com a realidade do país? Mais do que um sentimento, é mesmo uma observação. Teremos de ter um outro regime. Enquanto o país continuar a ser governado por este regime do MPLA, que prefere o exercício autoritário do poder, a situação não vai mudar. A única coisa que fazem é recorrer a estas instituições para criar uma imagem de legitimidade internacional. Mas, localmente, internamente, as coisas não mudam. Aliás, estas organizações, ou, neste caso, as Nações Unidas, acabam por chancelar a natureza autoritária do regime. Isso não contribuirá positivamente para a situação dos direitos humanos internos. Não vai – e nós sabemos, infelizmente, que estas organizações têm estas particularidades de hipocrisia. Mas, para o país, nada mudará. Tivemos pessoas que foram mortas. Como é que um país, onde as forças policiais assassinaram várias pessoas e onde há presos políticos, pode ser eleito para esta organização? Isso diz mais sobre as Nações Unidas do que sobre Angola.

O Supremo Tribunal de Justiça da Guiné-Bissau confirmou esta terça-feira, 14 de Outubro, a exclusão da candidatura presidencial de Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC e apoiado pela coligação PAI Terra Ranka, alegando falta de validade legal numa decisão considerada definitiva e sem recurso. À RFI, Domingos Simões Pereira rejeita a legitimidade do anúncio, afirma não reconhecer a decisão e garante ter cumprido todos os requisitos para ser candidato. A exclusão baseia-se no entendimento de que a coligação PAI Terra Ranka não teria legitimidade para apoiar a candidatura, uma vez que o PAIGC não concorreu de forma isolada às últimas eleições legislativas. Esta interpretação deixa Domingos Simões Pereira fora da corrida presidencial marcada para 23 de Novembro. Em entrevista à RFI, o dirigente do PAIGC contestou a legitimidade da decisão, declarando que não reconhece a entidade que falou em nome do Supremo Tribunal, já que, "não houve reunião plenária oficial dos juízes conselheiros". Recordou ainda que uma plenária foi convocada para analisar reclamações, o que, na sua leitura, significa que "a lista definitiva de candidaturas ainda não foi publicada". Domingos Simões Pereira afirmou ter cumprido todos os requisitos legais exigidos, incluindo "documentos de identificação, registo criminal e cartão de eleitor", sublinhando que já concorreu em 2019 "com a mesma documentação". Criticou a forma inédita de comunicação do Supremo Tribunal de Justiça, que optou por "conferências de imprensa em vez de notificações formais". “O que sabemos é que as decisões devem ser tomadas em plenária e publicadas oficialmente. Isso não aconteceu”, denunciou o candidato, garantindo não ter recebido qualquer notificação formal sobre a rejeição da sua candidatura. O líder do maior partido da oposição sublinhou ainda que, caso a via judicial lhe seja fechada, vai recorrer aos instrumentos políticos: “Se nos fecharem a porta da justiça, a porta da política vai continuar aberta e falaremos com o povo guineense para exigir o respeito pelos nossos direitos e liberdades”, defendeu. Questionado sobre se considera estar a ser alvo de perseguição política, Domingos Simões Pereira respondeu que essa pressão já existe “há muito tempo”. Acrescentou que vai continuar a assumir responsabilidades em nome do partido e da coligação, que descreveu como “fachos de esperança para muitos guineenses”. O dirigente do PAIGC garantiu que aguarda pela reunião plenária prevista no Supremo Tribunal de Justiça, onde devem ser analisadas todas as reclamações apresentadas. Segundo os advogados do PAIGC, a lista divulgada é ainda provisória e só depois dessa sessão pode ser confirmada ou não a exclusão definitiva. Recorde-se que Domingos Simões Pereira foi escolhido pelo Comité Central do PAIGC, com o aval dos restantes partidos da coligação PAI Terra Ranka. A RFI tentou obter reacção do porta-voz do Supremo Tribunal, Mamadu Embaló, que preferiu remeter para o comunicado oficial e para a conferência de imprensa realizada esta terça-feira, 14 de Outubro, em Bissau.