De segunda a sexta-feira, sob forma de entrevista, analisamos um dos temas em destaque na actualidade.
No espectáculo "Affaires Familiales", de Émilie Rousset, sete actores revivem histórias reais para retratar a complexa justiça familiar na Europa. Teresa Coutinho, actriz portuguesa, conduz o público por este labirinto documental, onde o direito se revela fluido, contraditório e politicamente vulnerável. O resultado é um teatro onde o corpo, a voz e o gesto traduzem não só histórias pessoais, mas o pulsar desigual de um continente em disputa com os seus próprios princípios. A justiça, tal como o teatro, vive da interpretação. Em Affaires Familiales, Assuntos de Família, essa premissa torna-se literal. A criação de Émilie Rousset dá corpo e voz a testemunhos reais de quem viveu o divórcio, a custódia, a parentalidade ou a violência doméstica e sexual – situações familiares, sim, muitas vezes juridicamente desconcertantes. Teresa Coutinho, uma das intérpretes do espectáculo, fala-nos de um “exercício de presença” tão exigente quanto revelador. O convite surgiu de forma natural. Teresa Coutinho já conhecia Rousset do projecto Pays Partagés, onde colaboraram em Portugal. “Foi logo um encontro muito feliz”, recorda. O trabalho começou com uma pesquisa sobre parentalidade LGBT em vários países europeus, e foi ganhando contornos mais concretos. “Fez sentido que a língua portuguesa estivesse presente em palco e com ela, eu”, explica a actriz, que incorpora falas de figuras como Isabel Moreira ou Fabiola Cardoso. Mais do que um retrato da Europa, Affaires Familiales é uma composição subtil dos seus contrastes. “A lei caminha a ritmos diferentes”, diz Teresa Coutinho, que destaca um paradoxo: “Muitas vezes em Portugal avançámos mais depressa em temas como a parentalidade LGBT do que em França”, compara. Mas a peça também alerta para o retrocesso. “O que está a acontecer em Itália pode acontecer em qualquer lado. Não estamos ao abrigo de nada”, alerta. O espectáculo parte de entrevistas reais. Os actores reproduzem palavra por palavra, intuição por intuição, as vozes originais, guiados por uma gravação áudio que ouvem discretamente através de um auricular: “É como seguir uma partitura”, descreve. A cadência da fala, as hesitações, a respiração, tudo conta. O trabalho é rigoroso, mas também sensível: “Encontramos sempre espaço para reagir ao presente, ao público presente na sala”. A cenografia apresenta-se como uma página em branco, ao mesmo tempo simples e evocadora. Um dispositivo que se torna um espaço de projeção, onde os relatos íntimos ganham corpo. As sombras de figuras humanas evocam a presença de muitas outras vítimas de violência intrafamiliar, recordam que, por detrás de cada testemunho individual, se escondem percursos semelhantes, muitas vezes silenciados ou invisibilizados. A gestualidade, por sua vez, é uma coreografia estudada e fragmentária. “As mãos falam, muitas vezes dizem o que não dizemos com a boca”, lembra a actriz, acrescentando que “há passagens em que sublinhamos esse exercício, para que o público perceba que está perante uma construção. É também sobre isso que fala o espectáculo: o que é natural e o que é encenado”. No palco, o público é mais do que espectador é convocado, sentado frente-a-frente perante o palco, num efeito espelho que se sente, sobretudo, nas cenas mais intensas. “Há uma sequência que evoca mães de crianças vítimas de incesto. Só faz sentido dizer estes testemunhos com outras pessoas presentes. É aí que se cria uma assembleia, uma comunidade provisória”. “Acho que o espectáculo, apesar de tudo, oferece um lado de esperança”, afirma a actriz portuguesa. Essa esperança, diz, não vem de soluções, que raramente existem nos relatos partilhados, mas da possibilidade de dar voz e forma à dor. “As pessoas aplaudem, sim, o nosso trabalho, mas aplaudem sobretudo o facto de estas histórias existirem, de estarem a ser ouvidas”. No final, o teatro cumpre a sua função mais antiga: tornar o invisível visível. Teresa Coutinho vê nisso uma responsabilidade que não pesa, mas que exige consciência. “Quando temos um palco e 250 pessoas à frente durante duas horas e meia, isso é um poder enorme”, sublinha. Para a actriz, o espectáculo é um alerta: “A lei é mutável. Pode mudar consoante quem está no poder. A Europa é diversa, mas também instável”. Teresa Coutinho reconhece, ainda, que nem toda a arte tem de ser interventiva, mas acredita no poder do palco como ferramenta cívica. “A arte pode ser muitas coisas, mas os artistas têm essa possibilidade de consciencializar. A Emílie fez essa escolha com muita clareza, porque este é um tema pessoal para ela, como acaba por ser para quase todas nós”. A dor que se partilha em cena é muitas vezes eco de dores privadas. Affaires Familiales é uma advertência contra o esquecimento, contra a ideia de que os direitos adquiridos são eternos. “Cabe-nos defender as leis e agarrá-las”, conclui. Entre o rigor documental e a emoção teatral, o espectáculo propõe uma escuta atenta; não só ao que os outros dizem, mas ao que nós próprios queremos ouvir.
No centro do Festival de Avignon, muito para lá dos holofotes, Ivone Sens e Débora Carvalho garantem que tudo acontece com precisão e paixão. Entre bilhetes, bastidores e contactos internacionais, revelam-nos o lado invisível do teatro, onde o cansaço é diário, mas o brilho no olhar não falta. Um retrato íntimo da equipa que faz o palco levantar voo. Ivone Sens e Débora Carvalho integram a equipa do Festival de Avignon. Trabalham nos bastidores, longe da visibilidade do palco, mas com funções essenciais para o festival. São parte de uma estrutura logística e organizativa que garante que os espectáculos decorram sem falhas, desde a comunicação institucional até à gestão das reservas para as companhias. Débora Carvalho ocupa-se da bilheteira reservada às companhias. Corre de manhã cedo até à noite, numa coreografia de nomes, lugares e pedidos de última hora. Sabe de cor os espectáculos mais procurados Le Canard Sauvage ou NOT e conhece os ritmos frenéticos que antecedem cada estreia. “Há sempre filas enormes, pedidos em cima da hora, e a necessidade de acolher com sorriso mesmo quando o relógio já pesa”, conta. Ivone Sens é a ponte entre os artistas e o festival. Trabalha na comunicação, mas faz muito mais do que divulgar: colecta dados, organiza biografias, monta fichas técnicas, e prepara o terreno para que a arte aconteça sem tropeços. “É a minha primeira vez em Avignon, e já parece uma vida. Começámos em Janeiro, e agora ver os espectáculos em palco é como ver um filho crescer”, conta, com entusiasmo. Ambas chegaram a Avignon por amor ao teatro e à cultura, vindas de percursos distintos, mas movidas pelo mesmo impulso: fazer parte do festival. Débora, com cinco anos de festival, fala de uma aprendizagem contínua: “Nunca tinha trabalhado em bilheteira. Aqui, aprendi a resolver problemas em várias línguas, a lidar com um sistema gigante e a não perder o pé mesmo quando tudo parece andar depressa demais”. Ivone vê no trabalho uma forma de concretizar a vocação. “Sempre quis comunicar cultura. Aqui, estou a fazê-lo com intensidade. É exigente, mas incrivelmente gratificante”, explica. Para ambas, o contacto diário com artistas, técnicos e espectadores constrói um tecido invisível que sustenta o festival e que raramente é visto. Há um brilho especial quando falam dos espectáculos que conseguem ver. “Mesmo sentada na plateia, depois de horas de trabalho, sinto que faço parte daquele momento”, diz Débora. E Ivone completa: “Estar nos bastidores e depois assistir ao resultado é como fechar um ciclo. É perceber que, mesmo fora de cena, somos parte da criação”, conclui.
Nos bastidores do Festival de Avignon, um dos mais importantes palcos do teatro do mundo, há uma programadora que observa, escolhe e molda. Magda Bizarro, programadora internacional do festival e braço direito de Tiago Rodrigues, é uma arquitecta do invisível. Trabalha na escuta e acredita que programar é arriscar. Nesta entrevista, Magda Bizzaro, levanta o véu sobre o que é fazer curadoria num lugar onde a arte é feita para estremecer, deslocar e revelar. Quando lhe perguntamos o que faz com que um espectáculo mereça estar no Festival de Avignon, Magda Bizarro responde sem hesitação: “Uma coisa muito importante para nós é sempre o público”. Antes de construir o programa, dedicou-se a entender quem o vê: “Passei o festival de 2022 inteiro a pisar cada espaço para perceber o que é que o público procura, mas também o que é que ele não está à espera de ver”. Essa escuta inicial marca toda a sua abordagem curatorial: “A programação é pensada tanto para o público habitual como para aquilo que pode desafiá-lo”. Não se trata de agradar, mas de propor. “Queremos trazer artistas que o público conhece bem, mas também outros que nunca viu. Propostas arriscadas, que o fazem descobrir”, conta. A linha que define o ADN do festival é esse cruzamento entre reconhecimento e surpresa. A escolha dos espectáculos é um processo longo e exigente: “Vejo mais de 300 espetáculos por ano”. Não se trata apenas do que está pronto porque "muitas vezes, o espectáculo que eu vejo não é o que vai ser apresentado - é o próximo”. A programação não se baseia em produtos finalizados, mas em relações, em processos. “É um trabalho que se constrói ao longo do tempo", conta. Um exemplo claro é o caso de Thomas Ostermeier: “Comecei um diálogo com ele em 2023, e agora, em 2025, apresentamos o espetáculo 'O pato selvagem'”. Mesmo com todas as conversas e acompanhamento, a programadora portuguesa só o viu completo no momento da estreia. “Descobri o espectáculo ao mesmo tempo que o público", diz. Essa partilha do risco é uma das marcas do festival: “É um festival de criação, muitas vezes não sabemos o que vamos ver. E isso é extraordinário”. Nem sempre os projectos chegam ao palco. “Houve um espectáculo que não conseguimos estrear este ano porque o artista perdeu o teatro onde ensaiava, vivia numa zona de conflito”, recorda. Questionada se existem enganos na escolha da programação, Magda Bizzaro sublinha que “não é engano. Às vezes, simplesmente, as condições não se reúnem. E isso faz parte do nosso trabalho: reunir tempo, apoios e espaço para que as criações possam existir”. É nesse contexto que surge La FabricA, espaço de residência artística ao serviço de quem mais precisa: “Muitos dos artistas que recebemos em residência vêm de regiões onde os governos não os apoiam”. Este ano, por exemplo, “a Marlène Monteiro Freitas esteve duas semanas e meia connosco, para ensaiar o seu espectáculo num espaço com as condições que ela precisava” A estreia do espectáculo, no grande recinto que é o pátio de honra do Palácio dos Papas, foi um sucesso, mas só o foi porque houve escuta e propostas práticas. O festival também reflecte uma visão política da linguagem. Desde 2023, há uma língua convidada. Depois do inglês e do espanhol, este ano é a vez do árabe. “Queríamos desassociar o árabe da ideia de conflito e religião”. O objectivo é outro: “Mostrar a sua diversidade, a sua viagem pelo mundo e as formas como se transformou e foi transformando outras línguas”, descreve a programadora portuguesa. Dois espectáculos mostram essa pluralidade. “Temos o "Laaroussa Quartet" de Selma e Sofiane Ouissi, sobre as mulheres de Sejnane, no norte da Tunísia e temos "When I Saw the Sea" de Ali Chahrour, com três mulheres vindas da Etiópia e do Sudão para viver no Líbano”. São abordagens completamente diferentes, “com sonoridades distintas, dois árabes diferentes, mas que falam da mesma urgência”, defende. Magda Bizarro insiste que o festival é desenhado como uma viagem para o espectador: “Pensamos o dia completo: pode ver-se teatro de texto de manhã, à tarde dança, e depois algo sem palavras. O objectivo é um percurso rico e pleno”. E, para isso, a programação precisa ser feita em articulação com os espaços: “Temos 22 locais em Avignon. Cada um tem as suas especificidades. Há espectáculos que não podem acontecer ao ar livre, por exemplo”. A complexidade da operação exige uma equipa gigantesca: “Durante o ano, somos 34. Em Julho, passamos a ser 750. Com os artistas, somos cerca de 1500”, descreve. Mas essa força não é só logística: “É uma equipa que sabe adaptar-se às necessidades dos artistas. E isso torna o festival mais rico". Magda Bizarro fala com carinho dessa máquina invisível que sustenta o brilho do palco. Quando se fala em reinvenção, a programadora admite: “É muito difícil reinventar cada edição. O festival tem um passado pesado, uma história densa”. E isso obriga a pensar em múltiplos equilíbrios: “Não é só diversidade geográfica ou estética. É também equilíbrio geracional, financeiro, técnico”. No mesmo cartaz, convivem mestres como Christoph Marthaler e estreantes como Mário Banushi: “Esse encontro entre gerações é o segredo da reinvenção”. Por fim, perguntamos-lhe se o facto de ser portuguesa afecta o seu olhar como programadora. A resposta vem com a nitidez de quem já viu e viveu muito: “Sim, há uma diferença. Eu sei o que é trabalhar com quase nada. Já paguei cenários do meu bolso. Já fiz espectáculos em garagens com luzes de velas". E isso dá-lhe uma escuta particular, uma atenção ao que ainda está a nascer: “Se calhar, vou a Buenos Aires ver um espectáculo numa garagem porque já fiz um espectáculo numa garagem. É aí que se descobrem pérolas”. Quando lhe pedimos uma palavra para resumir o Festival de Avignon, não hesita: “Aventura”. Mas no seu olhar percebe-se que essa aventura não é feita de impulso, antes de persistência. Não é o desvario de quem salta no escuro, mas de quem aposta no que ainda não se viu, de quem arrisca sem espetáculo e trabalha para que outros possam estar em cena. Magda Bizarro está no silêncio atento das grandes decisões deste que não é apenas um festival: é um território de possibilidades, onde o teatro continua a ser um dos lugares mais íntimos e bonitos.
Mayra Andrade subiu este sábado, 12 de Julho, ao palco do Palácio dos Papas, no festival de Avignon, num concerto marcado por beleza, urgência e consciência social. A cantora cabo-verdiana evocou temas como justiça, identidade e herança cabo-verdiana. ReEncanto celebrou os 50 anos da independência de Cabo Verde e reflectiu sobre o papel da arte como escuta e resistência. Num concerto intimista no pátio de honra do Palácio dos Papas, no festival Avignon, Mayra Andrade levou o coração de Cabo Verde, a voz das entranhas e a consciência do mundo a ecoar entre as pedras. Entre a sua filha na plateia e o grito por justiça em palco, a cantora cabo-verdiana ofereceu um momento de beleza e urgência: “Se não a cantar, não contribuo para o diálogo”, confessou. O pátio de honra do Palácio dos Papas tem o peso das coisas eternas, mas este sábado foi o presente que se fez ouvir. Mayra Andrade subiu ao palco com a simplicidade de quem não tem nada a provar, mas tudo a oferecer: “Antes de subir ao palco, alinho-me com o porquê de eu cantar. Agradeço ao universo pela oportunidade de partilhar quem eu sou, de contar o tempo no qual estamos”. Havia beleza e sombra no ar, como se cada nota tivesse de atravessar a consciência antes de tocar o ouvido. “Teria sido mais bonito se esta canção já não fizesse sentido. Mas se não a canto, não estou a contribuir para o diálogo. Um diálogo que é não fechar os olhos à injustiça, ao genocídio, ao absurdo”, afirma em palco antes de cantar "Konsiénsia", do álbum Stória, Stória de 2009. “A consciência que dorme não muda o mundo”, defende Mayra Andrade, num murmúrio que se espalhou pelo pátio. Cantar é, para ela, uma forma de escuta. “Sim, sem dúvida. Cantar é dar eco à vida. É ser antena. É captar o que acontece à nossa volta, o que vem no ar, o que a gente observa, o que a gente quer denunciar, o que se quer partilhar”, partilha. Na sua voz, há uma memória antiga e um apelo novo: “Canto sempre das minhas entranhas. A minha voz vem do meu útero, das minhas vísceras. É uma ponte entre o céu e a terra. E eu, no meio, sou atravessada por esse espírito criativo que me usa como vetor de mensagens, emoções e histórias”, descreve. “Quero acreditar que quando somos genuínos, conseguimos tocar as pessoas. A minha música é feita numa língua que 99,99% das pessoas no mundo não entendem. O crioulo é falado por poucos, mas traz uma musicalidade, um ritmo, uma herança muito antiga. É um idioma do mundo”, acrescenta a cantora cabo-verdiana. Quando canta em crioulo, não é apenas identidade, é chão. “Cantar em crioulo é cantar com todo o meu ser. Tem uma coisa muito raiz. Depois posso cantar em francês, inglês, espanhol, português, que também é a minha língua, mas o crioulo vem da terra de onde eu venho”, lembra. A sua participação no festival coincide com os 50 anos da independência de Cabo Verde, poucos dias depois de Marlène Monteiro Freitas ter aberto o festival com dança, com NÔT. “Estamos todos a celebrar. Eu faço parte de uma constelação de artistas cabo-verdianos muito orgulhosos de o ser e sedentos de partilhar a nossa cultura com o mundo”, defende. O concerto reEncanto é também autobiográfico. Um gesto artístico e íntimo: "É o fechar de um ciclo, a abertura de um novo. É redescobrir a minha voz. Algumas canções foram compostas há mais de vinte anos, outras são recentes. E é tremendo perceber como ainda fazem sentido. Talvez mais do que nunca”. Essa permanência do sentido revela outra inquietação, “muitas foram escritas em contextos políticos e sociais diferentes, mas hoje continuam a ecoar. A violência, a injustiça, o absurdo, o genocídio, a apatia, a indiferença... Tudo isso me preocupa”, sublinha. No fim do concerto, o agradecimento foi dirigido ao festival de Avignon e ao seu director, Tiago Rodrigues: “Vivi catorze anos em França. Já não vivo aqui há dez. Voltar para cantar neste espaço, neste festival, é algo que nunca vou esquecer". Cabo Verde esteve presente em cada sílaba, como ponto de partida de uma voz que canta o mundo. “Sou uma cabo-verdiana no mundo. E como a Marlène Monteiro Freitas, é difícil pôr-me numa caixinha. Porque nós somos isso: movimento, mistura, herança e futuro”.
O Chá verde dos Açores, produzido na Gorreana, contém uma substância que fomenta as funções cognitivas, ajuda na prevenção do cancro e a combater doenças como Parkinson ou Alzheimer. A descoberta foi feita pelo investigador e professor na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada, José Batista, doutorado em bioquímica analítica, que trabalhou em várias universidades portuguesas e do Canadá. A investigação começou com uma simples pergunta: como pode o chá verde ajudar a reduzir o risco de cancro? Ao trabalhar com dados de estudos de universidades internacionais, o investigador e professor da Universidade dos Açores, José Baptista, percebeu que fazia sentido explorar o potencial do chá verde neste contexto, “Comprei chás da China, do Japão, da Coreia… e quando os comparei com o chá da Gorreana, reparei que o dos Açores era menos amargo, menos adstringente. Isso levou-me a pensar: há aqui algo diferente”, conta o professor. Foi essa diferença no sabor que despertou o interesse do professor José Baptista: um ligeiro toque adocicado indicava a presença de um aminoácido especial -raro na natureza produzido apenas pela planta do chá e por alguns cogumelos tóxicos. “Suspeitei que se tratava de L-teanina, um aminoácido que estimula a comunicação entre neurónios. Precisava de o provar, e consegui confirmar, com ajuda de colegas no Japão, que o chá da Gorreana tinha mais do dobro da média encontrada em 16 chás chineses analisados”, recorda A análise revelou cerca de 3,7% de L-teanina nas folhas de chá verde da Gorreana. O investigador da Universidade dos Açores começou a estudar o impacto da zona da plantação, da fase de crescimento da folha, do tempo e temperatura de secagem. Com algumas modificações no processamento, aumentaram em 70% o teor deste aminoácido, sem recorrer a qualquer produto químico. “O que fizemos foi encontrar as condições ideais para que a planta não perdesse esse composto durante o processamento. Hoje, somos o único local do mundo onde se produz um chá verde com estas características”, afirma. O professor José Baptista sublinha que a ciência já demonstrou que o nosso cérebro, embora represente apenas 2% do peso corporal, consome 25% do oxigénio que respiramos - e essa elevada actividade metabólica gera radicais livres, moléculas instáveis que danificam as células e podem levar a doenças como o cancro ou Alzheimer. “Os radicais livres roubam electrões às células vizinhas, criando uma reacção em cadeia. Se atingirem o núcleo de uma célula, podem transformá-la numa célula cancerígena”, explica Baptista, acrescentando que “é aqui que entram os antioxidantes, compostos que neutralizam os radicais sem desencadear novas reacções. E o chá verde - especialmente o dos Açores - é riquíssimo em antioxidantes”, Além do efeito antioxidante, a L-teanina encontrada no chá verde estimula a actividade cerebral, promove o relaxamento sem causar sonolência e pode ajudar a prevenir doenças neurodegenerativas como o Alzheimer. “Esse aminoácido melhora a comunicação entre os neurónios. E sabemos também que 50% da membrana dos neurónios é formada por ácidos gordos ómega-3. Uma dieta rica em ómega-3 e chá verde pode reduzir significativamente o risco de Alzheimer”, nota. O investigador recomenda o consumo gradual do chá, sobretudo para quem não está habituado à cafeína, sublinhando que há formas de reduzir esse conteúdo, “Basta deitar fora a primeira infusão de 30 segundos - ela liberta grande parte da cafeína. A segunda infusão já tem níveis mais baixos. Além disso, a água nunca deve ser colocada a ferver diretamente nas folhas. O ideal é deixá-la arrefecer até cerca de 70 °C antes de a usar”, detalha. Para quem quer integrar este chá na rotina diária, a boa notícia é que não é necessário consumir grandes quantidades. Mesmo duas a três chávenas por dia podem trazer benefícios significativos "os japoneses, beba até dez por dia". “Não se trata de uma cura milagrosa, mas de um contributo real para a saúde cerebral e para a prevenção de doenças graves”, conclui José Baptista.
O autor e encenador Tiago Rodrigues estreou esta segunda-feira A Distância no Festival de Avignon. Entre a Terra e Marte, a peça fala do amor e da distância entre um pai e uma filha. Uma ficção científica íntima, com o coração sempre ligado, mesmo a anos-luz. Tiago Rodrigues transforma o futuro em palco para reflectir sobre herança, memória e esperança. Estamos em 2077. A Terra arde, afogada nas consequências da crise climática, e uma parte da humanidade fugiu para o planeta Marte. O que resiste, ainda, entre um pai que ficou e uma filha que partiu? Em A Distância, Tiago Rodrigues constrói uma ficção científica do íntimo, “uma miniatura perdida na imensidão do cosmos”, como se lê na sinopse, e como se escuta, em cada frase do encenador, também director do festival de teatro de Avignon. “Quis falar do futuro e da relação entre gerações. Quis perceber o que acontece a um amor, como o de um pai por uma filha, quando há uma distância. Não uma distância de quilómetros, mas uma longa, longa, longa, longa distância entre dois planetas”, diz Tiago Rodrigues. A peça, protagonizada por Adama Diop e Alison Dechamps, gira como dois corpos celestes em órbita: ora se encontram, ora se perdem. Tiago Rodrigues não esconde que a ideia tem raízes pessoais: “Emigrei para França há três anos, mas a minha filha continua os seus estudos em Portugal. Temos uma relação de amor à distância. Esta peça toca-me porque parte também dessa realidade”, partilha. No palco, a distância não é apenas física, é sobretudo uma questão de tempo, de memória, de esperança ameaçada. “A peça fala da transmissão. Que planeta vão herdar as próximas gerações? E o que é que isso faz ao amor, à ideia de esperança, à memória?”, questiona o autor. Há na peça um certo desespero sereno, um aceno à impotência, mas também uma vontade de escuta. “Julgo que hoje já começamos a ter uma geração de jovens que pensa que vai viver pior que os seus antepassados. Isso é novo, é tremendo. E o que é que isso faz à esperança? Talvez nos leve a esquecer tudo, a começar de novo em Marte. Não é a minha proposta para o futuro, mas é um cenário que já nos habita”, desenvolve. Se A Distância traça linhas ténues entre planetas, o Festival de Avignon, que Tiago Rodrigues dirige desde 2023, propõe outras ligações improváveis; entre línguas, estéticas, histórias e geografias. Este ano, o festival abriu com um gesto que é também um manifesto: Marlene Monteiro Freitas, cabo-verdiana, fez dançar no Palácio dos Papas, no mesmo dia em que se celebraram os 50 anos da independência de Cabo Verde. “É um gesto de risco, mas compensado por um espetáculo sublime. Pela primeira vez, uma cabo-verdiana abre o festival e acontece no dia em que se celebram os 50 anos da independência de Cabo Verde. Uma coincidência poética, histórica. Essa cabo-verdiana é convidada por um português que é o primeiro estrangeiro a dirigir o festival de Avignon”, explica Tiago Rodrigues. Nesta edição, a língua árabe é convidada como “língua mundo”. Uma escolha com peso político, feita num tempo em que tantas das geografias onde ela se fala vivem em exílio, guerra ou luto. “A razão principal para convidarmos a língua árabe é a sua riqueza e diversidade. Mas claro que sabemos que ela carrega também complexidades políticas. E queremos lidar com essas complexidades com aquilo que o festival faz melhor: criar espaços de escuta, de diálogo, de pensamento”, sublinha o seu director. Escutar, acolher, debater. Fazer do teatro um lugar de confronto e, sim, de utopia. Tiago acredita nisso. “Em Avinhão, a utopia é palpável. As pessoas não dizem que vêm ao festival. Dizem que fazem Avingon”, acrescenta. E fazem-no aos milhares: “Este ano temos números de público absolutamente record. Isso diz muito sobre a fome que temos de diversidade, de descoberta, de formas novas de pensar o mundo". No meio de tudo isto, A Distância estreia entre a Terra e Marte, entre o amor e o silêncio, entre o que se perdeu e o que insiste em permanecer. No centro deste palco político e poético, Tiago Rodrigues apresenta um teatro de ciência íntima, que escava o futuro para tentar escutar o presente. Durante a peça, há uma música que regressa, "Sonhos" de Caetano Veloso. É a favorita do pai e da filha e é por ela que se reconhecem, é com ela que se lembram. Como se, mesmo a anos-luz de distância, ainda existisse um lugar comum onde pousar o ouvido. “Parti da ideia de que a comunicação não se quebra, forma-se”, diz o encenador. E no seu teatro, mesmo quando a linha parece frágil, há sempre alguém do outro lado.
No Pátio de Honra do Palácio dos Papas, um lugar de pedra, de História, de poder antigo. É aqui que, todos os verões, o Festival de Avignon tenta reinventar o teatro como se se tratasse de um levantamento. Este ano, o sopro inaugural, aquele que dá início a tudo, foi confiado à coreógrafa cabo-verdiana Marlène Monteiro Freitas, figura indomável da dança contemporânea, cuja obra não cabe em nenhuma categoria senão na da possessão poética. Na noite de sábado, 5 de Julho, o espectáculo NÔT rasgou a ordem do Pátio de Honra do Palácio dos Papas. A coreógrafa cabo-verdiana, Marlène Monteiro Freitas, abriu a 79.ª edição do Festival de Avignon. Por entre grades brancas, lençóis manchados de vermelho e corpos disformes que dançam como se estivessem possuídos, a coreógrafa trouxe o caos como gesto inaugural ao maior festival de teatro francês. “A peça teve, nestas últimas semanas, de lutar pela sua sobrevivência e talvez pela sua independência”, começa por nos contar, acrescentando que a obra “demorou bastante tempo a falar-nos. Acho que isso tem a ver com o diálogo e com a arquitectura deste espaço. Foi uma luta até ao fim". O que nos diz NÔT? Talvez nada que possa ser traduzido em palavras. Talvez tudo o que o corpo, o som e o silêncio podem dizer quando as palavras já não sabem o que dizer. O título, ambíguo, evoca a “noite” em crioulo cabo-verdiano, mas também o “not” em inglês: negação, interrupção, desobediência. Nada parece ser inocente aqui, nem gratuito. “Quando comecei a trabalhar nas Mil e Umas Noites pensei que teríamos que criar um diálogo com essa obra. A ideia da noite impôs-se", lembra. A noite como território instável, onde a imaginação e o medo se confundem: “Há ideias que nos parecem boas à noite e de manhã já não são. Há dores que aumentam, há exageros. E depois há os sonhos, que são uma espécie de trilha que não controlamos”. Entre o que se diz e o que se cala começa a dança Inspirada nas Mil e Uma Noites, NÔT não é uma adaptação é uma reescrita sem palavras. “A própria obra é uma força entre o oral e o escrito. Há uma certa mobilidade que existe no oral e que na escrita se torna mais fixa”, sublinha a coreógrafa. Essa tensão entre o fixo e fluidez marca o trabalho de Marlène Monteiro Freitas: “Estamos sempre em diálogo entre algo fixo e algo móvel”. A cenografia é composta de grelhas metálicas, camas desalinhadas, pequenas cadeiras que desenham o espaço sem nunca oferecer estabilidade. A composição visual, por vezes hipnótica, por vezes grotesca, serve de espelho ao corpo: fragmentado e, por vezes, reduzido a marioneta de si mesmo: “É um desafio muito grande fazer um espetáculo neste palco”, admite. Em cena, oito intérpretes: músicos-dançarinos-figuras grotescas que se mascaram, que se duplicam, que se deformam. Em certos momentos, todos parecem encarnar, distorcidamente uma Shéhérazade mecânica, a lendária rainha persa e narradora dos contos de As Mil e Uma Noites. O vermelho, omnipresente, insinua-se como sangue e memória. O espetáculo apresenta-se todas as noites a um público de 2.000 pessoas, muitas das quais vieram apenas “ver um espetáculo no Pátio de Honra” e Marlène Monteiro Freitas reconhece o confronto: “Com certeza que muita gente não sabe ao que vem. Talvez encontrem o nosso trabalho por acaso”. Mas é nesse acaso que reside também a força do que se cria ao vivo. O fascínio pela obra original as Mil e Uma Noites não nasce de uma tentativa de domínio, mas de espanto. “O meu contacto com a obra aconteceu muito cedo, na adolescência… Depois nunca mais pensei nela”. Ao voltar a ela, Marlène encontrou algo que ressoava com o seu próprio processo criativo: “Uma obra com várias versões, vários autores, onde nem sempre se sabe quem escreveu o quê. Uma espécie de livro estrangeiro, sempre em potência”. Essa ideia de potência, de texto que se reescreve a cada leitura, é o coração de NÔT. Há fragmentos que colidem: entre o ritmo de Stravinsky ao de Prince, gritos, ruídos, movimentos que se repetem. NÔT estreou no dia em que se assinalaram os 50 anos da independência de Cabo Verde. “Confesso que, quando me apercebi disso tudo, achei um acaso incrível. Pensei: se calhar vamos ter alguma sorte. Nos últimos dias pouco pensei nisso porque é um desafio muito grande fazer um espetáculo neste palco. A peça teve nestas últimas semanas a lutar pela sua sobrevivência e talvez pela sua independência", concluiu. Com esta estreia mundial de NÔT, o Festival de Avignon abriu-se àquilo que não se explica: à estranheza, à violência poética, à radicalidade de corpos em luta. A escolha do director do festival, Tiago Rodrigues, para abrir com NÔT não foi apenas ousada, mas foi política. Começar com o incompreensível é uma forma de dizer que o teatro, hoje, precisa menos de respostas e mais de perguntas que nos deixem inquietos.
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica uma série de reportagens sobre este tema. No décimo episódio, ouvimos jovens que reivindicam o legado de Amílcar Cabral, que questionam o que foi feito dos ideais revolucionários e que consideram que “a luta continua”. Nesta reportagem, conversamos com o rapper Hélio Batalha, o artista plástico Hélder Cardoso, o artista multidisciplinar Djam Neguim e o sociólogo Redy Wilson Lima. A música de Hélio Batalha “não é só rap”, é muito mais e é muito político. É isso mesmo que ele diz numa das mais recentes canções, “não pode ser só rap”. Ele acredita no poder interventivo da arte e na urgência em fazer despertar os jovens para as lutas de hoje. “Esta música fala sobre a questão de que o pessoal ouve a música só com o ouvido do entretenimento, não entende que a arte não é só uma manifestação artística em si. Ela também traz no seu âmago questões políticas e ambições sociais fortes”, começa por explicar Hélio Batalha. É preciso resistir contra o esquecimento das lutas de libertação dos povos de Cabo Verde, da Guiné-Bissau e de África em geral. Face ao que é denunciado como risco de branqueamento da memória colectiva e histórica, Amílcar Cabral representa, para uma juventude desperta, o expoente máximo de uma geração que levou até às últimas consequências a resistência a um sistema opressivo, o colonialismo. Por isso, “a luta continua” 50 anos depois da independência de Cabo Verde. “Cabralistas wake up”, do rapper Pex em que Hélio Batalha participa com Rabeladu Lopi, é uma música que fala das dificuldades dos tempos actuais e que resgata Amilcar Cabral logo para o título. Para Hélio, “o jovem cabo-verdiano deve ser Cabral hoje”, um “jovem indignado e de coração cheio”. No fundo, como diz a música, um “fruto da Revolução Cabral”. O músico considera que os ideais de Amílcar Cabral foram traídos, por isso, diz - num outro rap - que “a luta continua”. “Essa luta tem de ser contínua, tem de ser uma luta todos os dias. Por isso é que falar sobre Cabral, falar sobre a independência, falar sobre a luta de libertação dos povos de África são pilares fundamentais para que a luta continue. Porque não há luta sem conhecer o passado (…) Tenho uma música que se chama ‘Imortal', que fala que nós, os povos africanos, temos a necessidade de estar sempre cientes e prontos para continuar essa luta porque temos vários problemas de diferentes ordens que não podemos deslumbrar só com o acto da independência”, explica Hélio Batalha. O rap está a fazer com que os jovens descubram ou redescubram a história de Amílcar Cabral e a própria luta de libertação de Cabo Verde. O sociólogo Redy Wilson Lima, que tem estudado este tema, reitera que “o Cabral da juventude é símbolo de resistência”, ainda que a figura histórica tenha sido demasiado partidarizada em Cabo Verde. Quanto às perspectivas de futuro do país, Redy Wilson Lima responde: “A luta continua”. Na reportagem que pode ouvir, fomos também espreitar alguns dos murais que representam Amílcar Cabral na cidade da Praia. Um dos mais conhecidos está num bairro periférico, na Achada Frente Grande, realizado pelo artista português Vhils, na fachada de um liceu. No centro da cidade, no Plateau, foi o jovem cabo-verdiano Hélder Cardoso a homenagear o líder da luta de libertação na fachada lateral da Fundação Amílcar Cabral. Esta é uma história que o inspira desde criança e é graças a ela que pode “pintar em liberdade”. Por isso, no mural em que retrata Cabral, ele também transcreveu a sua frase: “A luta pela libertação não é apenas um acto de cultura, mas também um factor de cultura”. “Acredito que se hoje tenho um grande conforto é porque um grupo resolveu, lá atrás, mesmo sabendo de todos os riscos e sabendo que poderiam nem usufruir do que estavam a lutar, que foi o caso de Amílcar Cabral, mas mesmo assim puseram isto como a causa maior. Então, o mínimo da minha parte é prestar homenagem a esse grupo, representado pela figura de Cabral sendo o líder”, explica o artista que assina as obras como HJC. Hélder Cardoso também pintou um mural de Amílcar Cabral com um bebé ao colo na ACOLP, Associação dos Combatentes da Liberdade da Pátria, assim como outro a representar Pedro Pires. A casa fica junto a um dos mais conhecidos liceus da cidade e Hélder Cardoso espera que os murais inspirem os alunos. “O mural de Amílcar Cabral é um mural onde usei de referência uma fotografia emblemática, que é a de Amílcar Cabral a segurar uma criança. Ele sempre dizia que as crianças, os jovens, são o futuro da Nação e flor da revolução. É esta responsabilidade que, nós, os artistas, temos neste processo de perpetuar, homenagear, passar a mensagem, educar”, acrescenta. A luta de libertação também inspira as artes performativas. Djam Neguim levou a palco, no ano passado, um espectáculo intitulado AMI.LCAR, em que revisitou esta figura histórica como um ponto de partida para pensar lutas contemporâneas. “Eu acredito que nós somos mais fortes juntos e que a transformação é feita pensando no colectivo e cada um de nós tem que se colocar nesse lugar de lutador. Não olhar para Cabral como uma figura a idolatrar, mas mais como um ponto de partida para nós fazermos as nossas lutas contemporâneas”, resume. Para marcar os 50 anos da independência, também nas artes de palco, o artista multidisciplinar Djam Neguim organizou, em Maio, o Kontornu, um festival internacional de dança e artes performativas, em que participaram companhias de nove países. Só que as dificuldades foram muitas devido à falta de apoios, o que mostra que apesar de a cultura ser uma marca identitária e turística de Cabo Verde, a luta continua também para os artistas e ainda se vive “uma utopia num país em construção”, conclui Djam Neguim. Se quiser aprofundar este assunto, pode ouvir aqui as entrevistas integrais aos convidados desta reportagem:
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica uma série de reportagens em torno deste tema. Neste quinto episódio, fomos à procura de algumas memórias sobre Amílcar Cabral, o líder da luta de libertação da Guiné e de Cabo Verde, descrito como estratega, poeta, pensador, visionário e “pai” para muitos. É na fachada de um liceu, na Achada Frente Grande, na cidade da Praia, que se vê um retrato gigante de Amílcar Cabral, com os seus óculos e a sua sumbia, esculpido pelo artista português Vhils. Esta é mais uma homenagem ao ‘homi grandi' [‘grande homem'] que ficou na memória dos seus compatriotas como o pai das nacionalidades cabo-verdiana e bissau-guineense. Líder incontestável da luta pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, Amílcar Cabral é uma figura do panafricanismo e uma das personalidades mais importantes da luta anticolonial e do pensamento revolucionário no século XX. É, ainda, considerado como o motor da queda do Império Português e da viragem pós-colonial do mundo contemporâneo. Foi, também, um estratega militar e político e um pensador que continua a ser uma referência nas lutas contemporâneas contra o imperialismo, o racismo e o neocolonialismo. O historiador e sociólogo António Correia e Silva, co-autor dos três volumes da História Geral de Cabo Verde, diz que o revolucionário é, antes de mais, um filho de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e que herdou combates de gerações anteriores, sintetizando e canalizando toda a cultura de protesto que se foi cimentando numa história ritmada pela tragédia cíclica das fomes e do colonialismo. “Amílcar Cabral, incontestavelmente, é o homem que, num determinado momento, sintetiza uma cultura de protesto, uma incomodidade cabo-verdiana que está no ar e ele dá-lhe uma direção. É o líder não só que pensa a independência, mas que a operacionaliza e é uma figura que tem um peso individual, o tal poder carismático. É, também, o homem que não só pensa, mas mobiliza, estrutura, gere um processo não só para Cabo Verde e Guiné, mas ele é fundamental na criação de um nacionalismo independentista das colónias portuguesas”, começa por explicar António Correia e Silva. O historiador vai mais longe e considera que as preocupações de Amilcar Cabral “são mais amplas” porque além de militante de uma causa nacionalista, “o seu pensamento busca a emancipação enquanto tal”. “Ele vê para lá da missão do Estado, Amílcar Cabral tem preocupações do que ele chamava o projecto da humanidade e de povos africanos e, no caso concreto, cabo-verdiano e guineense, dentro desse projecto de humanidade. Aliás, ele tem uma expressão extremamente ambiciosa, ambígua e utópica, que diz que mesmo na condição de escravatura e do colonialismo, podemos trazer para a humanidade as especificidades da nossa cultura e enriquecemos o património comum da humanidade. Então, na liberdade e independentes estaríamos plenos para esse projecto de humanidade”, descreve o professor António Correia e Silva. Amílcar Cabral nasceu em Bafatá, na Guiné-Bissau, a 12 de Setembro de 1924, filho de cabo-verdianos. Estuda em Cabo Verde, primeiro em Santiago, depois no Liceu Gil Eanes, em São Vicente. Aluno brilhante, consegue uma bolsa para o ensino superior em Portugal. Em Lisboa concretiza o pensamento nacionalista, particularmente na Casa dos Estudantes do Império, da qual chegou a ser vice-presidente em 1951. Foi cofundador e colaborador do seu boletim Mensagem e criou o Centro de Estudos Africanos com Mário de Andrade e Agostinho Neto. A partir da Casa dos Estudantes do Império, ele e colegas de outras colónias começam a apoiar-se na luta pela independência dos seus países. Ainda nessa altura, ele conhece Maria Helena Rodrigues, ao lado da qual vai iniciar a luta. Formado em engenharia agrónoma, Amílcar Cabral trabalha entre 1952 e 1955 em Pessubé, na Guiné, onde dirige o Posto Agrícola Experimental e faz o recenseamento agrícola de todo o território, com viagens que lhe serão úteis para a luta posterior. A 19 de Setembro de 1956, de acordo com a historiografia oficial do PAIGC, funda o partido do qual é o primeiro Secretário-Geral. Em Dezembro de 1957, participa na fundação do Movimento Anticolonialista (MAC), depois na Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional e na Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, ao lado de camaradas das outras colónias. A sua primeira conferência de imprensa em que denuncia o colonialismo português é em Março de 1960, mês em que vai para Conacry, onde passa a viver e que passa a ser a sede do partido e da luta. É em Conacri que, mais tarde, instala a Escola-Piloto para os filhos e órfãos de combatentes. Amélia Araujo, a locutora mais conhecida da Radio Libertação e que também trabalhava no secretariado, conheceu-o de perto. “O Amílcar era uma pessoa fora de série. Era uma pessoa extraordinária, que se preocupava com todos nós e que adorava as crianças. Ele dizia: ‘As crianças são a razão da nossa luta e as flores da nossa revolução'. Bonito, não é? Ele dava muita atenção às crianças. Todos os dias, de manhã cedo, ele ia à Escola-Piloto, sentava-se lá com os meninos, contava histórias, ensinava jogos, fazia competições entre rapazes e raparigas, na corrida, por exemplo. A minha filha ganhava sempre!”, conta, com orgulho, Amélia Araújo, ao lado da filha, a cantora Teresa Araújo, numa conversa em casa delas, na cidade da Praia, na ilha de Santiago. A partir de Conacri, Amílcar Cabral implementa todo um sistema de ensino pioneiro nas chamadas zonas libertadas na Guiné-Bissau, assim como hospitais, tribunais, assembleias populares, lojas do povo e são organizadas várias formações no exterior para preparar os futuros quadros dos dois países independentes. Maria Ilídia Évora, “Tutu”, tem retratos de Amílcar Cabral logo à entrada da sua casa, no Mindelo, na ilha de São Vicente. Para ela, "nunca mais África terá um líder assim". Conta que foi ele quem a convenceu a ir para Cuba, em meados dos anos 60, para se preparar para a guerrilha em Cabo Verde, mas a luta armada nunca se fez nas ilhas e Amílcar Cabral decide que Tutu vai fazer uma formação em enfermagem na antiga RDA. “Amílcar era uma pessoa muito humana, uma pessoa muito responsável, uma pessoa muito honesta e uma pessoa amiga. Todas as vezes que a gente se encontrava, ele punha-me ao lado dele para sentar na mesa e a gente falava depois. Ele tinha a atenção de dizer: ‘Vou ter um pequeno espaço para ti para falarmos da tua filha'. Portanto, para além de ser o meu líder, também foi como se fosse um pai. Você está a ver a estima que eu tenho por ele? Ele até está na minha entrada para toda a gente ver que eu sou Amílcar Cabral. Eu apoiei Amílcar Cabral. Foi o melhor líder que nós podíamos ter. Melhor não vai aparecer nunca”, sentencia Tutu. A antiga combatente recorda também que quando a motivação esmorecia, o líder do PAIGC tinha sempre as palavras certas: “Tu sabes porque é que estás aqui, filha. Estamos a lutar. É um comboio que viaja, alguns descem, outros sobem. Mas tu não vais deixar esse comboio porque eu penso que sabes por que é que tu estás cá. Não vieste à toa.” Só depois de frustradas todas as tentativas de diálogo com o poder colonial português, é que se passa da ação diplomática à luta armada em 1963. Amílcar Cabral foi, por isso, um estratega militar e muito mais, descreve o comandante Silvino da Luz. “Amílcar era um ser humano, antes de mais, extremamente humano, extremamente humanista. Mas o Amílcar tinha várias facetas. Amílcar era engenheiro, mas foi um chefe militar, um estratega inconfundível. Amílcar foi simultaneamente poeta e foi um visionário”, afirma Silvino da Luz, sublinhando que “a sua inovação da proclamação do Estado [da Guiné-Bissau] durante a luta foi uma coisa brilhante”. Silvino da Luz diz que seria preciso um livro para descrever Amílcar Cabral, mas vai avançando com mais algumas pistas: “É um teórico, um pensador das ciências sociais e políticas inconfundível. As suas grandes armas, seus grandes textos que ele deixou, por exemplo, 'O Papel da Cultura na Libertação Nacional', 'A arma da teoria', etc, etc, etc, que o tornaram célebre. Ainda hoje é lembrado e festejado e é comemorado nos diversos continentes. Portanto, era um homem de muitas facetas, um homem invulgar, profundamente humano. Ele dizia: ‘Se tivesse de mandar matar alguém dentro dos meus quadros da luta, então eu deixaria nessa mesma altura de ser dirigente e nunca mais seria dirigente desta terra''. Amílcar Cabral era, de facto, um “pensador e um grande líder”, resume a filha Iva Cabral, que também nos abre as portas de sua casa, na Praia, para nos falar do líder africano. “Ele é um grande líder. Conseguia levar as pessoas atrás dele. conseguia formar equipas. Era uma pessoa honestíssima porque ele dizia-me que ‘o problema de África não é a falta de recursos, o problema da África é a falta de honestidade, a elite africana não é honesta'. E é a realidade, diga-se de passagem. Nós traímos os nossos ideais. E ele dizia que o processo revolucionário não é uma ambição que ele tinha para a nossa juventude porque o que nós devemos é ser honestos conosco, honestos com o povo”, lembra a historiadora Iva Cabral. A pedra angular do ideário político de Amílcar Cabral era o princípio da “unidade e luta”, acrescenta. Os militantes da Guiné e Cabo Verde deveriam lutar juntos pela independência e contra o inimigo comum: o colonialismo português. Mas havia ecos de queixas de nacionalistas guineenses que se consideravam preteridos em detrimento de elementos da ala cabo-verdiana na ocupação de escalões superiores da estrutura do partido. Algo que viria a ser usado e instrumentalizado por parte da PIDE/DGS que tudo tinha a ganhar com a divisão entre os dois povos. O comandante Osvaldo Lopes da Silva chegou a confrontar Amílcar Cabral sobre a questão da unidade e a alertar para a necessidade de mostrar que os cabo-verdianos não queriam mandar na Guiné e queriam estar a par da evolução das coisas no que toca à luta pela independência também nas ilhas. “Devia-se vincar - até para sossegar os guineenses - que o cabo-verdiano não queria ir mandar na Guiné, que o cabo-verdiano quer mandar em Cabo Verde e o guineense que mande na Guiné. Vincar, chamar a atenção mesmo para o facto da História não nos aproximar. A História podia ser até um factor de maior separação porque a Guiné esteve durante muito tempo subordinada ao governo de Cabo Verde e isso cria movimentos de rejeição da parte da Guiné. E tínhamos que compreender”, explica o antigo comandante de artilharia. No regresso de uma formação de marinha de guerra no Mar Negro, Osvaldo Lopes da Silva e o grupo de cabo-verdianos que dirigia sentiram a hostilidade de elementos guineenses na Marinha, alguns dos quais estariam envolvidos no futuro complô que levaria à morte de Amílcar Cabral. A 23 de Janeiro de 1973, Amílcar Cabral era assassinado. Ana Maria Cabral, a esposa, estava com ele nessa noite. Diz que “não houve nenhuma justiça” e que “toda a verdade ainda não foi dita”. “Não houve nenhuma justiça. Não houve nenhuma justiça. Já se escreveu muita coisa sobre isso, mas toda a verdade ainda não foi dita. Eu pensei que depois da morte do Spínola, a verdade saísse. Falta esclarecer quem foram realmente - além de Spínola - quem foram todos os intelectuais que trabalharam nisso. Uma vez li uma entrevista de Spínola em que ele dizia, mais ou menos isso: ‘Eu não dei a ordem, eu não disse para matar. Eu não dei ordem para matar.' Mas como é que se vai distribuir armas a alguém e se diz para não utilizar as armas?", questiona Ana Maria Cabral, numa conversa em frente à praia, na capital de Cabo Verde. Até que ponto as divergências em relação à unidade não estiveram na origem do assassínio de Amílcar Cabral, a 23 de Janeiro de 1973? O líder do PAIGC foi assassinado em Conacri, em frente à sua residência, por um grupo que pretendia prender e eliminar os dirigentes do partido, pouco mais de dois anos depois da fracassada Operação Mar Verde, em que o exército português invadiu Conacri para tentar acabar com a direcção do PAIGC (22 de Novembro de 1970). Inocêncio Kany foi o homem que disparou a matar contra Amílcar Cabral, mas os mais próximos apontam a responsabilidade do então governador na Guiné, António de Spinola. O único cabo-verdiano presente nos interrogatórios aos assassinos de Amílcar Cabral foi Alcides Évora, conhecido como “Batcha”. Uma vez, na cantina do secretariado, ele conta ter ouvido Amílcar Cabral dizer que “quem o havia de matar eram os próprios camaradas do PAIGC”. Porém, “ele tinha uma confiança ilimitada nos camaradas”, acrescenta. Sobre os interrogatórios, em que serviu de intérprete, ele recorda que “estavam sempre a dizer mal dos cabo-verdianos e achavam que Cabral estava a beneficiar os cabo-verdianos em detrimento dos guineenses”. “Havia um certo ódio contra Cabral”, lamenta o homem que trabalhou bem perto do líder do PAIGC, no secretariado em Conacri, como nos mostra numa das fotografias em exposição na Fundação Amílcar Cabral. A morte de Amílcar Cabral não impediu que se cumprisse o seu objectivo: libertar a Guiné e Cabo Verde das garras do colonialismo. O comandante Pedro Pires, que depois do 25 de Abril de 1974 liderou a delegação cabo-verdiana nas negociações da independência, recorda que “sem o PAIGC ou sem essa aliança entre Guiné e Cabo Verde, a independência de Cabo Verde seria complicada”. “Isso, em certa medida, permitiu as vitórias ou a vitória final, se quiser dizer isso, na Guiné. A introdução dos artilheiros cabo-verdianos que melhoraram a capacidade da artilharia que era a arma que fustigava mais os quartéis e podia destruir os quartéis. Essa chegada e a introdução dos artilheiros cabo-verdianos foi um factor de mudança favorável à melhoria das capacidades das Forças Armadas do PAIGC”, testemunha Pedro Pires, acrescentando que essa aliança Guiné-Cabo Verde também abriu as portas às negociações para a independência depois da queda do Estado Novo em Portugal. Também a historiadora Ângela Benoliel Coutinho, autora de “Os dirigentes do PAIGC: da fundação à rutura: 1956-1980”, considera, em entrevista por telefone, que a “unidade e luta” foi uma “fórmula brilhante” que resultou na libertação e independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, mas também no fim da ditadura em Portugal. “A aposta em unidade e luta da direcção do PAIGC foi uma aposta brilhante que deu excelentes resultados, que permitiu libertar a Guiné-Bissau e Cabo Verde e que deu um forte contributo para libertar os portugueses da ditadura fascista, visto que desde há décadas tinha havido diversas tentativas de golpes de Estado, todas falhadas contra o regime do Estado Novo em Portugal, e esta tentativa foi bem sucedida”, resume a investigadora. Por sua vez, José Vicente Lopes, jornalista e autor do livro pioneiro sobre a história contemporânea do país “Cabo Verde - Os Bastidores da Luta pela Independência”, considera que o principio de “unidade e luta” foi “uma das utopias de Amílcar Cabral”, simultaneamente uma força e o ponto fraco do PAIGC. “Quando Amílcar falava em unidade, ele falava em várias unidades e querer ver uma população tão heterogénea como a guineense ou mesmo como a cabo-verdiana, chega a ser quase uma espécie de utopia ou então uma unidade imposta a martelo que também não funciona. Aliás, a história vem mostrar isso. A tal unidade pretendida pelo Amílcar era ao mesmo tempo força e, ao mesmo tempo, o ponto fraco do PAIGC ou daquele processo. Daí que foi uma das utopias do Amílcar que não se realizou por razões mais diversas, na medida em que a unidade nunca é feita por decreto, nem por força. Então, logo as coisas tiveram o fim que tiveram e, do meu ponto de vista, isto hoje é passado e não sei até que ponto vale a pena gastar mais tinta com isto”, considera José Vicente Lopes, também ao telefone com a RFI, a partir dos Estados Unidos, onde em Maio foi convidado pela diáspora a falar sobre o livro “Cabo Verde - Um corpo que se recusa a morrer”. A independência de Cabo Verde chegaria mais de dois anos depois da autoproclamada pela Guiné-Bissau, com o PAIGC a negociar com Lisboa os termos da independência cabo-verdiana, na sequência da queda da ditadura portuguesa, a 25 de Abril de 1974. Alguns anos depois, o golpe militar de 14 de Novembro de 1980 na Guiné-Bissau desfez o sonho de Amílcar Cabral de uma união política entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde e ditou a cisão do PAIGC e a fundação, em Cabo Verde, do PAICV. Meio século depois, o legado de Amílcar Cabral persiste e o homem que é considerado como um dos maiores líderes africanos de sempre, continua a ser símbolo de resistência, unidade, luta e panafricanismo. Pode ouvir aqui as entrevistas integrais a Ana Maria Cabral e Iva Cabral:
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica várias reportagens sobre o tema. Neste sexto episódio, damos voz às mulheres que também escreveram a história da luta de libertação. “A história da luta armada de libertação nacional tem sido escrita fundamentalmente pelos homens”, adverte Josefina Chantre, avisando que “a participação da mulher na luta foi tão importante como a do homem”. Nesta reportagem também falamos com Amélia Araújo, "a voz da luta" na Rádio Libertação, e com Maria Ilídia Évora, Marline Barbosa Almeida e Ana Maria Cabral. Esta é uma história de mulheres que lutaram pela independência de Cabo Verde. Uma delas, Josefina Chantre, diz que “a história da luta armada de libertação nacional tem sido escrita fundamentalmente pelos homens” e lembra que “a participação da mulher na luta foi tão importante como a do homem”. Josefina Chantre foi uma das fundadoras da Organização das Mulheres de Cabo Verde, depois de ter estado numa das muitas frentes de batalha da luta liderada pelo PAIGC: a informação. Trabalhou no jornal “Libertação-Unidade e Luta” e na Rádio Libertação, os órgãos de comunicação oficial do partido. “Cabral dizia que toda a frente de luta era uma frente. A minha frente de luta, a minha arma, era a comunicação social”, resume Josefina Chantre. O Jornal Libertação foi criado em 1960 e a Rádio Libertação começou a emitir em 1967 e era o “canhão de boca” da luta, dizia o líder do partido, Amílcar Cabral. A voz da luta era precisamente a de uma mulher, Amélia Araújo, angolana de origem cabo-verdiana, tão conhecida pelo "Programa do Soldado Português" e pelo programa "Comunicado de Guerra". “Durante a guerra, durante a luta, as mulheres tiveram vários postos. Cabral fazia questão de valorizar as mulheres. Então, nós tínhamos camaradas em posições de relevo”, recorda Amélia Araújo, admitindo que não eram muitas, mas que se destacaram, apontando os exemplos de Dulce Almada e Carmen Pereira. Maria Elídia Évora, conhecida como Tutu, foi a única mulher no grupo de 31 cabo-verdianos que receberam formação político-militar em Cuba para um eventual desembarque em Cabo Verde, cujo objectivo seria desencadear a acção armada no arquipélago. Em Cuba, sentiu-se descriminada pelos camaradas, mas contou com o apoio de Amílcar Cabral quando a tentaram excluir do grupo. O projecto de desembarque acabou por não se concretizar e o grupo foi disperso por várias frentes de batalha na Guiné. A maioria dos companheiros de Tutu foram para o mato lutar com armas. Ela foi tentar salvar vidas nos hospitais de Boké e Koundara, depois foi enviada para a ex-República Democrática Alemã estudar enfermagem e obstetrícia. Dos tempos de Koundara, lembra-se da surpresa inicial quando viu as instalações rudimentares e sem condições do hospital. “Fizemos o que era possível fazer, levámos mais de uma semana a limpar aquele lugar para estar mais ou menos. Não é que fosse um grande sítio para fazer as operações, mas a gente fazia, não tinha outro remédio”, lembra Maria Elídia Évora. O líder da luta, Amílcar Cabral, tinha ideais de emancipação e participação das mulheres. Em 1965, o PAIGC instituiu, na Guiné, a equidade de género no respeitante à esfera familiar, profissional e política. A partir de 1967, as mulheres foram integradas nas milícias populares criadas para a protecção da população civil. Em 1970 foi decidido que, pelo menos, dois em cada cinco dos membros dos comités da Tabanca deveriam ser obrigatoriamente mulheres. Em 1972, as mulheres passaram a integrar os júris dos tribunais populares. Por outro lado, na Escola-Piloto de Conacri vigorava a equidade de género a nível dos comités de gestão e da representação dos estudantes. Porém, Amílcar Cabral era uma voz solitária num mundo de guerra dominado historicamente pelos homens, admite Josefina Chantre. “Cabral nunca fez distinção entre homem e mulher. Eu costumo dizer que Cabral foi um grande visionário porque o que agora se diz da igualdade de género, na altura, ele já tinha pensado nisso porque ao criar os comités de tabanca, ele exigia que de cinco elementos, duas pessoas, pelo menos, tinham que ser mulheres. Por outro lado, ele dizia-nos sempre que a nossa emancipação, a verdadeira emancipação da mulher, teria que ser fruto da própria mulher e que não pensássemos que haveria algum homem que viesse realmente lutar pela nossa emancipação. Inculcava-nos sempre esse espírito e ele sempre respeitou as mulheres, ele sempre deu o devido valor porque a mulher é mãe, a mulher é tudo. Eu acho que somos a metade do céu e Cabral tinha na sua mente a verdadeira noção do valor da mulher a nível global”, acrescenta Josefina Chantre. “Nós até hoje ainda estamos a lutar. A mulher foi duplamente explorada durante o regime colonial português, explorada pelo regime colonial e pelo próprio homem. Nós ainda temos resquícios da nossa origem escravocrata, portanto, ainda temos muito machismo na nossa sociedade. Eu penso que na nossa luta já atingimos várias vitórias, mas os nossos desafios ainda são maiores. Nestes 50 anos, o balanço que eu faço é que a mulher ganhou tudo com a independência, mas ainda temos a tal história do machismo. Temos que trabalhar bastante a mentalidade e a mentalidade das coisas é muito difícil de se mudar”, comenta. Com Amílcar Cabral, o PAIGC foi considerado como um movimento político que fez um esforço de promoção da mulher, mas elas estavam, sobretudo, na retaguarda. Marline Barbosa Almeida é outra resistente que combateu duplamente na sombra, por lutar na clandestinidade em Cabo Verde e por ser mulher. “Eu, como mulher, embora estivéssemos a lutar pela independência, tinha noção de que não valia tanto como os homens naquela altura. Havia sempre aquele recuo em relação às nossas opiniões, principalmente quando metia a igualdade, não nos levavam muito a sério nesse aspecto, mas noutro aspecto procuravam o nosso esforço, o nosso trabalho para que a luta continuasse”, afirma Marline Barbosa Almeida. Ela acrescenta que, aquando do regresso dos cabo-verdianos da Guiné-Bissau, “em conversa com alguns militantes que vieram da luta armada, eles disseram: ‘Nós queremos uma mulher que não nos canse a cabeça'”. No livro “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Ruptura [1956-1980]”, Ângela Benoliel Coutinho fala na quase ausência de mulheres na direcção do partido e em “esposas na sombra”. Também no artigo “Militantes Invisíveis: as cabo-verdianas e o movimento independentista (1956-1974)”, ela recorda que, em várias ocasiões, em discursos proferidos para militantes e dirigentes do movimento, Amílcar Cabral mencionou situações em que os homens resistiam à participação activa por parte das mulheres e essa oposição tornava-se ainda mais intensa, apesar de silenciada, quando às mulheres eram atribuídos cargos de responsabilidade. “À medida que se vão fazendo investigações, que têm sido poucas até à data, vai-se descobrindo que as mulheres cabo-verdianas (e aqui abro um parênteses para especificar que me refiro àquelas nascidas em Cabo Verde e que foram educadas lá, mas também a filhas de cabo-verdianos que nasceram noutros territórios, nomeadamente noutros territórios africanos e que se assumiram como cabo-verdianas), vamos descobrindo que estiveram presentes desde a primeira hora e que actuaram desde o início nas diversas frentes. Antes de o PAIGC ter iniciado a frente da guerrilha, actuou a nível diplomático e houve mulheres cabo-verdianas que tiveram uma presença forte nesse âmbito”, explica a investigadora à RFI. Ângela Benoliel Coutinho acrescenta que as mulheres cabo-verdianas também estiveram presentes no sistema de saúde e de educação criado por Amílcar Cabral nas zonas ditas libertadas e que houve comissárias políticas que tinham treino para guerrilha. A historiadora diz, ainda, que tanto as autoridades portuguesas quanto o PAIGC “foram grandemente omitindo a presença e a actuação destas mulheres” e que “essa invisibilização ocorreu já durante o próprio processo”. Ana Maria Cabral cresceu num ambiente familiar de resistência e o seu combate começou bem antes de conhecer Amílcar Cabral, com quem viria a casar. Nascida na Guiné-Bissau, emigra para Angola muito nova porque o pai, médico, tinha sido deslocado para essa ex-colónia. Em Luanda, frequenta a escola portuguesa, onde eram raros os alunos africanos. Depois, foi para Portugal fazer o liceu, foi activista, frequentou a Casa dos Estudantes do Império. Foge de Portugal, foi estudar para a então Checoslováquia, foi vice-presidente da secção daquele país da União Geral dos Estudantes da África Negra. Conacri foi o destino seguinte, onde integrou as fileiras do PAIGC e foi professora na Escola-Piloto, criada para receber os filhos dos combatentes e os órfãos de guerra. Questionada sobre como foi ser companheira de Amílcar Cabral, Ana Maria responde que “não foi fácil” e que hesitou “por causa da diferença de idade e pela responsabilidade de ser companheira de um líder como ele”. Talvez tenham sido resistentes na sombra, mas as mulheres tiveram um papel activo na luta de libertação de Cabo Verde. De notar que nenhuma delas foi ministra durante o regime de partido único do PAIGC, entre 1975 e 1991. Mulheres e homens estiveram na mesma frente de batalha, no entanto, a emancipação da mulher é um combate que persiste até hoje.
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica uma série de reportagens sobre este tema. Neste primeiro episódio, abordamos as raízes da revolta com algumas das pessoas que lutaram pela libertação nacional, como Pedro Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Alcides Évora, Maria Ilídia Évora e Marline Barbosa Almeida, mas também com o historiador António Correia e Silva e o jornalista José Vicente Lopes. Foram mais de cinco séculos de dominação colonial, uma história marcada pelo comércio de pessoas escravizadas, ciclos de fome, secas e emigração forçada. A independência foi a 5 de Julho de 1975, mas a resistência começou muito antes, ainda que tenha sido a Geração Cabral a desencadear a luta de libertação e a conduzir Cabo Verde à independência. No século XIX, a elite letrada já manifestava uma atitude contestatária face ao poder colonial. Intelectuais como Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Luís Loff e, mais tarde, os chamados “claridosos” denunciaram os problemas que afectavam a população e exaltaram a singularidade e a identidade do povo cabo-verdiano. Na década de 1940, uma nova geração de intelectuais, inspirados pelos antecessores, passam a reivindicar o direito à independência. O historiador e sociólogo António Correia e Silva sublinha que a Geração Cabral é fruto de lutas anteriores, que o fantasma das fomes foi determinante para desencadear o movimento de libertação e que, nessa altura, a ideia de “independência se torna politicamente credível”. “Gabriel Mariano vai escrever um grande poema sobre a fome que se chama 'Capitão Ambrósio': 'Bandeira negra, negra bandeira da fome…'. Eu costumo dizer aos meus alunos que bandeira, negra e fome é um triângulo virado para o futuro e que a bandeira negra da fome era, na verdade, uma fome de bandeira, uma fome de independência”, descreve António Correia e Silva. “Essa geração de Amílcar Cabral, o grande salto é que, através de uma aliança pan-africana, aproveitando uma conjuntura pós-guerra, a criação das Nações Unidas e a ideia de autodeterminação que surge naquela altura, a ocorrência de algumas independências de países afro-asiáticos, países grandes como a Indonésia, a Índia, o Egipto, etc, tudo isto provoca a passagem, a violação do interdito, a passagem do intransponível limite que era a independência. Isto é, a independência torna-se pensável, mas mais, torna-se politicamente credível”, acrescenta o historiador. As grandes crises de fome em Cabo Verde entre 1941 e 1942 e entre 1947 e 1948 foram de uma violência brutal, com milhares de mortos. Em 1939, a população estava avaliada em 174 mil pessoas e caiu, em 1950, para 139 mil. Os sobreviventes emigravam em massa para as plantações de São Tomé e Príncipe, onde viviam, trabalhavam e muitos morriam em condições semelhantes às da escravatura. Outros conseguiam emigrar clandestinamente para espaços que não o do Império português. Na memória colectiva há um episódio trágico que não se esquece. Foi a 20 de Fevereiro de 1949, na cidade da Praia e ficou conhecido como o Desastre da Assistência. Centenas de pessoas, que aguardavam pela distribuição de refeições quentes, morreram quando caiu o muro do edifício dos Serviços de Assistência. Estima-se que mais de três mil pessoas se reuniam diariamente nesse espaço para receber a única refeição do dia. Dados oficiais apontavam para 232 vítimas, mas teme-se que o número tenha sido muito superior. Muitas vítimas foram enterradas em valas comuns no Cemitério da Várzea, embrulhadas em lençóis, por falta de caixões. Alcides Évora era uma criança nessa altura, mas lembra-se de ter visto as valas comuns. “Eu comecei a ter uma certa revolta interna desde o início da década de 40. Na altura, eu tinha sete ou oito anos e presenciei a fome de 47. Ainda lembro quando houve o desastre da assistência em que foram transportados, feridos e mortos do local para o Hospital da Praia. Havia tantos mortos. Inclusive muitas casas ficaram fechadas porque não houve nenhum sobrevivente da família que pudesse abrir a porta das suas residências. Da mesma forma, assisti ao enterro na Várzea, na vala comum, em que punham um grupo de cadáveres, depois deitavam o cal e depois punham outra camada de mortos e assim sucessivamente. É algo que ficou gravado na memória. Isto também me fez despertar uma certa revolta interna contra o sistema colonial português”, recorda. Gil Querido Varela também testemunhou a fome de 1947 e viu crianças a morrerem. Por isso, a revolta foi inevitável e quando surgiu a oportunidade aderiu à luta clandestina nas fileiras do PAIGC em Cabo Verde. “Quem já tinha visto a fome de 47 - que eu vi - não ficava sem fazer nada. Vi crianças a morrerem de fome, corpos inflamados de fome. Vi mães com crianças mortas nas costas, não as tiravam para poderem achar esmola. Os colonialistas troçavam do povo, da fome do pobre. Quando veio o PAIGC, entrei rápido. Quem viu aquela fome, era impossível para não lutar. Só quem não tem sentimento”, lembra Gil Querido Varela, que nos leva, num outro episódio ao Campo de Concentração do Tarrafal. A fome também ensombra as memórias de Marline Barbosa Almeida. Foi a partir daí que ela decidiu juntar-se à luta, também na clandestidade. Quis ver a sua terra “livre e independente”. “Nós, que nascemos nos anos 40, 50, vimos aquele período de fome, em que morreram muitas pessoas e o culminar foi o Desastre da Assistência, que matou dezenas, para não dizer centenas de pessoas. Daí cresceu em nós uma certa revolta que não estava classificada politicamente, mas era uma revolta contra a situação de Cabo Verde. Mais tarde, eu, como lia muito - eu devorava livros – fui-me apercebendo das desigualdades, da opressão, do que era necessário para que saíssemos do jugo do colonialismo”, conta Marline Barbosa Almeida, em sua casa, na Praia. No livro “Cabo Verde - Um Corpo que se Recusa a Morrer - 70 anos de fome - 1949-2019”, o jornalista José Vicente Lopes fala sobre o Desastre da Assistência, considerando que a luta de libertação do PAIGC teve como um dos motores a fome que assolava desde sempre o arquipélago. “Este livro fala de um acontecimento que houve em Cabo Verde, que foi o Desastre de Assistência de 1949, e cobre a história de Cabo Verde de 1949 a 2019, numa perspectiva da questão alimentar em Cabo Verde, a história das fomes, o impacto que isto foi tendo nos cabo-verdianos até desembocar inclusive na criação do PAIGC. O PAIGC foi uma reacção à calamidade famélica que foi sucedendo em Cabo Verde desde o século XVI ao século XX porque até 1949, quando se dá o Desastre de Assistência, qualquer seca que acontecesse em Cabo Verde matava no mínimo 10.000, 20.000 pessoas”, sublinha o jornalista, acrescentando que “o espectro da fome não desapareceu porque, apesar de todos os investimentos feitos, apesar de tudo o que se conseguiu fazer, mesmo um bom ano agrícola, um bom ano de chuvas em Cabo Verde, Cabo Verde não consegue produzir mais de 20% das suas necessidades alimentares, logo, 80% tem que ser importado”. As violências coloniais eram de toda a ordem. Maria Ilídia Évora tinha cinco anos quando viu o pai a ser espancado por brancos. A imagem nunca mais a deixou, assim como o medo incontrolável sempre que via alguém de pele branca. Mais tarde, ela viria a integrar um grupo de cabo-verdianos que foi treinado em Cuba para desencadear a guerrilha em Cabo Verde e viria ainda a trabalhar em hospitais durante a guerra na Guiné. “Uma pessoa a bater em alguém que não fez nada, a bater daquela maneira como baterem no meu pai, uma criança não entende. Eu não entendi. Nunca entendi. Até conhecer o Amílcar, para mim, o branco era o diabo. Eu considerava o branco uma coisa muito ruim. Bater em alguém que não fez nada, que só estava lá porque quis conviver com um patrício amigo, não tinha sentido. Porque para a gente, amizade é amizade. Ele não foi fazer nada, ele não tinha nada nas mãos, nem nos pés, nem em nenhum lugar, e acharam que era um inimigo a ser abatido. Essa coisa nunca me saiu da cabeça”, conta-nos na sua casa, no Mindelo. Todas estas circunstâncias alimentaram a coragem dos que acreditaram na luta. Muitos deles, depois de terem passado no Liceu Gil Eanes, em São Vicente, depois na Casa dos Estudantes do Império, em Portugal, acabariam por "dar o salto". Em 1961, dezenas de angolanos, mas também moçambicanos e cabo-verdianos nacionalistas fogem clandestinamente de Portugal e protagonizam uma fuga massiva histórica para França nas barbas do salazarismo. Vários acabaram por ser figuras de destaque nas lutas de libertação nacional e, mais tarde, ocuparam também postos de relevo nos novos Estados. Pedro Pires foi um dos que escolheu seguir Amílcar Cabral, o líder da luta de libertação da Guiné e Cabo Verde. Era o momento de deixar tudo para trás e arriscar por uma causa. “Chegou um momento em que era preciso alguém correr riscos. Não quer dizer que todos iam correr riscos, mas tinha chegado o momento em que aqueles que achassem que podiam correr riscos ou aqueles que achassem que estivessem no dever de correr riscos, no dever da solidariedade e no dever de serviço em favor do seu país, do seu povo, decidiu correr o risco. Mas o risco é inerente a qualquer decisão e aí nós optamos ou ficar parados e não fazer nada ou então agir e correr riscos. Eu acho que tem sempre resultados, com maiores ou menores dificuldades. O facto de corrermos risco, podemos mudar muita coisa. Foi o que aconteceu connosco. Nós éramos um grupo que saiu na mesma altura ou no mesmo dia, éramos cerca de 60 jovens que decidiram correr o risco”, resume o antigo comandante. Osvaldo Lopes da Silva, comandante de artilharia mobilizado na Guiné, também correu o risco e esteve nessa fuga. Ele recorda esse pontapé de saída para a luta de libertação. “Atravessámos a fronteira de autocarro. Foram vários grupos, cada um foi à sua maneira. Depois, estivemos concentrados nas cercanias de San Sebastian. Quando íamos atravessar a fronteira, o elemento na fronteira que devia facilitar a nossa saída, tinha desaparecido. De forma que fomos presos. Estivemos dois dias na prisão central de San Sebastian e, às tantas, de repente, aparece o director da prisão com um discurso todo terceiro-mundista que 'o povo, o governo da Espanha estiveram sempre ao lado daqueles que lutam pela liberdade, pela independência, etc, etc'. Para nós, foi uma grande surpresa e fomos postos em liberdade. E a verdade é que, pelos documentos que reuniram, viram que essa gente não são maltrapilhos quaisquer, são gente com qualificação”, lembra. Muitos dos que estiveram nessa fuga, tinham frequentado e cultivado a reafricanização dos espíritos num dos principais berços da contestação ao colonial fascismo português: a Casa dos Estudantes do Império. Foi criada em 1944, em Lisboa, pelo próprio regime ditatorial para apoiar os jovens “ultramarinos” que fossem estudar para a “metrópole”, e encerrada em 1965. Duas décadas em que foi uma escola de consciencialização política do nacionalismo africano, fosse na sede lisboeta ou nas delegações de Coimbra e no Porto, ajudando à criação dos movimentos de libertação das colónias portuguesas em África. Outro centro de pensamento anticolonial foi o Centro de Estudos Africanos, em cujo grupo fundador esteve o futuro pai das independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Amílcar Cabral foi também vice-presidente da Casa dos Estudantes do Império em 1951. A sua segunda esposa, Ana Maria Cabral, também por lá passou e recorda a importância do local para a contestação. “Fui levada pelos meus irmãos mais velhos e não havia só bailes, havia encontros, havia reuniões sobre a situação dos nossos países, em especial quando os franceses e os ingleses começaram a dar a independência às suas antigas colónias. Seguimos todo o processo dessas independências. Nós todos éramos Lumumba e Nkrumah. Nós seguíamos a luta dos outros povos, dos povos das colónias e não só das colónias em África”, explica Ana Maria Cabral. Muitos dos que passaram pela Casa dos Estudantes do Império vieram a assumir importantes responsabilidades na luta anticolonial e de libertação dos antigos territórios em África, como Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Mondlane, Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano e Miguel Trovoada. Pedro Pires também conheceu de perto a Casa dos Estudantes do Império. Aquele que foi comandante e destacado dirigente político-militar do PAIGC na luta de libertação, assim como o principal arquitecto do Acordo de Lisboa para a independência, resume que a luta contra a opressão colonial foi desencadeada pelo próprio colonialismo. “É o próprio sistema colonial, que não dava resposta às necessidades e às dificuldades, enfim, às crises por que passava a Cabo Verde, mas também que não se interessava especialmente em encontrar soluções para esses problemas. O percurso histórico de Cabo Verde é trágico, em certa medida, porque os cabo-verdianos tiveram que enfrentar situações extremamente complicadas e difíceis de fome, secas, fugas, ter que buscar por outras vias as soluções e o próprio sistema que não dava resposta às necessidades e às exigências, para não dizer também aos sonhos daqueles que queriam ver o país numa via diferente. Portanto, o colonialismo era um sistema de bloqueio e era indispensável lutar contra ele, a fim de abrir novas perspectivas ao país para realizar os seus objectivos, os seus sonhos, mas também por uma coisa muito simples: para ter uma vida melhor”, considera Pedro Pires. Foi para buscar essa “vida melhor” que estes homens e mulheres abrem o caminho para a luta de libertação, da qual vamos recordar alguns momentos nos próximos episódios. Pode ouvir aqui as entrevistas integrais feitas aos diferentes convidados.
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica e difunde várias reportagens sobre este tema. Neste segundo episódio, falámos com antigos combatentes que se prepararam para a luta armada em Cabo Verde através de formações político-militares na Argélia, em Cuba e na antiga União Soviética. Foi planeado um desembarque no arquipélago, mas Cabo Verde acabaria por chegar à independência sem guerrilha no seu território e os cabo-verdianos foram lutar para as frentes de combate na Guiné e também na clandestinidade. Participaram, ainda, em batalhas políticas, de saúde, de formação e de informação. Nesta reportagem, ouvimos Pedro Pires, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Maria Ilídia Évora, Amâncio Lopes e Alcides Évora. A 5 de Julho de 1975, depois de cinco séculos de dominação portuguesa, às 12h40, era oficialmente proclamada a independência de Cabo Verde por Abílio Duarte, presidente da Assembleia Nacional Popular, no Estádio Municipal da Várzea, na Praia. A luta tinha começado há muito e acabaria por ser o PAIGC, Partido Africano da Independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, a consolidar os anseios nacionalistas e a conduzir o arquipélago à independência, quase dois anos depois de a Guiné-Bissau se ter autoproclamado independente. O líder da luta e do partido, Amílcar Cabral, nascido em Bissau e filho de cabo-verdianos, não pôde assistir nem a uma nem a outra por ter sido assassinado em Janeiro de 1973. Considerado como o pai das duas independências, Amílcar Cabral defendeu, desde o princípio, o lema da “unidade e luta”: unir esforços para combater o inimigo comum que era o colonialismo português. No programa, ancorado numa concepção pan-africana de unidade política para o continente, estava a luta pela independência da Guiné e de Cabo Verde e a futura união dos dois Estados, separados por mar alto. Mas ao contrário da Guiné, em Cabo Verde a luta nunca chegou a ser armada, ainda que a intenção tenha estado em cima da mesa. Foi em Julho de 1963, na cidade de Dacar, numa reunião de quadros nacionalistas do PAIGC, que Pedro Pires chegou a dizer não ter cabimento “falar em luta de libertação nacional sem falar em luta armada”. O comandante e destacado dirigente político-militar do PAIGC tinha "dado o salto" em 1961 quando integrou o grupo de dezenas de jovens africanos que abandonou, clandestinamente, Portugal, rumo à luta pela independência. Mais de meio século depois, com 91 anos, o comandante da luta de libertação recebe a RFI no Instituto Pedro Pires para a Liderança, na cidade da Praia, e recorda-nos o contexto em que se decidiu que o recurso à luta armada “era obrigatório” e como é que ele esteve ligado à preparação da luta em Cabo Verde. “A questão da luta armada, colocámos a seguinte questão: ‘Será obrigatório?' Chegámos à conclusão que era obrigatório. Tinha que se ir nessa direcção por causa daquilo que já tinha acontecido porque não é uma questão de qualquer coisa por acontecer, mas a violência já tinha acontecido em Angola, no Congo Kinshasa, na Argélia, de modo que estávamos obrigados a pensar nessa via. É assim que nós abraçamos o projecto do PAIGC de prepararmo-nos e organizarmos o recurso à violência armada. As tarefas que me foram conferidas no PAIGC estiveram, até 1968, sempre ligadas a Cabo Verde e à preparação da possibilidade da luta armada em Cabo Verde”, conta Pedro Pires [que se tornaria o primeiro primeiro-ministro de Cabo Verde (1975-1991) e, mais tarde, Presidente do país (2001-2011)]. E era assim que, meses depois do anúncio do início das hostilidades pelo PAIGC contra o exército português no território da Guiné, se desenhava a intenção de desencadear também a luta armada em Cabo Verde. A Pedro Pires foi confiado o recrutamento e a preparação política dos combatentes. A ajudá-lo esteve Silvino da Luz que, meses antes, tinha desertado do exército português e sido preso em Kanu, na Nigéria. Aos 86 anos, Silvino da Luz recebe a RFI em sua casa, na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente e explica-nos por que é que a acção militar em Cabo Verde era necessária. “A grande decisão tomada em 1963, nessa reunião de Dacar, da qual eu saio como um dos responsáveis militares, era a criação de condições para desencadear a luta armada em Cabo Verde porque estávamos absolutamente seguros que os colonialistas, e Salazar em particular, não aceitariam nunca largar as ilhas que já estavam nos radares da NATO que considerava Cabo Verde e Açores como os dois pontos cruciais para a defesa do Ocidente e no Atlântico Médio eram indispensáveis”, explica Silvino da Luz que foi, depois, comandante das Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP), ministro da Defesa e Segurança (1975-1980) e dos Negócios Estrangeiros (1980-1991) e depois deputado até 1995. Começou a pensar-se num desembarque de elementos do PAIGC no arquipélago e houve preparação de combatentes na Argélia, em Cuba e na antiga União Soviética. O grupo dos militantes nacionalistas, encabeçado por Pedro Pires, preparou-se na clandestinidade total em Cuba, durante dois anos, e é aqui que nascem as Forças Armadas cabo-verdianas, a 15 de Janeiro de 1967, data em que os cabo-verdianos prestam, perante Amílcar Cabral, o juramento de fidelidade à luta de libertação de Cabo Verde. No grupo de Cuba, havia apenas uma mulher, Maria Ilídia Évora, conhecida como Tutu. Aos 89 anos, recebe a RFI em sua casa, no alto de São Nicolau, no Mindelo. À entrada, destacam-se duas fotografias de Amílcar Cabral, mas há ainda muitas fotografias que ela nos mostra dos tempos da formação político-militar em Cuba. Foi em Dacar, onde estava emigrada, que Tutu conheceu Amílcar Cabral e aderiu logo à luta. “Foi ideia de Cabral. Disse que eu tinha de participar. Em Cuba, os treinos eram de tiro, esforço físico, correr, fazer ginástica, fazer marchas, aprender a lidar com a arma, limpar as armas, e escola também. Tinhamos aulas de matemática e várias aulas porque no grupo havia estudantes que tinham fugido da universidade, eles tinham mais conhecimento do que nós e partilhavam os conhecimentos deles com quem tinha menos”, revela, acrescentando que um camarada lhe disse um dia que “muitas vezes os homens queriam desistir, mas tinham vergonha porque tinham uma mulher no grupo”. Também Alcides Évora, conhecido como “Batcha”, esteve no grupo de Cuba. Entrou na luta pela mão do comandante Pedro Pires, depois de ter estado emigrado em França durante pouco mais de um ano. Viajou para a Argélia e, passados uns meses, seguiu para o treino militar em Cuba. É na Fundação Amílcar Cabral, na Praia, que, aos 84 anos, ele recorda essa missão à RFI. “Nós tivemos uma preparação político-militar intensa. Tivemos aulas militares e também havia aulas de política para complementar o nosso curso. A nossa preparação era para desencadear a luta em Cabo Verde, mas não se efectivou o nosso desembarque porque com a morte do Che Guevara na Bolívia, os americanos passaram a controlar todos os barcos que saíam de Cuba. Então, o Fidel mandou chamar o Amílcar e eles depois chegaram à conclusão que realmente não era aconselhável esse desembarque”, afirma Alcides Évora depois de nos fazer a visita guiada às salas da fundação, onde também se vê uma fotografia dele no escritؚório do PAIGC em Conacri. O desembarque estava a ser preparado no maior dos segredos e estava tudo pronto. Amâncio Lopes, hoje com 86 anos, era também um dos membros do grupo. Tinha sido recrutado junto dos emigrantes cabo-verdianos da região francesa de Moselle, onde se encontrava a trabalhar como operário na siderurgia. Amâncio Lopes começou por receber formação em Argel e depois foi para Cuba. “Era um grupo de 31 que foi maioritariamente recrutado na Europa, em Moselle, no seio da emigração. De lá, recebi preparação militar em Argel, depois fomos reunidos em Cuba porque havia dois grupos. Passados os seis meses de instrução, fomos reunidos todos em Cuba. Foram uns dois anos. Era uma preparação inicial e depois recebíamos ajuda para desembarcar em Cabo Verde. Quando já estávamos preparados para desembarcar em Cabo Verde, Cabral fez uma visita e nessa visita fizemos o juramento em 1967”, recorda Amâncio Lopes, quando recebe a RFI na sua casa, na periferia de Mindelo. Ao fim de quase dois anos de treinos e formação político-militar, o grupo de Cuba encontrava-se pronto para a operação de desembarque. Amílcar Cabral desloca-se a Havana para dar instruções e procede-se ao juramento solene da bandeira, a 15 de Janeiro de 1967, mas a morte de Che Guevara na Bolívia, a 8 de Outubro de 1967, é uma das razões que leva à suspensão da operação. Silvino da Luz recorda que estava tudo a postos. “O assunto foi tratado sempre no máximo sigilo, as informações não escapavam. Tínhamos desaparecido do mundo, as pessoas não sabiam, vivíamos em plena clandestinidade em Cuba, lá pelas montanhas interiores da ilha, em acampamentos com bastante segurança. Recebemos preparação militar bastante avançada. Depois, já tínhamos terminado a preparação, Fidel já se tinha despedido de nós, tinha oferecido uma espingarda a cada um de nós, Amílcar já se tinha despedido, mas houve uma série de desastres que aconteceram, como a queda do Che [Guevara] na Bolívia, uma tentativa de infiltração de revolucionários na Venezuela (…) Nós já estávamos no barco à espera da ordem de partida, mas cai o Che, houve essas infelicidades, o cerco à volta de Cuba aumentou, os americanos quase fecharam a ilha e não havia possibilidade de nenhum barco sair sem ser registado. Naturalmente que, para nós, sair era quase que meter a cabeça na boca do lobo”, relembra Silvino da Luz. Também o comandante Pedro Pires admite que “quando se é jovem se pensa em muitas coisas, algumas impossíveis” e o desembarque era uma delas, pelo que se optou por um “adiamento” e por "criar as condições políticas para continuar a luta". “Quando se é jovem, pensa-se em muitas coisas, algumas possíveis e outras impossíveis. Concebemos um projecto, pusemos em marcha a criação das condições para a concretização do projecto, mas verificou-se que era complicado de mais. Uma das características das lutas de libertação e, sobretudo, das guerrilhas, é a problemática da retaguarda estratégica. Em relação a Cabo Verde, em pleno oceano, não há retaguarda estratégica e você vai desenrascar-se por si. É preciso analisar as condições reais de sustentabilidade dessa ideia, se era possível ou não possível. O nosso apoiante mais entusiasta ficava nas Caraíbas, a milhares de quilómetros de distância, não serve de retaguarda, a não ser na preparação, mas o apoio à acção armada ou possivelmente outro apoio pontual era muito difícil. Por outro lado, o que nos fez reflectir bastante sobre isso foi o fracasso do projecto de Che Guevara para a Bolívia”, explica. Adiado o projecto inicial, os cabo-verdianos continuaram a formação e foram para a União Soviética onde receberam formação de artilharia, algo que viria a ser decisivo para a entrada deles na luta armada na Guiné. Amâncio Lopes também foi, mas admite que sentiu “uma certa tristeza” por não ver concretizado o desembarque em Cabo Verde. “Éramos jovens e todos os jovens ao entrarem numa aventura destas querem ver o programa cumprido. Mas o programa tem de ser cumprido sem risco suicida. Em Cuba fizemos preparação política e de guerrilha mas, depois, na União Soviética, já fizemos preparação semi-militar. (…) Os soviéticos foram taxativos: vocês têm um bom grupo, grande grupo, consciente do que quer, mas metê-los em Cabo Verde é suicidar esse grupo. Então, ali avisaram-nos que já não íamos desembarcar em Cabo Verde. Aí ficámos numa certa tristeza porque em Cuba tínhamos a esperança de desembarcar, na União Soviética durante quase um ano também tínhamos essa esperança, mas depois perdemos a esperança de desembarcar em Cabo Verde”, diz Amâncio Lopes. Entretanto, entre 1971 e 1972, houve também um curso de marinha para uma tripulação de cabo-verdianos que deveria vir a constituir a marinha de guerra do PAIGC. O grupo era chefiado por Osvaldo Lopes da Silva que considera que se o projecto tivesse avançado, teria sido decisivo, mas isso não foi possível devido à animosidade que se sentia da parte de alguns militantes guineenses contra os cabo-verdianos. “Da mesma maneira que os cabo-verdianos entraram para a artilharia e modificaram o quadro da guerra, Cabral pensou: ‘Vamos criar uma unidade com cabo-verdianos, aproveitar os cabo-verdianos que havia, concentrá-los na marinha para ter uma marinha de guerra. Eu estive à frente desse grupo. Esse grupo se tivesse entrado em acção seria para interceptar as ligações entre a metrópole e Cabo Verde e a Guiné e as outras colónias. Seria uma arma letal. Da mesma maneira que a entrada dos mísseis anti-aéreos imobilizou completamente a aviação, a entrada dos cabo-verdianos na marinha com as lanchas torpedeiras teria posto em causa a ligação com a metrópole. Podíamos mesmo entrar em combate em território da Guiné e afundar as unidades que os portugueses tinham que não estavam ao nível do armamento que nós tínhamos”, explica. Então porque não se avançou? A resposta de Osvaldo Lopes da Silva é imediata: “As unidades estavam ali, as lanchas torpedeiras, simplesmente não havia pessoal qualificado. Nós é que devíamos trazer essa qualificação. Quando esse meu grupo regressa em 1972, o ambiente na marinha estava completamente degradado. O PAIGC tinha uma marinha e é nessa marinha que foi organizado todo o complô que veio dar lugar à morte de Cabral.” A análise retrospectiva é feita em sua casa, no bairro do Plateau, na Praia, onde nos mostra, aos 88 anos, muitas das fotografias dos tempos da luta, quando também foi comandante das FARP, e imagens de depois da independência, quando foi ministro da Economia e Finanças (1975-1986) e ministro dos Transportes, Comércio e Turismo (1986-1990). Houve, ainda, outras tentativas de aproximação de guerrilheiros a Cabo Verde. O historiador José Augusto Pereira, no livro “O PAIGC perante o dilema cabo-verdiano [1959-1974]”, recorda que a URSS, em 1970, cedeu ao PAIGC um navio de pesca de longo alcance, o 28 de Setembro, que reunia todo o equipamento necessário ao transporte e desembarque de homens e armamento. A luta armada no arquipélago não estava esquecida e no final de 1972 foram enviados a Cuba dois militantes provenientes de Lisboa que deveriam ser preparados para desencadear, em Cabo Verde, ações de guerrilha urbana. Um deles era Érico Veríssimo Ramos, estudante de arquitectura em Lisboa e militante do PAIGC na clandestinidade, que sai de Portugal em Dezembro de 1972 em direcção a Cuba. “Em Dezembro de 1972, saio de Portugal com um passaporte português, vou para Cuba receber preparação para regressar para a luta. Não estava ainda devidamente estruturada essa participação para depois dessa formação. Fui eu e mais um outro colega e mais um elemento que veio da luta da Guiné-Conacri. Quando Amílcar Cabral foi assassinado, nós estávamos em Cuba e, logo a seguir, tivemos de regressar”, conta. De facto, o assassínio de Amílcar Cabral a 20 de Janeiro de 1973 levou à saída da ilha dos activistas por ordem das autoridades de Havana. Entretanto, combatentes cabo-verdianos tinham integrado as estruturas militares da luta armada na Guiné, mas sem abandonarem a ideia de um lançamento futuro da luta armada em Cabo Verde. Porém, isso acabaria por não acontecer. Apesar de a luta armada não se ter concretizado em Cabo Verde, a luta política na clandestinidade continuou nas ilhas e a PIDE apertou bem o cerco aos militantes. Muitos foram parar ao Tarrafal e a outras prisões do “Império”, onde também houve resistência. Os cabo-verdianos destacaram-se na luta armada na Guiné, mas também noutras frentes de batalha como a propaganda, a educação, a saúde, a diplomacia e muito mais. Sobre alguns desses temas falaremos noutros episódios desta série. Pode também ouvir aqui as entrevistas integrais feitas aos nossos convidados.
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica e difunde várias reportagens sobre este tema. Neste terceiro episódio, fomos à procura de antigos combatentes que agarraram nas armas na Guiné para obter a independência dos dois territórios: Guiné e Cabo Verde. As armas, as formações, as viagens, as frentes de batalha e os momentos históricos decisivos, como a tomada de Guilege, são aqui contados por Pedro Pires, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva e Amâncio Lopes. A 5 de Julho de 1975, no Estádio da Várzea, na cidade da Praia, era hasteada a primeira bandeira de Cabo Verde. O país obtinha a sua independência, sem ter tido luta armada nas suas ilhas. Houve planos para o fazer, mas acabaram por não se concretizar, o que levou os cabo-verdianos a agarrarem em armas e a irem lutar pela independência nacional a partir do continente africano, contribuindo também para a libertação do povo guineense. O combate foi liderado por Amílcar Cabral, sob a bandeira da “unidade e luta”, no seio do PAIGC, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde. Foi esta aliança que se revelou determinante para escrever a história contemporânea de Cabo Verde, considera o comandante e destacado dirigente político-militar do PAIGC, Pedro Pires, lembrando, por exemplo, o papel decisivo dos artilheiros cabo-verdianos nas matas da Guiné. “Sem o PAIGC ou sem essa aliança entre Guiné e Cabo Verde, a independência de Cabo Verde seria complicada. Isso, em certa medida, permitiu as vitórias ou a vitória final, se quiser dizer isso, na Guiné. A introdução dos artilheiros cabo-verdianos acrescentaram um pouco, melhoraram a capacidade da artilharia que era a arma que fustigava mais os quartéis e podia destruir os quartéis. Essa chegada e introdução dos artilheiros cabo-verdianos foi um factor de mudança. Um factor de mudança favorável à melhoria das capacidades das Forças Armadas do PAIGC”, testemunha Pedro Pires. A guerra na Guiné tinha começado em 1963. Nesse ano, esboça-se um projecto para desencadear também a luta armada em Cabo Verde, mas perante a suspensão do desembarque de guerrilheiros treinados em Cuba e depois de mais formação militar na antiga União Soviética, os cabo-verdianos entram realmente em cena na Guiné em 1969 e vários participam na tomada de Madina do Boé. O comandante de artilharia Osvaldo Lopes da Silva considera que “o quadro se altera completamente” com a entrada da artilharia nas mãos dos cabo-verdianos. Ele estava a estudar na Universidade de Coimbra, quando, em 1961, juntamente com Pedro Pires e tantos outros, fugiu de Portugal para se ir juntar a Amílcar Cabral e à luta independentista. Continuou os estudos em Moscovo e ingressou na luta armada como comandante de artilharia, depois de se ter formado em manejo de mísseis terra-terra GRAD. “Um guerrilheiro podia facilmente transportar o tripé, um outro transportava o tubo e mesmo o míssil era decomposto: a parte explosiva e a parte propulsora. Até 1968, a manobra da parte inimiga foi ocupar o terreno, ou seja, dispersou as suas forças e a missão principal do dispositivo português era garantir os quartéis. Já com o general Spínola, um militar mais evoluído, ele cria forças de intervenção. Já não era só a defesa dos quartéis, mas forças que tentaram recuperar o terreno. É nessa altura que foi importante a presença de mísseis para neutralizar a acção do Spínola, com grande utilização de helicópteros, maior mobilidade, mas o quadro alterou-se completamente com a entrada da artilharia já nas mãos dos cabo-verdianos”, conta Osvaldo Lopes da Silva. O governador António de Spínola tinha entrado na Guiné em fins de Maio de 1968 para conter o avanço do PAIGC e, de facto, dificultou muito as coisas. O PAIGC estava numa fase de desgaste militar e psicológico, algo que se vai arrastar até ao assassínio do seu líder, Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973. Spínola utiliza meios militares e psico-sociais, consegue um aumento do efectivo militar e acentua a africanização da tropa com a incorporação de elementos guineenses nas fileiras do exército português. Além disso, acentuou as manobras de acção psicológica contra os guerrilheiros e a população ao contra-atacar a aceitação do PAIGC junto da população com o plano que chamou “Por uma Guiné melhor” e que consistiu em tentar conquistar o apoio dos habitantes com postos sanitários, escolas, apoio aos camponeses, Congressos do Povo, etc. Amâncio Lopes fez parte do grupo de 31 cabo-verdianos formado em Cuba, entre 1967/68, para um desembarque em Cabo Verde, mas perante o adiamento do projecto, acaba por ir para a União Soviética formar-se em artilharia e vai participar na luta armada na Guiné. Ele recorda-se do poder dissuasivo dos mísseis GRAD soviéticos e sublinha que o objectivo era levar o seu compromisso até ao fim, sabendo que o contributo na Guiné seria também para a libertação de Cabo Verde. “Cabral dizia: ‘Nós vamos utilizar essa arma para demonstrar ao inimigo que podemos fazer mal, mas não vamos fazer mal porque os portugueses estão no meio da nossa população e se procurarmos fazer mal aos portugueses vamos fazer mal também à nossa população'. Para ver o conceito do homem, o pensador, o dirigente, ele dizia: ‘Nós vamos tomar a nossa terra e ser nação com a nossa gente e, portanto, não vamos destruir a nossa gente”, conta Amâncio Lopes. Questionado sobre se não era estranho estar a combater em solo estrangeiro pela independência de Cabo Verde, o combatente responde que depois de ter sido mobilizado na emigração e de ter perdido o estatuto de emigrante, tinha de cumprir o “compromisso até ao fim” e que esteve na Guiné “por convicção, não por valentia”. Por maior que seja a convicção, a guerra deixa marcas para sempre. O comandante Silvino da Luz não esquece os horrores da luta armada. Por exemplo, na sua primeira missão na Guiné, em que foi “encarregado de continuar o fustigamento à volta do quartel de Madina Boé”, viu três companheiros “amputados para vida” num terreno minado. Noutra altura, viu um camarada morrer ao ser atingido por uma bala na cabeça mesmo ao seu lado… Arriscar a vida era o preço a pagar para ver Cabo Verde e a Guiné livres do jugo colonial. A chegada dos cabo-verdianos correspondeu à passagem da luta armada “a uma fase superior” na Guiné, considera também Silvino da Luz, que tinha tido formação em guerrilha na Argélia, depois nova preparação na China e, em 1966, foi incluído no grupo de cabo-verdianos que em Cuba se preparou para um eventual desembarque em Cabo Verde. Conta que, depois, continuou formação militar na antiga União Soviética e entrou na Guiné. “Entrámos na luta armada para a passagem da luta na Guiné a uma fase superior que viria a terminar com o que originou grandemente o afastamento de Spínola, o governador da Guiné. Caíram três campos fortificados em operações dirigidas na artilharia por cabo-verdianos. Os portugueses chamam a isso “os três G”: Guilege, Gadamael e Guidage”, acrescenta Silvino da Luz. Guilege foi determinante na história da luta de libertação, confirma Osvaldo Lopes da Silva. Ele tinha frequentado um curso de marinha para uma tripulação de cabo-verdianos na Escola Naval de Odessa. Depois, liderou um grupo de militantes na Marinha Nacional Popular que aí se sentiram hostilizados por elementos guineenses e o projecto de formar uma marinha de guerra com cabo-verdianos não se concretizou. O grupo foi disperso e Osvaldo Lopes da Silva confrontou o secretário-geral do PAIGC, Amílcar Cabral, sobre o que pretendia fazer relativamente a Cabo Verde. “Esse grupo que veio já não foi utilizado na Marinha. Fomos dispersos e eu era um quadro qualificado da artilharia e Cabral põe-me o problema: ‘Tu, o que é que queres, ao fim e ao cabo?' E eu digo: ‘Eu quero é regressar ao mato, não quero ficar em Conacri. Para mim é a artilharia, se não é possível trabalhar na Marinha e a Marinha como está não é possível.' Ele traz o mapa e diz: “Estás a ver esse quartel? Esse é o quartel mais fortificado da Guiné.' Eu digo que ‘sou capaz de destruir qualquer quartel que ele me indicar.' E ele: ‘Podes destruir Guilege? É mesmo fortificado, é rodeado por uma mata densa'. Eu disse: ‘Posso destruir. Desde que eu tenha tempo e meios suficientes, eu destruo', afirma. Osvaldo Lopes da Silva sublinha que depois de Guilege “surge o movimento do 25 de Abril porque havia a ameaça de derrocada militar”. A tomada de Guilege, em Maio de 1973, foi realmente um momento decisivo graças à utilização de misseis antiaéreos portáteis Strella 2. No fundo, ditaram o fim da supremacia aérea das Forças Armadas Portuguesas, resume Pedro Pires, responsável pela logística da operação, sublinhando que outro momento importante no conflito armado foi a visita do Comité de Descolonização da ONU às regiões libertadas, em Abril de 1972. “Um sucesso político extraordinário, num quadro de guerra, em que o próprio sucesso foi uma operaçao mais ou menos militar foi a missão das Nações Unidas à Guiné em Abril de 1972. Ao realizar ou permitir a realização dessa missão com sucesso, abriram-se possibilidades políticas enormes”, descreve Pedro Pires que, entre 1968 e 1974, esteve integrado nas estruturas político-militares do PAIGC, na frente da Guiné, e exerceu elevadas responsabilidades nos planos político e militar, como membro do Comité Executivo da Luta e do Conselho de Guerra e como Comandante de Região Militar. “A possibilidade militar que veio facilitar tudo isso começou quando pudemos utilizar os mísseis antiaéreos portáteis Strella 2. Isso teria sido o momento decisivo de facto, em Abril, Maio de 1973. Foi o momento decisivo em que as nossas forças abateram três ou quatro aviões MiG, os melhores que a aviação portuguesa possuía na Guiné. E dos momentos mais terríveis para as Forças Armadas Portuguesas foi quando foi derrubado o avião do chefe de Estado-Maior da aviação ou comandante da aviação militar na Guiné. A mudança que teve lugar é a seguinte: se antes era lançar o ataque e fugir para não ser surpreendido pela aviação, a partir daí passámos a lançar o ataque e a permanecer porque a aviação já não tinha capacidade para liquidar ou provocar baixas às nossas forças. E os aviadores passaram a ter medo da arma. O aviador tinha medo da arma, os pilotos de helicóptero tinham medo da arma, era impossível fazer a evacuação de feridos de helicóptero. A situação ficou complicada porque limitou grandemente, ou de sobremaneira, a mobilidade e a capacidade aérea das Forças Armadas Portuguesas”, acrescenta o comandante que viria a ser Presidente de Cabo Verde entre 2001 e 2011. Esta foi uma importante vitória política e militar, pouco tempo depois do assassínio de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacri. Em Fevereiro de 1973, os membros do Conselho Executivo da Luta e do Conselho Superior da Luta do PAIGC tinham intensificado a luta armada em todas as frentes e avançado com a Operação Amílcar Cabral, tendo justamente um dos momentos culminantes sido a tomada de Guilege, em Maio de 1973, e a proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, a 24 de Setembro de 1973. Embalado pelas vitórias de 1973, o PAIGC sabia que tinha conseguido o fim do domínio aéreo e da liberdade de acção portuguesas. Marcello Caetano não aceitava qualquer cedência política e deu ordens para “resistir até à exaustão de meios”, o que levaria à Revolução dos Cravos. Para Amâncio Lopes, a melhor missão foi a 25 de Abril de 1974. “Para mim, a maior missão que eu tive na Guiné foi o 25 de Abril porque fomos lá com GRAD, nessa altura já fazíamos missão durante o dia porque já tínhamos recebido os Strella. Eram 11 horas, lembro-me. Quando voltávamos, recebemos a notícia que os portugueses tinham dado golpe de Estado. Isso não nos disse nada porque com os portugueses ninguém fazia cálculo de nada, mas tivemos mais ou menos uma percepção porque foi dado um golpe de Estado. Enquanto a guerra está andando, o combatente, principalmente o artilheiro, não tem percepção de qual é a melhor missão, pode considerar a missão que fez mais estragos, mas não prevê o fim. Por isso, a melhor missão é aquela que é feita no fim”, conclui Amâncio Lopes. Esse “fim” seria o início da abertura das negociações para a independência de Cabo Verde que resultaria na proclamação da “República de Cabo Verde como Nação Independente e Soberana”, a 5 de Julho de 1975. Pode ouvir aqui as entrevistas integrais feitas aos diferentes convidados.
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica e difunde várias reportagens sobre este tema. Neste quarto episódio, fomos à procura de pessoas que se dedicaram à luta na clandestinidade, algo que continua a ser uma das frentes menos visíveis na luta de libertação de Cabo Verde. Para conhecermos o trabalho feito nas ilhas, mas também na diáspora, as técnicas para ludibriar a polícia política, assim como as experiências daqueles que a PIDE prendeu nos "cárceres do Império", conversámos com Óscar Duarte, Gil Querido Varela, António Pedro da Rosa, Marline Barbosa Almeida, Adão Rocha e Manuel Faustino. Foi no ano 2000, na cidade da Praia, que os Tubarões Azuis conquistaram a X Edição da Taça Amílcar Cabral, talvez a mais importante vitória da selecção de Cabo Verde. A prova, com o nome do líder da luta pela independência, foi conquistada quando os jogadores eram treinados por Óscar Duarte, um nome que ficou conhecido no futebol português nos finais da década de 70: foi campeão pelo FC Porto em 1979 e chegou a vestir a camisola das Quinas no Parque dos Príncipes, em Paris, em 1978. Antes disso, Óscar Duarte tinha travado uma outra luta, a da libertação de Cabo Verde, o que o levou a estar preso quase dois anos no campo de São Nicolau em Angola, depois de ter passado pelo Tarrafal, da ilha de Santiago, e por Caxias, em Portugal. “Era das piores prisões que havia na era colonial. Quando a pessoa - para eles - cometesse qualquer erro, surravam nas pessoas. A mim também me bateram. Eu sou técnico agrícola e ao trabalhar na agricultura, se tirasse qualquer produto da agricultura batiam-me. Utilizavam esses dois utensílios: palmatória e chicote. Sabe o que é uma pessoa levar às vezes 200 palmatoadas na mão? Quando a mão incha, as veias ficam ensanguentadas. E batiam no rabo com a palmatória. Portanto, houve muita gente que morreu assim. Eu, durante o tempo que lá estive, uma vez houve um problema qualquer e - como era uma prisão natural, não havia prisão lá dentro - eu estive quase três meses numa cela com cinco palmos de comprido, três de largo. Eu sentava-me, esticava a perna e ocupava aquilo tudo. Era sempre escuro, onde fazia as minhas necessidades é que tinha de abrir a torneira também para beber e havia uma refeição por dia”, conta. Essa cela era a “frigideira durante o verão” e “frigorífico na época de cacimbo que é o frio”. “Durante esse tempo que estive na frigideira ou no frigorífico, era uma refeição por dia. Era só o pequeno almoço, fuba, um bocadinho de amendoim e uma chávena de café preto. Depois a pessoa ia perdendo peso. Houve muita gente que foi à loucura. Eu aguentei, mas houve muita gente que morreu por lá. E depois havia uma outra agravante, que era que quando iam buscar uma pessoa à noite, dificilmente apareciam. Matavam-nas”, recorda Óscar Duarte. Era preciso resistir para sobreviver. Resistir à "frigideira" ou "frigorífico", aos espancamentos, à fome, aos trabalhos forçados, à loucura. Óscar Duarte viu muita gente morrer. Um dia, um prisioneiro que tinha tentado fugir foi crucificado para todos verem. Mas Óscar Duarte resistiu. A dada altura, foi transferido do Campo de São Nicolau para o Campo da Foz do Cunene e também aí continuou a resistir e até a jogar à bola, entre lacraus, cobras e jacarés. “Tínhamos de trabalhar todos os dias, era deserto e tal, a temperatura era quase de 50 graus. Hoje, abríamos vala, amanhã tapávamos. Cortávamos pedra, depois arrumávamos. Só para ocupar tempo. Era um castigo. E depois tínhamos muito receio porque não tínhamos sequer uma aspirina, um vidro de álcool. Nada disso. E havia lá muito lacrau, se o lacrau picar uma pessoa é terrível porque tem veneno. Havia lacrau, havia cobras, havia tudo isso. Havia lá um rio e nós fizemos lá alguma agricultura com o limo do rio, misturámos com a terra e tirávamos sempre qualquer coisa. Às vezes íamos para o rio jogar a nossa bola e jacarés com quatro metros e tal! Uma pessoa se se distrai, até podia ser apanhado pelo jacaré!”, lembra. Criado em 1962, o Campo de Recuperação de São Nicolau situava-se num território desértico no litoral angolano, a norte da então Moçâmedes (Namibe). Para lá eram enviados guerrilheiros suspeitos de actividades subversivas, por vezes acompanhados da família. Em 1964, estavam lá presas 651 pessoas. Em 1972, eram 1.123 prisioneiros. Óscar Duarte foi desterrado para lá por fazer parte da rede clandestina de militantes do PAIGC em Cabo Verde. “Eu fui para São Nicolau porque tínhamos um núcleo e trabalhávamos na clandestinidade. Na altura, a PIDE tinha a coisa muito bem controlada e por cada informação que a pessoa desse, eles pagavam 500 escudos. E nessa altura já era algum dinheiro. Deitámos uns panfletos em São Vicente e houve um indivíduo que pertencia ao nosso núcleo, que foi deitar panfletos no cinema, foi apanhado e depois torturaram-no. Inclusive ele falou-nos de um alicate nos testículos. Portanto, ele teve que 'cantar', teve que dizer tudo”, acrescenta. Óscar foi preso na cidade da Praia e submetido a tortura nos interrogatórios: uma semana virado para uma parede sem dormir e a ter alucinações da mãe a chorar. No Tarrafal da ilha de Santiago, em Cabo Verde, também era preciso resistir. Numa primeira fase, entre 1936 e 1956, ali estiveram presos portugueses que contestavam o regime fascista e o local ficou conhecido como “Campo da Morte Lenta”. Em 1962, passou a chamar-se “Campo de Trabalho de Chão Bom” e foi então que se tornou na cadeia de militantes nacionalistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Em Cabo Verde, a luta na clandestinidade começou a ser forjada, em 1959, por nomes como Abílio Duarte, do PAIGC, e José Leitão da Graça, ligado ao partido UPICV, que são obrigados a deixar o país devido à polícia política. Depois, vários militantes do PAIGC fizeram trabalho político para mobilizar a população em torno da causa independentista e para criar um ambiente favorável ao desembarque no arquipélago de guerrilheiros armados. Isso acabaria por não acontecer, mas foi minuciosamente preparado. A polícia política portuguesa também não permitiu o desenvolvimento da rede clandestina porque foi prendendo, ao longo do tempo, vários dos responsáveis nas ilhas. Foi o caso de Carlos Lineu Miranda, Fernando dos Reis Tavares, Jaime Schofield, Luís Fonseca e vários outros. Gil Querido Varela foi preso em 1968, interrogado e torturado pela polícia no Plateau, transferido para a Cadeia Civil da Praia e entra no Tarrafal em Abril de 1970. Sai em Janeiro de 71. Era suspeito de prática de “crime contra a segurança interior e exterior do Estado”. Gil Querido Varela era militante do PAIGC e fazia a luta política na clandestinidade. “Nós trabalhávamos, visitávamos amigos. Eu, por exemplo, ia à Ribeira da Barca, aproveitava no momento em que estava trabalhando no campo e lá ia fazer o trabalho político, [dizer] que devíamos entrar no PAIGC para libertar a terra. Quem já tinha visto a fome de 1947 - que eu vi uma parte - não ficava sem fazer nada. Vi crianças morrerem de fome, com o corpo inflamado de fome. Mães com crianças mortas nas costas que não tiravam para poderem achar esmola. Os colonialistas troçando da fome do povo. Eu já estava farto deles e entrei rápido no PAIGC. Quem viu aquela fome era impossível não lutar. Só quem não tem sentimento”, afirma Gil Querido Varela, aos 90 anos, enquanto nos mostra o Tarrafal ao lado do camarada António Pedro da Rosa, de 76 anos. O amigo, António Pedro da Rosa, também lutava na clandestinidade e foi detido em Agosto de 1970, interrogado e torturado, transferido para a Cadeia Civil da Praia e enviado para o Tarrafal em Fevereiro de 1971, de onde saiu a 1 de Maio de 1974. “A luta na clandestinidade nós fazíamos da seguinte forma: Eu tinha um colega, Ivo Pereira, que trazia sempre jornais, panfletos e líamos para os rapazes colegas. E tínhamos um livro também que era “Luta Armada”, líamos e explicávamos a alguns rapazes sobre esta situação. Por isso é que fazíamos este trabalho na clandestinidade, através de panfletos e livros que íamos estudar com os rapazes colegas. Íamos sentar aqui num sítio qualquer porque também já sabíamos que havia alguns rapazes que eram informantes da PIDE, porque cada informação que eles levavam para a PIDE eram 500 escudos e 500 escudos na altura era muito dinheiro. Por isso fizemos todo esse trabalho, mas com muito cuidado”, recorda António Pedro da Rosa, na biblioteca do campo de concentração do Tarrafal que vai ser candidato a Património Mundial da UNESCO. Voltaremos ao Tarrafal guiados por Gil Querido Varela e António Pedro da Rosa no oitavo episódio desta série, mas concentremo-nos, por agora, na luta clandestina que se fazia em Cabo Verde. Havia quem fingisse ser namorada de um dos presos do Tarrafal para levar mensagens do exterior. Foi o que fez Marline Barbosa Almeida que trabalhava na célula clandestina do PAIGC na Praia, criada em 1968, sob direcção de Jorge Querido, o coordenador das actividades clandestinas do PAIGC em Cabo Verde, entre 1968 e 1974. Foi assim que ela conseguiu levar para a prisão informação e mensagens, incluindo dentro de tubos de pasta dos dentes. “Nós tínhamos alguns guardas, conseguíamos conversar, então mandávamos bilhetes através de pastas de dentes que nós abríamos com aquela dobrinha. Então nós tirávamos a maioria da pasta, metíamos as informações num plástico, tornávamos a meter lá e mandávamos. Depois, o director da cadeia era cunhado da minha irmã e sabia no que é que eu andava. Mas como ele era católico, presumidamente democrata, eu arranjei “namoro” com um dos presos. E ia lá e nós éramos obrigados a ir com ele assistir à missa e depois eu ia ver o meu noivo. Foi assim que nós tínhamos informações do que se passava na cadeia e transmitíamos informações aos presos”, recorda. Além da pasta de dentes, as mensagens também circularam dentro de bíblias, acrescenta Marline, quando conversa com a RFI em sua casa, na cidade da Praia. “Houve até um caso interessante de um angolano que tinha sido liberto. Eu tinha ido à praia e ao regressar a casa, eu vi-o a sair da igreja do Nazareno com uma Bíblia na mão. Ele dirigiu-se a minha casa e eu estava precisamente a entrar. ‘É a senhora fulana de tal?' ‘Sim.' ‘Eu sou fulano de tal, saí do Tarrafal ontem e vim com mensagens dos seus amigos. E eu ‘Sim, sim, como é que eles estão? Há muito que não os vejo', enrolando porque eu não sabia quem era. Até que ele abriu a Bíblia, descolou as páginas, tirou o bilhete do Carlos Tavares e mostrou-me para certificar que era uma pessoa de confiança”, recorda. Marline Barbosa Almeida chegou a ser presa e a sofrer tortura. A luta na clandestinidade “era um trabalho difícil” porque “numa ilha não havia onde fugir, não há mato, não há onde esconder”. Por isso, serviam-se de “festas, bailes, piqueniques” para trocar informações e atrair mais pessoas para a causa. Depois, procuravam dar informações à sede do PAIGC, em Conacri, sobre as condições dos presos no Tarrafal. No livro “O PAIGC perante o dilema cabo-verdiano [1959-1974]”, o historiador José Augusto Pereira conta que a PIDE/DGS instalou-se em Cabo Verde em 1959 com a criação da subdelegação da cidade da Praia. Em 1961, são criados os postos da PIDE no Mindelo e no aeroporto do Sal. Em 1965 o posto de Chão Bom, na vila de Tarrafal, em Santiago, em 1968 o posto de São Filipe na ilha do Fogo. Teria 33 efectivos em 1973. Em 1974 a cidade da Praia albergava a sede da DGS e no resto da ilha haviam postos em Santa Catarina e Tarrafal. Depois, havia postos nas ilhas de São Vicente, Sal, Santo Antão, Fogo e Boa Vista. Um dos principais golpes da PIDE/DGS acabaria por ser a detenção de Jorge Querido em Janeiro de 1974, depois de anos a fintar a apertada vigilância da polícia política. O elemento básico da luta clandestina eram as células, cada uma tinha um responsável e o conjunto de responsáveis formava uma secção. Por sua vez, os responsáveis de secção formavam um sector e os responsáveis de sector formavam zonas. O trabalho político clandestino em Cabo Verde consistia em fazer agitação política e em capitalizar em prol da causa nacionalista todas as carências, como a pobreza, a fome e as injustiças sentidas pela população. Por outro lado, havia que acicatar o espírito de revolta, predispor as massas para o apoio a acções armadas, recolher e enviar informação para a direcção do PAIGC em Conacri e dar apoio logístico aos guerrilheiros nacionalistas quando se desse o desembarque no arquipélago. O que não viria a acontecer, como já explicámos noutros episódios desta série de reportagens. Havia, ainda, mobilização junto da diáspora cabo-verdiana. Adão Rocha fazia parte do grupo de Lovaina, na Bélgica, e o trabalho político era também essencial. “Tínhamos várias frentes de luta. A frente diplomática, que Amílcar Cabral prezava muito, ele achava que era uma parte importante da luta mesmo. Ele mesmo se distinguiu como um exímio diplomata. No fundo, era tentar contactar as autoridades dessa zona e sensibilizá-las para a justeza da luta de libertação das ex-colónias e, particularmente de Cabo Verde e da Guiné-Bissau. Também tínhamos uma frente de apoios, mobilização para a luta, o que se conseguia através de organizações não governamentais ali dessa zona, da Bélgica e também da Holanda, que na altura apoiavam as lutas de libertação. Também alguns governos, poucos, já apoiaram a luta ainda antes da independência. Tínhamos, ainda, a frente de divulgação da luta junto da sociedade europeia para sensibilizá-la mais uma vez sobre a questão da repressão colonial, a questão do fascismo em Portugal e criar um ambiente propício para que os seus governos também tivessem uma posição mais favorável em relação à luta. Mas o essencial da nossa luta prendia-se com a mobilização das comunidades emigradas”, conta. Na conversa com a RFI na Fundação Amílcar Cabral, na Praia, onde é membro do Conselho de Administração, Adão Rocha destaca que é preciso que a juventude saiba que, naquela altura, em muitos países, várias pessoas abandonaram os estudos para se juntarem à luta armada ou clandestina. Em Portugal, também havia luta clandestina e a cantiga também foi uma arma para os cabo-verdianos. Manuel Faustino era estudante de medicina em Coimbra quando compôs a primeira música, “Ca bo ba pa tropa”, em 1968, que era um apelo à fuga ao serviço militar. Em 1973, é lançado o LP “Música Cabo-Verdiana-Protesto e Luta”, gravado na Holanda e editado pelo PAIGC, em que aparece outra composição de Manuel Faustino. Chamava-se “Nho Queiton” e era uma denúncia directa à política de Marcello Caetano e à miséria no arquipélago. “Nho Queiton era uma referência a Marcello Caetano que tinha feito uma viagem a Cabo Verde e, então, era uma música que denunciava os propósitos políticos, demagógicos da visita dele. A visita dele inscrevia-se num contexto de tentar seduzir as pessoas, tentar aparecer como um rosto diferente de Salazar. E essa música que vem nesse ‘Long Play' era uma denúncia dessa visita, tentando desmascarar, dizendo que era uma manobra política que serve para nada e que a solução aos problemas era a independência”, conta Manuel Faustino, lembrando que o seu nome não aparece no disco “senão ia preso”. A historiadora Ângela Benoliel Coutinho, autora de “Os Dirigentes do PAIGC: da fundação à ruptura: 1956-1980” admite que tenham havido algumas centenas de pessoas na luta clandestina, mas diz que é preciso um centro de pesquisa histórica sobre Cabo Verde para se poder estudar todas as temáticas da história contemporânea do país. “Há uma Associação dos Combatentes pela Liberdade da Pátria em Cabo Verde, que tem várias pessoas inscritas. Portanto, serão centenas. Pelas entrevistas que tenho feito, tenho presente o facto de que há pessoas que participaram e alguns até que tiveram um papel importante em dados momentos e não se inscreveram nessa associação. Já pude ter essa conversa com alguns dirigentes e penso que terão sido - entre os que integraram as células - algumas centenas. E depois há todo este apoio por parte da população, não só em Cabo Verde”, sublinha. Em Cabo Verde, em Portugal, na Guiné-Bissau, em Angola, mas também na Bélgica, na Holanda, no Senegal e noutros países para além das fronteiras do então Império Colonial Português, foram muitos os militantes e nacionalistas que lutaram na clandestinidade. Um número ainda não calculado de pessoas foram presas, torturadas e mortas, depois de perseguidas pela PIDE/DGS. Porém, mais de meio século depois, a acção na clandestinidade continua a ser uma das frentes menos visíveis na luta pela independência de Cabo Verde. Se quiser aprofundar este assunto, pode ouvir aqui as entrevistas integrais feitas aos diferentes convidados.
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica várias reportagens sobre o tema. Neste sétimo episódio, falamos sobre outras armas da luta de libertação: a Rádio Libertação, a Escola-Piloto e a rede de cuidados de saúde. Oiça aqui a reportagem com Amélia Araújo, Teresa Araújo, Josefina Chantre, Maria Ilídia Évora, Ana Maria Cabral, Manuel Boal e Sara Boal. Amélia Araújo era "a voz da luta", a locutora das emissões em português da Rádio Libertação. Ela recebe-nos em sua casa, na cidade da Praia, para nos recordar um pouco o papel desta rádio, descrita por Amílcar Cabral como o “canhão de boca” da luta pela independência. O “Comunicado de Guerra” e o “Programa do Soldado Português” eram as produções mais ouvidas. A primeira incitava os militares à resistência e à revolta contra uma guerra que não era deles. A segunda apresentava os combates ocorridos nas várias frentes e divulgava a lista dos soldados portugueses mortos, lida de uma forma muito lenta para tornar o momento mais pesado. A Rádio Libertação era uma importante arma e conseguiu fazer com que alguns soldados portugueses desertassem. “A Rádio Libertação foi um instrumento que nos ajudou a transmitir as nossas opções, os nossos princípios e aquilo que nós queríamos para nós, para os nossos países: liberdade, independência. Nós fazíamos cópias dos programas e mandávamos para Dakar, para o Gana e para Angola também. Era muito divulgado e deu o seu contributo para a luta de libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde”, conta Amélia Araújo, lembrando que os portugueses a chamavam de “Maria Turra” convictos que estavam que ela era portuguesa. Foi a 16 de Julho de 1967 que a “Rádio Libertação” começou a emitir, a partir de Conacri. As primeiras experiências tinham começado em 1964, mas o emissor era muito fraco. Em 1966, Amélia Araújo e outros companheiros foram enviados para uma formação de alguns meses na ex-URSS e regressam a Conacri com um emissor portátil oferecido pelos russos. Mas a rádio era ainda pouco ouvida devido à fraca potência e, em 1967, a Suécia oferece-lhes um estúdio e um emissor moderno. Começavam as emissões e eram em varias línguas: português, crioulo, balanta, fula, mandinga e beafada. Josefina Chantre fazia as emissões em crioulo de Cabo Verde e também trabalhava no Jornal Libertação. “O jornal, a rádio foram uma parte essencial para mobilizar também Cabo Verde. Cabral dizia que não valia a pena lutar se nós não fossemos capazes de divulgar cá para fora a nossa luta. Porque, como sabe, o regime colonial português dizia que éramos um bando de terroristas, que não tínhamos zonas libertadas, etc, etc”, recorda Josefina Chantre. Informar era a arma de Josefina Chantre e de Amélia Araújo, mas a rádio e a cultura também contaminou os mais pequenos. A filha de Amélia, Teresa Araújo, conhecida como Terezinha, tinha três meses quando começou a viagem rumo à independência, ao lado da mãe, com quem foge de Portugal. Iriam juntar-se a José Araújo, dirigente do PAIGC, responsável de propaganda, comissário político na Frente Sul e colaborador da Rádio Libertação e do boletim em francês "PAIGC Actualités". Ajudada pela mãe, Terezinha participou no programa de rádio, "Blufo", dirigido a crianças e jovens e que tinha como locutores alunos da Escola-Piloto do PAIGC. “O programa era para os outros alunos das outras escolas e internatos espalhados nas zonas libertadas. Contávamos a história do que nós fazíamos e também recebíamos alguns depoimentos de alunos do interior da Guiné das zonas libertadas. Também contávamos os episódios que se passavam e nas datas comemorativas, como 1 de Junho, 19 de Setembro, também por altura do Natal, datas de final do ano, fazíamos programas alusivos a essas datas. No início, nós tivemos que ser preparados pela minha mãe, a dicção correcta, como falar para a rádio e aprendemos bastante. Foi muito interessante”, conta Teresa Araújo. Terezinha cresce em Conacri, frequenta a Escola-Piloto desde pequenina - dos tempos em que os pais eram também la professores - e foi aí que começou a cantar e a criar os primeiros espectáculos. “Fidju Magoado” era a morna favorita de Amílcar Cabral, revela a cantora que, anos mais tarde, se tornaria numa voz incontornável de Cabo Verde com o grupo Simentera. Em 2004, gravou o disco “Nôs Riqueza”, com mornas do pai, mas também “Fidju Magoado”. Foi na Escola-Piloto que os palcos se abriram para Terezinha, com as crianças a levarem a mensagem da luta contra o colonialismo e pela emancipação de um povo a outros países. Com o grupo de teatro de crianças e jovens, em que cantava e dançava as danças tradicionais da Guiné e de Cabo Verde, além de participar nas peças de teatro, ela actuou, em 1970, no Palácio do Povo em Conacri, tendo na primeira fila a cantora sul-africana Miriam Makeba. Em 1971,72, grupo vai em digressão a Dacar, Ziguinchor e Teranga, no Senegal, Banjul, na Gâmbia, e Nouakchot, Nouadibou e Attar, na Mauritânia. Em 1973, as crianças ficam três meses na Escola-Piloto de Teranga a prepararem a participação num Festival Internacional da Juventude em Berlim, onde Terezinha canta ao lado de Miriam Makeba. De toda esta época, é com muita ternura que recorda Amílcar Cabral. “A Escola-Piloto era a menina dos olhos dele. Era a referência, então ele levava sempre delegações que vinham visitar o PAIGC. Fazia questão de as levar à Escola-Piloto. Mas, além disso, a presença dele era diária. Só mesmo quando não pudesse ir por causa de algum trabalho é que não ia. Ia cedo de manhã e assistia à nossa preparação física e, às vezes, entrava mesmo na competição. Nós tínhamos um jogo do lenço e ele nunca perdia. Era muito bom. Ele aproveitava esses momentos também para nos ensinar outros jogos. Escutava os alunos, perguntava às crianças se estavam a ser bem tratadas, se estavam a ter comida boa. Ele queria mesmo verificar que as crianças estavam a ser bem tratadas, porque, como ele dizia, as crianças eram as flores da revolução e a razão da luta”, recorda, nostálgica, a cantora. A Escola-Piloto ia até ao 5º ano e para continuar os estudos, como muitas outras crianças e jovens guineenses, Terezinha foi enviada com 12 anos para a Escola Internato Internacional Elena Dimitrievna Stásova, na cidade de Yvanovo, a uns 300 quilómetros de Moscovo. Alguns anos antes, Iva Cabral, filha de Amílcar Cabral, também foi para lá estudar e conta-nos esses tempos. “Eu fui com uns oito, nove anos. Aprendíamos em russo, claro, e aprendíamos tudo que os russos aprendiam. E também tínhamos aulas na nossa língua. Era um internato que tinha teatro todos os meses, que todos os fins-de-semana tinha cinema. Era um grande internato”, começa por contar, admitindo que a formação de quadros era mais uma arma da luta. “Era para isso, para se poder tomar nas próprias mãos o destino do país. Quando a luta começou, havia dois engenheiros agrónomos na Guiné e um deles era o meu pai. Quadros superiores, acho que eram uns 14, se não me engano. Por isso, a luta trouxe conhecimento para os povos da Guiné e Cabo Verde. Na independência, já tínhamos vários quadros guineenses e cabo-verdianos que puderam então iniciar a construção do Estado”, acrescenta. Não valia a pena lutar com armas para liderar um país, se não houvesse quadros para o dirigir. Era o que defendia Amílcar Cabral que abriu várias frentes na luta pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Para além do conflito armado na Guiné, da luta subterrânea na clandestinidade e da actividade diplomática, houve uma revolução sociopolítica nas “regiões libertadas” depois do primeiro congresso de Cassacá, em 1964, quando Amílcar Cabral defendeu a sua teoria da criação do "homem novo", emancipado do sistema de ensino e de valores do colonizador. O líder do PAIGC quis mostrar que a luta era feita por “militantes armados e não militares” e ensaiou todo um novo sistema judicial, de saúde, educativo e económico, com escolas, serviços sanitários e hospitais de campanha. Amílcar Cabral dizia que "se pudesse, fazia uma luta só com livros, sem armas", que “não é com tiros que se liberta uma terra” e que “a maior batalha é contra a ignorância e o medo”. Era assim que nascia, em 1964, a Escola-Piloto, instalada em Conacri, para apoiar os filhos dos combatentes e os órfãos de guerra. Descrita como “a menina dos olhos de Amílcar Cabral”, a Escola-Piloto tinha como professores os próprios combatentes. Um deles foi a segunda esposa do líder do PAIGC, Ana Maria Cabral. “Quando eu cheguei, puseram-me a trabalhar na Escola-Piloto. Já havia áreas libertadas, a direcção do PAIGC criou escolas. Todos os que sabiam ler e escrever deveriam ensinar aos que não sabiam. Portanto, o princípio era esse. Fui professora na Escola-Piloto e fizemos os nossos manuais escolares. Claro, tivemos que dar uma volta por vários países, ir ao Senegal, Conacri, a Cuba, inspirar-nos para conseguir fazer os nossos manuais que mostravam a nossa história, a nossa realidade”, conta Ana Maria Cabral, num café em frente ao mar, na cidade da Praia. A partir de 1969, a Escola-Piloto é dirigida por Maria da Luz Boal, ou Lilica Boal, e a sua filha, Sara, também ali estudou e recorda alguns dos episódios que mais a marcaram. “Todos os dias de manhã, acordávamos cedo, tínhamos ginástica e depois do pequeno-almoço tínhamos as aulas. O programa que nós tínhamos de formação tinha disciplinas como a Língua Portuguesa, a História - que, aliás, era ministrada pelo António Mascarenhas Monteiro, que foi Presidente de Cabo Verde. Tínhamos aulas de Matemática, tínhamos Química e Física, tínhamos Ciências Sociais e tínhamos também trabalhos manuais. As refeições eram confeccionadas por nós. Todos os dias havia um grupo de serviço na cozinha que era composto por uma aluna mais velha, que era chefe de cozinha, digamos assim, por duas meninas mais pequenas e dois rapazes. Cabral ia-nos visitar na escola sempre que ele pudesse. Ele tinha muito orgulho em convidar pessoas para ir visitar a Escola-Piloto. Eu lembro-me de termos recebido, por exemplo, a Angela Davis nos anos 70 ou 71”, recorda Sara Boal. Em Conacri também existia um jardim de infância para os órfãos ou filhos dos trabalhadores do partido que viviam na cidade. Na Guiné, nas chamadas “zonas libertadas”, foi montado todo um sistema de ensino. Remonta ao ano lectivo de 1964-1965 a instalação das primeiras escolas nas regiões sob controlo do PAIGC. Em 1972-73, havia 164 escolas de tabanca, tendo em conta que as crianças tinham de andar longos trajectos e enfrentavam riscos de bombardeamentos. Havia, ainda, quatro internatos: dois na frente Norte, um na frente Sul e um no Leste, inicialmente destinados aos filhos dos combatentes falecidos. Para além dos estudos, havia tarefas domésticas e outras ligadas ao trabalho agrícola. Em 1972, o sistema de ensino do PAIGC tinha 250 professores e 20 mil alunos. No inicio dos anos 70, também se criaram novos livros escolares para as crianças do ensino primário. Os manuais foram feitos pelas equipas de professores e impressos em Conacri e na Suécia. Desde 1966, o partido também tinha começado a formar professores para as suas escolas no Centro de Aperfeiçoamento de Professores da Escola-Piloto e, depois, foi criado o Centro Permanente de Professores. Em 1972, metade dos professores das escolas nas regiões libertadas tinham sido formados pelo PAIGC. O pai de Sara Boal, Manuel Boal, angolano, saiu de Portugal com Lilica Boal, cabo-verdiana, em Julho de 1961, na histórica fuga de estudantes africanos. Passou por Léopoldville, onde acabou o curso de medicina, prestou assistência de saúde a refugiados e militou no MPLA. Em 1963, aderiu ao PAIGC, foi para a Guiné e, como era médico, a sua luta foi a da saúde. Começou por ser responsável por um centro de apoio e tratamento a doentes e feridos de guerra em Ziguinchor, no sul do Senegal, de onde se transferiam para os hospitais senegaleses os casos mais graves. Depois, foi enviado para Conacri para racionalizar o apoio logístico dos postos sanitários e dos hospitais de campanha do interior do país. A seguir esteve no hospital de Boké, na Guiné-Conacri. Ele contou-nos os momentos mais difíceis. “O mais difícil foi socorrer populações das zonas libertadas, bombardeadas pela aviação portuguesa e bombardeadas com napalm, gente queimada E nós sem os meios necessários para fazer o essencial. Segundo aspecto difícil era o transporte ao ombro de macas com doentes em quilómetros e quilómetros de distância, antes de serem transportados em ambulâncias até Buké ou da fronteira até Koundara, estes momentos eram dolorosos e difíceis. Nós temos que fazer uma vénia àqueles que faziam esse trabalho: os socorristas, muitas vezes membros da população, que se ofereciam sem qualquer recompensa para fazer esse duro trabalho. Isso nunca me esqueci, nem nunca me esquecerei desses sacrifícios”, conta Manuel Boal. Também a trabalhar nos hospitais, esteve Maria Ilídia Évora, conhecida como Tutú, que tinha sido a única mulher no grupo de cabo-verdianos treinados em Cuba para um eventual desembarque e inicio de luta armada em Cabo Verde. Mas como isso não aconteceu, a sua luta passou a ser também nos cuidados de saúde. É destacada para os hospitais de Boké e Koundara e, mais tarde, foi para a antiga RDA para uma formação mais completa em enfermagem. “Muito difícil Koundara. Ao que parece era um hospital, mas quando eu cheguei lá e vi, eu disse: ‘Hospital? Isso é hospital?' A gente teve mais de uma semana a limpar aquilo para deixar mais ou menos porque em Koundara nem sequer tínhamos água”, conta Maria Ilídia Évora, em sua casa, no Mindelo. Havia ainda muitas outras frentes de batalha, como a formação de uma nova classe politica que dirigiu a luta armada e tomou o poder após a independência nos dois países. Foi aberta, por exemplo, em Conacri, uma escola de formação política. O povo deveria participar em todas as decisões que lhe dissessem respeito e, na Guiné, foram criados comités de tabanca, órgãos políticos de base do PAIGC, mas também tribunais populares ou lojas Armazéns do Povo, onde se fazia um comércio baseado na troca e a população podia adquirir alimentos enlatados, cigarros, tecidos, cobertores, em troca de animais domésticos e arroz lavrado nas bolanhas, por exemplo. Toda esta revolução sociopolítica nas “regiões libertadas” foi reconhecida a nível internacional com, nomeadamente, a visita da missão da ONU às áreas libertadas em 1972. As próprias eleições para a Assembleia Nacional Popular, entre Agosto e Outubro de 1972, com 83 mil eleitores a participarem, contribuíram para esse reconhecimento internacional, e seria essa Assembleia a proclamar, a 24 de Setembro de 1973, a independência da Guiné-Bissau. Uma primeira vitória do PAIGC a que os cabo-verdianos assistiam à espera da sua hora. E essa hora chegaria a 5 de Julho de 1975. Em conclusão, a historiadora Ângela Benoliel Coutinho, autora de “Os Dirigentes do PAIGC – Da Fundação à Ruptura 1956-1980”, sublinha à RFI que “Amílcar Cabral dizia que se a independência não servisse para melhorar a vida das pessoas, não valia a pena lutar pela independência”, ou seja, “o PAIGC tinha como projecto político revolucionar estas sociedades africanas, não era só libertar-se do jugo colonial”. “O PAIGC criou um sistema de educação que não se limitava às escolas, passava pela criação de jornais, pela criação de uma rádio que emitia programas em diversas línguas da Guiné-Bissau, pela projeção de filmes com debates. Portanto, há toda uma educação militante para preparar as pessoas para uma revolução social”, acrescenta Ângela Benoliel Coutinho.
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica uma série de reportagens sobre este tema. Neste 11° episódio, damos voz aos que lutaram para que o dia 5 de Julho de 1975 se concretizasse e ouvimos as memórias dos que viveram essa jornada histórica no Estádio da Várzea, na cidade da Praia. “Determinação”, “esforço”, “táctica” são algumas das palavras escritas à mão na fachada pintada do Estádio Municipal da Várzea, na cidade da Praia. Foi há 50 anos, a 5 de Julho de 1975 que aí se escreveu um novo capítulo na história de Cabo Verde, fruto de “determinação”, “esforço” e “táctica” e que se virou a página do colonialismo português. Às 12h40, o presidente da Assembleia Nacional recém-eleita, Abílio Duarte, declarou “solenemente a independência do Estado de Cabo Verde”. Que recordações guardam desse dia os que lutaram para que ele se concretizasse? Fomos conversar com algumas das pessoas que estavam na cidade da Praia nesse momento histórico. Osvaldo Lopes da Silva tinha integrado a luta armada de libertação nacional como comandante de artilharia e assumiria a pasta da Economia e Finanças no primeiro governo de Cabo Verde. Perante a falta de instalações, ele andou de casa em casa a pedir aos amigos para as emprestarem para se instalarem as delegações estrangeiras convidadas para a cerimónia. “Eu estava ocupadíssimo nesse dia. Tinha responsabilidade de algumas delegações que vinham para o 5 de Julho e as dificuldades eram enormes porque não tínhamos instalações. A Praia que vemos hoje não tem nada, absolutamente nada a ver, com a Praia de 1975. Em 1975, a Praia era o Plateau, nada mais. Todas essas casas, esses bairros todos, Palmarejo, Prainha, isso tudo não existia. E não tínhamos instalações, de forma que eu tive que andar de casa em casa, a pedir aos amigos para cederem as casas para instalar as diferentes delegações e resolver os problemas de logística ou o próprio fornecimento de electricidade”, recorda Osvaldo Lopes da Silva. A 5 de Julho de 1975, Cabo Verde não tinha praticamente nada para receber os convidados, admite também Josefina Chantre, que tinha lutado pela independência no secretariado e nos media do PAIGC. Ela conta que até houve barcos enviados de Cuba para alojar as pessoas. Porém, esse dia era o culminar de uma longa luta de libertação. “Eu pude testemunhar realmente esse grande momento, o 5 de julho de 1975, que é um momento indescritível, o hastear da bandeira… Mas também foi um momento um bocado complicado porque quando chegámos a Cabo Verde, Cabo Verde não tinha praticamente nada, inclusivamente para recebermos os nossos convidados que vinham festejar connosco essa data. Tivemos que recorrer aos nossos amigos. Eu lembro-me que Fidel Castro, de Cuba, mandou-nos barcos hotéis porque não havia alojamentos na Praia para receber os nossos convidados. Toda a população disponibilizou as suas próprias casas para receber os visitantes que vinham congratular-se connosco dessa vitória”, conta Josefina Chantre. A noite anterior à cerimónia no Estádio da Várzea foi de festa, mas depois de tantos anos na luta, incluindo com armas na Guiné, o comandante Silvino da Luz, que assumiria a pasta da Defesa e Segurança no primeiro governo, ficou sem se poder mexer na cama. No próprio dia, levantou-se já bem de saúde para participar em mais um momento histórico. “Estranhamente, na noite de 4 para 5 de Julho fui atacado por um mal-estar indescritível que os médicos depois vieram dizer que era uma questão nervosa, um estourar de uma situação que me pôs na cama. Eu ouvia naquela noite todo o barulho na rua, as pessoas a gritarem, a dançarem, a tabanca a passar, os tambores a ecoarem um pouco por todo o lado. Eu estava na cama, não podia nem me mexer. No dia seguinte, 5 de Julho, eu levantei-me perfeito e fui participar a cerimónia de passagem do poder. O arriar de uma bandeira e o içar da outra. Fui um dos chamados para ler uma mensagem e eu li uma mensagem em nome das Forças Armadas”, lembra Silvino da Luz. Ver a bandeira de Portugal a ser arriada e a de Cabo Verde hasteada era o resultado do “sacrifício de muita luta” e o momento mais feliz da sua vida, recorda Alcides Évora, que trabalhava no secretariado do PAIGC, em Conacri, onde era responsável por tratar de viagens, documentação e logística. “O momento mais feliz da minha vida foi o içar da bandeira, no Estádio da Várzea, a bandeira de Cabo Verde a ser hasteada e, simultaneamente, a bandeira de Portugal a ser arriada. É algo que não consigo exprimir. Foi um ganho de muita luta, de muito sacrifício e, infelizmente, muitos não tiveram a ocasião de assistir a esse acto”, conta Alcides Évora. A 5 de Julho, houve lágrimas de alegria pela independência alcançada, mas também de tristeza. Nas bancadas, de pé, a acompanhar delegações convidadas, Maria Ilídia Évora, a única cabo-verdiana que teve treino militar em Cuba e que depois esteve nos hospitais de Boké e Kundara para curar os feridos de guerra, foi confrontada com uma pergunta que a deixou profundamente magoada até hoje. “O que é que você está a fazer aqui? E eu disse ‘O que é que eu estou a fazer aqui? Eu estou a trabalhar, eu estou a acompanhar duas delegações'. Mas eu fiquei ofendida. Veio a raiva e as lágrimas. O Vasco Cabral ouviu e viu. Ele quis levantar-se para me dar o lugar. Eu disse: ‘Não, Vasco, desculpe, você é um convidado que está aqui, não pode-me dar o seu lugar para eu me sentar. Eu vou ficar lá onde eu estou. Mas eu tive uma crise, uma crise bem forte. Senti-me humilhada. Uma humilhação grande que nunca esqueci”, revela. Gil Querido Varela, que tinha estado preso no Tarrafal por lutar na clandestinidade pela causa da independência e contra o regime colonial-fascista, também se encontrava no Estádio da Várzea. Tinha sido eleito deputado e não esquece a cerimónia nem a festa que tinha começado durante a noite. O momento mais marcante foi o hastear da bandeira da independência. “Eu estava no Estádio da Várzea assistindo à cerimónia da independência. Foi um dia maravilhoso. Já na véspera, de noite, era difícil passar na praça da Praia, estava completamente cheia. Música, uma rapariga pegava-te, dançava e assim se passou a noite. Depois, no Estádio da Várzea, houve um episódio com a bandeira: ao subir, trancou-se, mas veio uma ventania e toda a gente disse: ‘Foi Cabral!' Foi maravilhoso o 5 de Julho”, lembra, emocionado, Gil Querido Varela. O vento e a bandeira de Cabo Verde também comovem, 50 anos depois, Marline Barbosa Almeida, que tinha sido uma das pessoas anónimas a lutar na clandestinidade em Cabo Verde e que tinha enfrentado a polícia política portuguesa. “O que mais me emocionou foi que, na altura em que a bandeira ia subindo, um vento que em Julho não era normal começou a balançar essa bandeira. Até me comovo ainda. Até que ela subisse ao topo. Aquilo foi para mim o ponto mais comovente de 5 de Julho”, recorda. Quem participou na criação da "bandeira da independência" foi Érico Veríssimo Ramos. A bandeira foi usada durante a primeira República (1975-1991) e os principais símbolos eram a concha, as espigas de milho, a estrela negra, a roda dentada e o livro. “Optou-se por se projectar um brasão da República em que entrariam elementos fundamentais que retratassem o país. O milho é a base da alimentação do povo de Cabo Verde e as suas folhas abraçam uma roda dentada numa perspectiva do desenvolvimento futuro do país. Tinha, ao centro, um livro aberto que indicava que era absolutamente necessário que ao povo fosse dada a oportunidade de ter uma educação que levasse as pessoas a participarem na construção do país em termos de desenvolvimento cultural. Tinha uma concha no fundo, que representava o mar. Grosso modo, foi essa a base que foi tida para o desenvolvimento do escudo de Cabo Verde que assenta sobre três cores: o verde, o vermelho e o amarelo, que já vinham da bandeira do PAIGC e que foi também aproveitado para a bandeira da Guiné-Bissau, e a estrela negra que ficava no centro”, descreve. Porém, depois da abertura ao multipartidarismo em 1991 e com o fim do regime de partido único do PAIGC, Cabo Verde mudou os símbolos nacionais e a bandeira foi alterada. Também o hino “Esta É a Nossa Pátria Bem Amada", escrito em 1963 por Amílcar Cabral e que era usado nos dois países, foi substituído pelo “Cântico da Liberdade” que se torna oficial em 1996. A música acompanhou toda a luta e o alvorar da independência, mas há uma que perdura até hoje e que é vista como uma espécie de hino à liberdade. “Labanta Braço” foi composta por Alcides Spencer Brito e imortalizada pela banda "Os Tubarões" no seu primeiro disco, "Pépé Lopi". O compositor contou-nos a história desta canção. “A composição musical 'Labanta Braço' surgiu de uma forma simples e sem preparação musical prévia. Na noite de passagem do dia 4 para 5 de Julho de 1975, o comité local do PAIGC organizou um sarau cultural na Praça da Preguiça, nos Espargos, Ilha do Sal, para comemorar a independência de Cabo Verde. Eu e mais quatro amigos que tocavam vários instrumentos, tínhamos criado uns meses antes um grupo musical que foi baptizado com o nome de Abel Djassi, em homenagem ao nosso herói nacional Amílcar Cabral, cujo pseudónimo literário era Abel Djassi. Nessa noite, depois da meia-noite, durante a actuação do nosso grupo musical, na euforia do estalar dos foguetes e gritos de liberdade, veio-me à mente uma melodia e letra que reproduziam a vivência do momento. Meses depois, numa altura em que os Tubarões estavam de passagem pela Ilha do Sal, a caminho da Holanda, o cantor Ildo Lobo convidou o grupo musical Abel Djassi para actuar com eles. Depois de ter cantado a música 'Labanta Braço' ficaram encantados e pediram a devida autorização para ser gravado no seu primeiro trabalho discográfico a ser feito na Holanda. Logicamente, depois dessa interpretação gravada pelos Tubarões, essa música tornou-se uma das bandeiras que simboliza a cultura musical pós-independência nacional”, descreve Alcides Spencer Brito. E assim "gritou", a 5 de Julho de 1975, o povo independente de Cabo Verde. A cerimónia oficial foi no Estádio da Várzea, na cidade da Praia, mas os “gritos da liberdade” ouviram-se em todo o país e na diáspora e ecoam até hoje. Pode ouvir aqui as entrevistas integrais feitas aos nossos convidados.
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica uma série de reportagens sobre este tema. Neste 12° e último episódio, fomos perguntar a antigos combatentes e também aos filhos e netos da independência como está Cabo Verde e se a luta valeu a pena. “Claro que valeu a pena”, respondem muitos, de imediato, mas há reservas e alertas de que se podia "estar muito melhor”. Cinquenta anos depois da proclamação da independência, como está Cabo Verde? Fomos perguntar a quem lutou pela libertação nacional, como Pedro Pires, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva, Amâncio Lopes, Maria Ilídia Évora, Josefina Chantre, Marline Barbosa Almeida, Alcides Évora, Manuel Boal, Óscar Duarte. Mas também quisemos saber a opinião dos filhos e netos da revolução, como a historiadora Iva Cabral, o rapper Hélio Batalha e os sociólogos Redy Wilson Lima e Roselma Évora. “Não se pode negar que Cabo Verde cresceu em várias áreas”, considera Pedro Pires, o comandante que foi alto dirigente do PAIGC durante a luta de libertação e que depois ascendeu a primeiro-ministro e a Presidente da República. Mas é preciso continuar a trabalhar neste que é um “desafio permanente” de desenvolver o país, alerta. “Valeu a pena” é uma frase que se repete em muitos dos antigos combatentes. Comecemos por Silvino da Luz, que foi combatente e ministro nos primeiros governos de Cabo Verde, lembrando que o país é considerado um exemplo. “Fomos um exemplo nos países que acabavam de chegar à independência e, sobretudo, nas nossas condições. Fomos um exemplo a destacar e temos orgulho nisso.” Josefina Chantre, que tinha como frente de batalha a comunicação social quando trabalhava no secretariado do PAIGC em Conacri, também sublinha que valeu a pena, que voltaria a fazer “a mesma coisa de novo”, que foram feitas várias conquistas em todos os quadrantes, nomeadamente no estatuto da mulher. Mas ainda há desafios. “É gratificante comemorar os 50 anos. Os desafios mantêm-se, sobretudo a nível de mudança de mentalidade, para conseguirmos chegar a um patamar maior, porque estamos sempre a querer mais e melhor para as nossas populações, para as nossas crianças. É um desafio que eu faço aqui: que os nossos jovens realmente se apropriem da nossa história e que continuem o legado de Amílcar Cabral.” Iva Cabral, filha de Amílcar Cabral, o líder da luta de libertação, sublinha que a independência cumpriu o desejo essencial do pai: que o povo cabo-verdiano decida a sua história. “Eu acho que cumpriu muito. Estruturou-se um Estado, a educação para todos, saúde e uma sociedade que está avançando, apesar de todos os males. Mas, principalmente, o meu pai lutou por isso: o poder de construção da sua história e que o povo cabo-verdiano decida qual é a história futura dele. Isso era o principal que o meu pai queria, que os africanos tivessem o direito de construir a sua história.” A maior conquista é a auto-estima do povo cabo-verdiano, avalia outro comandante que foi ministro na primeira República de Cabo Verde, Osvaldo Lopes da Silva, apontando outras conquistas alcançadas em 50 anos. “Haverá sempre motivos de queixa. Haverá sempre razões para dizer que podíamos ter feito mais. Mas a verdade é que Cabo Verde era considerado um país inviável. Hoje em dia, ninguém tem dúvidas de que Cabo Verde é um país viável. Para mim, essa é a maior conquista. A autoestima do cabo-verdiano e a convicção de que podemos ir longe." “Claro que valeu a pena” porque de "ilhas esquecidas" se fez um povo, considera Amâncio Lopes, um dos antigos combatentes que lutou na Guiné pela independência da Guiné e Cabo Verde. “Eu considero que valeu a pena porque Cabo Verde eram umas ilhas pura e simplesmente esquecidas. Tornámo-nos um povo e isso vale a pena ou não vale? Vale." Ver as crianças a saírem alegres e numerosas da escola é a maior vitoria de Maria Ilídia Évora, que durante a luta, depois da formação militar, recebeu formação na área de enfermagem e obstetrícia para poder ajudar as mulheres e as crianças no país independente. “Valeu e muito. Uma coisa que preocupava muito o nosso líder em Cabo Verde e na Guiné era a educação, toda a gente ir para a escola, meninas e rapazes. A preocupação principal dele era ver o povo a desenvolver. Ele dizia: ‘Não há nenhum país no mundo que desenvolve com analfabetos, para o país desenvolver, tem que ter quadros.' Fico radiante quando vejo os alunos a saírem da escola e que não tinham essa possibilidade no tempo colonial. Quando eu vejo as crianças a sairem da escola com aquela alegria toda, eu também fico alegre porque eu digo sacrifiquei-me, mas valeu a pena.” Também o médico Manuel Boal, cuja frente de batalha era a saúde, faz um balanço positivo porque apesar dos parcos recursos, Cabo Verde consegue ser um exemplo em África. “Não há dúvida nenhuma que, 50 anos depois, Cabo Verde é um país que, apesar de pobre em recursos materiais, Cabo Verde consegue ter uma política e um programa de desenvolvimento que é considerado exemplar na região africana. Isso para nós, mostra que a luta valeu a pena.” “Evidentemente que a luta valeu a pena”, resume Alcides Évora que também foi treinado com armas mas acabou por fazer a maior parte da luta ao serviço do secretariado do PAIGC em Conacri. Para ele, Cabo Verde vingou-se de todos os que consideravam que seria um país inviável.“Evidentemente que a luta valeu a pena. Nós quando chegámos a Cabo Verde, os cofres do Estado não tinham absolutamente nada lá dentro. Muitos acharam que Cabo Verde era inviável, dada a sua escassez de chuva e falta de quadros. Muitos estrangeiros que chegavam cá diziam: ‘Vocês estão a tentar o impossível'. Mas esse impossível, tornou-se possível.” A luta também valeu a pena para Óscar Duarte, um dos cabo-verdianos que combatia na clandestinidade e que foi preso no campo de São Nicolau, em Angola, conhecido como "o Tarrafal angolano", mas onde as condições de sobrevivência eram bem piores. Meio século depois, admite que “Cabo Verde deu um pulo grande” e vai continuar a crescer. “Bem, eu penso que Cabo Verde deu um pulo grande porque, como é sabido, Cabo Verde não tem nada em termos de recursos naturais. Na altura, quando nos tornámos independentes, os bancos não tinham dinheiro, portanto não havia praticamente nada. As ajudas começaram a aparecer e foram muito bem empregues. Eu estou contente, a evolução não irá parar e daqui a mais alguns anitos, Cabo Verde vai estar muito melhor ainda." Outra pessoa que tinha estado na clandestinidade em Cabo Verde, mas que não escapou aos temíveis interrogatórios da polícia política, foi Marline Barbosa Almeida. Para ela, 50 anos depois o balanço é também positivo. “Valeu a pena. Claro que valeu a pena. Cabo Verde podia estar melhor, sem dúvida, nós sempre ambicionamos por melhor. Mas eu acho que estamos muito bem e estamos a caminhar para uma vida melhor para todos. Há altos e baixos, como na vida." Os jovens são mais críticos e dizem que “a luta continua”. Claro que o país está melhor, mas é preciso o salto qualitativo para se cumprir Cabral, comenta o sociólogo Redy Wilson Lima. “Falta essa parte qualitativa. Cabo Verde deu um salto enorme, claramente, eu fui crescendo aqui, dá para perceber o progresso que nós fizemos em todos os aspectos. Agora, falta é qualificar este progresso. É isto que falta para realmente realizarmos o sonho de Cabral, que é ter uma terra diferente dentro da nossa terra, que infelizmente ainda não temos. Está melhor, mas ainda faltam desafios. Claro que não se compara com há 50 anos, mas podíamos estar muito, mas muito melhor.” Os ideais dos que lutaram pela libertação dos povos africanos em geral foram traídos, adverte o rapper Hélio Batalha que diz que “o futuro é longe e há que lutar hoje”. “O legado de Amílcar Cabral, 50 anos depois da independência e 52 anos depois da sua morte, eu acho que deixa muito a desejar. Eu acho que o jovem cabo-verdiano conhece muito pouco a história, o legado e todo o projecto que Amílcar Cabral tinha para Cabo Verde, Guiné-Bissau e para a África no geral. Politicamente, há uma dicotomia de visão, o que atrapalha muito a imersão da juventude, o conhecer da juventude. Eu acho que se precisa fazer mais a nível de a nível dos sucessivos governos do PAICV e do MpD para impulsionar ainda mais o que é a nossa história.” Ainda há grandes desafios, mas também houve muitas conquistas a nível social, económico e político, avalia Roselma Evora, pesquisadora em ciência política e sociologia. Uma das principais é ter ultrapassado o problema histórico das fomes. “Cabo Verde é um país que por causa das secas, sofreu muito com a fome. É um país que teve sempre grandes quantidades de gente a morrer por causa de fome, por causa da seca. Teve alturas em que um terço da população morreu. Eu não digo que não continuemos a ter desafios e famílias a passarem por grandes necessidades de colocar comida à mesa, mas foi ultrapassada a questão da segurança alimentar. É uma conquista deste país.” Se não for para beneficiar a população, não vale a pena lutar, considerava Amílcar Cabral. Muito se pode fazer ainda, mas muito também já foi feito. Basta olhar para alguns indicadores. Cinquenta anos depois, Cabo Verde está entre os países africanos com melhor classificação no Índice de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que mede três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde, encontrando-se, em 2025, na posição 135 de 193 países. Em 1975, Cabo Verde tinha uma economia muito frágil e uma população de cerca de 270 mil habitantes. A esperança média de vida era de aproximadamente 63 anos. De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas, em 2023, a população é de 509 mil habitantes, a esperança média de vida, segundo o Banco Mundial, é de 74 anos. No início dos anos 80, o desemprego era massivo e generalizado, em 2025, a taxa de desemprego é de 10,3%, de acordo com o INE. Na altura da independência, a taxa de analfabetismo era de 70%. Em 2023, esse valor era de 11,2%. Hoje em dia, a economia de Cabo Verde é impulsionada pelo turismo, que representa 25% do seu PIB, e o crescimento económico tem sido robusto, com 7,3% em 2024 (INE). Ainda de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas, a taxa de pobreza absoluta em Cabo Verde foi de 24,75% em 2023 e a pobreza extrema, segundo o limiar internacional de 2,15 dólares por dia e por pessoa, era de 2,28% em 2023. Cabo Verde é ainda reconhecido pela sua estabilidade democrática, com transições pacíficas entre os dois principais partidos políticos desde a introdução do multipartidarismo em 1991. Por tudo isto, “valeu a pena”, mas “a luta continua”. Pode ouvir aqui as entrevistas integrais:
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica várias reportagens sobre o tema. Neste nono episódio, falamos da luta política no pós-25 de Abril que se travou dentro e fora de Cabo Verde para culminar no Acordo de Lisboa rumo à independência de 5 de Julho de 1975. Nesta reportagem, vamos ao encontro de Pedro Pires, um dos arquitectos do Acordo de 19 de Dezembro de 1974, e de Silvino da Luz, também dirigente do PAIGC que dirigiu a luta política em Cabo Verde nos meses que se seguiram ao 25 de Abril de 1974. O Acordo de Lisboa foi assinado a 19 de dezembro de 1974 entre o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e o governo Português. O documento representava uma meta histórica na luta de libertação e fixava os termos em que iria decorrer a independência do arquipélago seis meses depois, a 5 de Julho de 1975. Este era o culminar de um intenso processo negocial entre as duas partes e de uma desgastante luta armada, na Guiné- Bissau, de 11 anos. O protocolo de Lisboa surgia meses depois da assinatura dos Acordos de Argel (26 de Agosto), em que o Estado português reconhecia a independência da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente pelo PAIGC, a 24 de Setembro de 1973, reconhecendo também o direito de Cabo Verde à autodeterminação e independência. O Acordo de Lisboa foi rubricado, da parte do PAIGC, por Pedro Pires, Amaro da Luz e José Luís Fernandes Lopes; e, do Estado português, pelos ministros Melo Antunes, Mário Soares e Almeida Santos. O comandante Pedro Pires, hoje com 91 anos, entende que foi feito um “excelente trabalho” por se ter resolvido o conflito e se terem criado condições para relações “amistosas e úteis” com Portugal. “Apesar da nossa inexperiência em matéria de negociações, a nossa inexperiência em matéria de preparação técnica e jurídica para negociações, apesar disso, entendo que fizemos um bom trabalho. Fizemos um excelente trabalho. Está claro que não fizemos o trabalho sozinhos. Tivemos uma assessoria pela qual tenho também muito respeito. Nessa equipa de negociadores, havia duas pessoas que estavam à frente do processo. Eu era o líder ou chefe da delegação, portanto o estratega, e o nosso jurista era o Dr. José Araújo. Eu entendo - é um juízo em causa própria - mas eu entendo que fizemos um bom trabalho porque fizemos duas coisas importantes: resolvemos o conflito, mas, ao mesmo tempo, criámos as condições políticas para o desenvolvimento de relações amistosas com o Estado português, amistosas e úteis com o Estado português”, explica Pedro Pires. Pouco antes do 25 de Abril, em Março de 1974, tinha havido um encontro secreto, em Londres, entre o enviado do governo português, José Manuel Villas-Boas, e três elementos do PAIGC, nomeadamente Silvino da Luz, então representante da Guiné Bissau junto das Nações Unidas. O objectivo era tentar pôr fim à guerra na Guiné, abrir caminho ao reconhecimento da independência desse país, mas a questão de Cabo Verde era colocada na gaveta, conta Silvino da Luz. “Há um facto importantíssimo de que não se fala, um célebre encontro com o enviado de Marcello Caetano em Londres, que teve lugar em Março de 1974. Porque é que não prosseguiu? Porque a nossa delegação continuou as discussões, mas o mandatário não estava legitimado, não tinha instruções para falar de Cabo Verde, só queria falar da Guiné-Bissau e encontrar um meio termo para pôr fim à guerra na Guiné. Quando eu levanto o problema de Cabo Verde, ele diz-me que não tinha instruções, não podia falar sobre isso, e nós, para não dar a missão por falhada, ele aceitou o princípio de regressar a Lisboa, receber instruções, e marcámos a próxima reunião para as primeiras duas semanas de Maio. Isso já não se pôde cumprir porque, entretanto, dá-se o 25 de Abril”, conta Silvino da Luz. Pedro Pires acrescenta, justamente, que “as negociações só foram possíveis com a mudança de regime em Portugal”. “O regime anterior, dirigido por Marcello Caetano e pelo Presidente da República, Américo Tomás, não aceitaria de maneira nenhuma negociar ou, pelo menos, resistiram e não quiseram aceitar. Perderam o poder, foram destituídos e instala-se em Portugal um novo regime e é esse novo regime que decidiu, corajosa mas também inteligentemente, ir para as negociações”, afirma o comandante que tinha participado na luta de libertação de Cabo Verde e Guiné-Bissau e que chefiou a delegação do PAIGC nas conversações de Londres e Argel. O 25 de Abril de 1974 vai acelerar o calendário da história. O Acordo de Lisboa é assinado oito meses depois e, à semelhança dos acordos para os outros territórios independentistas, eles só foram possíveis depois da publicação, a 27 de Julho, em Portugal, da Lei da Descolonização que revogava a norma que impedia o Estado português de qualquer cedência do seu ultramar, conforme a Constituição de 1933. Até à publicação dessa lei, a parte portuguesa tinha dúvidas quanto à forma como realizar essa descolonização: a questão era se deveria consultar as populações, no quadro da chamada autodeterminação dos povos ou se deveria negociar directamente e apenas com os movimentos históricos armados, declarados pela Organização da Unidade Africana e pelas Nações Unidas como os representantes legítimos dos seus povos. De um lado, estavam as forças conservadoras chefiadas pelo general António de Spínola e Presidente da República (a partir de 15 de Maio), que defendera meses antes a tese da federação no livro “Portugal e o futuro”. Do outro, estavam as forças “progressistas” do Movimento das Forças Armadas (MFA), integradas pelos Capitães de Abril. Venceu a tese do MFA no sentido de uma descolonização a mais rápida possível, com a publicação, a 27 de Julho, da Lei da Descolonização. Um diploma que Spínola dirá mais tarde ter sido publicado sem o seu conhecimento prévio e, o mais grave, sem a sua assinatura. Os que hesitavam em entregar o poder ao PAIGC, como Spínola, mas também Mário Soares, argumentavam que do ponto de vista cultural, Cabo Verde estava mais próximo de Portugal que da Guiné e duvidava-se da viabilidade económica do novo Estado, a braços com uma seca desde 1967 e inteiramente dependente de Lisboa para a sua sobrevivência. Por outro lado, no contexto da Guerra Fria, a posição geoestratégica do arquipélago atraía as atenções internacionais e havia quem temesse a sua sovietização. Por isso, o acordo para “Cabo Verde não foi tão fácil como parecia à primeira vista”, admite Pedro Pires. “Cabo Verde não foi tão fácil como parecia à primeira vista porque tendo nós negociado em Argel e fixado algumas ideias no acordo, Cabo Verde era a continuação das negociações de Argel. Ora, só sete meses depois é que conseguimos reiniciar as relações que tinham sido suspensas depois de Argel. Em Cabo Verde entrou um outro factor que durante muito tempo não sei se esteve ausente, mas esteve quase ausente, que é a questão da posição geoestratégica do Cabo Verde. A grande questão dos responsáveis portugueses na altura era: ‘o que é que o PAIGC vai fazer com Cabo Verde? Vai entregar isso aos russos ou aos Soviéticos?'. Porque dentro da campanha de deslegitimação do regime português da altura contra os movimentos de libertação e contra o PAIGC em particular, nós éramos agentes do estrangeiro, serviçais ou serventuários dos comunistas, anticristãos... E subjacente a isso, na mentalidade dos próprios dirigentes ou de alguns dirigentes portugueses, a situação continuava, o risco de nós sermos agentes da Rússia ou da União Soviética e entregássemos essa posição geoestratégica importantíssima ao inimigo ou ao adversário. Isso complicou bastante o processo negocial. Foi precisa muita persistência do nosso lado para vencer esses posicionamentos”, conta o também antigo Presidente de Cabo Verde. Depois de uma guerra de 11 anos, com milhares de mortos, feridos e mutilados, Pedro Pires tinha para a sua orientação, que a soberania da Guiné-Bissau não era negociável e o direito à independência de Cabo Verde também não era negociável. O PAIGC também exigia ser considerado como o único interlocutor válido nos dois territórios. O PAIGC tinha sido o único movimento de libertação a proclamar, ainda que unilateralmente, a independência de uma das colónias portuguesas, a Guiné, e a reivindicar, desde os finais da década de 1960, o controlo de uma parte significativa do território guineense. Porém, não tendo havido luta armada dentro do território de Cabo Verde, os meses que antecederam a proclamação da independência do arquipélago foram de trabalho político intenso e de confronto entre forças políticas nas ilhas. É que se a nível internacional, o PAIGC era reconhecido tanto pela Organização das Nações Unidas (ONU) como pela Organização da Unidade Africana (OUA) como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, dois outros partidos queriam mostrar que existiam e participar no futuro do arquipélago: a União do Povo das Ilhas de Cabo Verde (UPICV) e a União Democrática Cabo Verdiana (UDC). Para Pedro Pires, quem lutou pela independência foi o PAIGC e o resto é “fantasia”: “Lutar pela independência é o PAIGC. O resto é fantasia. Toda a gente quer, mas essa coisa é com provas, não basta dizer 'aqui estou eu', mas é preciso provar se fez alguma coisa que credibilize, que dê legitimidade.” Também a historiadora Ângela Benoliel Coutinho, autora de “Os Dirigentes do PAIGC - Da Fundação à Ruptura 1956-1980” diz que falta documentação para se fundamentar a existência enquanto partidos constituídos da UPICV e da UDC e lembra que “o PAIGC foi reconhecido pela OUA como o único legítimo representante dos cabo-verdianos e também foi reconhecido pelas Nações Unidas no dia 5 de Abril de 1974 como o único legítimo representante dos cabo-verdianos”. “Temos conhecimento da actuação de José André Leitão da Graça. Terá fundado a UPICV - a União dos Povos Independentes de Cabo Verde - que tinha como principal objectivo obter a independência política de Cabo Verde, e não estava de acordo com o PAIGC relativamente ao projecto de unidade com a Guiné-Bissau. E sabemos que José André Leitão da Graça actuou com a sua esposa, viveu muito tempo em Dacar, viveu também no Gana, mas eu desconheço um levantamento de arquivo de documentação relativa a esse partido, se é que foi um partido, porque conhecemos duas pessoas, não é? Fala-se de outros militantes sem que se saiba o que terão feito (…) É-nos difícil para nós, como historiadores, compreender a natureza, a actuação desses movimentos, quando são escassos os próprios depoimentos. Não temos livros de memórias, entrevistas das pessoas que terão estado envolvidas no outro dito partido que terá sido criado depois do 25 de Abril, a UDC. São referidos alguns nomes, mas essas pessoas nunca deram uma entrevista longa. Não temos documentos nenhuns. Temos uma ou outra notícia, um panfleto”, explica à RFI, por telefone, Ângela Benoliel Coutinho. No livro “Cabo Verde – Os Bastidores da Independência”, o jornalista José Vicente Lopes foi pioneiro a falar dessas forças políticas que tentavam rivalizar com o PAIGC. Também o historiador José Augusto Pereira fala disso na obra “O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano”. A UPICV era uma organização fundada em 1959, liderada pelo nacionalista José Leitão da Graça, que teria mais presença em Santiago e um pouco na ilha do Fogo, era a favor da independência mas contra a unidade com a Guiné. A UDC, criada em Maio de 1974, estava localizada em São Vicente e um pouco em Santo Antão, sendo chefiada pelo advogado João Baptista Monteiro e estando inicialmente contra a independência, mas a favor do projecto federativo do general Spínola, ou seja, defendia o estatuto de adjacência para Cabo Verde, como o caso dos Açores e da Madeira. Entre o 25 de Abril e o 19 de Dezembro de 1974, houve meses quentes de intensa luta política. Logo após a Revolução dos Cravos, Silvino da Luz foi o primeiro dirigente do partido a ser enviado para Cabo verde para organizar as estruturas do partido. Ele conta-nos que foi designado como o primeiro responsável do PAIGC a ir para Cabo Verde fazer a luta política e tirar o partido da clandestinidade. Era “o homem do terreno”, como nos conta, em sua casa, no Mindelo. “Nessa altura fui designado como o primeiro responsável do PAIGC que vinha para Cabo Verde para fazer a luta política e tirar o partido da clandestinidade. E depois o 25 de Abril, eu fui o primeiro dirigente a ser enviado e aqui estive até à independência nacional. Criou-se na altura uma comissão de três membros, em Conacri, que eram eu, o Comandante Osvaldo Lopes da Silva e o Comandante Carlos Reis, mas eu era o primeiro responsável, eu é que praticamente dirigia. Regressei à minha terra com essa missão e, felizmente, foi missão cumprida. Eu era o homem encarregado de criar as condições localmente, de fazer a manifestação de forças do PAIGC, tornar o PAIGC o único a ser visto. Eu é que dirigi essa campanha”, descreve. Quanto aos outros partidos, Silvino da Luz afirma que “o UDC foi uma criação do Spínola”. Sobre o UPICV, diz ter “muito respeito” por Leitão da Graça, “um homem sério, nacionalista convicto, africano de gema”, mas que esteve “sempre no exterior, [o partido] era quase um grupo familiar e não tinha bases significativas em Cabo Verde”. Perante a posição de Portugal, o PAIGC vai tentar dominar a situação interna, a nível social e político. Foram criadas milícias pelo PAIGC, integradas também por mulheres, e os quadros do partido regressaram em força para concentrar os seus esforços em Cabo Verde. O braço-de-ferro durou entre Maio e Dezembro e culminou no dia 9 de Dezembro com a tomada, por dirigentes e apoiantes do PAIGC, da Rádio Barlavento que difundia as ideias da UDC, no Mindelo. Por essa altura, eram detidas 70 pessoas para averiguações, a grande maioria era alegadamente da UPICV e da UDC. Eram retidas no temporariamente no reaberto campo do Tarrafal. Silvino da Luz lembra que o PAIGC ainda não estava no poder e diz que o facto de as forças armadas portuguesas as terem colocado no Tarrafal era uma forma de “garantir a segurança” de tanta gente. Reitera, ainda, que essas pessoas estavam guardadas por militares portugueses. Também o jornalista José Vicente Lopes destaca que “a responsabilidade primeira foi das autoridades portuguesas” no que toca aos adversários do PAIGC presos no Tarrafal, admitindo que “são as autoridades portuguesas que acabaram por ajudar o PAIGC a neutralizar os seus adversários políticos”. Com o PAIGC a dominar e a neutralizar as outras forças políticas, a 19 de Dezembro é assinado o Acordo de Lisboa. Determinam-se os termos da transferência da soberania portuguesa para o Estado cabo-verdiano. É estabelecido um governo de transição, chefiado por um alto-comissário português com a categoria de primeiro-ministro, Vicente de Almeida d'Eça, e composto por três ministros escolhidos pelo PAIGC, Carlos Reis, Amaro da Luz e Manuel Faustino, e dois por Portugal. Ficam, também, previstas eleições para uma assembleia constituinte que deveria proclamar a independência a 5 de Julho de 1975. Nesse dia, é proclamada a República de Cabo Verde como Estado Independente e Soberano. Era o fim de cinco séculos de dominação colonial portuguesa. Se quiser aprofundar este assunto, pode ouvir aqui as entrevistas integrais a Pedro Pires e a Silvino da Luz.
Nos 50 anos da independência de Cabo Verde, a RFI publica várias reportagens sobre o tema. Neste oitavo episódio, vamos até ao Museu - Campo de Concentraçao do Tarrafal, na ilha de Santiago, guiados pelos antigos presos políticos Gil Querido Varela e António Pedro da Rosa. Nesta viagem a um passado não muito distante, Gil Querido Varela, 90 anos, e António Pedro da Rosa, 76 anos, levam-nos ao Campo de Concentração do Tarrafal, convertido em museu com dez salas de exposição. Os dois fazem parte dos 20 “nomes da liberdade” inscritos na sala dos presos cabo-verdianos, onde também estão expostas as suas fotografias. “Ao chegar recordamos o que tínhamos passado por aqui. E, às vezes, também procuramos esquecer o que passámos por aqui”, começa por dizer António Pedro da Rosa à chegada ao Campo de Concentração do Tarrafal. Gil Querido Varela completa: “O passado volta, lembro-me do primeiro dia em que aqui cheguei. Até hoje. Lembro-me também do dia 1 de Maio de 74, quando regressei e estavam saindo todos.” A viagem começa na Praia, com António Pedro da Rosa, e pelo caminho vamos buscar o seu amigo até chegarmos à aldeia de Chão Bom, no Tarrafal. Uma hora de carro a percorrer a ilha de Santiago, em Cabo Verde, para chegar ao local que ficou conhecido como “campo da morte lenta”, numa primeira fase, entre 1936 e 1954, quando 32 opositores políticos à ditadura ali morreram perante condições tenebrosas para os que ali foram desterrados de Portugal. Sobre essa altura, Gil Querido Varela cita um preso: “Aqui no campo não se vive, aguarda-se a morte. Lenta, mas certa.” Quando Gil e António aqui chegaram, o campo já tinha mudado de nome. O ditador português, António de Oliveira Salazar, tinha sido obrigado a desactivar a colónia penal por pressão da comunidade internacional, alertada pelos relatos do tratamento desumano dado aos presos e pelas condições do espaço. Com o início das lutas pela independência, o campo reabre, em 1962, para prender anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Passara a ser “Campo de Trabalho de Chão Bom”. Mas de bom pouco havia a não ser os laços que os presos ali criaram e a própria reinvenção da vida. Até 1974, ali estiveram presos 20 cabo-verdianos, 106 angolanos e 100 guineenses. Quatro morreram lá dentro. Gil Querido Varela, conhecido por "Kid Varela", interessou-se pela política desde pequeno, durante uma das grandes fomes de Cabo Verde, em 1947. “Quem viu aquela fome, não podia ficar indiferente”, conta. Em 1965, concorre a um lugar de professor, mas não consegue o emprego por ter uma classificação negativa da polícia política. Nesse ano, adere ao PAIGC num grupo coordenado por Felisberto Vieira Lopes. Junta-se, entretanto, ao grupo de Fernando Tavares, “Toco”, e foi detido depois dele, em 1968, e no mesmo dia que outros membros desse grupo, incluindo o seu parente José Maria Ferreira Querido. Primeiro foi interrogado e torturado na polícia, no Plateau, a seguir foi transferido para a Cadeia Civil da Praia e entrou no Tarrafal em Abril de 1970 com “Toco” e José Querido. Os três foram logo atirados para as celas disciplinares, na obscuridade, e o director da prisão, Eduardo Fontes, conhecido como “Dadinho”, disse-lhe que “escuridão era bom para a vista”. Gil Querido Varela e os seus companheiros eram acusados de “crime contra a segurança interior e exterior do Estado”, nomeadamente por suspeição de estarem a preparar um possível desembarque de elementos de Amílcar Cabral em Cabo Verde. Foram enviados para julgamento em São Vicente, em Outubro, sendo absolvidos por falta de provas e saindo em liberdade a 9 de Janeiro de 1971. Este foi o último julgamento de presos do Tarrafal. “Eles não tinham provas porque não trabalhávamos com papéis”, acrescenta, em referência aos tempos da luta clandestina. António Pedro da Rosa entrou no Tarrafal sem saber por quanto tempo ficaria preso. Ele e vários outros nacionalistas foram detidos no caso Pérola do Oceano, uma operação planeada pela polícia política portuguesa para prender militantes e responsáveis do PAIGC. Um indivíduo tinha fingido ser um elemento do PAIGC vindo da Guiné e convenceu vários militantes de Santa Catarina, em Santiago, que se iria desviar um barco para se juntarem à luta armada na Guiné. No dia da tomada do barco, a 20 de Agosto, António e vários membros do PAIGC são presos, levados para a cidade da Praia, interrogados e torturados. Durante sete meses estiveram às mãos da PIDE e dos seus interrogatórios nocturnos. António Pedro da Rosa foi para o Tarrafal em Fevereiro de 1971 e de lá só saiu três anos depois, a 1 de Maio de 1974. “Veio um senhor chamado José Reis Borges e ele convidou-nos para assaltar o Pérola do Oceano para irmos para o Senegal e, depois, íamos entrar nas fileiras do partido para uma luta da independência na Guiné. Foi assim que viemos parar aqui. Mas o José não era do PAIGC, ele simplesmente veio a mando do próprio Governo português para detectar as pessoas que trabalhavam na clandestinidade pela luta da independência”, lembra. Com a chegada dos presos ligados ao caso do "Pérola do Oceano", o primeiro grupo de cabo-verdianos que lá estava organiza-se para os apoiar nos estudos. As aulas funcionavam na sala comum onde estavam todos os cabo-verdianos. Só tinham direito a sair meia hora de manhã e meia hora à tarde. António Pedro da Rosa conheceu aí referências da luta anticolonial como Lineu Miranda, Luís Fonseca, Carlos Tavares e Jaime Schofield que se ocuparam das aulas. No Tarrafal estudava-se e a luta continuava. Os presos políticos cabo-verdianos aliciaram secretamente para a causa anti-colonialista dois guardas também cabo-verdianos através dos quais conseguiram fazer entrar familiares que lhes passavam informações, mas também um receptor de rádio portátil. Um desses guardas, sobrinho de Gil Querido Varela, ensinou-os até a manejar armas. As escondidas, claro está. “Ele é que nos deu a arma. Ele tirou a munição e entregou-nos a pistola aqui dentro da célula e disse: ‘Quem sabe manejar, ensina os que não sabem.' Assim é que quem não sabia manejar a pistola aprendeu nesta circunstância. Ele trazia consigo um cão que o ajudava se visse o director”, conta António. Gil Querido Varela pensa que foi esse guarda que teria levado o aparelho de rádio para a prisão, o que ajudava a estar a par dos avanços da luta armada na Guiné. Os dois amigos continuam a visita guiada à prisão, como guardiões de um tempo que não querem que seja silenciado. Vamos aos diferentes espaços e vemos a “Holandinha”, uma cela de castigo, minúscula, praticamente sem luz, sem espaço para deitar, em que António tem de baixar a cabeça para estar de pé lá dentro. Esta era a herdeira da ‘frigideira' ou ‘frigorifico', a cela que na primeira fase do campo estava cruelmente exposta ao sol no verão e ao frio no inverno. A “Holandinha” estava construída dentro da arrecadação anexa à cozinha e era uma estrutura de betão dentro de uma sala. “Era só água para beber, uma lata para defecar e fazia tudo aqui, porta fechada. Davam pão e água uma semana ou conforme o castigo. Se fossem três dias, era três dias a pão e água. Recebia uma lata de cinco litros de água, punham aqui”, acrescenta António, sublinhando que nem ele nem o seu camarada tiveram a “holandinha” como castigo. Porém, por se ter recusado a comer pão azedo, uma vez, ficou sem poder ter visitas, recorda. Outra das violências mais difíceis era a fome e a subalimentação. O 25 de Abril só chegou ao Tarrafal a 1 de Maio de 1974, quando uma multidão foi ao campo exigir a libertação de todos os presos políticos. La fora, estava Gil Querido Varela, e lá dentro, António Pedro da Rosa. Os portões abriram-se e os presos foram recebidos em delírio e muitos seguiram em cortejo e festa até à cidade da Praia, a uns 70 quilómetros do Tarrafal, na ponta sul da ilha. “Foi um dia muito feliz”, recorda Gil Varela, enquanto António Pedro da Rosa recorda “a grande emoção” que sentiu. Porém, em Dezembro de 1974, as portas voltaram a fechar-se. No interior ficavam 70 cidadãos cabo-verdianos, adversários do PAIGC e afectos na sua maioria à UDC e à UPICV, formações que não teriam lugar no regime de partido único. Na altura, ainda eram as autoridades portuguesas quem mandava, justificam personalidades do PAIGC. Libertados a pouco e pouco, os últimos presos foram abrangidos por uma amnistia decretada aquando da independência. O campo viria a ser extinto "para sempre" em 19 de Julho de 1975, por uma das primeiras leis de Cabo Verde. No futuro, o Museu do Campo de Concentração do Tarrafal quer ser Património da Humanidade da UNESCO como memória de um dos “cárceres do Império” que tentou condenar ao esquecimento as vozes e as vidas dos resistentes ao colonial-fascismo. A candidatura está a ser trabalhada por Cabo Verde, Portugal, Angola e Guiné-Bissau. No total, entre 1936 e 1974, aqui estiveram encarcerados, na sua maioria sem julgamento, um total de 588 homens, de acordo com o livro “Tarrafal - Campo de Concentração - Presos Políticos e Sociais” de Alfredo Caldeira e João Esteves. Se quiser aprofundar este assunto, pode ouvir aqui a entrevista integral aos nossos dois convidados.
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No décimo quarto episódio desta digressão, evocamos o balanço que é feito hoje pelos herdeiros da luta de libertação. Neste dia 25 de Junho, Moçambique recorda os 50 anos da sua independência. Um aniversário que coincide com um momento político ainda marcado pelas recentes manifestações pós-eleitorais e a sua severa repressão. Num país cuja metade da população tem menos de 15 anos mas onde os recursos económicos não têm sido suficientes para responder a todas as necessidades, aumenta a frustração. Um sentimento que é tanto mais agudo que existe uma percepção nítida de que a corrupção, designadamente o caso das ‘dividas ocultas', tem condicionado o desenvolvimento do país. Uma questão que a RFI abordou com Teresa Boene, pesquisadora do Centro de Integridade Pública. "O nível de corrupção no país tem vindo a crescer. O Índice de Percepção da corrupção indica que de 2014 a 2024, o país regrediu em cerca de seis pontos. E este caso das ‘dívidas ocultas' é um dos maiores casos de corrupção no país, que teve repercussões internacionais e impactos severos na economia moçambicana. Impactos que foram evidentes na dívida pública, que cria uma pressão nas finanças públicas. Nós recentemente também lançamos um artigo que fala sobre o nível da dívida pública no país, que já supera um trilhão de meticais. E a descoberta das ‘dívidas ocultas' também minou a confiança dos credores internacionais, tendo cortado o apoio externo que Moçambique tinha. E isto levou para que o Governo tivesse que financiar o seu défice fiscal através de empréstimos internos, sendo que os encargos associados a esses são maiores. E isso cria uma pressão sobre as finanças públicas", constata a pesquisadora. "Para superar ou ultrapassar a situação que o país está a passar, há uma necessidade de se garantir a segurança e estabilidade. Qualquer economia não prospera em um ambiente de instabilidade e insegurança. Por outro lado, há uma necessidade de se lutar contra a corrupção, que também é um mal que deteriora a economia", preconiza Teresa Boene ao referir que o CIP também insiste na necessidade de se investir na indústria transformadora em Moçambique de modo a impulsionar "uma mais-valia" para os recursos de que o país dispõe. A insegurança que se faz sentir sob diversas formas e nomeadamente em Cabo Delgado, no extremo norte do país, tem condicionado a economia mas igualmente o próprio processo político do país, constata João Feijó, Investigador do Observatório do Meio Rural. "Esse conflito não tem fim à vista. Já passou por várias fases. Houve aquela fase inicial de expansão, depois houve o ataque a Palma, numa altura em que a insurgência controlava distritos inteiros de Mocímboa da Praia, grande parte de Macomia. Depois, a entrada dos ruandeses significou uma mudança de ciclo. Passaram a empurrar a insurgência de volta para as matas. Conseguiram circunscrevê-los mais ou menos em Macomia, mas não conseguiram derrotá-los. A insurgência consegue-se desdobrar e fazer ataques isolados. (…) Ali é preciso reformas políticas, mas que o governo insiste em negar. E então continuamos há quase oito anos neste conflito, neste impasse", lamenta o estudioso. Dércio Alfazema, activista moçambicano dos Direitos Humanos, considera que o país tem tido dificuldade em abstrair-se dos efeitos de 50 anos quase contínuos de conflitos e crises. "É muito difícil nós nos colocarmos como um exemplo do respeito dos Direitos Humanos num contexto em que estamos há 50 anos em ciclos permanentes de violência e violência extrema » refere o activista para quem « a questão dos Direitos Humanos ainda é um desafio. Constitucionalmente está estabelecido. Os políticos, sobretudo o Presidente da República, o actual, têm estado recorrentemente a chamar a atenção, mesmo para os militares, nas zonas de conflito, como Cabo Delgado, onde temos a situação de terrorismo. Ele tem estado a chamar a atenção para se respeitar a questão dos Direitos Humanos, mas assegurar que na íntegra, são preservados, é difícil não só para Moçambique como também para outras partes do mundo onde nós temos e temos estado a acompanhar essas situações de conflito", diz Dércio Alfazema. Questionado sobre a desconfiança induzida no seio da sociedade moçambicana por processos eleitorais marcados por suspeitas e fraude e violências, o activista considera que "ainda não há uma estrutura que garanta a confiança tanto dos actores políticos, do cidadão, da população, como também das próprias instituições. As instituições também têm documentado e nós vimos nessas últimas eleições o Conselho Constitucional a reportar que alguns partidos trouxeram editais falsos, mas reivindicavam o resultado com base nesses editais falsos. Então, ainda há muita falta de sensibilidade em relação aos processos políticos eleitorais e como é que estes processos contribuem para a forma como a gente se relaciona e para a estabilidade do país". Na óptica de João Feijó, assiste-se nestes últimos anos a uma tentativa de centralização do poder e o diálogo político em curso é uma miragem. "Desde o novo milénio até hoje, estamos a acelerar novamente as tentativas de centralização, de partidarização do Estado por via a garantir aquilo que se chama, na linguagem sociológica, de acumulação primitiva do capital", considera o estudioso que ao recordar que frequentemente surge a interrogação "se a oposição está preparada para governar". Na verdade, diz João Feijó, "a questão que se deve colocar é ao contrário : se a Frelimo está preparada para sair do poder. Neste momento que estamos agora a ter é um momento de fim de ciclo, de ilegitimidade crescente da Frelimo, em virtude das políticas que foram desencadeadas nos últimos anos, que fizeram aumentar a pobreza que de 2014-2015 passou de 47% para 60%. E estamos a falar de cerca de 20 milhões de pobres neste país". Céptico, o sociólogo também o é relativamente ao processo de diálogo encaminhado nestes últimos meses pelo partido no poder com restantes forças de oposição. "Isto é um teatrinho. É uma encenação para dar a ideia de que existe diálogo. Porque o principal actor que deveria participar no diálogo é o candidato mais votado pela oposição, que era Venâncio Mondlane, que está literalmente excluído deste acordo e nem sequer tem lá alguém que o represente. Então qualquer tentativa de diálogo alargado que não inclua este actor, aos olhos da população, é um acto ridículo. Em segundo lugar, porque ao mesmo tempo que se fala em diálogo, há toda uma perseguição política em relação a Venâncio Mondlane, com vista a fragilizá-lo politicamente", denuncia João Feijó. No mesmo sentido, a activista social Quitéria Guirengane não esconde a sua preocupação e considera que o país "dorme sobre uma bomba-relógio". "Assusta-me o facto de nós dormirmos por cima de uma bomba relógio, ainda que seja louvável que as partes todas estejam num esforço de diálogo. Também me preocupa que ainda não se sinta esforço para a reconciliação e para a reparação. Nós precisamos de uma justiça restauradora. E quando eu olho, eu sinto um pouco de vergonha e embaraço em relação a todas as famílias que dia e noite ligavam desde Outubro à procura de socorro", considera a militante feminista que ao evocar o processo de diálogo, diz que "criou algum alento sob o ponto de vista de que sairiam das celas os jovens presos políticos. No entanto, continuaram a prender mais. Continua a caça às bruxas nocturna". "Não é este Moçambique que nós sonhamos. Por muito divididos que a gente esteja, precisamos de pensar em construir mais pontes do que fronteiras. Precisamos pensar como nós nos habilitamos, porque nos últimos meses nos tornamos uma cidade excessivamente violenta", conclui a activista que esteve muito presente nestes últimos meses, prestando apoio aos manifestantes presos e seus familiares. Aludindo igualmente à frustração que se expressou nas marchas no final do ano passado e no começo de 2025, o antropólogo Omar Ribeiro Thomaz da Universidade de Campinas no Brasil recorda as palavras que ouviu de um jovem estudante da cidade da Beira, aquando de uma pesquisa de terreno em 2015. "Quando os portugueses estavam aqui, eles diziam que o colonialismo era para sempre. Aí veio a revolução e acabou com o colonialismo. Aí a revolução diz que o socialismo era para sempre. Mas aí morreu o Samora, veio o plano de reajuste estrutural e aí veio o fim do socialismo e começou o liberalismo. Aí o liberalismo virou neoliberalismo. Conta para mim, professor, quando é que o liberalismo acaba e o que vem depois?", cita o professor universitário rematando que "existe uma percepção na população moçambicana de que essa situação de degradação não pode ser para sempre e que isso vai ter que mudar". Podem ouvir os nossos entrevistados na íntegra aqui: A RFI conclui com uma palavra de agradecimento a todas as pessoas que participaram com o seu testemunho e as suas sugestões na elaboração desta série. Um grande obrigada também ao correspondente da RFI em Maputo, Orfeu Lisboa, a Osvaldo Zandamela e a Erwan Rome que nos acompanharam nesta digressão.
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No décimo terceiro episódio desta digressão, evocamos o balanço que é feito hoje pelos protagonistas, contemporâneos e estudiosos da luta de libertação. Neste dia 25 de Junho, Moçambique recorda os 50 anos da sua independência. 50 anos que foram marcados em grande parte pela adversidade, nomeadamente com a guerra civil. Apesar dos diversos obstáculos que o país tem encontrado, o antigo Presidente Joaquim Chissano prefere ver a partir de que ponto Moçambique partiu. "Olhando para toda essa história, olho para o programa que nós nos propusemos. Afinal, não é muito diferente do programa da Frelimo, em que a educação foi posta como uma prioridade, como uma arma para a nossa libertação, mas também para o nosso desenvolvimento. Então, devo dizer que nós tínhamos uma altíssima taxa de analfabetismo, acima de 90%, e hoje a taxa de analfabetismo decresceu de uma maneira radical. E em segundo lugar, podemos medir talvez o nosso desenvolvimento pelo número de universidades que nós temos, que está a dar quase mais do que uma universidade por ano. Então, em 50 anos, já temos mais de 50 instituições de ensino superior. Pode haver algumas universidades que têm deficiências, mas já temos a nossa gente que discute de maneira diferente. Vamos pegar na área da mulher. A mulher que nós encontramos na altura da independência, não é a mulher que nós estamos a ver hoje, livre, pronta para desafiar qualquer cargo que se lhe dê. Há muitas mulheres agora formadas, apesar de que ainda existem tabus e culturas que inibem a mulher de se desenvolver com maior rapidez. Mas para mim, aquilo que eu vejo é surpreendente. Mas para quem não sabe de onde viemos, donde começamos, realmente acha pouco aquilo que se fez. Eu não acho pouco. Sei que é muito mais o que temos pela frente, porque também a nossa população cresce, cresce de uma maneira galopante, assustadora até. Mesmo assim, temos os termos de comparação. Se formos comparar com outros países africanos que não tiveram uma luta armada de libertação nacional, que não partiram do grau de analfabetismo que nós tínhamos, se formos comparados no desenvolvimento com países que não tiveram guerra de 16 anos, porque nestes 50 anos, temos 16 anos em que estávamos quase que paralisados. E há países que se comparam, dizem que Moçambique está na cauda, mas são países que nunca tiveram o que nós tivemos", insiste o antigo Presidente de Moçambique. Apesar de admitir que existem desafios por ultrapassar, Joaquim Chissano também considera que tem havido aproveitamento político dos problemas que os moçambicamos enfrentam. "Evidentemente, todas as forças políticas conhecem a nossa. Portanto, ainda não erradicamos toda a pobreza, ainda temos muita pobreza, ainda temos analfabetismo e este aumento da população. Portanto, há carências. Para resumir, eu costumo responder a isso que todos conhecemos os problemas que existem no nosso país e que agora temos que nos unir para começarmos a encontrar as soluções. As reivindicações que houve, todos os distúrbios que houve é porque houve a agitação que se apoiava nesta pobreza. Alguns dizem que a pobreza é que cria os distúrbios. Não. A pobreza existiu durante muito tempo, até que apareceu gente que quis utilizar os pobres em seu próprio benefício", considera o antigo chefe de Estado. Óscar Monteiro, membro sénior da Frelimo, também reconhece dificuldades, mas vinca que a conquista da independência por Moçambique, representou a libertação da África Austral. "Começamos a luta de libertação e proclamamos a independência, estendendo as fronteiras da liberdade do Rovuma até ao rio Maputo. Isto tudo era uma zona de dominação branca. Era uma massa consistente, na qual Portugal era um pequeno actor muito estendido em territórios mas fácil de destruir. Mas tínhamos a Rodésia, que era um país sólido. E tínhamos a África do Sul, que é um país extremamente forte, continua a ser um país forte, apesar de todas as dificuldades. E a independência de Moçambique soa o clarim da libertação da África Austral. Esta é a maior contribuição. E se me pergunta como olha este tempo, eu digo sim, são 50 anos para libertar a África Austral, não apenas para libertar Moçambique. Portanto, estes pequenos e grandes fenómenos, estes deslizes, estes erros, alguns crimes, têm que ser vistos nesta perspectiva de que nós estávamos com um objectivo maior, que é a libertação da África Austral", diz Óscar Monteiro. Ao comentar os recentes distúrbios pós-eleitorais ocorridos no país, com populações que, não estando forçosamente alinhadas com nenhum partido político, reclamam melhores condições, o responsável político considera que "não tem muita moral quem andou a queimar escolas vir dizer que as escolas não funcionam. E outros grupos que emergem agora na política têm todo o direito de fazer reclamações, mas têm que reconhecer que este país pagou muito caro no passado e continua a pagar os efeitos dessa destruição. Portanto, não é possível hoje, com as restrições financeiras no quadro da economia em que estamos integrados, continuar a providenciar os serviços de saúde que foram orgulho deste país. Não é possível esperar que hoje, depois de tantas destruições, seja possível continuar a fornecer todos estes serviços". Apesar de também ver desafios, Yolanda Mussá, presidente da associação da geração 8 de Março, mostra-se confiante. "Qualquer país tem os seus desafios e acho que Moçambique está a gerir muito bem os seus desafios. São apenas 50 anos de independência. Não gosto de fazer comparações, mas durante esses 50 anos, nós conseguimos alcançar, sobretudo no que diz respeito aos Direitos Humanos, a democracia. Se nós conseguimos alcançar estes níveis é porque, de facto, houve um grande empenho da nossa parte. Comparando aquilo que aconteceu nos últimos anos da dominação colonial em 1973-74 e aquilo que está a acontecer agora, nós vamos para as aldeias, nós encontramos crianças de uma maneira massiva a irem para a escola. Significa que um dos direitos fundamentais, que é o da educação, está a ser salvaguardado em Moçambique. Se nós olharmos também para aquilo que é a nossa rede sanitária, nós vamos verificar que em zonas onde não havia centros de saúde, onde não havia unidades sanitárias em 1975, hoje já existem centros de saúde, já existem unidades sanitárias. O resto, no que diz respeito à melhoria da qualidade dos serviços prestados, é um desafio, não só no que diz respeito à saúde, como no que diz respeito à educação e em todas as outras áreas de desenvolvimento. Mas é preciso nós termos a coragem de valorizar as coisas boas que nós, os moçambicanos, conquistámos durante os 50 anos da nossa independência", considera a dirigente associativa. Balanço mais céptico é feito por António Muchanga, antigo deputado da Renamo, na oposição. "Se nós formos a comparar os recursos que Moçambique tem, com Timor Leste, por exemplo, atendendo e considerando o tempo que Timor Leste ganha a sua independência, e considerando que nós tivemos que mandar pessoas de Moçambique para Timor Leste ajudar a organizar o Estado, sobretudo os tribunais eleitorais e mais algumas coisas, eu acho que nós perdemos muito. Poderíamos ter marcado passos bem firmes e seguros, se não tivéssemos caído nesta tentação de abraçarmos o comunismo nos primeiros anos da independência nacional. Depois, tivemos o problema de não perceber melhor que os que estavam a fazer guerra eram moçambicanos. Tentou se acoplar esta marca aos colonialistas portugueses, aos fascistas de Marcello Caetano, gente enviada por Ian Smith. E isto aqui atrasou muito o país porque em 1982-83, o mais tardar até 1984, poderíamos ter conseguido assinar o acordo de paz. E teríamos tido menos dez anos de guerra. Só quando o regime começou a sentir que já não tinha como e que a guerra estava aqui, na entrada das grandes cidades, muita coisa já estava estragada. Guerra é guerra. Estamos a ver hoje, portanto, retrocedemos muito. Mas por razões óbvias, por conveniência de quem está a governar, em aceitar que tínhamos uma verdadeira razão. Mesmo agora, estamos a continuar a ter muitos problemas porque a tendência de provocar os partidos e sobretudo a Renamo para ver se continua a fazer guerra. Mas depois apercebemo-nos que é uma maneira que o regime encontrou para poder aproveitar e roubar os recursos do país e justificar isso em nome da guerra", declara António Muchanga. Lutero Simango, líder do MDM, igualmente na oposição, considera que é necessário reflectir sobre o caminho percorrido. "Essa reflexão é muito necessária para que os erros não possam ser repetidos. Muitas vezes, quando nós falamos dessa reflexão, nos levam a querer mostrar que houve a construção desta ou daquela infraestrutura e etc. Mas o problema é isso. Nós podemos investir tanto num país, podemos criar as tais condições que eles dizem e depois, temos que questionar: de tudo isto, quem está a beneficiar? Porque a pobreza em Moçambique está a aumentar, o fosso entre os que têm e os que não têm, está a aumentar. Continuamos a ter uma juventude a ser marginalizada. E o nosso povo, cada dia que passa, está perdendo o poder de compra. E quando olhamos para os níveis do ensino no nosso sistema de educação, vamos verificar que a qualidade tende a reduzir. Hoje, para eu ser operado no hospital, tenho que esperar três, quatro, cinco, seis, sete meses. E muitas vezes também o mesmo hospital não tem medicamentos. Depois, quando tu queres recorrer a um sistema privado de saúde, vais verificar que os preços praticados estão fora dos padrões normais. Portanto, aqui podemos concluir que o nosso povo não se sente realizado. A realização de um povo passa necessariamente na existência de condições sociais, o acesso à educação, o acesso à saúde e também o acesso à comida, a alimentação. Nós temos hoje famílias que não sabem o que vão ter hoje para as três refeições. E nem sabem o que vão dar para alimentar os seus filhos no dia seguinte. Isso acontece porquê? Porque ao longo de 50 anos há uma desgovernação total. E não podemos esquecer que a corrupção generalizada está capturando o nosso Estado. E o nosso próprio Estado também não está a conseguir chegar em todo o canto do país. Eu posso ir para algumas províncias e para algumas localidades. Não vou sentir a presença do Estado", considera Lutero Simango. Questionado sobre a situação vivenciada desde 2017 em Cabo Delgado, o responsável político preconiza o diálogo, dizendo acreditar que "se aquele conflito continuar por mais dois, três ou quatro anos, ele vai se transformar num movimento de reivindicação política". Daí "é importante e urgente que as autoridades usem toda a inteligência para buscar a motivação desta revolta e também criar condições socioeconómicas para aquela população", conclui Lutero Simango. Fazendo igualmente a síntese destes 50 anos que passaram, o antropólogo Omar Ribeiro Thomaz da Universidade de Campinas no Brasil, apela a uma "celebração crítica". "A gente não pode deixar de lado que a revolução também foi marcada por um grande entusiasmo. Ou seja, paradoxalmente a esses expedientes autoritários, a própria Frelimo era objecto de imensa legitimidade junto à população. O Samora era um líder carismático e pelo menos uma parte da população pensava que valia a pena passar por esses imensos sacrifícios, se fosse para levar adiante um processo efectivamente revolucionário que promovesse uma melhoria da qualidade de vida da população moçambicana. Então nós vamos ter isso no primeiro período revolucionário, pelo menos até à morte do Presidente Samora. (…) No fim do regime de partido único em 1990 e 92, os acordos de paz, em 94, as primeiras eleições multipartidárias, a gente vai ter um período de grande entusiasmo da população moçambicana. Agora nós temos paz, Agora nós podemos trabalhar e agora nós podemos desenvolver o país. (…) Mas tem dois elementos do lado político. Eu acho que o assassinato do Carlos Cardoso no início dos anos 2000, o assassinato do Siba Siba no início dos anos 2000 e o massacre de Montepuez no início dos anos 2000, deixa claro que, do ponto de vista político, a Frelimo não admitia, embora nós tivéssemos uma situação de pluripartidarismo e de uma suposta imprensa livre, a Frelimo caminhava numa direcção francamente autoritária de não admitir formas de oposição mais incisivas", analisa o investigador. "A partir de 2004-2005, nós vamos ter os grandes projectos de desenvolvimento, grandes empresas, inclusive empresas brasileiras, vão se estabelecer em Moçambique. E novamente, você vai gerar grandes empresas de construção civil, empresas de exploração de rubi no norte de Moçambique, de carvão mineral na região central em Tete. O projecto Pró-Savana, que vai ser levado adiante, inclusive por brasileiros, que era a ideia de você transformar a savana numa espécie de grande plantação de soja, como foi feito na região Centro-Oeste do Brasil. Isso é vivido de maneira paradoxal pela população. Quer dizer, de um lado, evidentemente, esse tipo de transformação gera uma certa ansiedade, mas, por outro lado, a população se questiona afinal de contas, quando é que chega a riqueza? E de facto, as coisas não só não melhoram, como você começa a ter cada vez mais em Moçambique uma concentração de riqueza brutal, o surgimento de um novo riquismo absolutamente assustador", constata Omar Ribeiro Thomaz. Neste contexto, ao considerar que Moçambique se encontra num novo momento da sua História caracterizado por "uma grande frustração", o estudioso sublinha que "as independências dos países africanos devem ser celebradas. Nós devemos lembrar os pais fundadores de cada um desses países, com todas as suas contradições" e que "a independência foi uma conquista, não há a menor dúvida", mas que "ela não acabou em si mesma. Ela produziu determinados processos extremamente violentos também" e que é necessário "fazer uma celebração crítica de tudo isso que vem acontecendo em Moçambique".
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No décimo segundo episódio desta digressão, evocamos a luta de libertação e a independência de Moçambique vista a partir de Portugal. A guerra de libertação e a proclamação da independência foram um sismo na História de Moçambique mas também de Portugal que a partir de 1975 reintegrou as suas fronteiras iniciais, na periferia da Europa. Membro eminente da diáspora moçambicana em Lisboa, o artista Lívio de Morais viveu boa parte da sua vida nesse Portugal já sem império. Chegado em 1971 para estudar Belas-Artes, ele fundou a sua família e foi docente na zona de Lisboa. Em entrevista à RFI, ele começou por contar os seus primeiros tempos difíceis, como líder estudantil e militante independentista, enfrentando o racismo e o medo de ser preso pela PIDE, a polícia política. "Eu estava na associação como um dos dirigentes da Associação da Escola de Belas Artes e nós éramos rebeldes. E através da arte é possível fazer política. Eu desconfiava. Tive colegas, um de Cabo Verde, outro não sei de onde que fugiram. Foram para a Holanda, porque o ambiente não estava nada bom. Os professores tinham tendência a querer chumbar-nos. Sentia se o racismo dentro da faculdade e nós normalmente não comíamos dentro da faculdade e íamos andando de um lado para o outro. Procurávamos onde havia sossego e paz. Juntávamo-nos e falávamos sempre da política", começa por contar o artista. "O que era incómodo era poder se falar na luta de libertação. Porque aqui a Frelimo era considerada terrorista. Portanto, eu não podia declarar-me ‘terrorista', ou seja, da Frelimo. E, portanto, era apolítico por fora. Mas entre nós, africanos, não tínhamos outra linguagem" recorda o antigo professor que ao lembrar-se da atmosfera vivenciada aquando do 25 de Abril de 1974, fala de um sentimento de "inebriamento". "Estivemos a tocar tambores -e eu ainda tenho o meu tambor que andei a tocar- contentes, confiantes que estava tudo bem e que tudo ia resultar. Claro, havia uma certa dúvida sobre o fim da guerra, se até ao ano seguinte, na independência, se não teria um retorno, porque conforme a História, as coisas podem dar em golpe de estado", recorda Lívio de Morais referindo contudo nunca ter pensado em regressar ao seu país por considerar ser mais útil permanecendo no seio da Diáspora. Olhando para o seu país de longe, o pintor e escultor mostra-se algo crítico relativamente às escolhas que têm sido feitas. "Às vezes fico baralhado. Não sei se tenho que falar ou não, porque coisas absurdas acontecem. Todo o mal de Moçambique tem a ver com a administração da economia. Tem a ver com a distribuição da riqueza. Tem a ver com o desenvolvimento regional, porque há uma concentração em Maputo. A primeira coisa que Moçambique deveria fazer era efectivamente espalhar esse desenvolvimento, essa riqueza de norte a sul, com certo equilíbrio", considera Lívio de Morais. Relativamente a Portugal e à forma como é encarado, o artista que é muito activo na vida da zona onde reside, nas imediações de Lisboa, fala dos preconceitos que ainda podem subsistir. "O racismo é camuflado, está na mente das pessoas, não é aberto como era no tempo que eu estava como estudante. Quando eu estava a namorar, em 1976. Eram palavrões de todo o lado, como se tivesse cometido algum erro. Mas agora é normal, porque Portugal tem muitas culturas. Eu, pelo menos procuro lapidar logo que aparece uma cena dessas. A ideia que há sobre o africano na Europa. Os meus filhos são portugueses, mas têm a mistura da cor da mãe portuguesa e a mistura da cor do pai, que é moçambicano. O mundo tem que ser assim", diz Lívio de Morais que sobre o crescimento da extrema-direita em Portugal considera que "é uma vitória do racismo", mas que ele não vai prevalecer. "Não vão conseguir acabar com os africanos, com os indianos ou com os cidadãos do Bangladeche. Como nós, em Moçambique, não estamos interessados em acabar com os que nos querem. Quem vai a Moçambique, sendo portugueses, ingleses, franceses, etc, nós aceitamos porque é um meio de investimento, de desenvolvimento, de turismo, de bom conviver, da paz e vai ao encontro dos Direitos Humanos. O que dizem os Direitos Humanos? O ser humano é livre de escolher onde se sente seguro, onde se sente melhor para sua sobrevivência e vivência. Queiramos ou não queiramos, vamos nos aperceber que dentro de dez, 20, 30 anos, não haverá essa diferença que existia no passado dos pretos, dos brancos, dos amarelos", lança Lívio de Morais. 50 anos depois de Moçambique e de outros países de África Lusófona acederem à independência, falta ainda mudar a percepção desse passado em Portugal, apesar de ter existido um consenso contra a guerra colonial no seio da população portuguesa, diz Bernardo Pinto da Cruz, investigador especializado nesse período ligado à Universidade Nova de Lisboa. "Os estudos que existem acerca da opinião pública no último período do imperialismo português apontam que havia, de facto, um consenso contra a guerra colonial. Consenso esse que se refletia na composição das Forças Armadas e, depois do Movimento das Forças Armadas, que vieram a dar o 25 de Abril de 1974. Todavia, nós sabemos que grande parte da população era analfabeta e a iliteracia pesava muito num contexto em que a censura era recorrente, quotidiana", começa por constatar o estudioso. Sobre a forma como se apresenta a narrativa em torno da descolonização após o 25 de Abril, o investigador considera que "há duas fases distintas". "Até 1994-95, há uma espécie de cristalização de um tabu acerca da guerra colonial. Um tabu marcado sobretudo por um imaginário da esquerda. E, portanto, aqui temos um duplo legado. Portanto, o legado da descolonização é o legado da transição para a democracia. Depois, em 1994-95, dá-se uma explosão da memória. Pelo menos é assim que os historiadores e os cientistas políticos falam acerca desse período. Explosão da memória, em que a esse imaginário de esquerda começa a ser contraposto um imaginário de direita em que se começa a reequacionar a bondade da descolonização, o próprio processo de descolonização. E essa fase segue, grosso modo, uma desmobilização do tema da descolonização como um tema quente que era debatido no Parlamento português", diz o especialista em ciência política. Questionado sobre alguns dos efeitos da descolonização em Portugal, nomeadamente o regresso dos chamados ‘retornados' ao país dos seus antepassados, Bernardo Pinto da Cruz baseia-se nas conclusões de um livro recente da autoria do investigador João Pedro Jorge. "Foram encarados com suspeição por parte dos portugueses, também por parte de uma certa esquerda que temia que os ‘retornados' viessem engrossar as fileiras de apoio aos movimentos reacionários. Mas o que nós hoje sabemos é que foram uma força muitíssimo importante para a consolidação do Estado providência português, isto é, medidas assistencialistas de bem-estar. Os ‘retornados' foram uma força viva que permitiu ao Estado português reorientar-se de uma ditadura para a democracia", diz o universitário ao referir que o preconceito que existia em relação a essa categoria da população portuguesa tende agora a diluir-se. Sobre os militares que combateram nas diversas frentes na Guiné, em Moçambique e Angola, o pesquisador dá conta das contradições às quais ele e seus pares têm de fazer frente. "Temos aqui um problema para fazer investigação. Por um lado, honrar a memória é também honrar as necessidades que esses veteranos de guerra têm hoje em dia. (…) Por outro lado, nós temos de encarar de frente o problema dos crimes de guerra. E quando queremos encarar de frente os crimes de guerra, nós sabemos que eventualmente vamos estar a mexer não só com as memórias dessas pessoas, mas também com as suas famílias. Acabaremos sempre por contribuir também para a estigmatização dessas pessoas", refere Bernardo Pinto da Cruz. Evocando o caso ainda mais delicado dos africanos que combateram sob bandeira portuguesa, o especialista da descolonização diz que a única forma de lidar com com esse "dualismo em que se quer encerrar as pessoas é, talvez recuperarmos o papel do Estado português, das Forças Armadas portuguesas no aliciamento, no recrutamento forçado dessas pessoas". Por fim, ao comentar a crescente tentação que existe em Portugal de "branquear" o seu passado colonial, Bernardo Pinto da Cruz refere que "a visão mais corrente dentro da academia portuguesa é a da necessidade de descolonizar as mentes. E isso é sobretudo verbalizado por sociólogos do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, que fizeram um trabalho importantíssimo acerca do que se costuma chamar de ‘amnésia histórica'. Essa ‘amnésia histórica ‘a propósito do colonialismo seria, no entender desses investigadores, um resultado do enorme impacto da ideologia oficial do Estado Novo que é o luso-tropicalismo. E esse luso-tropicalismo ainda hoje perdura nas mentes dos portugueses e, portanto, nós precisamos de descolonizar as mentes dos portugueses. Eu sou muito céptico a respeito disso. Eu reconheço o importantíssimo trabalho destes investigadores, mas eu sou muito céptico acerca do impacto que uma ideologia pode ter na prática para acreditarem a despeito de toda a prova empírica em contrário, de que Portugal não era um país racista. As últimas sondagens, por exemplo, do ano passado, a respeito dos 50 anos do 25 de Abril, mostram justamente isso : mais de metade dos portugueses acredita que o desenvolvimento dos povos foi a característica-chave do colonialismo português. Eu não discuto isso. Agora, dizer que isso está correlacionado a uma ‘amnésia histórica', eu não acredito. As pessoas sentem-se mais à vontade para falar, até porque têm uma oferta partidária hoje que lhes permite falar muito mais abertamente desse tópico", considera o estudioso acerca do racismo em Portugal. Podem ouvir os nossos entrevistados na íntegra aqui: Podem também ver aqui algumas das obras do artista moçambicano Lívio de Morais, recentemente expostas no Centro Cultural Lívio de Morais, na zona de Sintra, no âmbito da celebração dos 50 anos da independência de Moçambique:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No décimo primeiro episódio desta digressão, evocamos as circunstâncias do surgimento da Renamo. A obtenção da independência não significou a paz para Moçambique. Para além de países segregacionistas como a África do Sul e a antiga Rodésia verem com maus olhos as instauração de um sistema político socialista em Moçambique, no interior do país, várias vozes se insurgiram contra o caminho que estava a ser tomado pelo país, designadamente no que tange ao monopartidarismo. Foi neste contexto que surgiu em 1975, a Resistência Nacional de Moçambique, Renamo, um movimento inicialmente dirigido por um dissidente da Frelimo, André Matsangaíssa. Após a morte deste último em 1979, já durante a guerra civil, Afonso Dhlakama passa a liderar a resistência. António Muchanga, militante e antigo deputado da Renamo evoca o nascimento deste movimento. "A Renamo nasce da revolta do povo moçambicano quando viu que as suas aspirações estavam adiadas. Como sabem, a Frelimo é o resultado da fusão de três movimentos. (…) Segundo os historiadores independentes, não esses que feitos com sistema, o objectivo era que depois da frente voltariam a definir o que é que queriam. Só que durante a luta armada de libertação nacional, começou o abate de prováveis pessoas que poderiam ameaçar o regime", conta o antigo deputado de oposição referindo-se nomeadamente a dissidentes como Uria Simango. "Depois, tivemos a situação das nacionalizações. Quando a Frelimo chega, logo em 1976, começa com as nacionalizações. Primeiro disse que era para lhes dar andamento, mas foi tirando casas às pessoas. O Eusébio perdeu a sua casa, apesar de terem vindo já dar mais uma outra casa. O próprio pai do Presidente Chissano tinha perdido cinco casas. Foi muita coisa feita. E há pessoas que não concordaram muito. Também não podiam chamar a atenção porque eram perseguidos, eram presos, eram assassinados. Naquele tempo era pecado ter um carro de marca Peugeot. Era pecado ter um carro de marca Volvo, para não falar de Mercedes Benz, porque essas marcas eram marcas do Estado. Quem devia ter eram os dirigentes. Então isto criou problemas. Jovens como Afonso Dhlakama sentiram-se obrigados a abandonar a Frelimo e foram criar a Resistência Nacional Moçambicana", diz António Muchanga. Edgar Silva, antigo deputado e guerrilheiro da Renamo, recorda também que na altura da fundação do partido, Moçambique estava a atravessar grandes dificuldades económicas, devido ao embargo então em vigor com os países que eram os vizinhos imediatos de Moçambique. "Ficamos fechados e o país mergulhou numa pobreza tal. Não tínhamos nada do estrangeiro não vinha nada, a não ser aquilo que vinha da Rússia e da Rússia não vinha a comida nessa altura. Nós vivíamos de donativos, graças aos Estados Unidos da América, que mandavam donativos para aqui para apoiar os centros, os internatos, algumas pequenas comunidades, mas o resto não havia. A economia decresceu. Não tínhamos nada, não produzíamos praticamente nada. Não tínhamos exportações nem importações. Começámos a passar um momento caótico. E daí que alguns moçambicanos viram a hipótese de terminar com aquilo. Afonso Dhlakama e outros moçambicanos tinham que arranjar meios para pôr termo a este sistema que só desgastava os moçambicanos. Daí que surgiu a Renamo", conta o antigo guerrilheiro. Ao recordar as circunstâncias em que começou a guerra civil em 1977, o antigo deputado explica que a ausência de multipartidarismo foi o foco da luta. "Não haviam eleições. A Frelimo impôs-se. Impôs-se quando chegou e disse que os outros são uns ‘bandidos quaisquer'. Diziam na altura que era um instrumento do imperialismo o instrumento do apartheid, instrumento do regime minoritário do Ian Smith, mas que na verdade não era. Isso provou-se. Com o avanço da guerra, zonas libertadas foram-se criando e a Frelimo vivia praticamente confinada nas cidades grandes porque todo o resto as pessoas estavam bem, já andavam, já circulavam, até produziam e estavam à vontade", diz Edgar Silva. O movimento anti-marxista teve como aliados objectivos entidades e países como a Rodésia e a África do Sul que não concordavam com a linha escolhida pelo novo poder de Moçambique. Questionado sobre as consequências desta aliança em termos de imagem, António Muchanga responde que a Renamo só podia buscar apoio junto de quem era contra a Frelimo. "Dada a própria natureza da região, a Renamo, só podia ir buscar armas a quem era contra Frelimo", justifica o antigo parlamentar ao acusar, por seu lado, a Frelimo de ter morto "muita gente em nome da Renamo", diz que "até agora continua a matar". No mesmo sentido, Edgar Silva sublinha, quanto a si, que quem lutou contra a Frelimo eram combatentes moçambicanos. "Nós não fomos buscar militares lá na Rodésia. Foram moçambicanos. Porque aqui no território nacional, mesmo a própria Frelimo, não começou a luta no interior. Teve que se deslocar à Tanzânia, que era inimiga do governo colonial. Tivemos que ir buscar algum apoio. Muitas vezes não foi desses governos, mas de pessoas de bem lá de fora que traziam o material para nós. Dizemos que também era falso que depois do Ian Smith cair, que nós ficamos sem as portas para o Zimbábue. Continuamos logicamente a ir para Zimbábue buscar apoio e depois, quando o Zimbabué se torna independente, dizer também que a África do Sul é que passou a apoiar-nos, não constitui verdade. Aí nós já estávamos avançados, nós íamos buscar material às forças do inimigo e crescemos muito", afirma o antigo guerrilheiro. Após 16 anos de uma guerra civil que resultou em mais de um milhão de mortos, cinco milhões de refugiados, toda a ordem de violações dos direitos Humanos e a destruição de praticamente todas as infraestruturas do país, a Frelimo no poder e a Renamo assinam um acordo de paz em 1992. O muro de Berlim caiu, a antiga URSS ruiu e a comunidade internacional, especialmente a Igreja Católica, desdobra-se em esforços para acabar com o conflito. Questionado sobre as suas expectativas nessa época, Edgar Silva fala da "abertura do caminho para a democracia multipartidária". "Isto é um ganho que a Renamo conseguiu com os acordos de paz de 1992. (…) Isto é muito para nós", considera. António Muchanga, quanto a si, sublinha que o processo de paz, nomeadamente no que tange à desmobilização e ao desarmamento, continua em andamento. "Este é um processo que está a consolidar-se a cada dia que está a passar. Há militares que abandonaram as armas e se juntaram à política activa naquele tempo. Há outros que foram constituir o exército único que agora estão saindo e que também estão a ingressar na política. E assim vamos fazendo o nosso dia-a-dia. Temos muitos membros agora que são membros das assembleias municipais. Já tivemos muitos nas assembleias provinciais. Já tivemos muitos também, que eram deputados da Assembleia da República. Por causa da fraude eleitoral, desta vez temos poucos", lamenta António Muchanga. Podem ouvir os nossos entrevistados na íntegra aqui:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No décimo episódio desta digressão, evocamos os campos de reeducação. Ainda antes da independência, durante o período de transição em que Moçambique foi governado por uma autoridade híbrida luso-moçambicana, foram instituídos campos de reeducação, essencialmente na distante província do Niassa. O objectivo declarado desses campos era formar o homem novo, reabilitar pelo trabalho, as franjas da sociedade que eram consideradas mais marginais ou dissidentes. Foi neste âmbito que pessoas consideradas adversárias políticas foram detidas e mortas em circunstâncias que até agora não foram esclarecidas. Isto sucedeu nomeadamente com Uria Simango, Joana Simeão e Adelino Guambe, figuras que tinham sido activas no seio da Frelimo e que foram acusadas de traição por não concordarem com a linha seguida pelo partido. Omar Ribeiro Thomaz, antropólogo ligado à Universidade de Campinas no Brasil que se debruçou de forma detalhada sobre os campos de reeducação, conta em que circunstâncias começou a estudar este aspecto pouco falado da História recente de Moçambique. "Eu comecei a interessar-me porque eu comecei a conhecer pessoas que tinham sido objecto desse tipo de expediente autoritário, por um lado, e por outro lado, porque eu via uma grande ansiedade da população no que diz respeito ao desaparecimento de algumas pessoas que foram pessoas-chave no período tardio colonial moçambicano ou no período de transição do colonialismo para a independência. São figuras como Uria Simango, a Joana Simeão, o Padre Mateus, enfim, são pessoas que sumiram e que havia uma demanda para essas pessoas", começa por relatar o investigador. "Os campos de reeducação são pensados ainda no período de transição. Então, isso é algo que ainda deve ser discutido dentro da própria história portuguesa, porque no período de transição, o Primeiro-ministro era Joaquim Chissano, mas o governador-geral era português. Então, nesse momento, começam expedientes que são os campos de reeducação. Você começa a definir pessoas que deveriam ser objecto de reeducação, ao mesmo tempo em que você começa a ter uma grande discussão em Moçambique sobre quem são os inimigos e esses inimigos, eles têm nome. Então essas são pessoas que de alguma maneira não tiveram a protecção do Estado português. Isso é muito importante. Não conseguiram fugir. São caçadas literalmente, e são enviadas para um julgamento num tribunal popular. Eu estou a falar de personagens como a Joana Simeão, o Padre Mateus, Uria Simango, que são condenados como inimigos, como traidores. Esses são enviados para campos de presos políticos. A Frelimo vai usar uma retórica de que esses indivíduos seriam objecto de um processo de reeducação. Mas o que nós sabemos a partir de relatos orais e de alguns documentos que nós conseguimos encontrar ao longo do tempo, é que essas pessoas foram confinadas em campos de trabalho forçado, de tortura, de imenso sofrimento e que chega num determinado momento que não sabemos exactamente qual é, mas que nós podemos situar mais ou menos ali, por 1977, elas são assassinadas de forma vil", diz o antropólogo. "Quando você tem a Operação Produção, que é a partir de 1983, que é uma operação para você retirar de maneira forçada todos aqueles indivíduos classificados ou acusados de vagabundagem, de serem inimigos da revolução ou de prostituição, no caso das mulheres, são recolhidos e são enviados não só para o Niassa, mas no país inteiro, mas particularmente no Niassa, porque tem um subtexto moral, ou seja, a ideia de que o trabalho seria uma componente moral fundamental para a formação do ‘Homem novo'. Mas havia a ideia também por parte do Samora em particular, mas de muitas pessoas que constituíam a elite da Frente de Libertação de Moçambique, de que o Niassa seria a província mais fértil do país e que poderia se transformar numa espécie de local de produção de alimentos para o país como um todo. Então, isso vai perdurar em Moçambique por um período bastante significativo", refere o universitário. "A primeira grande operação chamada ‘Operação Limpeza' é de Outubro de 1974, que é justamente você limpar a Rua Araújo, que era a rua da prostituição. Mais ou menos 300 mulheres foram acusadas de prostituição e foram enviadas para campos de trabalho agrícola. Boa parte delas morre. E esse tipo de expediente se mantém em Moçambique entre os anos 70 até meados dos anos 80, quando, na verdade, a guerra civil inviabiliza o próprio empreendimento. Porque o campo, no contexto moçambicano, não é um lugar fechado, com muros de onde as pessoas não podem fugir. As pessoas eram jogadas em áreas rurais. Muitas delas não tinham nenhum tipo de experiência rural e não são campos onde o próprio Estado garantisse a chegada de alimentos. Então você gera uma situação de conflito muito pouco estudada ainda. Eu trabalhei numa região específica na província de Inhambane, em que as pessoas eram despejadas e muitas delas não tinham muito o que fazer. Ou você acaba estabelecendo uma relação de troca entre essas pessoas que vêm da cidade e camponeses do local, como é muito bem descrito num romance magnífico do escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho, ‘Campo de Trânsito'. Ou você tem -o que me foi dito por camponeses da região- um medo terrível, porque os reeducandos eram entregues a uma situação de abandono. Então eles acabavam roubando os camponeses, porque eles não tinham outra alternativa. E ao mesmo tempo, nós temos essa guerra que muito tardiamente vai ser definida como guerra civil. E é importante dizer que parte dos que vão alimentar esse exército de oposição à Frelimo, eram pessoas insatisfeitas destes próprios campos de trabalhos forçados", refere Omar Ribeiro Thomaz. O antigo Presidente moçambicano Joaquim Chissano, Primeiro-ministro durante o período de transição e em seguida chefe da diplomacia moçambicana depois da independência, justifica a instauração desses campos. "Reeducar era um princípio que nós tínhamos durante a própria luta de libertação. Se houvesse indisciplina, tínhamos formas de isolar as pessoas. Reeducar é reeducar mesmo, para voltar a reintegrá-los no nosso seio. Não era, como se costuma dizer aí, campos de concentração, etc", diz o antigo dirigente. "Houve pessoas que eram marginais, que era preciso encontrar uma forma de lhes dar uma formação. Isso inclui mesmo pessoas que até estavam nas cadeias. Criaram-se os centros de reeducação para esses indivíduos. Também houve o caso das prostitutas, que também se criou um campo para reabilitação porque sabia-se que faziam isto, porque é uma maneira de viver. Isso é claro que foi mal visto por muita gente que não compreendia a nossa visão e que pensavam que eram campos de castigo apenas. Mas eu tive uma boa experiência nesse capítulo porque quando eu era ministro dos Negócios Estrangeiros, convidei um grupo de diplomatas estrangeiros acreditados em Moçambique e fomos visitar o principal campo de reeducação de ex-reclusos. E os diplomatas que estiveram comigo nessa altura disseram me o seguinte ‘Ó senhor ministro, vocês deviam ter chamado isto prisões abertas e nós teríamos compreendido melhor'", declara Joaquim Chissano. Óscar Monteiro, membro sénior da Frelimo, recorda o que guiou inicialmente a instalação dos campos, mas reconhece que houve excessos. "Devo dizer que a escolha do nome é uma escolha infeliz. A reeducação fazia-se ali, dentro de nós, um bocado com esta ideia de que o trabalho regenera", refere o responsável político que ao ser questionado sobre o destino reservado aos dissidentes políticos como Uria Simango ou Joana Simeão, diz que "de facto isso aconteceu e que (os membros da Frelimo) não estão orgulhosos disso". Lutero Simango, líder do partido de oposição Movimento Democrático de Moçambique (MDM), perdeu o pai, Uria Simango, um dos membros-fundadores da Frelimo, mas igualmente a mãe. Ambos foram detidos e em seguida executados, Lutero Simango pedindo esclarecimentos ao poder. "O meu pai foi uma das peças-chaves na criação da Frente de Libertação de Moçambique. Ele nunca foi imposto. Os cargos que ele assumiu dentro da organização foram na base da eleição. Ele e tantos outros foram acusados de serem neocolonialistas. Foram acusados de defender o capitalismo. Foram acusados de defenderem a burguesia nacional. Toda aquela teoria, aqueles rótulos que os comunistas davam a todos aqueles que não concordassem com eles. Mas se olharmos para o Moçambique de hoje, se perguntarmos quem são os donos dos nossos recursos, vai verificar que são os mesmos aqueles que ontem acusavam os nossos pais", diz o responsável político de oposição. Questionado sobre as informações que tem acerca das circunstâncias em que os pais foram mortos, Lutero Simango refere continuar sem saber. "Até hoje ninguém nos disse. E as famílias, o que pedem é que se indique o local em que foram enterrados para que todas as famílias possam prestar a última homenagem. O governo da Frelimo tem a responsabilidade de indicar às famílias e também assumir a culpa, pedindo perdão ao povo moçambicano, porque estas pessoas e tantas outras foram injustamente mortas neste processo", reclama Lutero Simango. Neste processo, Sam Malema Guambe também perdeu e nunca conheceu o pai -Adelino Guambe-, fundador da UDENAMO, uma das organizações independentistas que estiveram na raíz da fundação da Frelimo. "Eu não cheguei a conhecê-lo. Eu de facto nem vi a cara dele. A minha avó nos contava aquela história. A minha mãe não queria tocar mais nesse assunto de Guambe, essa pessoa já não existe, Vamos deixar. Mas a minha avó sempre nos ensinava, nos dizia que nosso pai, as coisas que ele fazia", diz Sam Malema Guambe ao apelar a um diálogo, a "falar para a gente pôr todos mãos à obra, para fazer um Moçambique melhor, porque os nossos pais contribuíram muito para esse país". Inicialmente militante da Frelimo, Joana Simeão, entra em linha de colisão com o partido por discordar do monopartidarismo instaurado depois da independência. Acusada de ser agente da PIDE, será, como Uria Simango e Adelino Guambe, executada em circunstâncias por esclarecer. A filha, Emíade Chilengue, era um bebé. "Eu pessoalmente não tenho nenhuma memória de vivência com a minha mãe, uma vez que na altura dos acontecimentos eu era bebé. Tudo o que eu sei é através de notícias dos órgãos de comunicação social. (…) Por volta dos sete, oito anos, eu constantemente perguntava sobre a minha mãe e eles um dia vieram até mim com um recorte de jornal, creio que sobre a ação que determinou o fuzilamento dela e das outras pessoas que fizeram parte do grupo, e mostraram-me. E foi assim que eu fiquei a saber que a minha mãe já não estava entre os vivos", conta Emíade Chilengue. Ao dizer que também procurou ter mais informações, sem sucesso, a filha de Joana Simeão refere esperar que, no âmbito da celebração dos 50 anos da independência de Moçambique, que haja "alguma explicação para que haja, de facto, uma reconciliação nacional. No meu entender, não podemos, de forma alguma, comemorar 50 anos sem que esses dossiers sejam de alguma forma tratados com a devida atenção e respeito que é merecido". Podem ouvir os nossos entrevistados na íntegra aqui:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No nono episódio desta digressão, debruçamo-nos sobre o estatuto da mulher durante a luta de libertação, até aos dias de hoje em Moçambique. Quando se fala das mulheres nos tempos da luta é inevitável lembrar a figura de Josina Machel, primeira mulher do Presidente Samora Machel e também heroína da guerra de libertação. Nascida em 1945 em Vilankulos, no sul do país, no seio de uma família que se opõe ao colonialismo, Josina Machel ingressa na resistência em 1964. Envolvida em actividades de formação na Tanzânia, a jovem activista rejeita uma proposta de bolsa de estudos na Suíça para se alistar em finais dos anos 60 no recém-criado destacamento feminino da Frelimo, Josina Machel militando para que as mulheres tenham um papel mais visível na luta de independência. Ela não terá contudo oportunidade de ver o seu país livre. Dois anos depois de casar com Samora Machel com quem tem um filho, ela morre vítima de cancro aos 26 anos no dia 7 de Abril de 1971, uma data que hoje é celebrada como o dia da mulher moçambicana. Símbolo de resistência no seu país, Josina Machel ficou na memória colectiva como a encarnação do destacamento feminino. Óscar Monteiro, membro sénior da Frelimo, recorda as circunstâncias em que ele foi criado em 1966. "No processo político que nós vivemos em Moçambique, houve um momento em que as pessoas pensavam ‘nós temos uma linha política clara, justa, avançada'. E uma das questões muito importantes, era a atitude em relação às mulheres. Era normal, pela tradição que as mulheres fossem consideradas disponíveis como amantes. Quando Samora assume a direção, ainda me recordo de uma frase e se formos procurar esse documento, está lá a frase. Nós tínhamos criado o destacamento feminino em 1966, Samora tinha sido o instrumento disso. Então há uma frase que ele medita nessa altura. E a frase está lá. ‘Não criamos o destacamento feminino para fornecer amantes aos comandantes'. Estava só nesta frase. Já está aqui todo um programa que nós chamamos de emancipação da mulher, mas que é, no fundo, de igualdade de qualidade política da vida. Quer dizer, tu estás a fazer a luta de libertação. Isso não te permite fazer não importa o quê. Tu tens que ser uma pessoa diferente, uma pessoa melhor", explicita o responsável político. As mulheres que combateram foram uma faceta da condição feminina durante os anos de luta. Outros rostos, menos conhecidos e bem menos valorizados, são aqueles das chamadas ‘madrinhas de guerra'. Para dar alento aos soldados portugueses que partiam para a guerra sem saber se haveria regresso, o Estado Novo promoveu a correspondência entre milhares de mulheres e militares. Numerosas relações epistolares acabaram em casamento. Em Portugal, houve muitas. O que não se sabe tanto, é que em Moçambique também houve ‘madrinhas de guerra'. Um jovem antropólogo e fotojornalista moçambicano, Amilton Neves, conheceu-as e retratou as duras condições de vida que conheceram depois da independência. "Comecei a trabalhar sobre as ‘madrinhas de guerra' em 2016. Isso porque já pesquisava e encontrei um discurso do Presidente Samora que dizia que as ‘madrinhas de guerra' são ‘meninas retardadas'. Interessei-me por isso. Porquê as ‘madrinhas de guerra'? Que é isto? Então fui ao Arquivo Histórico, até à Torre do Tombo, em Lisboa, para perceber melhor. Porque as ‘madrinhas de guerra' não começam aqui. Começam em 1916 com a Grande Guerra em Portugal. E descobri que algumas ‘madrinhas de guerra' viviam aqui em Maputo, numa zona só. (…) Então, quem eram as ‘madrinhas de guerra'? Eram miúdas que eram recrutadas para escrever cartas para os militares de forma a incentivá-los e dizer que ‘não te preocupes, quando voltares da guerra, nós vamos casar. O Estado português sempre vai ganhar.' Então, neste exercício de troca de cartas, quando houve a independência, em 1975, as madrinhas de guerra foram perseguidas pelo novo regime. Então eu fui atrás dessas senhoras. Consegui identificá-las. Levou tempo porque elas estavam traumatizadas", refere o jovem fotojornalista. "As motivações dessas mulheres eram de fazer parte da classe alta naquela altura. Porque elas tinham acesso aos bailes, ao centro associativo dos negros, nesse caso, ao Centro associativo dos Mulatos, às festas que davam na Ponta Vermelha. Elas faziam parte da grande sociedade. Não era algo que poderíamos dizer que tinham algo benéfico em termos de remuneração. Acredito que não ", considera o estudioso referindo-se às razões que levaram essas pessoas a tornarem-se ‘madrinhas de guerra' que doravante, diz Amilton Neves, "vivem traumatizadas. Algumas se calhar foram a Portugal porque tinham uma ligação. Casaram. Mas a maioria ficou em Maputo" e sofreram uma "perseguição" que "não foi uma perseguição física, foi mais uma questão psicológica". Hoje em dia, muitas heroínas esquecidas de forma propositada ou não, ficam por conhecer. A activista política e social moçambicana, Quitéria Guirengane, considera que a condição das mulheres tem vindo a regredir em Moçambique. "Quando nós dizemos que há mulheres invisibilizadas pela História, vamos ao Niassa e vemos histórias como da Rainha Achivangila. Mulheres que na altura do tráfico de escravos conseguiram se opor, se posicionar, salvar, resgatar escravos e dizer ‘Ninguém vai escravizar o meu próprio povo'. Mas nós não colocamos nos livros da nossa história essas rainhas. Nós precisamos de ir ao Niassa descobrir que afinal, há mulheres que foram campeãs neste processo de luta. Estas histórias têm que ser resgatadas. Depois começamos a falar da Joana Simeão. Ninguém tem coragem de falar sobre isso. É um tabu até hoje. E você é visto como um leproso se tenta levantar este tipo de assuntos. E não estamos a dizer com isto que vamos esquecer a luta histórica de Eduardo Mondlane, que vamos esquecer a luta histórica de Samora Machel. Não. Eu não sou por uma abordagem de dizer que a história toda está errada. Todo o povo tem a sua história e tem a sua história oficial. Mas esta história oficial tem que se reconciliar, para reconciliar o povo, trazer as mulheres invisibilizadas pela história, mas também trazer todos os outros", diz a activista. Olhando para o desempenho das mulheres durante a luta de libertação, Quitéria Guirengane considera que elas "têm um papel incrível. Tiveram, tem e sempre terão um papel na luta de libertação. Terão um papel sempre activo no ‘peace building', no ‘peace making' no ‘peace keeping'. E é preciso reconhecer desde a mulher que está na comunidade a cozinhar para os guerrilheiros, desde a mulher que está na comunidade a informar os guerrilheiros, à mulher que está na comunidade a ser usada como isca para armadilhas, a mulher que está na comunidade a ser sequestrada, a ser alvo até de violações sexuais. Essas mulheres existem. Mas também aquelas mulheres que não são vítimas, não são sobreviventes, são as protagonistas do processo de libertação. E o protagonismo no processo de libertação, como eu disse, começa pelas rainhas míticas da nossa história, que não são devidamente abordadas. O reconhecimento deriva do facto de que, em momentos em que era tabu assumir um papel forte como mulher, elas quebraram todas essas narrativas e se posicionaram em frente à libertação. Depois passamos para esta fase da luta de libertação, em que se criam os famosos destacamentos femininos em que mulheres escolhem a linha da frente, escolhem a esperança em vez do medo e se posicionam", refere a também militante feminista. Volvidos 50 anos sobre a luta de libertação, apesar de ter formulado naquela época a vontade de fazer evoluir o papel da mulher na sociedade, Quitéria Guirengane considera que "se continua a travar as mesmas lutas". "A mulher ainda tem que reivindicar um espaço. É verdade que nós temos consciência que as liberdades, tal como se ganham, também se perdem. E que nenhum poder é oferecido, que nós temos que lutar. Mas é tão triste que as mulheres tenham sempre que lutar para fazer por merecer e os homens não tenham que fazer a mesma luta. Nós não só temos que lutar para chegar, mas também temos que lutar para manter e muitas das vezes colocadas num cenário de mulheres a lutarem contra mulheres", lamenta a activista. "Quando fazemos uma análise, uma radiografia, vamos perceber que a maior parte dos processos de paz foram dominados por homens. Quando nós tivemos no processo de paz, em 2016, finalmente duas mulheres na mesa, isso foi fruto do barulho que a sociedade civil fez naquela altura. A sociedade civil fez muito barulho e resultou numa inclusão de duas mulheres, uma da parte da Renamo, uma da parte do governo. Na mesa negocial entre uma dezena de homens que fez com que elas fossem apenas 12,58% de todo o aparato negocial do processo da paz. O que é que isto implica? Quando passamos para o processo de DDR, as comissões de negociação de DDR eram masculinas, todas elas homens. A desmilitarização foi entendida como um assunto de homens. A comissão sobre assuntos legais também era de homens, não havia mulheres. Quando nós olhamos para o processo de desmilitarização e ressocialização, nós percebemos que tínhamos 253 mulheres militares a serem desmobilizadas. E nesse processo, notava-se que foi pensado numa perspectiva de homens, não de compreender as especificidades e necessidades particulares", diz. Em jeito de conclusão, a activista muito presente na defesa dos Direitos das mulheres e liberdades cívicas, mostra-se "preocupada com as realidades da mulher com deficiência, da mulher na área de extractivismo, da mulher deslocada de guerra, da mulher deslocada por exploração mineira, da mulher rural, da mulher na agricultura, da mulher no sector informal, da mulher empresária. São realidades diferentes. Então não podemos meter num pacote de ‘one size fits all' e achar que as demandas são iguais. (…) Pior ainda : nos últimos seis meses da tensão social, a vida deixou de ser o nosso maior valor. Mulheres foram mortas, mulheres perderam os seus maridos, seus pais, seus filhos. Têm que acompanhar, levar comida para o hospital ou para as cadeias, sem nenhum apoio. E ninguém pensa nesta reparação. Então voltamos muito atrás. Eu diria que regredimos", afirma Quitéria Guirengane. Podem ouvir os nossos entrevistados na íntegra aqui: Vejam aqui algumas das fotos de Amilton Neves:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No oitavo episódio desta digressão, evocamos o cinema, os documentários e reportagens que se produziram na época da independência. Logo após a independência, o novo poder chefiado por Samora Machel entende que o país doravante livre precisa edificar-se sobre pilares comuns comuns. Um deles é a informação e o cinema. Neste sentido, é fundado o Instituto Nacional de Cinema e pouco depois, em 1976 começam a circular por todo o país unidades móveis de cinema que vão mostrar à população o jornal cinematográfico Kuxa Kanema, denominação que significa ‘o nascimento do cinema'. O objectivo é múltiplo : filmar os moçambicanos e ao mesmo tempo dar o seu reflexo, informá-lo, educá-lo e uni-lo em torno de uma mesma mensagem, evidentemente revolucionária. Desta época amplamente filmada e documentada, pouco resta, um incêndio tendo em 1991 reduzido a cinzas uma parte substancial dos arquivos do que se tornou o Instituto Nacional das Indústrias Culturais e Criativas. Restam os testemunhos daqueles que viveram esse período e filmaram tudo. Um deles, Gabriel Mondlane, dirigente da AMOCINE, Associação Moçambicana de Cineastas, recorda como foi parar a esse universo. "Tenho muita sorte de ter pertencido a essa primeira leva de gente que trabalhou no cinema. Eu acho que aquilo foi muito importante porque, na óptica dos políticos, no momento em que a independência chega, depois há a necessidade de restaurar muitas coisas. Estou a falar de sector económico que não estava a funcionar, no sector de comunicação e também no próprio Governo que acabava de se instalar em Moçambique. Precisava que o sector do cinema dinamizasse um pouco a área social, particularmente nas zonas rurais, onde as pessoas não percebiam muito bem o que estava a acontecer. Então, começamos a trabalhar e fundou-se aquele cinejornal que também, ao mesmo tempo, nos proporcionou a aquisição de equipamento para a projeção, como no caso da Caravana Cinema Móvel que andou pelas províncias e distritos. Portanto, eu comecei a trabalhar no cinema. O Kuxa Kanema foi um jornal que estava muito mais ligado àquilo que eram os objectivos do partido no poder. Acho que isso se deu bem porque contribuiu para aquilo que chamou se de ‘unidade nacional', porque as pessoas começaram a se conhecer através da imagem e isso foi muito bem. E também para a minha parte, foi muito positivo, porque foi um processo de aprendizagem muito positivo", começa por contar o realizador. Cinéfilo, apreciador de filmes de Kung-Fu e de cowboys, nada parecia predispor Gabriel Mondlane a enveredar por um percurso no mundo das salas obscuras. "Caí assim tipo paraquedas, porque eu nasci numa zona em que o cinema se falava muito pouco. E ao mesmo tempo, quando entro para aqui, foi uma espécie de uma escolha meio forçada, sem saber onde é que eu ia. Foram buscar-me na escola e depois levaram-me. Eu nem sabia o que é que era isto. Sabia do cinema, da projeção. Mas cinema atrás das câmaras? Nunca na vida tinha pensado que podia cair aqui. Mas pronto, foi o destino. Eu fui levado e comecei a fazer os cursos. Quando pouco a pouco, fui percebendo como é que é, hoje até digo ‘obrigado' a eles, porque eu nunca estaria a trabalhar numa coisa de que hoje gosto. Trabalhar no cinema. Eu estou aqui já há muitos anos. Não sei mais outra coisa a não ser fazer cinema. Então digo ‘obrigado' a eles", diz o cineasta. Ao recordar que, jovem, tinha um preconceito relativamente ao universo do cinema, Gabriel Mondlane refere que ia ao cinema "de forma irregular". "Aquilo no tempo colonial, nas salas de cinema, tinha que se ir com uma determinada idade. Então, às vezes, nós mentíamos sobre as nossas idades para poder entrar ali. Às vezes apanhávamos o fiscal que nos arranjava problemas. (…) Nós contribuíamos com um determinado dinheirito e algumas moedas e dávamos a um membro do grupo para entrar lá na sala para ver o filme, para depois contar aos outros, porque não tínhamos dinheiro para todos. Então aquele que fosse para lá dentro da sala, voltava com o filme todo na cabeça. Tinha que contar tudo com som, com gestos, com todo aquele clímax dramático que o filme dá. Então fui habituado a fazer isso. É isso que eu conhecia dos filmes. E também quando me pergunta se eu gostava ou não, eu não gostava porque eu detestava aqueles guardas. (…) Então pensávamos que o trabalho do cinema era aquilo. Era naquela sala. Então, quando eu fiquei a saber que vou trabalhar para o cinema, eu senti que iam levar-me para uma coisa de que não gosto, ter que andar atrás dos miúdos, a correr atrás dos outros. Mas pronto, depois foi tudo ao contrário. Na primeira entrevista que eu tive, fizeram-me perguntas para ver como é que nós estávamos em termos de conhecimentos na área do cinema. Eu disse que eu conheço cinema. ‘O que é que tu entendes de cinema?' Eu sei é que eu tinha que contar. Contei os filmes de kung-fu, de Bruce Lee e tal. Puseram-se a rir. Não percebi porque estavam a rir. Estavam a dizer que não era aquilo que queriam saber, era outra coisa. Só agora que estou um bocadinho mais maduro, percebo que falei besteira. Não era aquilo, pois não sabia do outro lado", conta o realizador. Ao recordar a época em que começou a aprender como se faz cinema, Gabriel Mondlane refere que "a formação séria mesmo foi a formação feita pelo Instituto Nacional de Cinema. Essa formação levou um ano intensivo. E isso foi bom porque os formadores eram estrangeiros, eram canadianos, britânicos. São eles que nos introduziam para as novas tecnologias, novos pensares do cinema." A seguir à formação, Gabriel Mondlane acompanha Samora Machel em comícios e reuniões que são invariavelmente fixadas em banda magnética para sua posterior difusão ou arquivamento. "Na verdade, eu comecei mais na área de sonoplastia e eu acompanhei Samora Machel. Na maior parte das vezes, eu viajei com Samora Machel até à morte dele. De uma forma estranha. Eu não fui na última viagem de Samora Machel. Isso é uma coisa estranha, mas todas as outras, maior parte das viagens, eu fui. Também porque nós éramos poucos que trabalhávamos nessa área. E então a alternância entre nós era muito pouca. Se eu não vou numa viagem, a próxima a seguir tinha que ir. Sempre viajei com Samora Machel", recorda o cineasta. Questionado sobre o objectivo de Samora Machel ao pretender guardar filmes de todos os acontecimentos em que participava, Gabriel Mondlane declara que ele "tinha uma outra visão sobre a história e sobre o arquivo. Se a gente quer revisitar a nossa história, só podemos rever a nossa história a partir desse arquivo aqui que foi criado no tempo de Samora. Depois do Samora morrer (em 1986), o Instituto Nacional de Cinema deixou de desempenhar o papel que estava a fazer. O arquivo também parou. Quer dizer, não há nenhum arquivo. Não está sendo apetrechado periodicamente. Não existe em Moçambique uma equipa que se ocupe só para a recolha de assuntos históricos. Não existem. Isso é que é um erro. É um erro grave. A história parou então, com Samora Machel ". "Para além dessas viagens, nós filmávamos todos os discursos que eram feitos. Naturalmente, havia discursos que chamavam de ‘material sensível' e que não podia passar para as pessoas. Naturalmente, havia uma espécie de censura. (…) Era necessário que viesse um chefe de departamento ideológico do partido para ir verificar se a linha política está lá ou não está. Mas o que interessa mais para mim é que a maioria do material que não entrou na divulgação está guardada. Mas e aquele material que se chamava ‘Segredo de Estado'? Esse material ‘Segredo de Estado', não sai. Então, havia duas formas de guardar esse material. Uma que acho que foi pensada, mas acho que não foi muito correcta, porque houve alguns discursos um pouco quentes que a gente gravava. Esse aí foi guardado de uma forma um pouco mais sigilosa. Mas havia materiais que nós gravávamos que tínhamos que entregar directamente à segurança. Logo que terminasse, a segurança levava. No meu ponto de vista, esse material perdeu-se porque eles não tinham laboratórios. (…) Então há materiais que a gente ficou sem saber onde que estão. Já não vale a pena contar com esses materiais porque passado mais de cinco anos, é o fim", refere o realizador. Para além do objectivo propagandístico do cinema daquela época, Gabriel Mondlane recorda que as autoridades pretendiam igualmente, através dos meios audiovisuais criar uma união dos moçambicanos em termos culturais. "O conceito era de criar uma identidade nacional através do cinema. É por isso que se testemunha o filme ‘Tempos de leopardos', fala sobre a luta armada. Essa história realmente era para mostrar quão as forças de libertação nacional conseguiram vencer uma grande máquina, a máquina colonial. Isso é um caso. Outros casos, os documentários que nós fazíamos eram documentários que tinham também um condão político. (…) Samora Machel não era pessoa de esconder a sua visão sobre as coisas. Havia outras coisas que não eram boas, como por exemplo, nos anos 80, Moçambique tinha dificuldade de alimentação. A economia estava completamente rebentada e não havia nada nas prateleiras das lojas. Mas mesmo assim nos deixou filmar e nós filmamos isso. Se fosse um outro regime, não deixaria a gente filmar aquilo porque era uma grande vergonha. Mas nos deixou filmar, como também ele mesmo nos convidou a filmar aquilo que chamou de ‘política ofensiva', ‘política organizacional', que se traduziu num documentário muito interessante, onde o Presidente Samora foi de armazém e armazém, a andar de loja em loja, verificar como é que as coisas estavam, como é que as comidas eram distribuídas ao povo, etc", relembra o cineasta. Por fim, ao lamentar a destruição de boa parte dos arquivos cinematográficos do país após um incêndio em 1991, nas instalações do actual Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema de Moçambique, Gabriel Mondlane também dá conta das dificuldades atravessadas actualmente por ele e pelos seus pares. "A única coisa que já começou a ser difícil realmente é conseguir fundos. Nós temos que batalhar muito e conseguir ter amigos estrangeiros. Tu não tens amigos lá no estrangeiro, é difícil ter fundos aqui, sobretudo para filmes grandes. Talvez uma curta-metragem consiga alguma coisinha, com um agente económico aqui ou ali. Mas filmes grandes têm que procurar fora", diz o realizador. Podem ouvir o nosso entrevistado na íntegra aqui: Vejam aqui uma pequena visita guiada do museu do cinema em Maputo:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No sétimo episódio desta digressão, evocamos a música que se produziu na época da independência. Depois de séculos de ocupação portuguesa, Moçambique independente surge como uma entidade por reformular mentalmente e culturalmente. O imperativo das novas autoridades é criar um homem novo, com uma identidade própria, num país múltiplo mas unido. A música será um dos vectores desta nova identidade. Haverá hinos, músicas revolucionárias, sonoridades que são agora associadas à época da independência. Rufus Maculuve, membro do grupo Kapa Dech, produtor e estudioso recorda esse período. "Eu creio que, primeiro, a música serviu de ferramenta de reivindicação, primeiro, através das letras. As músicas todas traziam esta dimensão. Mas também serviu de ferramenta de unidade, porque Moçambique é um país culturalmente diverso. E também acredito que a música serviu de alento. Quando eu digo que ela serviu de elemento unificador é porque eu podia não falar uma língua e podia entrar para essa língua através da música. Aliás, eu nasci no tempo da luta armada, mas as músicas da luta armada, quando eu estava a crescer, ouvíamos na rádio. E ouvindo essas músicas na rádio. Até hoje eu não sei o que muitas delas dizem, porque algumas são cantadas em línguas que eu não entendo. (…) Mas ao mesmo tempo, tínhamos as músicas em português que eu entendia, ou músicas em changana ou qualquer outra língua do sul que eu entendo. Então acho que a música teve muito este papel. Eu não sou militar, mas acredito que quando alguém vai à guerra, canta uma música, sente-se mais forte", diz o músico. Nessa época, um dos vectores da informação e também da música revolucionária era a rádio. Ao recordar algumas das sonoridades que se ouviam no posto emissor, Rufus Maculuve cita hinos como ‘Kanimambo Frelimo' (Obrigada Frelimo). "‘Kanimambo Frelimo' era uma das músicas. Facto interessante é que estas músicas todas vieram das matas para as rádios. Então, acho que, mesmo não sabendo o que elas dizem, todas essas músicas vieram para a rádio, foram gravadas, algumas, acredito que foram regravadas e a gente cantava. Era criança, praticamente um bebé. Muita das vezes acho que cantava de uma forma inocente e acho que anos mais tarde, trabalhando numa produção, acho que aquando dos 45 anos de independência, comecei a ter consciência de que tudo aquilo, do que aquelas músicas diziam", recorda o produtor. Questionado sobre o ambiente que reinava em termos culturais antes da independência e imediatamente depois, Rufus Maculuve distingue dois momentos distintos. "Antes da independência, começaram a uma dada altura, provavelmente com o surgimento da Marrabenta e com o programa ‘Hora Nativa', que era um programa que passava música moçambicana, eu acho que este foi um momento interessante em termos de criação musical. (…) Mas quando chega a independência, houve uma ruptura com todo esse repertório. Aliás, a gente não fala muito disso, mas a Marrabenta acabou também sofrendo disto porque houve a necessidade de criar esta dita música ligeira moçambicana", lembra o estudioso. Questionado sobre a chamada ‘música ligeira moçambicana', o produtor considera que se trata de uma "estilização de vários estilos tradicionais moçambicanos". "Surge essa necessidade de alimentar o catálogo da rádio, que é para tocar o suficiente de música moçambicana e acho que foi uma fase em termos de quantidade e até de muita qualidade, devo dizer. Produziu-se muito. E acho que das músicas mais icónicas posso olhar para o poema ‘À espera' do Salvador Maurício. Posso olhar para ‘Os verdes campos' do grupo 1° de Maio. Há muitas músicas nesse tempo. E depois surge este fenómeno que é Marrabenta Star, que depois de um período de quase de ruptura, surge um grupo que é a Orquestra Marrabenta Star. E esta Orquestra quase que nem compõe. Vai buscar do cancioneiro", diz o universitário. "Acho que a música anda em várias direcções e isso vai mais ou menos até ao início dos anos 90, quando começamos a ter a dita ‘música jovem'. Isto é um pouco irónico, como quem diz que os que faziam música antes não eram jovens, o que não é verdade. Os Ghorwane, quando gravaram nos anos 80, eram bastante jovens, mas surge a tal dita ‘música jovem', que era um pouco quebrar do paradigma desta imposição estética, porque já não dependia da Rádio Moçambique para gravar, onde havia alguma selecção do que se podia gravar na rádio. Então, anos 90, começa a haver esta mutação. Os jovens começam a dizer ‘Ok, nós queremos coisas de inspiração americana, de inspiração PALOP'. E o hip hop também começa aos poucos a ganhar forma. E acho que quando chegamos nos anos 2000, o Hip-Hop também afirma-se como um estilo. Mas nesta época também temos artistas, não necessariamente grupos, artistas que fazem a passagem. Temos artistas que fazem rock como os ‘Rockefellers' e acho que é na mesma altura, finais dos anos 90, que surge os ‘Kapa Dech' (o grupo do qual faz parte) , que era uma outra proposta neste quadro bastante rico em termos de escolhas sonoras. Kapa Dech, para mim também faz muita fusão com matriz moçambicana, mas faz muito a fusão de estilos musicais", diz o artista. Referindo-se ao Hip-Hop, o artista refere que este género "tem o mérito de vir a ser este espaço onde a juventude tem voz. Eu costumo dizer que se nós quisermos ver a verdadeira sociedade civil em Moçambique, pelo menos Moçambique independente, ela está na música ou está nas artes. Mas a música destaca-se porque há muitas mensagens que são passadas mesmo na dita Primeira República de 75, 85, 90, com a aprovação da nova Constituição. Há muita música que era crítica ao sistema que passou, como ‘Mercandonga' de Chico António. E era uma música que criticava bastante o que estava a acontecer. O próprio Presidente Samora adopta os Ghorwane como sendo ‘os bons rapazes'. E ele dizia que são ‘bons rapazes' porque eles dizem o que não está bem no país. Sempre houve este espaço cívico. E havia censura? Sim, havia. Apesar de nós nunca termos tido um órgão oficial de censura, nem todas músicas passaram na rádio". Questionado sobre a tradição e o percurso da música interventiva de Moçambique, Rufus Maculuve evoca o Rap e mais precisamente o rapper moçambicano mais conhecido, Azagaia. "Eu acho que Azagaia acaba sendo esta voz de uma geração pela coragem que ele mostra, pela verticalidade nos temas que ele aborda e pela ressignificação de alguns discursos. Porque eu não sei quem disse ‘Povo no poder' pela primeira vez no mundo, mas em Moçambique, um discurso icónico de Samora Machel é ‘o povo no poder'. Então o Azagaia ressignifica este discurso ao ponto de, inclusive, criar uma amnésia em nós. Há gente que provavelmente nem imagina de onde é que vem a ideia do ‘povo no poder'. Eu acho que uma das coisas importantes é que ele mostra que a música, apesar de não ser um estilo de matriz moçambicana e as pessoas sempre questionam ‘mas isto não é bem nosso?' Mas o que é que é nosso? E são outras conversas. Então ele aparece e -é engraçado- durante muito tempo ele não domina o mercado do hip hop e circulou um documento que dizia que a música dele não podia ser tocada na Rádio Moçambique na altura. E foi inclusive até quando eu analiso, eu vejo que provavelmente nem foi muito isso. A ideia é que não ia tocar na emissão nacional, ia tocar na Rádio Cidade porque a Rádio Cidade era a Rádio da Juventude. E eu acho que há uma capitalização nisso. E depois, com toda a pressão que Azagaia sofre das estruturas políticas, vai à Procuradoria e ele resiste a isso. Então ele acaba sendo esta voz dos excluídos e é uma bandeira para uma geração, e nós vimos todo o movimento que houve à volta do funeral, todo o movimento que houve após a morte dele. (…) Acho que não se vai falar de música em Moçambique, não se vai se falar de movimentos socioculturais, políticos sem se falar do Azagaia e da sua música", conclui o produtor e estudioso moçambicano. Podem ouvir o nosso entrevistado na íntegra aqui:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No sexto episódio desta digressão, evocamos a chamada ‘Geração de 8 de Março'. Depois da independência, as autoridades moçambicanas enfrentaram vários desafios. O mais imediato era o de fazer funcionar um aparelho de Estado com verbas limitadas. Helder Martins que foi o ministro da saúde do primeiro governo de Moçambique recorda como foram os primeiros tempos. “A primeira coisa que eu fiz quando cheguei ao ministério, depois de tomar posse, foi perguntar ao funcionário responsável da administração e Finanças qual é que era o orçamento, porque o orçamento tinha sido aprovado em Fevereiro durante o governo de transição. Eu não tive conhecimento naquela altura. Era 1,7 Dólares por habitante, por ano. Mas metade daquele dinheiro era gasto no Hospital Central de Lourenço Marques naquela altura. Só se passou a chamar Maputo mais tarde. Os outros hospitais, todos juntos, tinham 0,85 Dólares. Quando você tem um orçamento desta natureza, tem que ver o que é que pode fazer com o melhor resultado e o menor custo. Então, para isto, eu acho que um dos grandes sucessos da minha administração foi ter sabido fazer uma investigação sobre os determinantes da saúde, saber quais são as influências positivas e quais são as influências negativas. Porque uma correcta política de saúde, seja em que parte do mundo for, tem que tentar eliminar -e se não conseguir, eliminar- minimizar os factores negativos. A questão mais importante -e isto era uma experiência que a gente tinha da luta armada- eu também fui o criador do serviço de saúde durante a luta de libertação, portanto, tinha a experiência, que era a participação popular. Você, por exemplo, pode ter o programa mesmo mais medicalizado que quiser. Um dos programas preventivos mais medicalizado são as vacinações. Se você não mobilizar as pessoas, pode criar um programa muito bonito, mas não vai ter uma taxa de cobertura alta. Segundo, nós tivemos que dar a máxima prioridade à medicina preventiva e pôr a ciência no posto de governação. Nós fizemos um estudo sobre os determinantes da saúde e definimos uma política nessa base científica. Nós criamos estruturas no ministério para estudar os problemas. Tivemos também uma comissão técnica para a área farmacêutica. Criamos um Formulário Nacional de medicamentos. Foi publicado no Boletim da República no dia 25 de Dezembro de 1976. A OMS publicou a lista de medicamentos essenciais em Outubro de 1977, dez meses depois. Os critérios da lista eram os mesmos que os nossos critérios”, sublinha o antigo governante. Outro desafio era a necessidade de formar técnicos para as mais diversas áreas que eram necessárias para o funcionamento do país. Foi neste contexto que no dia 8 de Março de 1977, o Presidente Samora Machel lançou um repto aos jovens moçambicanos para suprir as falhas que existiam naquela altura. Yolanda Mussá, então jovem militante -hoje Presidente da Associação da Geração 8 de Março- respondeu ao chamamento. “Depois do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, e sobretudo depois da assinatura dos Acordos de Lusaka e a tomada de posse do Governo de transição a 20 de Setembro do mesmo ano, assistiu-se, sobretudo aqui em Moçambique, a uma fuga massiva de técnicos portugueses que trabalhavam em diferentes áreas, não só no sector público como também no sector privado. Então, havia a necessidade de suprir essa lacuna que foi deixada por esses especialistas e por esses técnicos portugueses. Então, desde essa altura, a Frente de Libertação de Moçambique e o Governo moçambicano, posteriormente, chamou adolescentes e jovens para serem formados, para serem treinados para suprir essas lacunas. Este processo foi formalizado no dia 8 de Março de 1977, quando o Presidente Samora Machel incitou os jovens a responderem ao chamamento à Pátria. E naquela altura estamos perante uma situação que exige que nos manifestemos na essência daquilo que era o nosso patriotismo. O país é nosso e como o país é nosso, nós é que temos que assegurar a edificação da Nação moçambicana. Portanto, esse é que era o desafio. Havia carências nas diferentes áreas. Havia carências na área de educação, na área da economia, na área da administração pública. Então, os jovens e os adolescentes foram chamados a interromper, sobretudo aqueles que estavam na 9.ª classe, na 10.ª, na 11.ª classe, os seus estudos. E nós fomos orientados para as tarefas que foram consideradas prioritárias pelo governo moçambicano. A nível da cidade de Maputo, criou-se o Centro 8 de Março, onde nós fomos orientados e internados. Uns foram para o Propedêutico. Eu, por exemplo, fui orientada para o curso de formação de professores. E qual era a nossa função? Fomos formados, portanto, na Escola central do partido, mas sobretudo para aprender a história de Moçambique, porque sabe-se perfeitamente que, quer no ensino primário, quer no ensino secundário, o que se estudava era a história portuguesa. Então nós fomos orientados para estudar sobretudo a história de Moçambique e estudar a política de Moçambique para, a partir daí, podermos defender aquilo que eram os ideais da Nação moçambicana”, recorda Yolanda Mussá. Questionada sobre os critérios adoptados para orientar os jovens para determinada area, a dirigente associativa refere que as preferências de uns e de outros nao eram decisivos. “No dia em que fui para o painel de Orientação, estava com um colega. Nós éramos provenientes do antigo Liceu António Enes, que agora é Escola Secundária Francisco Maianga. Ele queria seguir matemáticas. A verdade é que depois das entrevistas, eles simplesmente disseram que ele não ia ser orientado para as matemáticas, mas que ele tinha que ser integrado no curso de formação de português. Então, o que contava naquela altura não era o que nós queríamos, mas é o que era considerado prioritário”, conta Yolanda Mussa. Alberto Simão, então jovem estudante de 19 anos, destinava-se à área de engenharia, mas acabou por enveredar por outra área, sendo actualmente economista. “Na altura tinha 19 anos e era estudante, digamos, no ensino técnico. Era do interesse dos meus pais, essencialmente, que eu seguisse a área de engenharia. Portanto, quando eu sou solicitado a integrar as tarefas do 8 de Março, fui exercer as tarefas de docência. Foi a minha primeira profissão. Mais tarde, quando eu voltei e retomei os meus mesmos estudos, decidi-me por uma outra área que foi a área económica”, começa por recordar o antigo docente. “Foi uma fase muito intensa, por assim dizer, e marcante também para os jovens estudantes, porque, na verdade, quase que sem nos apercebermos, passamos para a vida adulta, independentemente da nossa idade cronológica. Nessa altura, ficou claro que as responsabilidades a que nós tínhamos que fazer face, eram responsabilidades de adultos e tínhamos que responder como adultos e, sobretudo, também responder pelos resultados. Portanto, tivemos que crescer muito depressa em termo de crescimento ou em termos comparativos. O tempo de juventude foi relativamente curto, comparativamente com os tempos de hoje”, considera Alberto Simão que diz não ter sentido frustração naquela altura, mas antes uma “sensação de insegurança, porque, na verdade, ninguém estava preparado para assumir responsabilidades de tão alto nível.” Arão Nhacale, antigo autarca da Matola, também respondeu ao apelo de Samora Machel. Apesar de ter uma preferência pela química, acabou por ser dirigido para o ensino. “Eu lembro-me que quando, lá no bairro onde vivia com os meus pais, chegou a convocatória para me apresentar num determinado sítio aí do partido a nível central, eu fui dizer à minha mãe que ‘olha, eu fui chamado pela Frelimo'. E a minha mãe chorou. Não quis deixar que eu fosse, porque não sabia o que é que iria acontecer comigo. Para onde é que eu iria? O que é que eu fiz de errado? Mas eu disse à minha mãe que ‘olha, não se preocupe, porque não há nada de mal aqui. E se me chamam, eu saberei lá.' E fui, deixando a minha mãe triste. Cheguei lá, fui recebido por uma senhora e a conversa foi de muito pouca duração. Quis certificar se era eu. Era. E então deu-me uma guia para me apresentar na Escola Comercial de Maputo. Eu, na altura, era estudante do curso de Química. O meu sonho era formar-me em Química, tornar-me engenheiro de Química, com muita paixão por Química Tecnológica. E queria me formar ao mais alto nível na área de Química. E isso não aconteceu porque recebi esse chamamento e fui dar aulas em 1977, com cerca de 20 anos, na Escola Comercial de Maputo. É a disciplina que me coube. Isto marcou-me muito, porque é com uma certa dose de patriotismo que assumi e aceitei. Tive várias formações na área da educação. Dediquei-me ao ensino durante muitos anos e eu, felizmente, hoje posso dizer que muitos quadros seniores, jovens quadros seniores que temos no país em diversas áreas, alguns ministros, alguns directores na área de defesa de segurança, relações internacionais, industriais, em muitas áreas, alguns deles foram meus alunos. Isso cria em mim um certo -não é orgulho só, não é suficiente- muito mais do que orgulho, porque vejo que valeu a pena o chamamento”, considera o antigo professor. Esta operação que durou até ao começo dos anos 90 envolveu centenas e centenas de jovens, bem como formadores nacionais e estrangeiros, recorda Yolanda Mussa. “Havia formadores moçambicanos, mas para além dos formadores moçambicanos, o governo, na altura, contou com a colaboração de vários países. Por exemplo, eu tive professores de matemática que eram da Guiné-Conacri. Falo da Guiné-Conacri, como também poderia falar de outros países, na altura, de orientação socialista. Tivemos professores que vinham da antiga RDA, que vinham da Bulgária, que vinham da antiga União Soviética”, recorda a dirigente associativa ao referir que foram orientados para “quase todas as áreas”. Olhando retrospectivamente para aquela época, Alberto Simão considera que os jovens da sua geração amadureceram sob o impulso da urgência. “Impelia-nos o sentimento de que esta obrigação era eminentemente nossa, porque o processo de descolonização foi um processo visível. Foi um processo que nós vivenciamos e acompanhámos porque inclusivamente colegas nossos, que eram colegas de carteira, estudantes, etc, uns despediam-se, outros iam embora sem se despedir. E praticamente todos abalavam em massa. Então nós sentíamos que havia um vazio. Aliás, nessa altura, alguns dos serviços que deveriam ter sido prestados por alguns sectores do Estado e mesmo até privados, começaram a entrar assim numa espécie de falência. (…) E os tais quadros potenciais na altura, na verdade éramos nós então. Lá fomos porque também uma coisa vantajosa em ser jovem é que as situações apanham-nos às vezes de surpresa, mas fica também patente a ideia de que o espírito de aventura, também de participação, de fazer as coisas acontecerem e de mostrar um pouco do nosso valor, está lá, presente. Isso impele-nos e não temos tanto as hesitações que talvez o adulto normalmente tem. O jovem vai para a frente. Foi o que nós fizemos”, conclui o economista moçambicano. Podem ouvir os nossos entrevistados na íntegra aqui:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No quinto episódio desta digressão, evocamos a independência de Moçambique. Após vários anos em várias frentes de guerra, capitães das forças armadas portuguesas derrubam a ditatura no dia 25 de Abril de 1974. A revolução dos cravos levanta ondas de esperança em Portugal mas também nos países africanos. A independência pode estar por perto, mas é ainda preciso ver em que modalidades. Óscar Monteiro, militante sénior da Frelimo e um dos membros da delegação que negociou os acordos de Lusaka juntamente com Portugal, recorda como recebeu a notícia. “No dia 25 de Abril, tenho a primeira notícia sobre o golpe de Estado em Portugal, quando procurava ouvir a Rádio França Internacional. Nós estávamos num curso político e eu estava à procura do noticiário da RFI quando ouço ‘Cette fois, c'est pour de bon' (desta vez, é a valer). Então parece que houve mesmo qualquer coisa em Portugal e a partir daí começamos a procurar informações. No dia 27, nós produzimos uma declaração que eu acho que foi dos mais bonitos documentos políticos em que participei. Continuamos a dar aulas porque era a nossa tarefa. A luta não termina só assim. Mas à tarde o Samora chamou-nos, nós tínhamos um telefone de campanha daqueles com manivela. ‘Venham cá porque a coisa parece ser séria'. Então fomos para lá e começamos a produzir. Devo dizer que estávamos num muito bom momento politicamente e por isso que não ficamos perturbados. Dissemos ‘Sim senhor, muito bem. Felicitamo-nos por esta vitória do povo português, mas a nossa luta é pela independência.' (...) Sabe que o Manifesto das Forças Armadas tinha só uma linha, a linha final, que dizia depois de 20 e tal pontos sobre a democratização de Portugal, dizia que ‘a solução do problema do Ultramar é política e não militar.' Quer dizer, foi agarrados nessa linha que nós começámos as primeiras conversações. Aí devo dizer e relevar que nós nunca falamos suficientemente do papel do Dr. Mário Soares, que propõe logo conversações com os movimentos de libertação. E, portanto, estamos a falar logo no dia 5 de Maio por aí. Ele vem a Lusaka. Nós ensaiamos esse momento. Então vamos para lá, mas como é que cumprimentamos? Então dissemos ‘Não vamos cumprimentar, dizendo o seguinte -até me recordo da frase- Apertamos a mão porque o senhor representa um Portugal novo'. Sabe que para evitar intimidades excessivas, até pedimos aos zambianos, porque as conversações foram em Lusaka para não os forçar a vir a Dar-es-Salaam, que era muito conotado com o apoio aos movimentos de libertação. E ele surpreendeu-nos quando nós começamos com a nossa expressão ‘saudamos o novo Portugal'. Ele disse ‘deixe-me dar-lhe um abraço' e atravessou a mesa que nós tínhamos posto para separar e dá um abraço ao Presidente Samora. Eu acho que isso foi de uma grande generosidade humana, porque a opinião pública portuguesa não estava preparada para aceitar a independência. Nós éramos os ‘terroristas', nós éramos ‘os pretos', nós éramos ‘os incapazes.' Como é que eles vão ser capazes de governar? O que explica depois o abandono em massa dos colonos. Portanto, nós começamos este período de negociações com muitos factores contra nós. Eu acho que foi a qualidade e a generosidade dos moçambicanos que permitiu que este processo tivesse andado bem. (...) Eu sei que a solidariedade da opinião pública portuguesa, não da classe política mais avançada, não do Movimento das Forças Armadas, foi mais para com os colonos do que para connosco. E houve a ideia de que nós, intimidamos os colonos. Não. Os colonos, intimidaram-se com o seu próprio passado. Quer dizer, cada um deles pensava como tinha tratado o seu empregado doméstico, como tinha tratado o negro no serviço e fugia, fugia de si-próprio, não fugia de perseguições. Nessa altura, e honra seja feita ao Presidente Samora, ele desdobrou-se em declarações até que, a um certo ponto algumas pessoas disseram Mas olha lá, vocês estão sempre a falar da população portuguesa que não deve sair, que são tratados como iguais. Vocês já nem falam muito a nós moçambicanos negros. Mas era deliberado, era deliberado porque nós sabíamos que a reconstrução do país só com moçambicanos negros ia ser muito difícil. E felizmente -é um ponto que vale a pena neste momento focar- houve muitos jovens, a nova geração, brancos, mulatos, indianos que eram estudantes da universidade, que tinham criado um movimento progressista e que foram eles, naquela fase em que era preciso pessoas com alguma qualificação, que foram os directores, os colaboradores principais dos ministros. E é momento também de prestar homenagem a essa nova geração. Foi um grupo progressista que se pôs declaradamente ao lado da independência. Também tiveram as suas cisões. Houve outros que foram embora. São transições sociais muito grandes. Nós próprios estamos a passar transições muito grandes”, diz Óscar Monteiro. Pouco depois do 25 de Abril, as novas autoridades portuguesas e a Frelimo começaram a negociar os termos da independência de Moçambique. O partido de Samora Machel foi reconhecido como interlocutor legítimo por Portugal e instituiu-se um período de transição num ambiente de incerteza, recorda o antigo Presidente Joaquim Chissano. “A nossa delegação veio com a posição de exigir uma independência total, completa e imediata. Mas pronto, tivemos que dar um conteúdo a esse ‘imediato'. Enquanto a delegação portuguesa falava de 20 anos, falávamos de um ano e negociamos datas. Deram então um consenso para uma data que não feria ninguém. Então, escolhemos o 25 de Junho. Daí que, em vez de um ano, foram nove meses. E o que tínhamos que fazer era muito simples Era, primeiro, acompanhar todos os preparativos para a retirada das tropas portuguesas com o material que eles tinham que levar e também em algumas partes, a parte portuguesa aceitou preparar as nossas forças, por exemplo, para se ocupar das questões da polícia que nós não tínhamos. Houve um treino rápido. Depois, na administração, nós tínhamos que substituir os administradores coloniais para os administradores indicados pela Frelimo. Falo dos administradores nos distritos e dos governadores nas sedes das províncias. Nas capitais provinciais, portanto, havia governadores de província e administradores de distritos e até chefes de posto administrativo, que era a subdivisão dos distritos. E então, fizemos isso ao mesmo tempo que nos íamos ocupando da administração do território. Nesses nove meses já tivemos que tomar conta de várias coisas: a criação do Banco de Moçambique e outras organizações afins, seguros e outros. Então houve uma acção dos poderes nesses organismos. Ainda houve negociações que foram efectuadas em Maputo durante o governo de transição, aonde tínhamos uma comissão mista militar e tínhamos uma comissão para se ocupar dos Assuntos económicos. Vinham representantes portugueses em Portugal e trabalhavam connosco sobre as questões das finanças, etc. E foi todo um trabalho feito com muita confiança, porque durante o diálogo acabamos criando a confiança uns dos outros”, lembra-se o antigo chefe de Estado moçambicano. Joaquim Chissano não deixa, contudo, de dar conta de algumas apreensões que existiam naquela altura no seio da Frelimo relativamente a movimentos contra a independência por parte não só de certos sectores em Portugal, mas também dos próprios países vizinhos, como a África do Sul, que viam com maus olhos a instauração de um novo regime em Moçambique. “Evidentemente que nós víamos com muita inquietação essa questão, porque primeiro houve tentativas de dividir as forças de Moçambique e dar falsas informações à população. E no dia mesmo em que nós assinamos o acordo em Lusaka, no dia 7 de Setembro, à noite, houve o assalto à Rádio Moçambique por um grupo que tinha antigos oficiais militares já reformados, juntamente com pessoas daquele grupo que tinha sido recrutado para fazer uma campanha para ver se desestabilizava a Frelimo”, diz o antigo lider politico. A 7 de Setembro de 1974, é assinado o Acordo de Lusaka instituindo os termos da futura independência de Moçambique. Certos sectores politicos congregados no autoproclamado ‘Movimento Moçambique Livre' tomam o controlo do Rádio Clube de Moçambique em Maputo. Até serem desalojados da emissora no dia 10 de Junho, os membros do grupo adoptam palavras de ordem contra a Frelimo. Na rua, edificios são vandalizados, o aeroporto é tomado de assalto, um grupo armado denominado os ‘Dragões da Morte' mata de forma indiscriminada os habitantes dos bairros do caniço. O estudioso moçambicano Calton Cadeado recorda esse momento. “Foi notório, naquela altura, que havia uma elite branca colonial que percebeu que ia perder os seus privilégios e ia perder poder. Isto é mais do que qualquer coisa, poder, influência, que eles tinham aqui, poder económico. Não estavam predispostos a negociar com a nova elite dirigente do Estado e temiam que eles fossem subalternizados. Então construíram toda uma narrativa de demonização da independência e das futuras lideranças, a tal ponto que criou um certo ódio dentro da sociedade portuguesa. E vale dizer que este ódio não era generalizado. Podemos ir ver nos jornais de 1974, temos o retrato de pessoas que vivenciaram abraços entre militares da Frelimo e militares portugueses que estavam a combater juntos e que diziam que não percebiam o motivo de tanta matança que existia entre eles, mas fizeram um abraço e estavam dispostos a fazer a reconciliação. Mas a elite branca e económica que tinha perdido e sentia que ia perder os privilégios, os benefícios, criou esta narrativa e esta narrativa foi consumida por algumas pessoas também dentro do círculo de defesa e segurança. Estou a falar da PIDE e da DGS a seguir. Não é toda a gente. Houve alguns círculos que conseguiram mobilizar algumas pessoas para fazer a desordem que aconteceu a seguir ao dia 7 de Setembro, que é a tomada do Rádio Clube. Depois tivemos o dia 21 de Outubro, que foi um dia sangrento, violento na história aqui em Moçambique. E quem estiver aqui em Maputo e for visitar a Praça 21 de Outubro e conversar com as pessoas que viviam naquelas zonas, percebem a violência que foi gerada. Infelizmente, essa foi uma violência que tomou conotações de cor de pele. Que era matar o branco, matar o negro. Mas foi uma coisa localizada, de curta duração, que não foi para além daqueles dias, porque a euforia da preparação e da visão da independência que vinha ali era mais forte do que o contágio de ódio que foi gerado entre estes grupos. Entretanto, não podemos menosprezar esse ódio que foi gerado. Essas perdas foram geradas porque as pessoas que perderam os privilégios não se resignaram, não se conformaram e, por causa disso, saíram de Moçambique. Foram se juntar a outros e fizeram o estrago que fizeram com a luta de desestabilização de 1976 a 1992, que aconteceu aqui”, conta Calton Cadeado. Vira-se uma página aos solavancos em Moçambique. Evita-se por pouco chacinas maiores. Antigos colonos decidem ficar, outros partem. Depois de nove meses de transição em que a governação é assegurada por um executivo hibrido entre portugueses e moçambicanos, o país torna-se oficialmente independente a 25 de Junho de 1975. Doravante, Moçambique é representado por um único partido. Uma escolha explicada por Óscar Monteiro. “Pouco depois do 25 de Abril. Começam a pulular pequenos movimentos. Há sempre pessoas que, à última hora, juntam algumas iniciais e criam um partido político. Houve quantidades de organizações e uma parte poderia até ser genuína, mas nós sentimos que essa era a forma de tentar frustrar a independência. Isso foi a primeira fase. Depois, houve outra coisa. Agora é fácil falar dessa época, mas naquele momento, nós estávamos a cravar um punhal no coração da África branca, e essa África branca ia reagir. Portanto, tínhamos a oeste, à Rodésia, tínhamos a África do Sul, Angola tinha Namíbia e África do Sul. Então, é neste contexto que nós temos que preparar uma independência segura, uma independência completa, Porque esta coisa de querermos ser completamente independentes é um vício que nos ficou mesmo agora. Nós queremos ser independentes”, explica o membro sénior da Frelimo ao admitir que ao optarem pelo monopartidarismo os membros da sua formação demonstraram “um bocado de autoconfiança excessiva e mesmo uma certa jactância”.
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No quarto episódio desta digressão, evocamos o massacre de Wiriyamu, em 1972. O Massacre de Wiriyamu ou “Operação Marosca” aconteceu a 16 de Dezembro de 1972. Depois de dois capitães portugueses morrerem quando o seu veículo pisou numa mina, as tropas coloniais massacraram pelo menos 385 habitantes da aldeia de Wiriyamu e das localidades vizinhas de Djemusse, Riachu, Juawu e Chaworha, na província de Tete, acusados de colaborarem com os independentistas. A ordem foi de "matar todos", sem fazer a distinção entre civis, mulheres e crianças. Algumas pessoas foram pura e simplesmente fuziladas, outras mortas queimadas dentro das suas habitações incendiadas. Mustafah Dhada, historiador moçambicano e professor catedrático na Universidade da Califórnia, dedicou uma parte importante da sua vida a investigar o que sucedeu em Wiriyamu. “O massacre, tem que ser contextualizado no espaço do sistema colonial português em África. E nesse sentido, o massacre era um dos vários massacres que aconteceram em Moçambique, em Angola, na Guiné-Bissau, em São Tomé e Príncipe e também o massacre estrutural do meio ambiente em Cabo Verde. Devemos notar uma coisa: a guerra colonial portuguesa, a baixa era de 110.000 pessoas, aproximadamente civis na nossa parte dos libertadores e dos colonizados e o massacre é somente 385 pessoas que têm um nome e outros que desapareceram sem nome. E neste sentido o massacre é, do ponto de vista quantitativo, um massacre que tem uma significação menor. Mas o que foi importantíssimo é que o massacre não iria ser reconhecido como um evento tectónico se não tivesse havido uma presença da Igreja -não portuguesa- em Tete”, sublinha o historiador aludindo às denuncias que foram feitas por missionários a seguir ao massacre. “A história rebentou no ‘Times of London' em Julho de 1973, e aquilo teve em mim um impacto muito grande. Quando tive uma oportunidade de ir para Moçambique para reconstruir a anatomia do massacre, eu tive uma bolsa da Fulbright nos Estados Unidos, fui ali e parei no sítio mesmo do massacre, onde durante oito meses eu conduzi entrevistas com 206 famílias, famílias com três a quatro membros, e fiz uma reconstrução quase completa. O meu objectivo era duas coisas: normalmente os estudiosos que fazem estudos como esses, sobre a violência em massa colonial ou pós-colonial, focam-se exclusivamente sobre o objectivo de reconstruir a anatomia do massacre. Para mim, eu pensei que ‘porque é que nós estamos focados somente na anatomia da matança, sem primeiramente ressuscitar o que foi perdido depois do massacre?' Neste sentido, eu fiz um estudo onde eu reconstruí a vida, a história sociocultural das aldeias do Triângulo de Wiriyamu para apreciar qual foi o peso do massacre, o que é que nós perdemos devido esse massacre, quantos porcos eles tinham, quantas cabras, quantas galinhas e etc, etc. Onde é que estavam os riachos? Quantas pedras, quantas árvores e os caminhos que estavam aí? Dissecar a anatomia do que aconteceu, documentar a hora a hora, minuto a minuto”, refere o universitário reconhecendo que existem lacunas no seu trabalho. “Nós não sabemos o que aconteceu na última fase da matança, em que os comandos estavam a ir caçar as pessoas que sobreviveram ao massacre. No dia antes, naquele sábado, e também o que se passou numa vila pequenina que era abaixo da vila de Wiriyamu, que se chamava Riachu”, admite o historiador. Meses depois do massacre, um sacerdote britânico, Adrian Hastings, denunciou o sucedido num livro editado em Julho de 1973, sendo que Peter Pringle, jornalista do ‘Times of London', publica na mesma altura um artigo e fotografias relatando o que viria ser considerado um dos episódios mais chocantes da guerra de libertação. Estas revelações coincidiram com a visita do então chefe do executivo português, Marcelo Caetano, a Londres, com um impacto desastroso para um regime já sob pressão tanto no terreno como a nível diplomático. “Eu conheci o Padre Adrian Hastings, anos e anos. Era um jovem. Ela era o meu mentor naquele tempo. E eu que fiz a classificação dos documentos dele que agora estão anos arquivos da York University. O padre Adrian Hastings estava envolvido no Instituto Católico das Relações Internacionais. E no âmbito desta visita (de Marcelo Caetano), o Instituto queria montar uma discussão objectiva sobre a relação entre Grã-Bretanha e Portugal naquele tempo. Adrian Hastings ouviu ecos desses massacres, mas tangencialmente, porque a história já tinha sido revelada num jornal espanhol e também italiano. Mas não tinha pernas para andar mais à frente. Naquele tempo, o padre Adrian Hastings tinha que sair para o Zimbabué para dar algumas palestras histórico-eclesiásticas. É ali que ouviu falar sobre o massacre. Viu os padres Burgos (da Rodésia), cuja relação com os padres Burgos de Moçambique estava bem forte e bem estabelecida. Dessa maneira, os Burgos da Rodésia do Sul disseram ao padre Hastings ‘olha, se tu queres detalhes sobre este massacre que nós sabemos que aconteceu, vai lá falar com o XXX em Madrid.' O padre ia para uma conferência em Salamanca. Foi ali que a história lhe foi revelada. De maneira que mudou o plano dele. Foi a Madrid e falou com o padre Superior dos Burgos. Depois de alguns dias, o padre superior enviou-lhe documentos primários. Ali foi a primeira revelação para o padre Hastings. E ele agora sentiu que havia aqui uma coisa tectonicamente importante. Mas o problema era que ele não tinha nenhuma ligação com o ‘Times of London'. O editor do ‘Times of London' era de uma camada social proto-aristocrática e tinha sido formado em Oxford. O padre era de Oxford e o hábito dele era simplesmente às 16h00 de ir para o clube dele, que era o ‘Oxford Cambridge Club', onde ele tomava um ‘Gin tónico'. Naquele dia, ele disse ao sub-editor que já tinha experiência como sub-editor em Washington DC que era a pessoa que tinha a responsabilidade executiva para tomar uma decisão. E ele é que decidiu publicar a história na primeira página. É ali que foi a revelação”, conta Mustafah Dhada. “Quando a história rebenta, o Caetano e a reputação do governo português está verdadeiramente danificada, porque isto revela-se em 1973 e no 25 de Abril de 1974, há uma revolução em Portugal. Durante essa época, também houve a publicação do livro do Spínola (“Portugal e o futuro”). De maneira que a história não somente era tectónica do ponto de vista da conduta dos militares na África portuguesa, mas também internacionalmente. Dizia ao mundo ‘Olha, vocês devem olhar o que é que está a acontecer aqui Internacionalmente', porque Portugal também era um membro da NATO, tinha os benefícios da NATO, etc, etc. Mas quando ele volta para Lisboa, há impactos internos juntamente com a publicação do livro 'Portugal e o futuro'. O regime já está aí perto do mortuário”, diz o estudioso. No terreno, a Frelimo, então ainda em plena luta contra as tropas coloniais, não soube imediatamente do sucedido, conta ainda Mustafah Dhada. “A Frelimo não sabia dinamicamente o que estava acontecer. A única pessoa que tinha verdadeiramente fontes primárias sobre o massacre de Wiriyamu era um comandante extraordinário da etnia maconde, cujo nome agora me falha, e um moço pequeno, que era sobrevivente dos acontecimentos. Havia redes que são muito complicadas de explicar aqui, mas de qualquer maneira, a Frelimo não tinha necessariamente uma ideia do que estava a acontecer. Havia claramente reportagens, mas essas eram reportagens secundárias. Isso não quer dizer que a Frelimo estava aí sem um modo de saber. O problema era simplesmente de comunicação logística. E sabes-se que na guerra de guerrilha, não se podia utilizar métodos modernos para comunicar, porque guerra era guerra. (...) De maneira que a Frelimo só soube desses massacres quando o pequeno moço António Mixone (sobrevivente do massacre), chegou via a Zâmbia e depois foi entrevistado. Mas quando o Adrian Hastings e o meu amigo Peter Pringle foram para os Estados Unidos, às Nações Unidas, para dar evidências e verificações, o Marcelino dos Santos é que ficou a saber disso pelo padre Adrian Hastings. O padre Adrian disse-me que ele obviamente não queria associar o nome dele com a Frelimo, simplesmente porque aquilo iria danificar a integridade da sua personalidade e da história. Em conclusão, nós podemos dizer que a Frelimo chegou à mesa do jantar um bocadinho tarde”, conta Mustafah Dhada. Por sua vez, o antigo Presidente moçambicano, Joaquim Chissano, recorda o impacto que o massacre teve no decurso da guerra de libertação. “Tornou-se claro que a nossa luta tinha razão de ser e que o colonialismo português não queria ceder, nem dialogar, nem nada. Então ganhamos já a opinião pública mundial. Foi sobretudo pelo trabalho que nós fazíamos a nível diplomático, porque a nossa luta não foi só luta armada”, diz o antigo chefe de Estado. O governo português desmentiu os acontecimentos, apesar de este assunto constar das discussões do Conselho de Ministros, a 18 de Agosto de 1973 e apesar também de um relatório interno comprovar os factos relatados. Assunto tabu durante largos anos, o massacre de Wiriyamu acabou por ser reconhecido e ser objecto de um pedido de desculpas oficial formalizado em 2022 pelo Primeiro-ministro português da época, António Costa, por ocasião de uma visita a Moçambique. Mustafah Dhada que tinha publicado havia pouco a versão portuguesa de um dos livros que dedicou ao massacre de Wiriyamu, recorda as circunstâncias em que chegou este pedido de desculpas. “Havia um silêncio e um silêncio enorme. Mas eu estive em Portugal e estive ali como investigador associado na universidade de Coimbra, onde que eles lançaram o meu livro e depois o livro foi traduzido em português. Depois de uma campanha com a ajuda dos sábios, dos estudiosos portugueses, o Primeiro-ministro recebeu uma cópia desses livros e outros membros do gabinete português receberam também. Foi mandada uma cópia para a cúpula militar portuguesa e eles confidencialmente disseram ‘sim, o livro claramente está a esclarecer aqui o que aconteceu e com definição'. Essa foi a resposta que eles deram ao Primeiro-ministro. E o Primeiro-ministro que agora é o presidente da Comissão Europeia (António Costa), finalmente admitiu publicamente em Moçambique que ‘sim, nós fizemos este massacre e estamos aqui a pedir desculpa'”, conta o investigador. “Nós, como historiadores, trabalhamos anos para reconstruir o passado, mas os nossos trabalhos não são reconhecidos, mas têm um peso para mudar a consciência de um país. Eu não estou a sugerir aqui que eu sou importante. É simplesmente dizer que uma obra como essa, para os historiadores, verdadeiramente dão-nos uma esperança para nos engajar numa disciplina que tem um peso e que provavelmente tem uma influência para reagir e para mudar o ritmo historiográfico de um país”, remata Mustafah Dhada. Podem ouvir o nosso entrevistado na íntegra aqui:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No terceiro episódio desta digressão, evocamos as circunstâncias em que foi lançada a guerra de libertação de Moçambique. A 16 de Junho de 1960 deu-se um episódio que foi um marco antes do desencadear da luta armada. Naquele dia, foi organizado um encontro em Mueda, no extremo norte do país, entre a administração colonial e a população local que reclamava um preço justo pela sua produção agrícola. Só que no final dessa reunião que teria sido exigida pela MANU, uma organização independentista que viria a integrar a Frelimo, deu-se a detenção de alguns dos representantes do povo e em seguida a execução a tiro de um número até agora indeterminado de pessoas. O historiador Luís Covane recorda as circunstâncias do sucedido. “Primeiro, a injustiça praticada na compra dos produtos agrícolas dos camponeses e entra para primeiro a luta pela melhoria das condições de compra e venda dos seus produtos e a intransigência do outro lado da força”, começa por explicar o historiador recordando que nos “anos 60, os movimentos para a conquista da independência sem violência nos países vizinhos já eram uma realidade. Os ingleses, os franceses, adoptaram um sistema de entrega, ajudaram até a desenhar a bandeira, o hino nacional, a segurança”. “Acontece que Portugal era um país colonizador. Mas na sua própria colónia, também era colonizado. Por exemplo, o sul de Moçambique exportava mão-de-obra. O Governo que viesse nesse assunto de exportação de mão-de-obra não havia de precisar de Portugal”, refere por outro lado o estudioso ao sublinhar paralelamente que “Portugal investiu muito pouco na Educação. Assim, em 1975, o nível de analfabetismo em Moçambique era de 93%. Apesar de Salazar ter feito entendimentos com a Santa Sé em 1940. (...) Para entrar na escola, já para o escalão mais avançado, era preciso ser assimilado. Mas lá no campo, tinha-se 18 anos, já se era objecto de perseguição para o trabalho, não havia espaço, também não havia escolas para isso, não havia escolas secundárias, não tinha como. Uma pessoa sabia ler e escrever e pronto, acabou. Podia ser catequista, no máximo. O investimento que não se fez na educação tornou a situação em Moçambique muito mais delicada.” Dois anos depois do massacre de Mueda, três organizações nacionalistas, a UDENAMO, União Democrática Nacional de Moçambique, a MANU, Mozambique African National Union, e a UNAMI, União Nacional Africana de Moçambique Independente, reúnem-se em Dar-es-Salaam, na Tanzânia, a 25 de Junho de 1962 e fundem-se numa só entidade, a Frelimo, Frente de Libertação de Moçambique. Sob a direcção do seu primeiro presidente, o universitário Eduardo Mondlane, e a vice-presidência do reverendo Uria Simango, a Frelimo tenta negociar a independência com o poder colonial, em vão. A partir de 1964, começa então a acção armada. O antigo Presidente moçambicano, Joaquim Chissano, recorda essa época em que tomaram conhecimento da existência de movimentos independentistas nos países vizinhos de Moçambique e decidiram se inspirar deles. “Nessa altura, nós, já estudantes, que tínhamos deixado Portugal, que estávamos na França, tomamos conhecimento disso juntamente com o Dr. Eduardo Mondlane, que trabalhava nas Nações Unidas. No nosso encontro em Paris decidimos que devíamos trabalhar, a partir daquele momento, para a unificação dos movimentos de libertação, para que houvesse uma luta mais forte. Mesmo a luta diplomática, que foi a coisa que começou, havia de ser mais forte se houvesse um movimento unificado. É assim que surge uma frente. (...) Foram três movimentos que formaram uma frente unida que se chamou a Frente de Libertação de Moçambique. E essa Frente de Libertação de Moçambique continuou a procurar meios para ver se os portugueses haviam de acatar a Resolução das Nações Unidas de 1960 sobre a descolonização. E, finalmente, quando se viu que, de facto, os portugueses não iriam fazer isso, particularmente depois do massacre da Mueda, decidiu-se começar a preparação para uma insurreição armada. E assim houve treinos militares na Argélia, onde foram formados 250 homens, porque também a luta dos argelinos nos inspirou. Então, eles próprios, depois da criação da Organização da Unidade Africana e da criação do Comité de Coordenação das Lutas de Libertação em África, fomos a esses treinos na Argélia e a Argélia é que nos forneceu os primeiros armamentos para desencadear a luta de libertação nacional”, recorda o antigo Chefe de Estado. Ao referir que a causa recebeu apoio nomeadamente da Rússia e da China, Joaquim Chissano sublinha que “a luta foi desencadeada com a ajuda principalmente africana. E mais tarde vieram esses países. A Rússia deu um apoio substancial em termos de armamento. (...)Depois também mandamos pessoas para serem treinadas na China e mais tarde, já em 1965, quando a China fica proeminente na formação político-militar na Tanzânia, mandaram vir instrutores a nosso pedido e a pedido da Tanzânia.” Sobre o arranque da luta em si, o antigo Presidente moçambicano refere que os ataques comeram em quatro frentes em simultâneo. “Nós, em 1964, criámos grupos que enviamos para a Zambézia, enviamos para Niassa, enviamos para Cabo Delgado e enviamos para Tete. Portanto, em quatro províncias simultaneamente. No dia 25 de Setembro (de 1964) desencadeamos a luta armada de libertação nacional. Porque também a ‘insurreição geral armada', como o Presidente Mondlane denominou, começou em quatro províncias em simultâneo”, recorda Joaquim Chissano. Óscar Monteiro, membro sénior da Frelimo e antigo representante do partido em Argel, também recorda a época em que, jovem líder estudantil em Portugal, integra as fileiras da Frelimo em 1963. “Eu começo por ser um dirigente estudantil em Portugal. Sou um dirigente da Associação Académica de Coimbra, juntamente com outras pessoas, como Manuel Alegre. É um nome de que me recordo. Éramos colegas de estudo. E éramos colegas no movimento estudantil e, ao mesmo tempo, sendo parte do movimento estudantil, vou migrando para o movimento anticolonial, Na Casa dos Estudantes do Império e mais tarde sou recrutado por Marcelino dos Santos, aproveitando uma viagem de fim de curso em que eu levava um relatório da célula do PAIGC em Coimbra para uma pessoa do PAIGC em Paris. Sou recrutado para organizar os estudantes moçambicanos em Portugal, mas também os estudantes de todas as colónias. Não sou dos primeiros nacionalistas em Portugal, mas sou do grupo que permanece em Portugal depois da grande fuga dos anos 62. Então, esse meu trabalho começa em 63. Em 63, eu recebo essa missão, na qual me empenho, saio de Coimbra para Lisboa. Ainda publicamos boletins, um boletim chamado Anti-Colonial. E acontece que ousamos demais. Começamos a distribuir o Boletim Anticolonial em Moçambique, na Beira e em vários sítios, mas na Beira é que somos apanhados e eu sou avisado por um colega meu que ainda está aqui, o Luís Filipe Pereira, um pedagogo. Ele avisa-me ‘Olha fulano de tal e fulano de tal foram presos.' Foi o sinal para mim de passar a uma outra vida, que é uma vida completamente diferente, que é de me esconder. A gente poderia dizer de uma maneira muito elegante ‘passei à clandestinidade', mas no fundo eu estava simplesmente a fugir. Não estava a fazer clandestinidade. Tinha feito antes, mas nesse momento saí pela porta de trás e pronto, cheguei a Paris utilizando o caminho dos imigrantes. Fui esperando lá. Continuando a manter a relação com os estudantes em Portugal e mais tarde sou chamado para a Argélia por Pascoal Mocumbi, que me tinha visto em Paris e que eu conhecia porque ele era muito amigo do Chissano”, conta Óscar Monteiro. Ao evocar a missão que lhe incumbia em Argel, Óscar Monteiro refere que o seu trabalho consistia em “fazer a propaganda do movimento de libertação em francês. Nós já tínhamos representações no Cairo, tínhamos um departamento de informação que produzia documentos, o ‘Mozambique Revolution', que era uma revista muito apreciada, que depois era impressa mesmo em offset. Mas não tínhamos publicações em francês. Então, coube-nos a nós, na Argélia, já desde o tempo do Pascoal Mocumbi, produzir boletins em francês, traduzir os comunicados de guerra e alimentar a imprensa argelina que nos dava muito acolhimento sobre o desenvolvimento da luta, a abertura da nova frente em Tete, etc e ganhar o apoio também dos diplomatas de vários países, incluindo de países ocidentais que estavam acreditados na Argélia. Falávamos com todos os diplomatas. Prosseguimos esses contactos. O grande trabalho ali era dirigido sobre a França e sobre os países de expressão francesa. Era um tempo de grande actividade política, é preciso dizer. Eram os tempos que precederam o Maio de 68. Enfim, veio um bocado de toda esta mudança. E tínhamos bastante audiência”. A 3 de Fevereiro de 1969, em Dar-es-Salaam onde está sediada a Frelimo, Eduardo Mondlane abre uma encomenda que contém uma bomba. A explosão do engenho é-lhe fatal. Até agora, pouco se sabe acerca desse assassínio sobre o qual Joaquim Chissano, então responsável do pelouro da segurança da Frelimo, acredita que haverá a mão da PIDE, a polícia política do regime fascista de Portugal. “Havia já alguns indícios de que havia movimentos de pessoas enviadas pelo colonialismo, mesmo para a Tanzânia, como foi o caso do Orlando Cristina, que chegou a entrar em Dar-es-Salaam e fazer espionagem. Disse que trabalhou com os sul-africanos em 1964 e continuou. Depois houve o recrutamento, isso já em 1967-68, de pessoas da Frelimo que tentaram criar uma divisão nas linhas tribais, mas que na realidade não eram representativos das tribos que eles representavam, porque a maioria eram ex-combatentes que estavam solidamente a representar a unidade nacional. Foi assim que tivemos uns traidores que depois foram levados pelos portugueses de avião e de helicópteros e entraram a fazer campanha aberta, propaganda e até houve um grupo que chegou a reivindicar a expulsão do nosso presidente, dizendo que ele devia receber uma bolsa de estudos. Quer dizer, a ignorância deles era tal que eles não viram, não souberam que ele era um doutor -duas vezes doutor- e que não era para pensar em bolsa de estudo. Mas pronto, havia um movimento de agitação. Mas a frente era tão sólida que não se quebrou. Por isso, então, foi se fortalecendo à medida que íamos andando para a frente”, conclui Joaquim Chissano. Podem ouvir os nossos entrevistados na íntegra aqui:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No segundo episódio desta digressão, evocamos as circunstâncias em que se deu a ocupação efectiva de todo o território que viria a ser Moçambique. Após séculos de ocupação muito relativa de Moçambique, os portugueses, mais concentrados até agora no comércio de matérias-primas e de mão-de-obra escrava -apesar da abolição da prática no decurso da primeira metade do século XIX- enfrentam a concorrência cada vez mais feroz de outras potências coloniais, em particular da Grã-Bretanha. No âmbito da conferência de Berlim de 1884-1885 em que os regimes coloniais europeus repartiram entre eles os territórios africanos, Portugal apresentou o que ficou conhecido como o “Mapa cor-de-rosa”, um projecto estabelecendo novas fronteiras para o império africano português e em que Angola ficava ligada a Moçambique. Só que a coroa britânica tinha a ambição de ligar por via-férrea a África do Sul ao Egipto. A Rainha Vitória lançou então um ultimato a Portugal em 1890, recorda o académico moçambicano Luís Covane. “Portugal queria, por exemplo, ter uma colónia em África. Como Angola e Moçambique apareciam ligados e era chamado para o “mapa cor-de-rosa”, que não foi negociado nem com os franceses nem com os ingleses, e deu logo com um projecto britânico de construir uma linha férrea que ligaria o Cabo ao Cairo, em território britânico. Esse era um projecto também alimentado por sacerdotes e isso resultou num ultimato muito agressivo contra Portugal”, conta o historiador referindo que “Portugal teve que se encolher e abandonar as terras que reclamava como suas.” Na ânsia de evitar os crescentes apetites dos restantes impérios sobre os territórios que controlava, Portugal adopta uma política de conquista e ocupação efectiva de Moçambique, não sem enfrentar resistência. O caso mais emblemático será o do imperador de Gaza, Ngungunhane, que tentou lutar contra a ocupação portuguesa mas acabou por ser capturado em 1895 pelo oficial Mouzinho de Albuquerque, sendo em seguida levado para Lisboa onde foi exibido perante a multidão, antes de ser deportado para os Açores onde faleceu em 1906. “Ngungunhane é neto daquele que construiu o Império de Gaza, que veio da Zululândia, parte da África do Sul, nas primeiras décadas do século XIX. Invadiram o território. Encontraram um território sem grandes unidades políticas, pequenos reinos, pequenas unidades políticas. E eles eram guerreiros.”, recorda Luís Covane. “Quando se realiza a Conferência de Berlim e a pressões sobre Gaza, os protugueses avaliaram Gaza. Era um grande império, com uma força militar tremenda e Portugal sentia-se inferior. Quis assinar um tratado de vassalagem. Dizer que ‘vocês fazem parte de Portugal'. (...) A coisa não correu lá muito bem e esse fracasso cimentou nas lideranças militares e civis portuguesas que era necessário ir para o conflito armado. E Mouzinho de Albuquerque é aquele que comandou as forças portuguesas para a conquista de Gaza. E quando ele vai para onde ele (Ngungunhana) estava baseado (...) ele levou a tropa portuguesa para o combate. A sorte dele é que, de facto, a povoação estava desguarnecida. Até o chefe do exército não estava lá e não teve como enfrentar aquela força. Foi assim que Ngungunhane é preso em Chaimite por Mouzinho de Albuquerque que foi celebrado como um combatente muito valente”, recorda o universitário. Dez anos após a independência de Moçambique, o executivo português restituiu os restos mortais de Ngungunhane ao seu país, a pedido de Samora Machel que o apresentou como um herói. Esta não deixa contudo de ser uma figura controversa, dado o rasto de crueldade que marcou o seu reinado, com refere outro estudioso, Egidio Vaz, também parlamentar da Frelimo no poder. “Depois de o Presidente Samora Machel reclamar a suas ossadas, vieram para Moçambique. E depois há uma história muito interessante que aconteceu em Gaza, onde alegadamente se ergueu um busto em sua memória. Porque ele é controverso, no seu último bastião, as pessoas tinham percepções diferentes das oficiais. Então as pessoas usavam o busto de Gungunhana para sacudir enxadas ou afiar catanas quando fossem às machambas. O que significa, por outras palavras, que existe uma percepção diferente de um sanguinário, de um Ngungunhana déspota, de um Ngungunhana que se impôs pela força. Ora, a historiografia moçambicana começa com, diríamos nós, um embuste. Das duas uma, ou Ngungunhana é importante por ter sido capturado pelos portugueses e desterrado para os Açores, onde cuidaram dele até à sua morte. Ou, eventualmente, todos temos uma percepção um pouco mais diferente. Mas qual era o desafio dos historiadores de então, quando se estava a criar uma Nação? Porque este Moçambique é um Estado com várias nações lá dentro, mas que depois, com um objectivo eventualmente de representação e simbolismo”, optou-se por apresentar Ngungunhane como um herói, diz Egidio Vaz que vê na celebração dos 50 anos da independência de Moçambique um oportunidade para “olhar a história de forma crítica”. Entretanto, nos primórdios do século XX, apesar de a escravatura já não existir oficialmente, o trabalho forçado torna-se prática corrente, refere Luís Covane. “Com essa incapacidade de fazer investimentos em áreas de produção mais avançadas, vai-se olhar para o homem como única máquina que pode ser usada. (...) E foi assim criar-se um imposto que tem de ser pago em dinheiro. E o dinheiro só pode ser ganho numa plantação, porque o trabalho é importante, mas a pessoa só vai trabalhar voluntariamente quando é capaz de resolver problemas. Mas o Estado colonial foi capaz de criar problemas que só podiam ser resolvidos com dinheiro. Criar problemas para indígenas, dizer que ‘você tem que pagar imposto em dinheiro'”, explica o historiador ao referir que “o objectivo é de facto colectar o imposto para assegurar mão-de-obra nas plantações dos colonos portugueses que não tinham capacidade de pagar salários. E depois há outra forma que é a introdução de culturas forçadas. Por exemplo, o algodão. As pessoas não comem algodão. E o benefício imediato do algodão, também não o conseguem ver. A indústria têxtil portuguesa precisava de algodão em quantidades cada vez mais crescentes para produzir têxteis a um preço altamente competitivo. Conseguir mão-de-obra, conseguir matéria prima das colónias muito abaixo do mercado internacional para produzir os textéis e vender nas colónias a preços muito acima dos preços praticados. Foi essa lógica”, diz Luis Covane ao referir que a situação torna-se a tal ponto insustentavel que por altura dos anos 60, evita-se ao maximo o convivio entre comunidades em Moçambique. O facto é que a chegada de Salazar ao poder em 1933 em Portugal vem acrescentar o fascismo ao colonialismo, Moçambique vivendo num regime instituindo os privilégios dos colonos face aos assimilados e aos indígenas, recorda o estudioso moçambicano Calton Cadeado. “Do lado do colonizador em relação ao colonizado, por exemplo, havia histórias que se contam sobre a forma como agente colonial não permitia que os moçambicanos negros nativos tivessem acesso a educação, que fosse uma educação de progresso. Havia limitações no acesso à educação para os negros e o limite máximo que alguém podia ir à escola em termos de educação, por vezes não passava da quarta classe e se passasse da quarta classe, era um privilegiado. Há muita gente que nem sequer teve possibilidade de chegar a esta quarta classe porque não era de acesso universal à educação. Essa é uma das formas que as pessoas retratam a violência. Negaram o direito ao conhecimento. Mas, mais do que isso, era também a forma como a polícia, a forma como os serviços de segurança, na altura a PIDE, depois a DGS, perseguia, torturava todos aqueles que tivessem opinião diferente ou ousassem questionar seja o que fosse ligado a aspectos políticos aqui em Moçambique”, refere o estudioso. Num contexto em que lá fora, no resto do mundo, antigas colónias acediam à liberdade, Portugal mantinha com mão de ferro um sistema em que eram muito poucos aqueles que tinham acesso à educação, a empregos assim como à saúde, recorda Helder Martins, ministro da Saúde do primeiro governo de Moçambique independente. “A época colonial, era uma quase escravatura, uma escravatura disfarçada porque, primeiro, às populações, não lhes eram reconhecidos direitos cívicos nenhuns. Havia uma distinção entre os chamados ‘indígenas' e os ‘cidadãos' e, teoricamente, a missão de Portugal, dita civilizadora, entre aspas, consistia no processo de assimilação. Mas em 500 anos de colonialismo, os assimilados foram só 1% da população. Portanto, isto diz tudo. Segundo, havia trabalho forçado, havia por legislação, porque partia-se do princípio que o indígena era preguiçoso e que, portanto, era preciso obrigá-lo a trabalhar e todas as outras coisas, a discriminação racial, etc. Agora na área da saúde, a saúde colonial era do mais incrível que se pode imaginar. Não só era altamente discriminatória, como era discriminação racial descarada, discriminação socioeconómica e discriminação geográfica. Porque a população que vivia nas zonas rurais, naquela altura, 90% da população vivia nas zonas rurais, praticamente não havia infraestruturas de saúde nenhuma. As infraestruturas de saúde estavam nas principais cidades onde viviam os colonos e nas zonas rurais só havia uma delegacia de saúde onde houvesse cinco brancos funcionários públicos. A população não interessava em termos de planificação de saúde. Em qualquer livro de planificação de saúde fica claro que o critério que deve presidir à planificação de saúde é a população. Mas isso nunca foi no tempo colonial. Por outro lado, do ponto de vista técnico, era um sistema anacrónico, atrasado. Bom, Portugal naquela altura era um país atrasado sobre todos os pontos de vista e sob o ponto de vista tecnológico também. E na área da saúde também era. (...) O pouco que havia era os programas de combate às grandes endemias. Mas mesmo isso era anacrónico na sua organização, porque havia diversos programas. O da malária e da tuberculose, ou da lepra, ou da tripanossomíase. Os directores desses serviços dependiam directamente do governador-geral e não do director dos serviços de saúde. Então, não havia coordenação nenhuma. Quer dizer, isto era completamente anacrónico”, conta o antigo governante. Podem ouvir os nossos entrevistados na íntegra aqui:
Moçambique assinala neste 25 de Junho de 2025, os 50 anos da sua independência. Por esta ocasião, a RFI propõe-vos um percurso pela história do país e a sua luta pela liberdade. No primeiro episódio desta digressão, abordamos a presença portuguesa e em particular a escravatura em Moçambique. Chegados em 1497 num território constituído por diversos reinos e comunidades, os portugueses vão-se fixando no litoral através de acordos com as autoridades locais ou à custa de lutas. Eles constroem fortalezas designadamente em Sofala em 1505 e na ilha de Moçambique dois anos depois e ao cabo de outras conquistas militares, instalam mais tarde uma feitoria em Sena em 1530 e em Quelimane em 1544. Em jogo estão recursos como o ouro mas também a mão-de-obra escrava, conta o historiador e antigo vice-ministro da educação de Moçambique, Luís Covane. “Moçambique, como território com fronteiras próprias é produto da colonização. Antes da chegada dos portugueses e nos finais do século XV, Moçambique era caracterizado pela existência de reinos, chefaturas, sultanatos, várias unidades políticas independentes umas das outras. Até tivemos impérios. A partir do século XV, principalmente a partir do século XVI, estabelecem-se relações comerciais entre Portugal e as diferentes unidades políticas que existiam no território. Primeiro foi o comércio do ouro no interior, principalmente na zona centro. Estava lá um grande império. E depois, com a exigência de produção de matérias-primas como mão-de-obra ultra barata, entramos no ciclo dos escravos. Depois, prosperou também o comércio de marfim”, começa por recordar o universitário. Ao referir que praticamente desde a chegada dos portugueses em Moçambique que se instaura esse regime, o estudioso detalha que “é em meados do século XVIII que se incrementa a captura de mão-de-obra para as plantações do Brasil e 1752 em diante. Chama-se a isso, na periodização da história de Moçambique, como o ciclo de escravos. Mas este ciclo de escravos termina em 1836-42, quando houve uma primeira abolição e uma segunda abolição”. Questionado sobre o número de pessoas que poderão ter sido capturadas para serem forçadas ao trabalho escravo, o historiador esclarece que “não havia registos, mas sabe-se que houve zonas em Moçambique, como o Niassa, de onde saíram muitos escravos. Na zona de Nampula, também saíram muitos.” Ao evocar o derramamento de sangue que as capturas ocasionavam, Luís Covane cita em particular “a introdução maciça de armas de fogo para alguns grupos que se especializaram quase na caça ao homem e as populações que viviam em Moçambique nas suas unidades políticas”. Nesse tempo, no século XVIII até meados do século XIX, quase até finais, o estudioso refere que “foram momentos terríveis. Agora, esse passado que nós às vezes classificamos como período pré-colonial, em que a presença europeia era mais mercantil, não dominavam as populações, politicamente, não havia (colonização). Fazia-se um negócio só com os produtos negociados que chegou a incluir o próprio o homem”. Muito embora não fossem os primeiros a praticar o comércio de escravos naquele território, ele ganhou uma importância substancial com a chegada dos portugueses que “exportaram” essa força de trabalho para colónias francesas, ou ainda o Brasil, refere Benigna Zimba, historiadora ligada à Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, que estudou de forma aprofundada o período da escravatura. “Moçambique tem um papel central na história da escravatura na região e no complexo do Oceano Índico. Nós temos, a partir do Norte, a primeira capital que é a ilha de Moçambique. A ilha de Moçambique não produzia escravos. Ali ficavam escravos de passagem, vindos do interior. Nós temos Quelimane, temos Inhambane, nós temos aqui a zona do antigo Lourenço Marques, que hoje é Maputo, nós temos Sofala, nós temos em Cabo Delgado, vários portos pequenos. Estes portos foram tendo a sua importância consoante as oportunidades de exportação, não só para o oceano Indico, mas também para o Norte de África. Em algum momento, um dos grupos que desenvolviam as suas economias locais com base nos escravos, é o grupo do Norte de Moçambique, actual Niassa. Este grupo exportou nos meados da década de 1880 a 1890, cerca de 5000 escravos, caravanas bem escoltadas e chegavam a maior parte aparentemente andando. Saíam escravos de Moçambique. Outros, não só por via marítima, mas para o Quénia. Também havia capturas do Malawi que vinham para Moçambique para poder sair e dos pontos onde iam, eles espalhavam-se. Ficaram conhecidos como os “Moçambiques”, que não eram necessariamente naturais de Moçambique. À medida que ia se desertificando, houve uma decapitação total de população. É por isso que iam cada vez mais para as costas do interior e não para a costa marítima para ir buscar pessoas”, refere a historiadora. Por outro lado, Benigna Zimba explica que havia um tratamento diferenciado para homens e mulheres. “A diferença está mais ligada à função da força de trabalho. Aqueles que compravam escravos, normalmente diziam ‘nós estamos a comprar escravos para levar para as plantações de cana de açúcar ou de cacau', então precisavam de força de trabalho. E também precisavam de reproduzir a população escrava, através de escravas. De tal maneira que nos preços de compra, muitas vezes as mulheres eram mais caras, compradas por dois tecidos, duas cangas, dois panos. E se elas tivessem bebé ou criança, dependendo da idade e da maturidade, sabiam que aqui nós já temos um escravo bebé masculino. Era mais barato. Bebé feminino porque é uma outra fonte de reprodução, era mais caro”, refere a universitaria. “Muitas delas preferiam não resistir à captura para não serem mortas, não serem violadas, não as separarem dos filhos. Havia escravas que eram compradas para ir reproduzir com os escravocratas. Faziam um filho, depois levavam o filho. E a escrava nunca mais via aquela criança. Quando falamos da demografia da escravatura, se formos a ver, o papel da mulher é extremamente importante, porque sem ela não há reprodução de escravos e também não há reprodução do sistema no nível da cúpula e ao nível das bases”, explicita ainda Benigna Zimba. Questionada sobre o trabalho forçado, pratica que veio a seguir à abolição oficial da escravatura, a estudiosa refere que “a escravatura termina naturalmente, na medida em que ela já não responde às demandas dos sistemas coloniais imperialistas. Para o caso de Moçambique, nós temos os famosos sistemas dos prazos, que são uma outra forma de continuação da escravatura. Quem eram os senhores Prazeiros? Eram os senhores e as senhoras Donas Prazeiros, muitas deles, principalmente na região da Zambézia, que sustentaram os sistemas neo escravocratas a partir da continuidade. O escravo é liberto. Aqui em Moçambique não houve muitas cartas de alforria, isto é mais para a África do Sul, Tanzânia, Quénia, para as antigas colónias britânicas. As portuguesas nem tanto. Havia portugueses que nem sabiam o que é que se passava no mundo em termos de não poderem trabalhar com uma base de mão-de-obra escrava. Então a escravatura continua”, detalha ainda Benigna Zimba. Podem ouvir os nossos entrevistados na íntegra aqui:
O conflito entre Israel e o Irão entrou hoje na sua segunda semana, sem que haja para já solução à vista. O Presidente americano disse que vai tomar uma decisão nestas duas próximas semanas sobre uma eventual participação do seu país no conflito do lado de Israel. Paralelamente, nesta sexta-feira, decorrem duas reuniões, uma do Conselho de Segurança da ONU para analisar a situação, e outra a nível europeu, com Paris, Berlim e Londres a pretenderem convencer Teerão a desistir do seu programa nuclear. João Henriques, vice-presidente do Observatório do Mundo Islâmico em Lisboa, considera que a solução pode apenas ser encontrada a nível diplomático e que o agressor objectivo, neste caso, é Israel. RFI: Qual é o balanço preliminar que se pode fazer, uma semana depois do inicio do conflito entre Israel e o Irão? João Henriques: Enquanto objectivamente não houver por parte de Israel uma interrupção dos ataques, naturalmente, eles desencadeiam a resposta, desencadeiam uma contra-ofensiva por parte do Irão. Os problemas existenciais que recorrentemente são referidos pelo Estado de Israel são iguais quando falamos de outro país qualquer. Neste caso, portanto, esta situação não vai ter uma solução próxima enquanto não houver entendimento entre as partes, com ou sem mediação no domínio da diplomacia. Vai ser através da diplomacia que o problema vai ser resolvido. Donald Trump anunciou um hiato, um interregno de duas semanas para que as partes se entendam naturalmente, e os Estados Unidos vão ter que mediar. Porque se houver a intervenção militar dos Estados Unidos através do lançamento de cargas de profundidade, naturalmente, isso vai pôr em causa a soberania iraniana e vai desencadear, com toda a certeza, um alastramento, uma escalada do conflito com a intervenção já avisada, embora não tenha sido explícita sob o ponto de vista da intervenção bélica, mas com intervenção, da China e da Rússia também. RFI: Há uma série de encontros que estão previstos nesta sexta feira, do Conselho de Segurança da ONU e também uma reunião aqui a nível europeu para tentar mediar o conflito. Há também apelos muito fortes aqui da Europa para que o Irão desista do nuclear militar. Julga que pode haver alguns avanços no domínio diplomático? João Henriques: Israel está a partir do princípio que o Irão tem armamento nuclear. Ora, clara e objectivamente, no Médio Oriente, o único país que tem armamento nuclear, embora não o reconheça, é precisamente Israel. E os ataques têm sido desencadeados a partir de território israelita. Portanto, quem está a ser atacado é o Irão. Quem tem de se defender é o Irão. Quem tem de ripostar é o Irão e não Israel. Israel não tem razão nenhuma porque está a partir do pressuposto que o enriquecimento do urânio é para produzir armamento nuclear. É legítimo que eles o pensem, mas não podem é recorrer a ataques preventivos. Estes ataques preventivos, de acordo com a lei internacional, só devem ter lugar na iminência de um ataque de outro país, o que não está a acontecer. Não há iminência de um ataque. Portanto, Israel está a fazer aquilo que à distância lhe convém, que é ir eliminando todos os focos de oposição. Fê-lo e continua a fazê-lo na Faixa de Gaza, alastrou depois para o Líbano, alastrou depois para a Síria, faz ataques à distância e em resposta, naturalmente, às iniciativas de solidariedade por parte dos Huthis do Iémen. E tudo isto está a criar uma situação, não é de descontrolo porque isso ainda não aconteceu. Mas se houver um atrevimento por parte dos Estados Unidos em avançar com cargas de profundidade, que os Estados Unidos são o único país que tem essas cargas de profundidade -embora a Rússia também as possa ter- que vão atingir as profundidades das estações de enriquecimento de combustível que o Irão tem, vai ser impossível. Embora Netanyahu tenha dito que 'não', que com ou sem o apoio dos Estados Unidos vai conseguir atingir os seus objectivos. Não vai conseguir, com toda a certeza neste domínio, de largar cargas de 3000 quilos, cargas de profundidade, porque não tem esse armamento, não tem essas soluções. Portanto, vamos confiar que estas conversações irão ter lugar. A Europa, finalmente está a colocar-se de novo do lado do agressor. Entre 1939 e 1945, a maioria dos países, a generalidade dos países que compõem a actual União Europeia deram apoio ao regime nazi de Adolf Hitler. Houve algum alheamento, mas depois, quando chega a altura de levantarem a voz, estou a falar da União Europeia, para promoverem um apoio, vão cair sempre do mesmo lado. A Europa deveria ser pragmática e dizer que a situação que está a decorrer é por culpa remota de Israel, porque é Israel o agressor nesta altura. RFI: Trump diz que poderia tomar uma decisão nestas duas próximas semanas. Israel tem condições para continuar a guerra contra o Irão sem o apoio dos Estados Unidos? João Henriques: Não. Aliás, Israel nunca teria chegado onde chegou sem o apoio incondicional dos Estados Unidos. Apoio em dinheiro, apoio em armamento, apoio junto da comunidade internacional. Não era possível. E no caso presente, retomando aquilo que eu referi há pouco, não há hipótese nenhuma de desmantelamento das plataformas de enriquecimento de urânio que o Irão tem objectivamente. Agora partir do princípio que elas, e se calhar até é verdade, têm finalidades bélicas, acho isso legítimo por parte de um país que se sente agredido, mas não pode tomar a dianteira, no pressuposto de que os ataques do Irão são iminentes. Não está a dar razão ao comportamento de Telavive. E sem dúvida que, face ao apoio que o Estado de Israel está a obter, nomeadamente dos Estados Unidos, isso naturalmente que vai contribuir para que haja uma manutenção desta agressão aos países e aos grupos quando combatem um grupo terrorista. É normal. Qualquer Estado deve ter condições e tem legitimidade para combater um grupo terrorista. Agora, envolver uma nação inteira porque há um grupo terrorista de 30 ou 40.000 efectivos que está a causar destruição, a causar angústia na sociedade israelita, isso é tomar a floresta pela árvore.
Após uma jornada agitada em Kananaskis, no Canadá, o Presidente dos Estados Unidos abandonou a reunião do G7. Para o académico Vítor Rámon Fernandes, o apoio dos norte-americanos a Israel é inequívoco e a Rússia poderia sim assumir um papel de mediação caso isso fosse aceite pelos países ocidentais. No quinto dia de conflito entre Israel e o Irão, Donald Trump voltou a agitar as águas abandonando na noite de segunda-feira a reunião do G7 em Kananaskis, no Canadá, e voltando a Washington. Nas suas redes sociais, o Presidente norte-americano pediu a evacuação de Teerão, lançando a inquietação sobre a escalada de violência no Médio Oriente. Para o Vítor Rámon Fernandes, professor auxiliar da Universidade Lusíada e na Sciences Po de Aix en Provence, o apoio dos norte-americanos a Israel é inequívoco. "Há aqui uma incerteza muito grande quanto aos comentários dele. Enfim, já nos habituámos mesmo desde o primeiro mandato e isso não é uma surpresa. A posição dos Estados Unidos é inequivocamente de apoio a Israel e, portanto, aquilo que nós temos neste momento é um presidente Trump que, por um lado, continua a apoiar Israel, mas por outro lado, também não quer, penso eu, ou está a tentar evitar, inflamar o conflito. Até porque já houve avisos também do lado da China, a dizer que os Estados Unidos não podem de facto inflamar este conflito", declarou o académico. Entre outros comentários, o Presidente norte-americano negou ter partido para preparar uma cessar-fogo, mas algo "muito maior" e disse que o Presidente Emmanuel Macron, que tinha passado essa informação à imprensa, "não sabia de nada". Estes comentários marcam para Vítor Rámon Fernandes a dificuldade de posicionamento da Europa. "A Europa tem dificuldade em ter influência neste conflito. Nós termos do lado ocidental, pelo menos a vontade do primeiro ministro de Israel que basicamente acaba por fazer aquilo que quer. É um primeiro ministro que toma decisões em função daquilo que considera serem os interesses fundamentais de Israel, independentemente de tudo o resto. E já vimos isso em várias situações, inclusive no que toca a Gaza. E temos os Estados Unidos, por razões óbvias, que é um parceiro fundamental de Israel e um actor fundamental no Médio Oriente. E, portanto, a Europa, no fundo, ali no meio, está um bocadinho numa situação que pretende influenciar, faz umas declarações, mas na realidade não tem uma verdadeira capacidade de ter impacto no conflito", explicou. Actualmente já há forças norte-americanas que estão a reforçar a Europa e também a região do Médio Oriente, de alguma forma a preparar o alargamento deste conflito, tendo havido também a confirmaçaõ por parte de Israel da vontade eliminar o líder supremo iraniano Ali Khamenei. Perante estas declarações de guerra, Vítor Rámon Fernandes não coloca de lado a forma como a Rússia pode vir a mediar este conflito, algo rejeitado, por exemplo, pelas autoridades francesas. "A Rússia tem uma situação curiosa, porque a Rússia tem um bom entendimento e, aliás, comércio com Israel. Historicamente, tem um relacionamento também de bom relacionamento com o Irão. Aliás, como acontece com os outros países árabes da região, estou a falar da Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos. E, portanto, de facto, a Rússia, sob esse ponto de vista, podia ser visto como aquilo que se considera na gíria um eventualmente um honest broker, no sentido de que, diferentemente dos Estados Unidos, não tem uma posição à partida. Agora, é verdade que, neste momento, a Rússia não tem a credibilidade aos olhos do mundo ocidental, tendo em consideração aquilo que é a situação na Ucrânia", concluiu.
Em Portugal, o fim de semana foi marcado por várias manifestações em diferentes partes do país onde se reuniram centenas de pessoas sob o mote "Não queremos viver num país com medo". Para António Brito Guterres, assistente social e investigador do ISCTE, em Lisboa, que esteve nesta manifestação na capital, o ataque ao actor Adérito Lopes mostrou à sociedad eportugues ao que os imigrantes e outras minorias têm vivido nos últimos anos em Portugal. Em Portugal, o fim de semana foi marcado por várias manifestações em diferentes partes do país onde se reuniram centenas de pessoas sob o mote "Não queremos viver num país com medo". Estes protestos serviram para denunciar publicamente o aumento dos crimes de ódio e a xenofobia que cresce no país, com o dia 10 de Junho, feriado nacional que celebra Portugal, Camões e as Comunidades, a ter sido marcado por agressões de um grupo de extrema-direita ao actor Adérito Lopes no exterior de um teatro lisboeta e por agressões a voluntários que distribuiam comida aos sem-abrigo no Porto. Para António Brito Guterres, assistente social e investigador do ISCTE, em Lisboa, que esteve nesta manifestação na capital, há cada vez mais "a consciência que um conjunto de aspectos do quotidiano está em risco" na sociedade portuguesa, com a multiplicaçaõ de ataques xenófobos, racistas e homofóbicos. "[Nas manifestações] As pessoas tiveram uma atitude positiva, mas é importante lembrar que em Lisboa, eventualmente a hora da manif, havia neonazis à volta e portanto as pessoas necessariamente estavam bem porque estavam juntas, mas estão a ter consciência que um conjunto de aspectos do quotidiano da sua vivência está em risco. Por exemplo, há imensos casos dos últimos dias e já nos últimos tempos de pessoas LGBT que são agredidas na rua, que são ofendidas na rua. Já há mais de um ano ou dois em que artistas ou escritores apresentam as suas obras e são coagidos fisicamente a não o fazer. Temos jornalistas que estão listados em listas negras de grupos neonazis. Temos a manifestação do dia 25 de abril, o desfile anual, que acabou com uma espera da extrema direita. Temos as milícias também com pessoas de extrema direita a atacar imigrantes no Porto. E isto sem contar com os acontecimentos diários do quotidiano que nós não sabemos e, portanto, as pessoas sentem que o seu modo de vida está em perigo", disse o activista. Este aumento de crimes de ódio foi constatado nos últimos anos, já que só no primeiro semestre de 2024 tinham sido denunciados 131 casos às autoridades e em 2023 tinha havido um aumento de 38% de denúncias face ao ano anterior. António Brito Guterres explicou que a denúncia de crimes de ódio não está bem explícita e que a própria lei portuguesa precisa ser mais precisa para conseguir condenações para quem a infringe. Tendo levado a cabo vários projectos de intervenção social, este investigador considera que o discurso de ódio presente na sociedade portuguesa se pode descontruir com mais união e lutas convergentes a vários níveis. "[O discurso] Desconstrói-se, para já, quando os principais agentes políticos e da sociedade não estão enfiados em bolhas apenas com questões morais, não é? É preciso mesmo ir para o terreno. É preciso estar com as pessoas. É preciso estar organizado e lutar em várias frentes. Lutar na rua, lutar no sistema judicial, no sistema político. É preciso que as pessoas que que são vítimas disto e que são solidárias e que querem esta sociedade, actuem de forma sistémica e em conjunto nas várias frentes", concluiu.
O confronto directo entre Israel e o Irão marca uma viragem na longa guerra na sombra entre os dois países. Segundo o investigador do IPRI-Instituto Português de Relações Internacionais e professor do ISCET-Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo, José Pedro Teixeira Fernandes, Israel procura travar o programa nuclear iraniano, enquanto os dois países violam o direito internacional. O conflito reflecte rivalidades estratégicas profundas e agrava a instabilidade na região. RFI: Como é que chegámos a este conflito militar directo entre Israel e o Irão? José Pedro Teixeira Fernandes: É um processo que, no fundo, se tem agravado nos últimos meses ou anos. Contextualizando a conflitualidade que hoje estamos a ver importa referir o seguinte. Até há cerca de um ano, ou um ano e meio, ou até um pouco menos, o que existia era o que se chamava uma guerra na sombra. Tratava-se de confrontos não assumidos abertamente entre o Irão e Israel, ligados fundamentalmente à enorme inimizade entre os dois Estados. Esta resultava de acções e também declarações, muitas vezes bastante agressivas dos dirigentes iranianos e da reacção de Israel. Nesse contexto, houve todo um conjunto de operações, desde sabotagens a atentados. No entanto, raramente víamos ali pistas que nos permitissem afirmar abertamente a autoria. Até aí sabia-se que havia uma guerra travada na sombra, mas ambos os lados não pareciam querer subir esse patamar. Tudo se começou a alterar gradualmente a partir do ataque a Israel em 7 de Outubro, que é um ponto de viragem óbvio quando vemos o que está agora a acontecer no Médio Oriente. O Irão, com os seus aliados (desde logo o Hamas, o Hezbollah, os Houthis e grupos e milícias pró-iranianas na Síria), julgou que tinha encontrado uma situação ideal para pressionar ao máximo Israel e causar o máximo dano a Israel. E, realmente, a convicção existente início do conflito, quando recuamos a finais de 2023, era largamente, a nível internacional, de que o Irão tinha sido um dos grandes ganhadores do ataque do Hamas de 7 de Outubro e que estava numa posição de força. Os acontecimentos do ano passado vieram gradualmente a alterar essa realidade e a percepção sobre ela. Há um primeiro momento de um confronto indirecto, em Abril de 2024, na sequência de um bombardeamento feito na Síria, em Damasco, que atingiu anexos consulares iranianos. Apesar de tudo, esse primeiro bombardeamento feito directamente, que quebrou as regras anteriores porque foi assumido, foi de certa forma um prenúncio. Mas a retaliação iraniana foi pré-anunciada, o que permitiu, também, uma preparação defensiva de Israel e dos seus aliados. Houve uma acção liderada pelos Estados Unidos que ajudou à intercepção dos mísseis e drones iranianos pela primeira vez, de forma assumida, disparados sobre Israel. A partir daí a situação continuou a agravar-se. Tivemos em Outubro de 2024 novamente um confronto directo entre os dois Estados, muito mais violento do que o primeiro. E a situação deteriorou-se ainda mais, o que nos leva até hoje. Parte disto está relacionada, certamente - e provavelmente a parte mais importante -, com a forma como Israel conseguiu largamente anular os grupos pró-iranianos na sua envolvente regional. O Hezbollah é um caso muito claro. Também a Síria, com a queda de Assad, trouxe outra transformação muito significativa. Quanto ao Hamas, provavelmente neste momento apenas tem capacidades militares residuais e não poderá montar qualquer ataque de envergadura contra Israel. Aliás, a questão em Gaza é agora fundamentalmente um drama humanitário imenso da população palestiniana, não um problema de ameaça militar a Israel. Mas, neste ambiente estratégico, onde o Irão tem um programa nuclear avançado que não só para fins pacíficos - isso parece-me claro, apesar do Irão fazer um jogo ambíguo à volta do respeito pelo direito internacional -, a questão palestiniana fica, mais um vez, na sombra. Isto levou Netanyahu a ver aqui uma oportunidade estratégica para avançar com a possibilidade de eliminar ou tentar eliminar o programa nuclear do Irão. O que nos leva até hoje e esta situação crítica que estamos a ver. É evidente que esta actuação de Israel é censurável do ponto de vista do direito internacional. Mas também é censurável a posição do Irão de, no fundo, estar na teoria a respeitar a legalidade internacional mas na prática a violá-la, infringindo, desde logo, as regras do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TPI), embora de uma forma mais dissimulada. Indubitavelmente que um programa como o do Irão, com instalações nucleares subterrâneas defendidas militarmente - e outras mantidas secretas -, não é apenas para fins pacíficos. Assim, temos todo este cenário extraordinariamente crítico no Médio Oriente. Esta é uma guerra na sombra que existe há décadas, não começou na semana passada. O 7 de Outubro foi um ponto de viragem e talvez um pretexto para uma estratégia que Israel já tinha pensada, pergunto-lhe. Por que razão é que Israel vê o Irão como uma ameaça existencial? Qual é o projecto político de Benjamin Netanyahu? Porquê uma vitória não se limita ao campo de batalha? Claro, é um conflito - agora guerra aberta - com um longo e complexo historial. Penso temos aqui uma situação estratégica, como referia, estranha e curiosa ao mesmo tempo. Até 7 de Outubro e nos desenvolvimentos pelo menos imediatos, e utilizando aqui uma analogia com o xadrez, era o Irão que tinha uma estratégia de avanços no Médio Oriente e era o Irão que provavelmente imaginava poder dar, de alguma forma, uma espécie de xeque-mate a Israel, ou, pelo menos, colocar Israel numa situação particularmente aflitiva em termos de segurança e numa debilidade óbvia. Para isso, o Irão apostou numa estratégia, montada ao longo de vários anos, décadas até, de criar guardas avançadas no Líbano, no Iémen, em Gaza, na Síria e no Iraque. O que acontece é que a resposta de Israel, que também já estaria preparada, sobretudo no caso do Hezbollah, como vimos no ano passado, alterou a relação de forças existente. O que aconteceu com o Hezbollah e a forma como Israel conseguiu realmente eliminar militarmente as lideranças políticas do Hezbollah, certamente denota um plano que já existia há anos. Aí percebemos que Israel tinha feito uma preparação estratégica para esse cenário. O que parece também foi que as próprias contingências da guerra e os seus desenvolvimentos, tornaram, sobretudo o Primeiro-Ministro israelita Benjamin Netanyahu - um político que era relativamente prudente na prática, apesar de fazer sempre declarações muito contundentes e também agressivas - a assumir cada vez mais riscos. E isto também se liga, certamente, com a situação interna de Israel, porque a guerra também é uma forma de o governo de Netanyahu, que assenta numa coligação com partidos radicais de direita, se manter no poder. Há uma situação permanente de emergência. O próprio Netanyahu tem casos pendentes internamente e também no Tribunal Penal Internacional, que ajudam eventualmente a tomar este tipo de medidas mais arriscadas. Quanto à inimizade dos dois Estados tem um ponto de nascimento tão antigo quanto a actual República Islâmica do Irão. Até 1979, quando o Xá estava no poder, ambos eram aliados dos Estados Unidos. As relações eram normais e até de alguma proximidade estratégica. A partir daí, a revolução islâmica no Irão, que levou o Ayatollah Khomeini ao poder, assumiu uma dimensão religiosa e ideológica, passando o Irão a ver quer os Estados Unidos, quer Israel, como os seus maiores inimigos. O Irão, tal como o conhecemos nesta versão da República Islâmica, sempre olhou para Israel como o inimigo maior no Médio Oriente. Na terminologia da sua propaganda político-religiosa, é o pequeno Satã, sendo os Estados Unidos o grande Satã. Portanto, trata-se de uma hostilidade enraizada, de tonalidades religioso-políticas, que nunca se dissipou. Pelo contrário, teve até momentos de grande acentuação, como emergir da ambição nuclear do Irão, em especial durante a presidência de Ahmadinejad. Quanto a tentar obter armamento nuclear, até se pode compreender que, do ponto de vista de um Estado como o Irão, que é xiita e mal aceite no Médio Oriente, maioritariamente árabe e sunita, se possa sentir ameaçado na sua segurança. Há também outros Estados - estou a pensar na Índia e no Paquistão -, que seguiram o caminho nuclear à margem do TPI. Israel é um outro caso, tudo indica, de um Estado com armas nucleares, precisamente por se sentir num ambiente hostil e rodeado de inimigos. Mas o facto do Irão construir o programa nuclear sempre com ameaças dirigidas a Israel, as quais sobretudo durante a presidência Ahmadinejad (2005-2013), eram muito explícitas agressivas, toda essa retórica constante anti-Israel, alimentou uma ideia, correcta ou incorrecta - estamos no domínio de percepções sobre intenções, mas num ambiente de desconfiança máxima - de que um Irão nuclear seria uma ameaça existencial e de que Israel se arriscaria ao desaparecimento com um Irão com armas nucleares. Tudo isso leva-nos também ao ponto onde estamos hoje. Segundo alguns analistas, Israel leva a cabo uma limpeza étnica em Gaza, acelera a colonização na Cisjordânia, bombardeia o Líbano e a Síria com total impunidade, e quer redesenhar as fronteiras da região. Estamos perante uma mudança de era geopolítica no Médio Oriente. E pergunto-lhe: há risco de uma guerra regional ou as potências regionais e internacionais ainda procuram evitar uma conflagração total? O risco existe, e agora acentuou-se, mas apesar de tudo até agora tem sido gerido. Mas em relação à questão que me coloca, acho nós temos de distinguir as diversas situações onde Israel está envolvido. Há casos de conflitos mais convencionais, a intervenção militar de Israel na Síria ou no Líbano, apesar de o Hezbollah não ser propriamente o Estado libanês e já ser um produto da anomalia do Líbano - um Estado que, na realidade, teoricamente tem um governo e um exército, mas, na prática, quem detinha o maior poder era o Hezbollah. Quanto à Síria, estava em guerra civil, mas Assad parecia ter reconquistado o controlo do poder no país, embora se soubesse, também que continuava uma luta interna de facções e não controlava todo o território. No final de 2024, acabou por ocorrer a queda Assad, muito pelo enfraquecimento do Hezbollah (e do Irão) e também pela diminuição da presença da Rússia no país devido à guerra na Ucrânia - aqui vê-se a interligação dos assuntos. Outra questão é Gaza. Obviamente que Gaza é um problema maior, envolvendo o crónico conflito de Israel com os palestinianos, tendo ainda conexões com os conflitos anteriormente referidos. Gaza mistura razões objectivas de necessidades de segurança israelitas - como o ataque do Hamas de 7 de Outubro mostrou - com ambições territoriais, nada compreensíveis ou aceitáveis. Ou seja, aí fica claramente a ideia de que Israel acabou por ir longe demais, em termos de uma operação que já nem se percebe muito bem qual é o objectivo e valor militar, e que está a provoca uma imensa catástrofe humanitária e sofrimento dos palestinianos. É verdade, como referido, que todas estas situações têm ligação entre si, não são peças soltas ou isoladas. Mas, ao mesmo tempo, para uma adequada análise, não podemos, eu diria, “meter tudo no mesmo saco”, como se estivéssemos no mesmo plano de confrontação militar. Agora, tudo isto levou Israel e em particular Netanyahu, o governo de Netanyahu, a ver aqui uma oportunidade de reconfigurar as relações de força no Médio Oriente a seu favor. Isso parece-me claro. Libertou-se da ameaça do Hezbollah, pelo menos temporariamente, no Líbano. Quanto à Síria, está a tentar recuperar da guerra civil e tem outras preocupações maiores que não são o Estado de Israel. Além disso, Israel também eliminou grande parte das capacidades militares do exército sírio. O Hamas em Gaza está numa posição também militarmente muito fraca. Os Houthis no Iémen vão mantendo alguma capacidade de causar alguns danos e perturbação, mas também não têm o poder de infligir danos militares de envergadura a Israel. Tudo isto, conjugado com a presença de um Presidente nos Estados Unidos que é um apoiante forte do Estado de Israel, como é Donald Trump, embora se perceba, também, que não há propriamente um encaixe perfeito nas linhas de actuação de ambos no Médio Oriente, cada um tem a sua agenda própria. Mas isto levou Netanyahu, conjugando também as circunstâncias internas que referi, a assumir riscos muito mais elevados e a convencer-se de que pode reconfigurar as relações de poder no Médio Oriente à sua maneira. Esta escalada de conflito vai enfraquecer ainda mais o Hamas? O Hezbollah está mais enfraquecido. Este pode ser o golpe de misericórdia no Hamas? Pode, mas, sobretudo, mais do que enfraquecer o Hamas, eu diria que, mais uma vez, os palestinianos ficam completamente perdidos nesta conflitualidade do Médio Oriente. Um dos efeitos laterais desta guerra aberta entre o Irão e Israel foi secundarizar o problema de Gaza, bem com o as conversações que existiam ao nível internacional para levar à criação de um Estado palestiniano. Portanto, existindo um conflito militar aberto entre Israel e o Irão, ainda por cima envolvendo um programa nuclear, o problema de Gaza passa para segundo plano. Não é a primeira prioridade política da diplomacia no Médio Oriente. O Hamas também é um perdedor, mas tudo dependerá do resultado final deste conflito entre Israel e o Irão, que ainda é incerto. Quanto Irão - apesar dos elevados danos que sofreu provocados pelos ataques israelitas -, devo aqui também dizer, está a mostrar, provavelmente, capacidades de retaliação que eventualmente terão também surpreendido os israelitas. Embora, indiscutivelmente, o audacioso ataque israelita da passada semana tenha surpreendido, e de que maneira, o Irão, pelo menos no dia inicial, pelos efeitos devastadores que teve. Mas o resultado desta guerra também é ainda incerto, não é? A ser assim, diria que, mais do que o Hamas, os palestinianos serão, mais uma vez, perdedores maiores nisto.
“Muitas vezes a ciência que se faz é completamente desconectada da realidade das pessoas que vivem nas comunidades.” A crítica é da professora universitária e especialista em alterações climáticas Corrine Almeida, defende uma nova abordagem científica nos países africanos: mais próxima das populações, mais útil para quem vive do mar, e menos dependente de agendas externas. Declarações proferidas à margem da 3a Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano que decorreu em Nice, França. Segundo a investigadora cabo-verdiana, os projectos científicos muitas vezes nascem de parcerias estrangeiras que não consideram as prioridades locais. “Tem as suas prioridades e que muitas vezes não se alinham com as prioridades nacionais.” Para que a ciência tenha impacto real, defende, é preciso começar por ouvir as comunidades: “Tem muito a ver com as actividades, com a sua interacção com o mar.” Os pescadores são um exemplo claro. “Querem saber o que é que podem pescar, o que é que não podem pescar”, afirma. A falta de comunicação eficaz e o uso de linguagem técnica nas áreas de conservação afastam as comunidades das decisões. Mais do que isso, os pescadores observam fenómenos que os cientistas nem sempre captam. “A comunidade piscatória todos os dias está no mar”, lembra Corrine Almeida, e dá o exemplo da cavala, outrora abundante. “Agora praticamente a cavala tornou-se um artigo de luxo. [...] Uma das hipóteses que [os pescadores] colocam é que pela captura dos tubarões [...] os cardumes de cavalas já não sobem à superfície.” É uma teoria empírica que merece investigação: “Por que não dar valor a essa questão que eles têm?” Ao abordar o papel dos oceanos no desenvolvimento sustentável dos países africanos, a professora é clara: “Quem mais beneficia dos recursos destes oceanos? [...] As grandes frotas de pesca que actuam em Cabo Verde [...] não são [africanas]”. Essa realidade revela um desequilíbrio profundo: “Não é uma solidariedade, é uma responsabilidade que deve haver, particularmente daqueles que mais beneficiam dos recursos.” Aponta o exemplo do tubarão: “Uma tonelada sai de Cabo Verde por cerca de 100 euros. [...] Quanto vai render no mercado depois? [...] Parte desse retorno não volta para os oceanos de origem.” Com espécies migratórias como o atum e o tubarão, o problema agrava-se: “Uma vez capturados pelas grandes frotas nas nossas águas, depois não chegam à costa.” Os pescadores locais perdem oportunidades que nem sequer são contabilizadas nos acordos internacionais. “A maior parte da nossa pesca é artesanal e é feita em barcos de boca aberta”, explica. O impacto é visível: “Hoje vai num desembarque e trazem pequenos atuns, no máximo 15 quilos,” quando outrora chegavam aos 80 quilos. Na defesa dos oceanos, a investigadora vê o Tratado de Alto-Mar como um avanço crucial. “Tem aquele espaço vazio no oceano, que é a terra de ninguém hoje, que é o alto mar. É um instrumento extremamente importante.” Mesmo que países como Cabo Verde ainda não tenham capacidade de explorar essas águas, a conservação é uma questão de justiça intergeracional. “No dia que puderem vir a pescar lá, que encontrem alguma coisa.” A criação de áreas protegidas no alto mar poderá também proteger as águas territoriais. “Se nós conseguirmos ter uma área marinha protegida à frente das nossas [zonas económicas exclusivas], se calhar se perderá um pouco o interesse de pescar dentro das nossas [águas].”
Noventa e cinco países apelaram, em Nice, a que as negociações do tratado da ONU sobre os plásticos – previstas para o próximo mês de Agosto em Genebra, Suíça – resultem num acordo ambicioso, que abranja todo o ciclo de vida dos plásticos. Na Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano em Nice, França, ministros e representantes de 95 países assinaram o “Alerta de Nice para um Tratado Ambicioso sobre os Plásticos”. O documento identifica cinco pontos críticos que devem fazer parte de um acordo eficaz, incluindo a redução da produção e do consumo de plásticos, a eliminação progressiva de produtos plásticos nocivos e a melhoria do design dos produtos para garantir a sustentabilidade ambiental. Em 2019, estimava-se que 28 milhões de toneladas métricas de poluição por plásticos foram libertadas para o ambiente. Se nada for feito, esse número duplicará até 2040. Ontem, terça-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres tinha alertado para a poluição plástica que “estrangula a vida marinha e contamina a nossa alimentação”, acrescentando que os microplásticos já foram detectados no sangue e cérebro humano. Em entrevista à RFI, Andres del Castillo, especialista no programa de saúde ambiental do Centro para o Direito Ambiental Internacional (CIEL - Center for International Environmental Law) espera que Nice envie um sinal claro ao mundo da necessidade de “regras claras” para se “acabar com a contaminação de plástico” e isso passa pelo “controlo de produção de plástico, controlo dos produtos e dos químicos que fazem mal no plástico e com mecanismos de financiamento”. A luta contra a contaminação por plástico ao nível internacional começou exactamente por causa das pesquisas científicas e os problemas com a biodiversidade marinha. Depois foi evoluindo para a questão dos microplásticos há quase duas décadas. Agora temos certeza que os plásticos têm efeitos nefastos não somente com a diversidade, mas como na mudança climática. Recentes estudos científicos fazem um vínculo directo entre contaminação por plásticos e a mudança climática. O especialista no programa de saúde ambiental do CIEL ressalva também a importância da limpeza dos oceanos, processo que deve ser partilhado entre os países com responsabilidade historica e aqueles que actualmente produzem a “maioria do plástico no mundo”, que é a China. O Tratado Global sobre Plásticos foi criado pelas Nações Unidas em 2022 e está actualmente em negociação. O objectivo é que se traduza num documento juridicamente vinculativo que ajude os países a reduzir e eliminar a poluição plástica. A comunidade científica em muito tem contribuído para este acordo, fornecendo dados concretos sobre os dados que a poluição plástica causa à saúde humana, à sociedade, às economias e ao meio ambiente.
Cabo Verde está na linha da frente dos impactos da crise climática, com secas prolongadas, erosão costeira e escassez de recursos marinhos. Apesar de quase não ter contribuído para o aquecimento global, o arquipélago paga um preço alto. A ONU reconhece esta vulnerabilidade e, através de uma presença no terreno, está a mobilizar conhecimento, financiamento e parcerias para reforçar a resiliência do país. Patrícia Portela de Souza, coordenadora residente das Nações Unidas em Cabo Verde, lembra que o país atravessa uma fase crítica: “Cabo Verde como pequeno Estado insular em desenvolvimento, um país de renda média - renda média baixa, mas renda média - sofre imenso os impactos da mudança climática. A gente pode sentir isso no dia-a-dia. Primeiro, Cabo Verde passou mais de quatro anos com uma seca prolongada que afectou muitíssimo o país, sobretudo as comunidades, incluindo as comunidades costeiras.” A subida do nível do mar já é visível em algumas zonas do país e o sector das pescas, vital para a subsistência de muitas comunidades, também está a ser afectado. “Muitos pescadores reclamam que a quantidade de peixe tem diminuído.” A resposta das Nações Unidas no terreno é ampla e com múltiplas frentes de acção: transição energética, agricultura sustentável, economia azul, segurança alimentar e inclusão social. Somos 20 agências, fundos e programas das Nações Unidas trabalhando com Cabo Verde e para Cabo Verde. Gostaria de destacar algumas acções. Primeiro, o tema da energia, da transição da energia que é crítico para Cabo Verde. Apoiamos nessa transição para uma energia mais limpa, tanto solar como eólica. Temos um trabalho forte na resiliência da agricultura para apoiar os pequenos agricultores. Como lidar também com esse fenómeno da seca, mas não só. Também assegurar o que chamamos de rega gota-a-gota e outras formas de cultivar de uma maneira que seja sustentável e amiga do ambiente. Além disso, todo o trabalho na economia azul. Desde o turismo, passando pela pesca, apoiando os pescadores, reforçando todo o trabalho em relação à venda do peixe - um trabalho muito forte com as mulheres. O arquipélago é formado por dez ilhas com características distintas, o que obriga a soluções adaptadas. Segundo Patrícia Portela de Souza, isso não é um obstáculo, mas sim uma oportunidade de inovação: “A gente faz a co-criação junto com os parceiros do Governo, da sociedade civil, também das instituições [...] A questão da ciência dos dados é essencial para focalizar as políticas e os programas.” A ONU apoia projectos tecnológicos e científicos locais, como o uso de drones na agricultura e o trabalho da Universidade do Atlântico em parceria com instituições de Portugal e da Alemanha. “Para assegurar que Cabo Verde tenha dados, tenha informação para justamente desenhar políticas focalizadas.” Para a responsável da ONU em Cabo Verde, que na Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano (UNOC3) participou no painel “Da costa à comunidade: construir resiliência através de alertas precoces”, estes fóruns representam uma oportunidade para reforçar compromissos. “Uma discussão importante para a gente é fazer esse nexo ciência, dados, política e sociedade.” A cimeira mostra a urgência de “trazer mais dados, dados potentes e robustos” para fundamentar políticas públicas eficazes. Parcerias e financiamento são outras prioridades: “Parceria, parceria, parceria e a necessidade de trazer fundos para apoiar os países na criação ou reconstrução de estruturas e infra-estruturas próprias para lidar com, por exemplo, com o aumento do nível dos oceanos.”
Cabo Verde defendeu a criação de centros de excelência nos países lusófonos insulares para uma liderança partilhada e sustentável da economia azul. À margem da 3.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano (UNOC3), o Ministro do Mar, Jorge Santos, afirmou que estes centros vão permitir “fazer conjuntamente a investigação oceanográfica” e fixar dados fundamentais para a gestão sustentável do oceano. Trata-se de uma iniciativa que abrange os SIDS (Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento) lusófonos e foi apresentada esta quinta-feira, 12 de Junho, a bordo do navio norueguês Statsraad Lehmkuhl e que pretende o envolvimento da academia, da formação profissional e da investigação. É uma iniciativa importante dos SIDS lusófonos: Cabo Verde, São Tomé, Guiné-Bissau - que também tem uma vasta área de ilhas também importantes. Mas também é extensivo a Timor-Leste. É um centro de excelência para investigação, para ciência e para a educação da ciência marinha. Estamos na era dos dados e os dados têm um custo, mas também têm preço. Por isso é que temos que liderar o processo dos dados a nível nacional. Para termos os skills necessários para posicionar e estarmos à altura de trazer parceiros internacionais. Sobre a participação das comunidades na criação de zonas marinhas protegidas, o ministro do Mar foi claro: “As comunidades piscatórias e costeiras são importantes, primeiro na decisão da criação das zonas protegidas. Eles é que têm que estar na linha de frente para entender e fazer essa mudança de atitude. Portanto, essa decisão nunca pode ser tomada sem a participação das próprias comunidades piscatórias e costeiras.” Longe de proibir a actividade económica, a criação de áreas protegidas implica “fazer defeso em determinados períodos, onde não se pode pescar determinadas espécies ou explorar a nível das profundidades. Definir as espécies protegidas.” Em Cabo Verde, isso já se aplica, por exemplo, à tartaruga, à cavala preta e à lagosta rosa. “Porque se nós conseguíssemos proibir qualquer pescador de pescar uma fêmea, nós estaríamos a dar uma grande contribuição à humanidade, porque são os reprodutores.” O modelo proposto é de co-gestão? ou seja, “envolver as comunidades, porque sem isso é impossível.” Cabo Verde pretende proteger 30% da sua área marítima até 2030, combinando zonas costeiras e offshore. Para vigiar e fiscalizar as costas, Cabo Verde conta com parcerias com os Estados Unidos da América, Brasil, União Europeia, Portugal e Alemanha, na defesa e controlo de navios que praticam tráficos ilícitos no Atlântico. O país acolhe o comando do G6, “o grupo dos países saelianos. E aí é que está sediado o comando para controlar toda a área da pirataria até o Golfo da Guiné.” Mas o foco não está apenas nas embarcações externas: “Temos que ser consequentes não só com os que vêm de fora, mas com os que estão internamente.” Isso inclui a instalação de sistemas de comunicação (VMS) em cada embarcação para permitir o controlo da pesca”, em articulação com todos os parceiros. Jorge Santos sublinhou ainda que o mar é mais do que um recurso a proteger: é uma oportunidade de desenvolvimento económico. Hoje, a centralidade que nós damos em Cabo Verde é a economia azul. Mas não é só em termos da protecção dos nossos oceanos ou do nosso ecossistema. É conhecer o nosso mar e explorar com sustentabilidade a pesca, o turismo, os desportos náuticos.
A pesca ilegal é “um flagelo a nível mundial” e fiscalizar os 1.650 km da costa angolana é um desafio devido à falta de meios, admitiu em entrevista à RFI a ministra das Pescas e dos Recursos Marinhos de Angola, Carmen Sacramento dos Santos. Para combater esta ameaça, a ministra, que participou na 3ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano (UNOC3), reforçou a necessidade de unir fiscalização rigorosa, educação e tecnologia. Na 3.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano (UNOC3), que decorre esta semana em Nice, França, Angola reafirmou o seu compromisso com a protecção dos ecossistemas marinhos e a gestão sustentável dos recursos. A ministra das Pescas e dos Recursos Marinhos, Carmen dos Santos, destacou a necessidade de reorientar as políticas públicas, com foco na redução da pesca extractiva e no aumento da aquicultura, promovendo soluções que integrem as dimensões social, económica e ambiental das comunidades costeiras. Trazemos uma mensagem de comprometimento com a sustentabilidade, de comprometimento com os objectivos da Década dos Oceanos, que nos permitem reorientar as nossas políticas públicas para que efectivamente haja uma pesca sustentável, redução da pesca extractiva e que haja o aumento da aquacultura. Este ministério tutela não só a pesca, como os recursos marinhos e isto implica para nós um compromisso enorme de garantir que efectivamente as comunidades costeiras possam ter acesso à pesca e possam ter acesso à aquacultura. Sempre olhando para as suas necessidades do ponto de vista social, do ponto de vista económico, mas acima de tudo, do ponto de vista ambiental. A pesca ilegal continua a ser uma das maiores preocupações para o sector em Angola. “É um flagelo a nível mundial”, reconheceu a ministra, referindo-se não apenas à actuação de embarcações não autorizadas, mas também à falta de documentação e regulamentação eficazes. Na nossa extensão de costa de 1650 km não temos os meios suficientes para que este combate possa ser feito no lugar certo. Muitas das vezes as embarcações que temos estão a norte e eles fazem [pesca ilegal] a sul. Portanto, nós agora estamos com um projecto para dotar a fiscalização de mais meios, permitindo que se faça essa vigilância. Para colmatar essas dificuldades, Angola tem vindo a apostar no investimento tecnológico e na cooperação internacional. Um dos destaques é a parceria com a SADC (Comunidade para o desenvolvimento da África Austral), que facilita a vigilância marítima através de sistemas por satélite, além da subscrição junto da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) do programa "Estado Porto" e do Blue Justice da UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), que incorpora ferramentas de software e monitorização global. Entre os instrumentos de apoio à gestão sustentável, Angola tem o navio científico Baía Farta, apresentado como símbolo do compromisso do país com a investigação marinha. O projecto, iniciado em 2014, é desde o ano passado uma realidade operacional. A nossa costa é longa e nós precisamos de ter informações científicas para o nosso processo de gestão. Queremos fazer uma gestão sustentável e isso só é possível se tivermos uma abordagem baseada no ecossistema. Só se faz isso através de estudos próprios. Temos um navio com valências científicas muito idênticas à do navio [norueguês] Fridtjof Nansen. A Noruega, há uns anos, fez um acordo com a FAO para os cruzeiros ao longo da costa e nós vamos fazer cruzeiros equiparados para alinhar as metodologias e, portanto, os dados poderem ser interoperáveis. Carmen Sacramento dos Santos defende ainda a literacia oceânica para fazer a ponte entre o mar e as populações. A ministra destacou o papel da educação na construção de uma nova relação entre os angolanos e o oceano e explicou que o executivo tem desenvolvido o programa Escolas Azuis, que já está a trabalhar com professores em várias regiões Estamos responsáveis por aumentar a literacia no país sobre os oceanos. Temos a missão de explicar o que é o mar, de trazer os conceitos, de dar a conhecer e de fazer viver o mar o mais longe da costa. Na perspectiva de dizer às populações mais longe da costa, que estão no Leste, o que é o mar e permitindo que elas saibam e vivam o mar. É o nosso mote para que efectivamente o currículo azul seja o “driver” entre o mar e as pessoas.
Angola reafirmou o seu compromisso com a protecção dos oceanos e a mitigação das alterações climáticas durante a 3.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano (UNOC3), que decorre até sexta-feira, 13 de Junho, em Nice, França. A ministra do Ambiente de Angola, Ana Paula de Carvalho, avançou ainda que o processo de criação da primeira área de conservação marinha do país “está numa fase avançada, quase concluído. Falta a consulta pública e posterior aprovação em Conselho de Ministros”. A participar na 3.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano (UNOC3), que decorre até sexta-feira, em Nice, a ministra do Ambiente de Angola, Ana Paula de Carvalho, reforçou o apoio do país aos temas centrais da conferência: biodiversidade marinha, poluição por plásticos e o Tratado sobre a Biodiversidade em Áreas Fora da Jurisdição Nacional (Tratado BBNJ). A costa angolana, com seus 1.650 km de extensão entre Cabinda e Namibe, enfrenta crescentes desafios ambientais. Segundo a ministra do Ambiente de Angola, a subida do nível do mar e a acidificação das águas são consequências directas das alterações climáticas que já afectam a região. Fora da zona costeira, o sul do país sofre com secas severas, particularmente nas províncias do Cunene, Huíla e Namibe. Para combater a escassez hídrica, o Governo implementou projectos de captação e canalização de água, essenciais para abastecimento humano e agro-pecuário. Fizemos um grande esforço para levar água ao Cunene e já começámos intervenções similares no Namibe, com planos futuros para a Huíla. A vida das comunidades depende disso. Angola está a implementar um Plano de Ordenamento da Orla Costeira que visa uma gestão integrada e sustentável do litoral. Em paralelo, está em curso um Plano de Eliminação Progressiva dos Plásticos de Uso Único, aprovado por despacho presidencial, com acções de curto, médio e longo prazo, que passam pela promoção de sacos reutilizáveis, a substituição de embalagens plásticas por materiais biodegradáveis e campanhas de sensibilização junto da indústria e da população. Criámos um plano de eliminação progressiva do plástico, com enfoque no curto prazo. Iniciámos uma campanha de sensibilização para preparar a indústria e a sociedade para esta transição ecológica. Entre as medidas práticas estão o aumento da espessura dos sacos plásticos, o estímulo ao uso de materiais biodegradáveis e a substituição de copos, palhinhas e cotonetes por alternativas sustentáveis. Além disso, os sacos plásticos nos supermercados vão começar a ser pagos, para incentivar o uso consciente. Ao pagar pelo saco, a população começa a levar o seu saco de casa. Já vemos sacos de pano nas padarias de algumas províncias. Isto também cria oportunidade para a economia local. (...) Estamos a preparar o sector produtivo para essa transição, garantindo tempo e condições para a adaptação. A prioridade, neste momento, é a sensibilização e a introdução de alternativas viáveis. Primeira área de conservação marinha Um dos marcos mais relevantes para Angola é a criação da primeira área de conservação marinha do país, na Baía dos Tigres, província do Namibe. A zona, agora transformada numa ilha devido à erosão costeira, combina características de deserto e mar. O documento visa estabelecer regras claras para restringir a pesca e regular o turismo na Baía dos Tigres, protegendo os ecossistemas vulneráveis da região. A Baía dos Tigres é uma área única, entre o deserto e o mar. O processo está numa fase avançada, quase concluído. Falta a consulta pública e posterior aprovação em Conselho de Ministros. A ciência precede a política. Só após os estudos é que criamos o decreto que estabelece as balizas da protecção.
A Guiné-Bissau, país costeiro e arquipelágico, tem nos oceanos um eixo vital para a população, desde a subsistência alimentar até à mobilidade entre ilhas. As declarações são do ministro do Ambiente, Biodiversidade e Acção Climática da Guiné-Bissau, Viriato Cassamá, que participa na Cimeira da ONU sobre o Oceano, que decorre até sexta-feira, 13 de Junho, em Nice, França. “Os oceanos são fontes da nossa vida”, afirmou ao microfone da RFI o ministro do Ambiente, Biodiversidade e Acção Climática da Guiné-Bissau, Viriato Cassamá, que acrescenta que esta relação vital está sob ameaça devido à subida do nível médio do mar e à erosão costeira que colocam o país entre os mais vulneráveis às alterações climáticas. A problemática ambiental intensifica-se com a crescente poluição plástica. Embora o país não produza plástico, é um consumidor significativo e carece de meios técnicos para o tratamento adequado dos resíduos. “Esses plásticos, grande parte deles, são deixados na lixeira a céu aberto” explicou o ministro. A poluição plástica tem impacto directo nos rios, na rede de esgotos urbanos e na fauna marinha. Apesar de, desde 2013, estar em vigor uma legislação que proíbe a importação e uso de sacos plásticos não biodegradáveis, Viriato Cassamá reconheceu que é preciso “redobrar os esforços, porque essa luta é uma luta comum”. Por outro lado, a Guiné-Bissau registou recentemente um marco importante: a geração de aproximadamente 4 milhões de dólares com a venda de créditos de carbono, resultado de um projecto iniciado em 2006 para quantificar o carbono armazenado nas florestas nacionais. “Fui coordenador do projecto durante quatro anos”, referiu Viriato Cassamá, que destaca a importância de manter a preservação ambiental para garantir a continuidade desses ganhos. “Nós não podemos estar a gerar crédito de carbono durante três anos e depois começar a cortar as nossas matas”, advertiu. O ministro defende a necessidade de incluir a dimensão ambiental em todas as políticas públicas, sobretudo no sector primário. Nesse contexto, os mangais surgem como uma das maiores riquezas ecológicas do país. Segundo o Cassamá, “a Guiné-Bissau tem 10% do seu território nacional coberto por mangal”, sendo este considerado como floresta no contexto do Protocolo de Quioto. Estes ecossistemas têm um papel crucial na protecção da costa, reprodução de espécies marinhas e armazenamento de carbono, além de representarem uma oportunidade concreta para o país fortalecer a sua inserção na economia azul. Já no discurso de abertura da Cimeira do Oceano, o Presidente guineense tinha enfatizado a necessidade da preservação dos oceanos. Umaro Sissoco Embaló garantiu que o seu país fará o possível em prol da preservação dos oceanos, mas apelou a uma cooperação internacional nesse sentido por nenhum país, isoladamente, conseguir vencer os desafios com que a humanidade se defronta. Em relação ao alcance da meta 30X30 (até 2030 garantir a protecção de 30% dos oceanos) o chefe de Estado guineense enfatizou a importância de se declarar o arquipélago dos Bijagós como património mundial da humanidade e a criação de uma segunda reserva na região de Cacheu, em Pecixe, duas iniciativas levadas a cabo pelas autoridades deste país da África ocidental.
Com o aumento da frequência e da intensidade dos eventos climáticos extremos, as comunidades costeiras são as primeiras a serem afectadas pelos desastres ambientais. Os sistemas de prevenção aliados à participação activa das comunidades parecem ser o caminho eficaz para a redução dos riscos de desastre de acordo com o painel “Da costa à comunidade: construir resiliência através de alertas precoces”, realizado no âmbito da UNOC3, que decorre em Nice, França. Com o aumento da frequência e da intensidade dos eventos climáticos extremos, as comunidades costeiras são as primeiras a serem afectadas pelos desastres ambientais. A subida no nível do mar, a erosão costeira, o aumento da força das tempestades e as ondas de calor marinhas são algumas das ameaças directas à sobrevivência de populações, economias locais e ecossistemas marinhos.Os sistemas de prevenção aliados à participação activa das comunidades parece ser o caminho eficaz para a redução dos riscos de desastre de acordo com o painel “Da costa à comunidade: construir resiliência através de alertas precoces”.Neste painel, os participantes discutiram o papel central da iniciativa “Alertas Precoces para Todos”, lançada pelo secretário-geral das Nações Unidas António Guterres, como ferramenta essencial para proteger comunidades vulneráveis dos impactos climáticos. A liderança local foi destacada nesta cadeia de esforço.A participar na conferência “Da costa à comunidade: construir resiliência através de alertas precoces” esteve a secretária municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação do Rio de Janeiro, Tatiana Roque, que partilhou o trabalho que esta grande metrópole brasileira tem vindo a fazer no que diz respeito à resiliência costeira e aos sistemas de alerta.O Rio de Janeiro tem um sistema muito avançado de alerta para inundações.Integrou os dados dos sensores oceânicos numa parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas, para incorporar os dados oceânicos no nosso monitoramento.A partir daí, a cidade pode planejar medidas de resiliência costeira.Além disso, a secretária municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação do Rio de Janeiro, acrescenta que “foram criados no Plano de Desenvolvimento sustentável os corredores azuis, que são maneiras de integrar todo o nosso sistema, que inclui além do mar, lagoas, rios, para facilitar a drenagem. Já foram construídos no rio várias piscinas para facilitar a drenagem e impedir as enchentes.”O Rio de Janeiro aprovou ainda a presença no sul de França para defender a sua candidatura para acolher a próxima conferência da Década do Oceano, em 2027.O encontro decorreu no âmbito da 3.ª Conferência dos Oceanos das Nações Unidas (UNOC3), que acontece em Nice, França, até sexta-feira, 13 de Junho, co-presidida pela França e a Costa Rica.
No decurso da 3.ª Conferência do Oceano das Nações Unidas (UNOC3), a decorrer em Nice, o PNUD organizou uma "Mesa Redonda Ministerial sobre os SIDS". Marcos Neto, secretário-geral Adjunto das Nações Unidas, em entrevista à RFI, explica que a política do PNUD para estes “gigantes oceânicos” se baseia na “diversificação da economia”, “transição energética” e “financiamento”. No decurso da 3.ª Conferência do Oceano das Nações Unidas (UNOC3), a decorrer até sexta-feira em Nice, França, o PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - organizou, esta segunda-feira, 09 de Maio, uma "Mesa Redonda Ministerial sobre os SIDS", os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento. Em cima da mesa, dois temas em destaque: o lançamento da Iniciativa "Rising Up for SIDS" (Mobilizar-se pelos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento) e o "One Ocean Finance" (Financiamento para o Oceano).Marcos Neto, secretário-geral Adjunto das Nações Unidas, administrador assistente do PNUD e director do Gabinete de Apoio às Políticas e Programas, em entrevista à RFI, explica que a política do PNUD para estes “gigantes oceânicos” se baseia na “diversificação da economia”, “transição energética” e “financiamento”.RFI: O PNUD lançou esta estratégia “Rising Up for SIDS”. Em termos práticos, em que é que consiste e que mudanças traz para os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento?Marcos Neto: Os países, as pequenas ilhas insulares, na verdade, achamos que eles têm um nome mal dado, em vez de serem chamados de pequenos países insulares, deviam ser chamados de países gigantes oceânicos. O PNUD trabalha com 30 dos 39 países que são ilhas. E essa estratégia é a continuação de uma estratégia que já tínhamos, comprovando o compromisso permanente, a prioridade permanente que o PNUD dá para as pequenas ilhas. Enfoca basicamente em três grandes pilares: um pilar que é a diversificação da economia das ilhas, tomando muito em consideração a economia azul. Segundo elemento prende-se com uma questão de adaptação climática e de preparar os países para ter uma resiliência mais forte com relação aos problemas climáticos.No sentido de os países já estarem preparados para essas consequências das alterações climáticas?Exactamente, até porque as consequências já são uma realidade, não é mais uma questão futura. Já estamos com a frequência de furacões e a frequência de desastres cada vez maior.Também é um processo de transição energética. Esses países são muito dependentes de processos de importação de energia, na maior parte dos casos, eles importam [energia] fóssil. Importam diesel. Eles são muito pouco contribuintes ao problema climático, a emissão deles é muito, muito pequena. O trabalho de transição energética não é uma questão tanto de resolver o problema global de emissões climáticas, mas é um processo de transição económica. A balança comercial desses países é altamente afectada na parte de importação pela importação de diesel, pela importação de energia fóssil.Se conseguíssemos fazer a transição desses países para uma energia renovável, local, solar, eólica, geotérmica ou até oceânica, eventualmente, transformaríamos a economia deles para sempre, ao reduzir o que eles têm que importar em dólares ou em euros de energia. Então esse é um dos elementos mais importantes que junta a questão climática com a questão da transição económica.O terceiro pilar do nosso trabalho é exactamente garantir o acesso a finanças para eles. Esses países sofrem um processo muito desigual nas estruturas de finanças internacionais, porque são considerados basicamente países de ingresso médio. Porquê? Porque eles têm um PIB per capita alto. Então, não têm acesso às finanças concessionárias internacionais. E, ao mesmo tempo, têm alto nível de dívida pública.De endividamento.De endividamento. Eles têm um problema financeiro, de acesso de finanças para fazer essa transição energética, para se prepararem para o clima, para investir em educação e saúde, que é um absurdo.E é nesse e nesse caso que entra o PNUD e que tenta inverter essa situação do acesso às finanças ou que tenta de alguma forma conseguir esse financiamento para esses países?Exactamente. A nível mundial, com as Nações Unidas lideradas pelo secretário-geral, já faz muito tempo que estamos pedindo uma reforma profunda da arquitectura de finanças internacionais. Inclusive, isso será discutido daqui a um mês em Sevilha, na Espanha, na quarta reunião de financiamento do desenvolvimento, logo depois da reunião dos oceanos.E, para além disso, a gente trabalha com esses países tentando acertar os orçamentos, tentando ver como podem aceder ao mercado de capitais em termos que são bons para eles. Todos esses aspectos. A gente trabalha tanto na questão política de ‘advocacy' a nível mundial, como país por país, em tentar ajustar as finanças públicas deles e ajudar eles a aceder a esse mercado de capital.Nesta questão da transição económica, essa economia Inclusiva garante que os grupos mais vulneráveis não ficam de fora, não ficam à margem desta transição, mulheres jovens, comunidades mais vulneráveis. Como é que isso acontece?A gente tem um princípio básico de não deixar ninguém para trás, não deixar ninguém para trás. Significa que começamos com quem já está atrás para não deixar um ‘gap' muito grande. E nesse aspecto, tem juventude, mulheres, grupos que são marginalizados ou por questões de raça ou de género. A gente tenta sempre trabalhar tanto do ponto de vista da política pública, com os governos. A gente trabalha muito na questão de que os orçamentos públicos desses países tenham uma lente de género, uma lente de mulher, que eles possam ver as mulheres no orçamento público. Como a gente trabalha no processo de empreendedorismo e empreendedorismo de mulheres, empreendedorismo de jovem, transição digital para que não deixe para trás mulheres e jovens. Isso é um pilar fundamental de todo o trabalho do PNUD.E tendo em conta esta estratégia “Rising Up for SIDS”, o PNUD espera alcançar os resultados em quanto tempo?Por quatro anos. Essa estratégia se junta ao nosso novo plano estratégico, que começa a partir do início do ano que vem e vai até 2029. Então, são quatro anos. Mas antes disso, é um processo de continuação, criado em cima do que já deu certo.No que toca à plataforma “One Ocean Finance”, de que forma é que pode ser efectivamente desbloqueado financiamento?Essa plataforma, que tem vários parceiros, dá tanto assistência técnica para os países como trabalha em processos de instrumentos financeiros específicos. Por exemplo, garantias. Se a gente conseguisse, dentro dessa plataforma, botar processos de parcerias que possam gerar garantias para que esses países tenham uma nota de risco melhor do que o que eles têm hoje, isso vai atrair o capital com termos melhores.Mas aqui falamos que aqui falamos, por exemplo, também do sector privado?Claro, porque no final das contas, quem investe é o sector privado, mas o sector privado na hora de investir sempre toma em consideração as notas de risco que são dadas aos países. A nota de risco desse país não é boa. Então, colocar instrumentos financeiros como garantia, melhorar políticas públicas domésticas que gerem um processo de mudanças dos riscos que os países têm e que são percebidos pelos exteriores, vai atrair o sector privado.Qual é a esperança que o PNUD deposita nesta terceira cimeira sobre os oceanos das Nações Unidas?Eu acho que é preciso olhar para essa reunião e ver duas coisas importantes: a consolidação da importância económica, social e ambiental dos oceanos e, dentro dessa importância, dessa consolidação, dessa a elevação como prioridade, dos papéis das ilhas, dos pequenos países insulares. É importante para consolidar e para demonstrar que esses países precisam de mudanças mundiais para que eles tenham uma realidade, eles são os mais vulneráveis ao clima, com menos acesso a financiamento, para se protegerem contra o clima. Isso tem que mudar. Então, eu acho que essa reunião combinada com a reunião de Sevilha de financiamento para desenvolvimento, que vem daqui a um mês depois, combinado com a COP 30, no Brasil, pode ajudar muito a consolidar essa realidade fundamental que a gente precisa. Acho que a segunda parte é ter um processo mundial de encontrar ferramentas, encontrar plataformas específicas que possam começar a implementar na prática, no dia-a-dia, o que está saindo dessas conversas mais políticas. Nesse caso, o Ocean Finance Facility, do PNUD e de outros parceiros, é importante, o fundo de recifes de corais é outro papel importante. Eu acho que tem todo um elemento aqui que é fundamental para essas conferências, tanto do ponto de vista de consolidação política, de prioridades, quanto de ter respostas práticas que ajudem as pessoas no dia-a-dia na vida deles. Não faz muito sentido ficar só na retórica.
Arranca esta segunda-feira, em Nice, França, a 3.ª Conferência dos Oceanos das Nações Unidas (UNOC3). Em cima da mesa o reforço da mobilização global para a preservação e uso sustentável dos oceanos. A UNOC3 é co-presidida pela França e pela Costa Rica. Os Estados Unidos são os grandes ausentes da cimeira. O presidente da associação ambientalista portuguesa ZERO, Francisco Ferreira defende que esta conferência “é uma oportunidade de acção” para “dar prioridade àquilo que o oceano representa”. RFI: O que é que a ZERO espera desta terceira conferência sobre os Oceanos?Francisco Ferreira: Nós achamos que esta conferência será, sem dúvida, mais um marco importante de discussão e, acima de tudo, de dar relevo e prioridade àquilo que é o oceano, quer do ponto de vista dos serviços que nos presta, quer da absoluta necessidade da sua salvaguarda e protecção e também do “sofrimento” que o oceano, com as grandes crises climática, da biodiversidade, da exploração de recursos, tem sofrido.Se não fosse o oceano, a temperatura da nossa atmosfera não estaria apenas a 1,6 graus acima da era pré-industrial, como esteve em 2024, mas muitos mais graus acima porque tem sido o oceano, através do seu aquecimento, com consequências dramáticas - nomeadamente para os bancos de coral, para o oxigénio que consegue estar dissolvido nos oceanos - que tem acomodado esse aumento temperatura.Portanto, o oceano tem de ser salvo e nós precisamos de o proteger e salvaguardar.Esta conferência, apesar de não se esperar realmente resoluções vinculativas e é algo que decorre da sua própria natureza, vai, sem dúvida, juntar um conjunto de líderes e uma oportunidade de acção que para nós é extremamente importante. Esperamos o estímulo ao aumento das ratificações para conseguirmos a entrada em vigor do Tratado do Alto Mar. Estamos com 29 países que já ratificaram. E são precisos 60 para a ratificação do Tratado do Alto Mar?Exactamente. Estamos a falar de um território que representa mais de 70% do oceano e que é fundamental ser reconhecido como bem comum da humanidade e gerido com base na ciência, e com base também na equidade entre os vários países.Por outro lado, também é crucial que tenhamos, do ponto de vista científico, esta possibilidade- de tal como para o clima- termos um Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, para a Biodiversidade também um painel semelhante, dedicarmos o mesmo tipo de relevo, de juntar os melhores cientistas e a melhor informação e conhecimento para gerir o oceano. E essa plataforma para nós é, sem dúvida, um aspecto muito relevante.Há, ainda, outros aspectos que achamos cruciais: a participação de grupos minoritários que são cruciais para a sua sustentabilidade económica e social na gestão do oceano - os pescadores de pequena escala, os povos indígenas - e, por outro lado, ainda, a necessidade de darmos um relevo realmente muito maior ao oceano no quadro das alterações climáticas.À semelhança daquilo que acontece com as diferentes COP, Cimeira das Nações Unidas para o Clima, não podemos ter aqui mais do mesmo? Os documentos que saem destas conferências não são vinculativos, o que faz com que não haja consequências para os países que não os respeitem.Essa, aliás, a principal crítica da parte da Zero e também da Oikos, uma outra organização mais ligada ao desenvolvimento - estamos a acompanhar juntos esta conferência - é que realmente podemos ter determinadas acções que têm um peso vinculativo grande, como é o caso do Tratado do Alto Mar, mas muitas das outras decisões, inclusive aquilo que venha a ser a adopção do “Plano de Acção de Nice para o Oceano”, a “Declaração do Nice para a Acção no Oceano”, tudo isso, pura e simplesmente, poderá passar não mais do que meras intenções.De boa vontade?De boa vontade e não vincular realmente os países. Sem dúvida que, para nós, é esta discussão multilateral entre os vários países que é fundamental fazer e, portanto, a conferência é, sem dúvida alguma, uma enorme mais-valia. Perde por, no quadro internacional, não ter uma expressão vinculativa, principalmente no que diz respeito à mobilização de recursos financeiros, no que diz respeito às metas de protecção e salvaguarda, mas indirectamente -e esse é o nosso apelo - há tratados, convenções, essas sim, com um espírito mais vinculativo. Por exemplo, a Convenção da Biodiversidade ou da Diversidade Biológica e a própria Convenção do Clima, onde poderei integrar a valência dos oceanos de uma forma muito mais importante do que tem acontecido, principalmente no clima. Na Convenção do Clima, os oceanos têm tido uma menção e uma é uma atenção muito reduzida face aquilo que tem sido o papel dos oceanos, quer na redução dos impactos quer nas consequências para o oceano de termos temperaturas mais elevadas e mais dióxido de carbono na atmosfera.Em relação a Portugal, qual é o ponto da situação das políticas em relação precisamente à protecção do oceano?Portugal ratificou recentemente o Tratado para o Alto Mar e, portanto, é uma excelente notícia. Mas, por outro lado, no que diz respeito à limitação de várias áreas em termos de conservação da natureza nas zonas costeiras do continente e, por outro lado, também naquilo que são ameaças em relação a áreas que foram recentemente anunciadas, como foi o caso das áreas marinhas protegidas dos Açores e onde se quer flexibilizar determinada pesca - e o mesmo se passa na Madeira - temos aqui uma certa contradição entre alguma ambição que Portugal tem demonstrado e ameaças ou a falta de concretização daquilo que Portugal já deveria ter feito e assegurado de forma muito clara em termos de apoio.Há um outro aspecto também importante, Portugal alinhou naquilo que respeita à exploração dos fundos marinhos numa moratória para até 2050 - infelizmente não é para sempre - não embarcar nesse tipo de exploração, nomeadamente de materiais críticos no fundo do mar, na zona da sua jurisdição.
A empresa portuguesa Atlantic Spaceport Consortium espera realizar em breve voos sub-orbitais e orbitais na ilha de Santa Maria, nos Açores. Os primeiros passos foram dados em Setembro do ano passado, com o lançamentos de dois foguetes atmosféricos, a partir de Malbusca, na ilha de Santa Maria. A iniciativa demonstrou a possibilidade de se realizarem no futiro lançamentos espaciais regulares, com capacidade de chegar ao espaço, garantiu Miguel Morgado da Atlantic Spaceport Consortium. Em setembro de 2024, foi realizada a primeira missão chamada missão Gama, da empresa portuguesa Atlantic Spaceport Consortium com o lançamento de dois pequenos foguetes numa infra-estrutura móvel e temporária em Malbusca, na ilha de Santa Maria, Açores. O principal objetivo foi demonstrar a capacidade operacional no terreno, incluindo a coordenação com as autoridades de tráfego aéreo e marítimo, sem deixar marcas permanentes no local.Miguel Morgado da Atlantic Spaceport Consortium recorda que a operação exigiu uma logística complexa, com transporte de equipamentos e consumíveis do continente europeu até à ilha, além do controlo do espaço aéreo e marítimo para garantir a segurança do lançamento e recuperação.Os foguetes fizeram voos atmosféricos, não espaciais, devido à baixa altitude alcançada, não tendo sido necessário um licenciamento espacial formal. Para futuros lançamentos orbitais, esse processo será obrigatório.A longo prazo, a Atlantic Spaceport Consortium quer avançar para voos orbitais, desenvolvendo a infra-estrutura de forma gradual e apoiando os operadores que ainda estão a desenvolver os veículos espaciais, explica Miguel Morgado. Há também um compromisso com a proteção ambiental, visando um desenvolvimento sustentável nos Açores, conhecidos pela sua biodiversidade única. A empresa pretende que este centro de lançamento seja um catalisador para a economia espacial local, consolidando Santa Maria como um hub espacial, já com várias empresas instaladas, e promovendo o crescimento das capacidades e atividades ligadas ao acesso e retorno ao espaço.A Agência Espacial Portuguesa quer que a ilha açoriana de Santa Maria possa ser um ponto de acesso ao espaço e de retorno de pequenos veículos espaciais, após a aterragem do `Space Rider` prevista para 2027.
Em Moçambique, 25.000 pessoas foram recentemente obrigadas a sair de regiões que até agora estavam salvaguardadas face aos ataques terroristas em Cabo Delgado, comprovando não só o aumento da violência nesta província, mas o alargamento da acção dos terroristas a novas áreas. Em entrevista à RFI, Isadora Zoni, oficial de comunicação do ACNUR em Pemba, dá conta da situação no terreno e da necessidade de recolher fundos para ajudar 5,2 milhões de pessoas em todo o país. Em Moçambique, 25.000 pessoas foram recentemente obrigadas a sair de regiões que até agora estavam salvaguardadas face aos ataques terroristas em Cabo Delgado, comprovando não só o aumento da violência nesta província, mas o alargamento da acção dos terroristas a novas áreas.De forma a fazer face ao aumento de deslocados, mas também ao aumento das necessidades da população em geral em Moçambique também afectada pelos fenómenos climáticos extremos e meses de instabilidade política, o Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR) veio alertar para a falta de meios para suprir as necessidades de quem mais precisa de ajuda no país.Em entrevista à RFI, Isadora Zoni, oficial de comunicação do ACNUR em Pemba, dá conta da situação no terreno e da necessidade de recolher os 43 milhões de dólares necessários para ajudar 5,2 milhões de pessoas em Moçambique."O deslocamento massivo destas 25.000 pessoas nas últimas semanas reflecte uma mudança nos ataques. Até porque, no passado vimos ataques concentrados em grandes áreas de determinados distritos do Norte de Moçambique em Cabo Delgado. E agora o que nós estamos a perceber é que as atividades estão a acontecer também na província vizinha de Niassa e ainda nas áreas do Sul de Cabo Delgado, com ataques também em Nampula. Antes estas populações estavam seguras e que muitas vezes estas eram tidas como áreas de recepção para as pessoas que estavam forçadas a fugir. Então, a realidade é que quando o conflito se espalha para essas outras áreas, isso significa também que pessoas que talvez estivessem deslocadas estão a ser impactadas novamente", declarou a responsável da ONU.Para o ACNUR esta situação "agrava a situação de vulnerabilidade" destas populações, com estes 25 mil novos deslocados a virem de Ancuabe e Montepuez, distritos até agora poupados pela violência no Norte do país. Actualmente, as Nações Unidas pedem uma maior mobilização à comunidade internacional já que dos mais de 40 milhões de dólares para fazer face às necessidades da população em Moçambique, apenas 14,9% dos fundos foram recolhidos. Isto acontece numa altura em que os preços estão a aumentar substancialmente em todo o país."Para além da crise humanitária devido ao terrorismo, dos ciclones que houve e ainda as consequências em relação às protestos pós-eleitorais, nós estamos também a viver uma crise económica silenciosa. Os preços dos alimentos, o preço do pão vem subindo nos últimos meses e podemos ver um aumento de 10 a 20% em coisas que fazem parte da cesta básica das famílias e, por consequência, isso impacta também as necessidades que nós vemos, não somente para as pessoas que estão forçadas a fugir, mas para as pessoas que são mais vulneráveis na sociedade. Então existe a necessidade de abrigo, existe a necessidade de comida, existe a necessidade de protecção", indicou Isadora Zoni.A vulnerabilidade das populações estende-se a todos os aspectos das suas vidas, incluindo documentos. Segundo esta trabalhadora humanitária, 96% dos deslocados em Moçambique não têm documentos consigo o que dificulta depois a entradas das crianças nas zonas de chegada, mas também o reconhecimento dos seus direitos sociais.O ACNUR pede agora que este não seja um conflito esquecido e continua a trabalhar ao lado do Governo moçambicana e das populações para melhorar as condições de vida não só dos deslocados no Norte do país, mas também das pessoas afectadas pelos fenómenos climáticos e pelas consequências da instabilidade política dos últimos meses.
Há cerca de duas décadas, a ilha de Santa Maria, nos Açores, iniciou uma transformação lenta, mas decisiva no panorama tecnológico e geo-estratégico do Espaço. A presidente da câmara municipal da Vila do Porto, Bárbara Chaves, destaca o papel crucial da ilha como plataforma para o sector espacial, sublinhando a importância do equilíbrio entre inovação e sustentabilidade ambiental. O sector espacial em Santa Maria começou há cerca de 20 anos de forma modesta, com uma unidade móvel destinada ao controlo e rastreio do foguetão Ariane, que partia da Guiana Francesa. Com o tempo, essa estrutura temporária evoluiu para uma instalação fixa com impacto relevante na ilha."Esta evolução foi gradual (...) transformou-se numa estrutura fixa em que já se conseguiu criar postos de trabalho, desenvolver outras tecnologias e consolidar a posição geoestratégica de Santa Maria", recordou Barbara Chaves, presidente da Câmara Municipal da Vila do Porto.A autarca destacou a importância da estação Galileu e o papel da Agência Espacial Europeia que possibilitaram a criação de novos serviços, como o rastreio de hidrocarbonetos e protocolos com autoridades marítimas. Este desenvolvimento levou à criação do actual Teleporto, uma infra-estrutura de referência internacional."Tudo isto fez com que aquele espaço se tornasse realmente neste Teleporto, que é o que existe actualmente", sublinhou.Nos últimos anos, a Câmara Municipal tem colaborado activamente com o sector, inclusive com a Agência Espacial Portuguesa, apoiando projectos como o Space Rider e disponibilizando meios logísticos e humanos."Fazemos um acompanhamento muito próximo com as actividades da Estrutura de Missão dos Açores para o Espaço-EMA- (...) damos o nosso pessoal e os nossos meios."Contudo, Bárbara Chaves frisou que esse apoio está condicionado ao respeito pelos critérios ambientais e pela qualidade de vida local. "Desde que os projectos respeitem as questões ambientais e a qualidade de vida dos marienses, nós estamos disponíveis para ajudar. Caso contrário, seremos os principais opositores", admitiu. A presidente da Câmara Municipal da Vila do Porto reconheceu que, inicialmente, houve resistência por parte da população, principalmente quando se discutia a possibilidade de se instalar uma base de lançamento de foguetões, considerada demasiado ambiciosa para a escala da ilha."No princípio deste processo foi complexo. Existiam muito mais pessoas contra do que a favor. As pessoas não sabiam o que era."É o caso de Marco Andrade, vendedor ambulante, que ainda desconhece as vantagens da instalação do porto espacial na ilha de Santa Maria. "Nós não sabemos se [este ptrojecto) vai trazer benefícios para a gente", confessou.Embora existam preocupações — sobretudo ambientais e com o possível aumento populacional — há uma aceitação crescente e um debate mais informado junto de alguns marienses que acreditam no impacto positivo desta iniciativa na economia local. Ainda assim, Bárbara Chaves garante que o desenvolvimento espacial só terá apoio se respeitar os princípios de sustentabilidade ambiental e a qualidade de vida dos moradores. "É ponto assente que, se os investimentos não estiverem acompanhados de preocupações ambientais, nós não apoiaremos", reitera. A ilha de Santa Maria, nos Açores, vai receber em 2027 a aterragem do primeiro voo do Space Rider, o futuro veículo não tripulado da Agência Espacial Europeia.
Amílcar Cabral, o estratega da independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, ao longo da sua vida, enquanto engenheiro agrónomo, e depois como líder do PAIGC, trocou correspondência com Maria Helena e Ana Maria, as suas duas esposas.Cartas essas que foram já publicadas no passado pela editora Rosa de porcelana.Um projecto de tradução para francês dessa relação epistolar esteve no centro de uma deslocação a Paris dos editores Filinto Elísio e Márcia Souto. A equipa da Rosa de Porcelana, na companhia de Maria Benedita Basto, professora universitária na Universidade de Sorbonne em Paris, veio até à RFI.Filinto Elísio começa por nos contar o que está em causa nesta correspondência que tem vindo a ser divulgada.O grande aspecto aqui é Amílcar Cabral e a sua forma de relacionar com as pessoas, com o outro, neste caso com as mulheres. E nós tivemos acesso aos arquivos, aos documentos inéditos que estavam guardados, nomeadamente as cartas...O trabalho de recolha da IVA Cabral, a filha historiadora !Tínhamos, portanto, um espólio da Iva que tinha as cartas que a mãe recebera. Ela herdou da mãe e cartas do pai de Amílcar Cabral. É com estas cartas que nós fizemos o primeiro livro dessa série que é "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena. A outra face do homem."E mais tarde tivemos ocasião de ter também um espólio de correspondência, mas postais Amílcar Cabral e produzimos "Itinerários de Amílcar Cabral". E recentemente, em 2024, nós pudemos também ter acesso às "Cartas de Amílcar Cabral a Ana Maria."E cartas que nos foram legados por Ana Maria. E pronto, é quase uma trilogia, embora estejamos interessados em continuar a aprofundar as correspondências de Amilcar Cabral nesta área ou noutra, noutros filões. Porque Amilcar Cabral teve uma actividade epistolar muito forte, uma correspondência com vários sujeitos e em tudo o que temos visto de Amilcar Cabral em termos de escrita de cartas, nós sentimos cá, de facto, esteticamente, Amilcar Cabral se inscreve também na literatura epistolar dos nossos países. Quem também entra, ele também é um poeta. Mas essas cartas permitem também enquadrá-lo enquanto epistolografia. E isto, para nós é algo muito interessante, enquanto editores.E Márcia Souto precisamente porquê , então, que a Rosa de Porcelana decidiu pegar nestas relações epistolares ? E eu tenho-me apercebido que ela tem tido imensa projecção. Falámos de Cabo Verde, mas não só da Guiné-Bissau. Qual tem sido o feedback que tem tido e creio saber mesmo que está aí na manga um projecto, uma possível tradução para francês, não é?Sim, na verdade, Amilcar Cabral é uma figura de muito interesse, não só nos seus países, podemos dizer: Cabo Verde, Guiné-Bissau, mas é uma figura de referência, não digo só africana, penso que é mundial. É a oportunidade que nos foi dada no caso do primeiro livro pela Iva Cabral, que é quem é uma das organizadoras juntamente connosco, e no segundo e terceiro caso, nos dois livros "Itinerários de Amilcar Cabral" e "As Cartas a Ana Maria", cujas organizadoras, no caso do segundo, Ana Maria, está. E no terceiro a Indira Cabral, que é também quem faz grande parte da transcrição das cartas. Então, para...A filha de Amílcar Cabral !É a filha de Cabral e da Ana Maria. Então, para nós é mesmo uma grande oportunidade de trabalharmos com textos escritos por uma personalidade que até então era muito conhecida pelos seus discursos políticos, pela sua estratégia também militar. Mas aqui a gente começa a ver a outra face, ou seja, como se fosse o homem por trás do Cabral. O Amilcar talvez por trás do Cabral. Então, para nós é muito interessante e gostaríamos para que as cartas pudessem ser lidas por um público maior. A tradução é imprescindível. Então, temos aí algumas possibilidades de edição em francês, nomeadamente.Maria Benedita Basto: Entre as cartas, a Maria Helena e a Ana Maria passam alguns anos. Ele tem 22 anos quando começa a escrever a Maria Helena. Ambos estão em Portugal com a Ana Maria Cabral. A situação é diferente. É um estratega, um homem mobilizado na guerra, que lhe vai dando notícias do avançar da sua luta. Um agrónomo e, depois, um estratega, um nacionalista. Mas, ao fim ao cabo, um homem também cheio de sentimentos, não é? E o que se pode patentear em ambas as cartas não é ?Um homem cheio de sentimentos, sim, absolutamente. Queria só dizer qualquer coisinha em relação ao estratega de que fala no volume das cartas do Cabral para a Ana Maria e que, curiosamente, quando nós vemos os documentos, as cartas verdadeiras, o arquivo, as folhas de papel na escola, ele escreve algumas delas. Está escrito "Amilcar Cabral, engenheiro agrónomo". E isso é muito interessante. Que ele continue, ainda por cima está escrito em português... Numa situação em que ele vive na Guiné-Conacri e que o engenheiro agrónomo agora não é de todo a forma como ele se apresenta, porque ele é o líder do PAIGC, que ele utiliza esse papel para escrever a Ana Maria. De uma certa forma, ele continuará sempre a ser o engenheiro agrónomo. E acho que precisamos de perceber isso, porque faz parte do seu olhar sobre o mundo. Um olhar muito, hoje, diríamos um olhar muito ecológico, mas até para sermos mais fiéis ao pensamento do Cabral, que faz uma distinção entre ecologia e mesologia, talvez mais meslógico, se podemos dizer isso em português. Isto é uma ecologia em que o ser humano, como os outros seres, são extremamente importantes.Em relação a Maria Helena. Vemos o homem apaixonado, mas que ainda assim lhe dá conta do seu projecto de voltar a África, ele que na altura estava em Portugal. Agora, quando se está a corresponder com Ana Maria Cabral, obviamente dá notícias do evoluir da guerra. Fala mesmo dos encontros internacionais que mantém para conseguir apoios para o PAIGC. E até fala também das paisagens que vai vendo nas zonas libertadas. Nota-se essa maturidade, imagino. Portanto, devem ser cartas bastante diferentes das que ele escreveu à primeira e depois à segunda esposa. Querem comentar?Sim, as cartas são diferentes porque são fases diferentes da vida. Mas há uma linha contínua de um Cabral que tem uma interlocução intensa e aberta, fluida, democrática, com o outro, com a companheira, as companheiras, nos dois casos, numa troca de aprendizagens. Cabral que ensina, mas que aprende com as relações. Na primeira fase são dois jovens que assumem a consciencialização política das questões. Cabral Um pouco mais avançado politicamente. E essa interlocução é extremamente importante nos dois sentidos. Porque a Maria Helena é muito importante para passar a Cabral a "sentimentalidade" do mundo português, da visão de um outro Portugal que não é aquele colonial fascista que conhece na pessoa. E Maria Helena passa a ser a metonímia de um Portugal que Cabral também aprecia a ama e que, no seu discurso político, mais à frente vai dizer que a luta não é contra o povo português. E Maria Helena tem um papel importante nessa dialogia, que cria um processo de aprendizagem. Já no segundo livro, que é Cartas para Ana Maria, temos também uma jovem diante do Cabral, que Cabral e o seu secretário-geral e o seu líder, mas que ao mesmo tempo há uma desconstrução da ideia do líder para ser companheiro marido. Então há questões. Há um contar a partir de Cabral, das paisagens que vê, das relações que tem, da evolução política, militar, diplomática, do mundo, portanto da complexidade da luta de libertação que não se resuma à luta armada. E Ana Maria vai acompanhando. Mas nós nos apercebemos também de um Cabral que assume a família e se preocupa com a filha mais nova e com o filho Raul, que vem das primeiras núpcias de Ana Maria, mas que Cabral assume como o filho homem que não teve. Ideologicamente, Raul passa a ser o seu filho do coração. E nós vamos entender também este lado. Tudo isso para nós é importante, enquanto mediadores, que é uma editora, passar para o público, não só para o retrato do homem de família, o homem e o homem é amante. Mas tudo isso como uma metonímia de quem transporta tudo isso para a sua visão em relação ao mundo. Em relação à mudança muito mais filosófica que política, até é que está implícito nas duas cartas, nos dois livros e também nos postais. Portanto, há ali uma linha cabalista, há um estilo amilcariano de escrita e há um Cabral potencialmente político. Porque esta ideia de Amilcar Cabral, para nós claramente um composto de duas partes. Há um Amilcar, a pessoa não política, mas que já é poeta, que já é um jovem inquieto, que é um agrónomo, que é quem faz ensaios, na altura muito jovem. E é um Cabral que é uma figura já quase marca, que é uma marca de dimensão que vai abrindo para se tornar numa dimensão mundial. Mas que há sempre essa ambivalência é o composto que mostra uma complexidade, de um lado, pouco conhecido ainda do grande público. E este é o nosso papel enquanto editores, também mediar para um conhecimento que à luz da crítica genética vai conhecer o outro lado de Cabral, que também, quanto a nós, tem uma genialidade.Precisamente Márcia Souto: Quando se escreve a alguém, isso implica normalmente uma distância geográfica. E para que as pessoas entendam porque é que de repente, Maria Helena e Cabral estão ambos em Portugal, mas estão separados geograficamente. E a relação epistolar começa por aí, com a Ana Maria Cabral. Como é que é essa distância? Ambos vivem em Conacri. Ele viaja muito. Será durante este afastamento que eles se correspondem ?No caso, as primeiras cartas, " As cartas para Maria Helena", as cartas são escritas sobretudo as primeiras quando estão de férias, férias grandes. Então, durante as férias grandes é que há essa correspondência, que é bastante frequente. Também numa segunda fase, ainda nesse primeiro livro. Há momentos em que ele está fora de Portugal, está já a trabalho em Angola e mesmo na Guiné. Nas "Cartas para a Ana Maria", já é o líder que está ali em plena luta. E a luta também se faz no plano diplomático. Então, há muitas viagens. E essas cartas são escritas sobretudo nessas separações. E é muito curioso porque muitas vezes ele insiste que isso não deve continuar, portanto, que ela tem que estar. Eles devem estar juntos sempre nas missões. É claro que tem a questão dos filhos, mas percebe-se ali que para ele é importante que ela esteja em vários papéis na luta. Inclusive também nas viagens em prol desse desiderato.