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A actriz, encenadora e investigadora brasileira Gabriela Carneiro da Cunha está de regresso a Paris com a peça Tapajós, o terceiro capítulo do projecto Margens, uma série de criações dedicadas à escuta de rios em situação de catástrofe. O espectáculo pode ser visto no Ircam‑Centre Pompidou, até 17 de Dezembro, no âmbito do Festival d'Automne 2025. Tapajós integra o projecto Margens e segue uma linha de investigação artística iniciada com Altamira 2042. “Esse projecto dedica-se à escuta de rios que vivem uma catástrofe desde a perspectiva do rio. Nesse momento, a gente está aqui de volta com a peça Tapajós, que é a expressão artística da escuta do testemunho do Tapajós sobre a contaminação de mercúrio pelo garimpo ilegal de ouro.” A artista revela que, a partir desta escuta, começou a seguir “o rastro do mercúrio”, o que conduz directamente à fotografia analógica: “A peça é um encontro entre o teatro e um laboratório fotográfico, onde a gente usa o mesmo elemento químico que faz as existências desaparecerem. Podem também fazer as existências aparecerem.” O processo fotográfico não é apenas uma metáfora, mas uma prática concreta que permite revelar e recompor simultaneamente: “A fotografia analógica está, ao mesmo tempo, revelando uma situação de catástrofe, a contaminação, mas ela também está, de algum modo, recompondo. Assim, ela também está dizendo que o problema não é o mercúrio, é a composição com ele, você pode compor para fazer o garimpo ou para fazer a fotografia analógica e fazer as imagens permanecerem.” Criando assim um diálogo entre o teatro, o laboratório fotográfico e os seres que “vão brotando da água, aparecendo para a gente”. O trabalho de Tapajós também denuncia relações geopolíticas e económicas: “Isso acontece porque há uma relação histórica, geopolítica e atual da colonização e que faz com que essa relação entre esses continentes da exploração do ouro esteja na origem da nossa relação enquanto Europa-América do Sul, e que permaneça. O preço do ouro nunca esteve tão caro.” Gabriela Carneiro da Cunha salienta que “a Suíça é o país que mais compra ouro no mundo, entre esse ouro, compre e refina ouro ilegal” e explica que ao apresentar o espectáculo fora do Brasil, a relação de responsabilidade directa muda: “Quando a gente faz a peça no Brasil, são eles. Quando a gente faz a peça aqui, são vocês. Então a relação muda quando se diz Suíça estando na Suíça ou quando a Alessandra fala: ‘Fui na Alemanha, está quente. Estão preocupados com a mudança climática, mas vão continuar comprando ouro, soja e minério', a relação muda de eles para vocês que estão aqui nessa plateia, nesse momento.” O trabalho não pretende culpar, mas convocar: “Uma tomada de consciência, um convite ao trabalho: abrir os olhos, abrir a escuta. Curar o rio Tapajós desse mercúrio, não é uma tarefa só dos povos indígenas, nem só dos Munduruku, nem só das mães, é uma tarefa de todo mundo.” O papel da mulher é central no trabalho de Gabriela Carneiro da Cunha, “as mulheres são as mais afetadas, mas são também as que estão na linha de frente” e explicam que essa responsabilidade advém do facto de serem mães. “Elas também dizem que os homens negociam e elas não negociam aquilo que sabem que é inegociável, que é o seu território, que é o seu corpo, como elas dizem, o útero que está doente.” A contaminação por mercúrio evidencia-se de forma particularmente grave nos corpos femininos, com impactos no líquido amniótico e no leite materno: “Três líquidos fundamentais à vida estão contaminados: a água de um rio, o líquido amniótico e o leite materno”. “A gente precisa trabalhar com a mãe do Rio, porque tudo o que existe tem mãe. O rio tem mãe. A floresta tem mãe. O peixe tem mãe. É uma luta das mães que estão desse lado do mundo e das mães que estão do outro lado do mundo”, acrescenta a encenadora. O público é convidado a participar de forma activa na criação. No início são convidadas “nove mães” - nove corpos femininos ou masculinos - a participar, mas no decurso do espectáculo o público é envolvido na performance. A actriz brasileira explica que em “todo o corpo pode habitar uma mãe. Mãe é quem cria. Mãe é quem dá passagem. Mãe é quem corta a cabeça. Mãe é quem devolve a vida com mais vida. Então, eu acho que o convite aqui é um convite a que se devolva a vida com mais vida. Isso pode ser feito por qualquer corpo”. No final, Gabriela Carneiro da Cunha desafia o público: “Pegue a sua luzinha e vá fazer alguma coisa. A única coisa que eu peço é que não fique esperando.” A peça encerra assim com um apelo à acção colocando a arte como ferramenta de consciência e mobilização. Para a artista, o papel da arte em tempos de crise climática é essencial: “Os artistas deveriam chegar sempre junto dos cientistas, sempre junto dos advogados, sempre junto dos ativistas… A primeira coisa é a imaginação. Se você não imagina o mundo que deseja, você não consegue fazer nada”. Para Gabriela Carneiro da Cunha, a arte trabalha com relações e linguagens, e é através dela que se podem recompor mundos “mais belos, justos e vivos”.

A cantora portuguesa Lina tem um novo disco intitulado “O Fado”, criado em cumplicidade e parceria com o pianista Marco Mezquida. Este é um álbum só com voz e piano, um instrumento que tão bem se acorda com a poesia e com o fado. Este é também um trabalho que homenageia o piano que, no percurso de Lina, sempre foi "um instrumento muito presente, quase como uma mãe". Em entrevista à RFI, Lina descreve o disco como “uma dança de borboletas” por ser “tão livre, tão espontâneo, tão orgânico” e simplesmente “genuíno”. Fado e poesia são notas maiores no trabalho que Lina vem desenvolvendo nos últimos anos, com “Lina_Raül Refree” (2020), "Fado Camões" (2024), “Terra Mãe” (2025) e “O Fado”. Em todos, Lina abraça uma forma livre de sentir o Fado, despojada de espartilhos, aberta e atenta ao mundo de hoje. Lina e Marco Mezquida passaram por Paris para a promoção do disco “O Fado” e estiveram na RFI a falar connosco e a interpretar dois temas ao vivo. RFI: O disco “O Fado” que fez com Marco Mezquida é um disco de fado só com voz e piano, sem guitarra portuguesa. Porquê? Lina: “Não é só um disco de fado. Tem outras músicas. Tem uma música brasileira, vai também para a América do Sul com a língua espanhola. No fundo, o que nós quisemos foi encontrar pontos semelhantes em algumas músicas do nosso conhecimento que tivessem relacionadas com o fado. Mas sim, eu considero que seja um disco de fado, apesar de não ter os instrumentos tradicionais do fado, mas a própria Amália também cantou ao som do piano do Alain Oulman nos anos 60. Chama-se ‘O Fado' pelo facto de eu ter feito a música para esta letra da Florbela Espanca que se intitula ‘O Fado', não é necessariamente um carimbo ou dizer que isto é o fado, não é isso. Chama-se ‘O Fado' precisamente porque nó lançámos um EP antes de Setembro, com quatro músicas, e na altura o single foi ‘O Fado'. Então, achámos que para manter a coerência, para não fazer aqui grandes confusões, mantivemos o nome, o mesmo nome da música, ‘O Fado'.” Até que ponto o piano é um instrumento que melhor se acorda com a poesia? “Eu acho que o piano é um instrumento que é muito bom de sentir em qualquer área musical, em qualquer estilo musical. Eu comecei a cantar desde muito pequenina, com dez anos, ao piano, portanto, o piano sempre foi aquele instrumento que esteve sempre ao meu lado nas aulas de canto. É sempre o piano que nos acompanha nas aulas de coro e de formação musical. O piano está sempre lá, portanto, sempre foi um instrumento muito presente, quase como uma mãe.” Sempre a acompanhar... “Exactamente.” Como se deu esse encontro com o Marco Mezquida? “Nós conhecíamo-nos através das redes sociais. Conhecíamos o trabalho um do outro, mas nunca tínhamos estado juntos e houve um dia que eu estava a cantar no Clube de Fado e está uma mesa na primeira fila com três pessoas. Era um casal e uma criança muito pequenina e chamou-me imenso a atenção porque estavam muito admirados e super embevecidos com o fado e com aquilo que se estava a passar com os músicos, com a guitarra portuguesa, o Ângelo Freire ( era ele que estava a tocar também). Sentia-se essa admiração. Depois, mais tarde, vi que alguém tinha colocado na sua página e que tinha que tinha identificado o Clube de Fado. E por acaso vi e me apercebi que era o Marco Mezquida. O Marco em seguida escreve nos comentários: ‘Noutra vida gostava de ser fadista'. Depois, mandei uma mensagem, estivemos juntos no dia porque ele tinha ido a um festival em Lisboa, eu fui também assistir a este concerto e falámos. Dissemos que gostaríamos de trabalhar em conjunto e esta oportunidade surgiu em Janeiro deste ano.” Foi “o fado”? “O fado, foi o destino.” [Risos] Como imaginaram este trabalho? “Na verdade, eu comecei a tentar perceber que músicas é que eram justas para a forma de tocar do Marco, que fados é que poderiam se encaixar na forma dele tocar. É que ele é muito virtuoso e é muito sensível. Aliás, vão poder ver depois a forma como ele toca, como ele abraça o piano, os dedos dele são a extensão do instrumento, é como se ele fizesse parte. E eu ia-lhe mostrando... Eu também lhe pedi para mandar uma lista de músicas que ele gostava que eu cantasse. E foi assim que nós chegámos a um acordo de 12 músicas, 12 fados, 12 canções que estão neste neste álbum. Fizemos a gravação do EP em Janeiro, numa tarde. Todas as músicas foram gravadas sem edição, ao vivo, sem cortes e depois metade do álbum gravámos em Setembro, também em duas tardes.” Ou seja, foi um processo relâmpago e o próprio lançamento também foi muito rápido, não é? “Sim, foi porque na altura em que lançámos o EP eram só quatro músicas. A Galileu, que é a editora, propôs-se gentilmente a lançar, a editar logo o EP e depois correu tão bem que decidimos fazer um álbum inteiro.” “Vamos então aos temas. Por exemplo, em termos de repertório tradicional, se não estou em erro, têm uma nova leitura do “Fado da Defesa” ou de “Gota de Água”. Que significam para si estes fados? Foi a Lina que escolheu? “Fui eu que escolhi o ‘Fado da Defesa'. É muito especial para mim porque é um fado tradicional. Aliás, é o único fado tradicional que existe neste álbum. Eu quando digo fado tradicional, para as pessoas que não percebem, há vários fados tradicionais onde se pode encaixar uma nova poesia. Ou seja, eu posso fazer um poema para aquela melodia daquele fado tradicional, por exemplo, o ‘Estranha Forma de Vida' que é um fado que quase toda a gente conhece é o nome do poema, mas o fado tradicional é o fado bailado. Portanto, eu agora fui encontrar uma letra para o fado bailado e vou cantar aquele poema, como foi o caso do ‘Labirinto' do ‘Fado Camões'. É exactamente a mesma melodia, o fado tradicional do fado bailado, mas com outra poesia. É esta a particularidade dos fados tradicionais que normalmente não têm refrão e os que tem refrão chamam-se fado-canção. Aí a distinção entre o fado tradicional e o fado-canção. ‘Gaivota' é um fado-canção, é um hit, mas, na verdade não é um fado tradicional. A melodia é de um fado-canção.” Porquê, então, a escolha destes dois fados, o “Fado da Defesa” e o “Gota de Água”? “O ‘Fado da Defesa' é criação da Maria Teresa de Noronha. Na altura, quando foi gravado em disco, a última estrofe não cabia porque eram as rotações, não sei especificamente explicar essa parte, mas o fado era tão comprido que tiveram de cortar a última estrofe. Então, o meu padrinho do fado, o meu padrinho de coração José Pracana, guitarrista que eu tive a oportunidade de conhecer e de estar com ele em concertos e ter sido convidada por ele para estar na casa dele nos Açores, ofereceu-me esta última estrofe e eu decidi colocá-la aqui neste álbum. A ‘Gota de Água', do Flávio Gil, que eu já tinha gravado na minha outra vida, como Carolina porque, como sabem, eu comecei com dois álbuns editados pela Sony, mas com outro nome, Carolina. Na verdade, o meu nome é Lina, mas há pessoas que ainda me continuam a chamar Carolina porque acham que é diminutivo. Lina é mesmo o meu nome de nascença.” A Lina também assina composições de Florbela Espanca, Miguel Torga... Há pontes e histórias entre esses diferentes poemas? “Na verdade, eu vou guardando, eu vou lendo alguns poemas e há um que eu gosto e guardo. ‘O Fado' fui encontrá-lo por acaso, nas minhas notas do telefone, naqueles dias em que uma pessoa olha para apagar umas quantas notas. E fui vendo, vendo e encontrei, deparei-me com este poema, já nem me lembrava dele. Não sei, não há coincidências, não é? Quando vi este poema, pensei porque não musicá-lo? Decidi então fazer a melodia. O mesmo aconteceu para o Miguel Torga. Eu acho que quando encontro poemas de que gosto e os fados tradicionais não se encaixam no poema, eu decido fazer a melodia. O Marco Mezquida faz os arranjos, também ajudou na parte melódica do ‘Confidencial' de Miguel Torga, sobretudo na parte instrumental e na parte do solo, o que obviamente elevou a música que estava numa fase embrionária, mas sim, partem de mim essas criações.” Também temos textos em castelhano. O que é que fez que “El Rosario de Mi Madre” e “No Volveré” tivessem o seu espaço e a sua alma dentro deste disco? “No fundo, como eu estava a gravar um álbum com um músico que não é português - ele é menorquino, mas vive em Barcelona - estar ao lado de alguém que está a tocar e que não é português e que provavelmente há expressões e frases que não entende ou não percebe exactamente aquilo que eu digo enquanto canto, achei muito bonito poder também cantar algo na língua dele para haver essa partilha, essa comunicação também. Foram essas as minhas duas escolhas. A ‘No Volveré' foi o Marco Mezquida que me enviou umas quantas, mas eu só consegui escolher essa porque eu tinha que encontrar algo que se assemelhasse ao fado, algo na sua composição ou na sua estrutura, no seu tema, como ‘El Rosario de Mi Madre', ‘Devolve-me o terço da minha mãe, leva tudo, mas devolve-me o terço...' É muito do fado, não é?” Quando ouvimos o disco, passamos por “Algemas”, “Ausência em Valsa”, “Não é fácil o Amor”, “Fado da Defesa”, “No volveré” ... A melancolia é uma força que varre o disco. O fado tem mesmo de ser triste? “É um estado de espírito que nós todos gostamos muito de ter. Gostamos de estar tristes, de nos sentir tristes e chorar. Somos muito saudosistas e nós gostamos desse estado de espírito. Acho que nós somos um bocadinho assim.” É entao mesmo uma linha de força do disco? “A melancolia é universal. Eu acho que não é só portuguesa. Eu acho que melancolia é universal. Todas as pessoas entendem este estado de espírito, há povos que são mais do que outros, mas não quer dizer que todos saibam sentir a melancolia.” Melancolia, fado... Se tivesse de definir em poucas palavras o disco, o que diria? “É interessante porque eu canto fado há mais mais de 25 anos e com o Marco Mezquida não tenho de pensar se é fado, se não é fado, se estou a fazer bem ou se estou a fazer mal. É tão livre e tão espontâneo e tão orgânico que vamos atrás um do outro. É quase uma dança de borboletas. Não sei explicar. É tão genuíno. É tão fácil. É fácil trabalhar com o Marco. Portanto, para mim é um disco fácil.” Lançou este álbum no mesmo ano em que lançou também "Terra Mãe", uma parceria com o músico irlandês Jules Maxwell. No ano passado, lançava "Fado Camões” e, em 2020, Lina_Raül Refree… Todos eles têm em comum uma outra maneira de encarar o fado, com paisagens sonoras mais contemporâneas, mais livres. Como é que a Lina descreve o trabalho que tem feito nestes últimos anos? “Eu gosto de explorar e gosto, sobretudo, de fazer parcerias, de conhecer novos músicos, novas formas de fazer música, novas visões musicais, mas também encontrar aqui pontos comuns ao fado e influências sobre ele. Encontrei, obviamente, no ‘Terra Mãe', que não é um disco de fado, mas que vai buscar um pouco à forma de cantar irlandesa das senhoras que se chama Sean-nós e é muito identico ao fado essa instrumentação. No fundo, são canções só com voz e é muito idêntico. O Jules Maxwell foi também ao Clube de Fado que é uma casa de fados onde eu canto há 19 anos.” E que nunca deixou... “Que nunca deixei. O Jules Maxwell identificou essas senhoras que cantavam antigamente, esse estilo musical da Irlanda e que é muito semelhante, também cheio de melancolia e com coloraturas na voz, mas sem instrumentação, sem guitarra portuguesa.” Tem feito essa volta ao mundo com estes projectos novos, em que realmente consegue desprender-se de convenções mais associadas ao fado, mas continua - e isso é muito bonito - fiel ao Clube de Fado. “É verdade.” Porquê? “Para já é um lugar onde eu me sinto confortável, em casa, exactamente como a minha segunda casa. Depois, o ambiente que nós temos entre colegas fadistas e músicos... A toda a hora encontramos vários colegas que estão nas outras casas de fado e que passam e dizem boa noite e estão lá um bocadinho connosco. Assistem-nos, assistem ao fado, trocam ideias e mostram músicas uns aos outros. Acho isto bastante natural. Uma tertúlia quase. E depois também acho interessante, por exemplo, ainda ontem e anteontem estive lá e estavam dois casais, um que tinha estado no concerto em Roterdão e que tinha ido ver o concerto do ‘Fado Camões' em Roterdão e outros de Dortmund que também tinham estado no concerto. É curioso, é muito interessante. Ou então perguntam onde é que eu vou estar? E eu também pergunto de onde é que é... Há, assim, esta comunicação...” É uma casa de encontros também? Onde encontra as parcerias musicais? “Sim. Não há melhor sítio que o Clube de Fado que é onde eu estou a cantar. Obviamente que para mim é muito bom poder manter-me ali no Clube de Fado há tantos anos.” Eu ia-lhe perguntar se tem um novo projecto na manga, mas tendo em conta que este ano já lançou dois, se calhar a pergunta é demasiado ousada... “Por acaso tenho! Até tenho dois! Mas não posso falar, não posso dizer nada ainda. Aproveitem estes dois. O que nós queremos também fazer é saborear estes dois projectos, explorar também porque é completamente diferente quando se grava em estúdio e depois quando se passa para o palco e para o público.” Até porque há toda uma cenografia nos seus concertos, bastante minimalista e muito pensada, não é? “Sim, mas neste caso com o Marco Mezquida é eu e ele e nada mais. Houve um jornalista do ‘El País' que lhe chamou ‘Fado Câmara'. E é. Simples, o mais mais acústico possível e sem grandes adornos. Cru, basicamente. Piano e voz.”

O músico a compositor brasileiro Ricardo Vilas regressa com "Vilas Maravilha", álbum gravado em Luanda ao lado da histórica Banda Maravilha. Resultado de mais de uma década de encontros, o disco funde semba, samba e memórias atlânticas num gesto de pertença e diálogo cultural. Com arranjos angolanos e composições próprias, Ricardo Vilas celebra uma África contemporânea. Ricardo Vilas, figura singular da música brasileira e estudioso das ligações culturais no Atlântico Sul, regressa aos discos com Vilas Maravilha, um trabalho gravado em Luanda e construído em parceria com a histórica Banda Maravilha. O músico descreve o álbum como “um gesto de pertença, de deslocamento e de identidade”, recusando “o ruído da actualidade” e privilegiando “o tempo lento dos encontros”. O projecto nasce da relação iniciada em 2012, quando Ricardo Vilas realizou uma pesquisa de campo em Angola para o seu doutoramento sobre a circulação musical entre os dois países. “A minha história com Angola vem de antes”, recorda. “Comecei a pesquisar música africana e particularmente música angolana e aprendi muitas coisas.” Foi nesse período que conheceu músicos centrais na formação da moderna música angolana, entre os quais Elias dia Kimuezo e Carlos Lamartine, além do grupo Maravilha, com quem a afinidade artística foi imediata. “A identificação foi rápida e a amizade foi crescendo”, afirma. Ao longo de anos de viagens e colaborações esporádicas, amadureceu a ideia de gravar em disco este diálogo musical. “Em 2024 decidimos registar esse encontro. Daí nasceu a ideia de Vilas Maravilha”, explica Ricardo Vilas. Gravado em Junho, o álbum reúne 12 faixas, seis delas compostas pelo músico brasileiro. As restantes incluem temas tradicionais e composições de autores angolanos como Paulo Flores, David Zé e o próprio Carlos Lamartine. Para Ricardo Vilas, a Banda Maravilha tem “um papel central” na identidade do projecto: “São tecnicamente perfeitos, têm ideias excelentes de instrumentação e reflectem sobre o trabalho. Chamam-se a si próprios ‘os embaixadores do semba' porque têm consciência da importância de preservar essa bagagem cultural.” A estética do disco é marcada pela sonoridade angolana. “O Brasil conhece quase nada de Angola, e Angola conhece muito do Brasil”, observa. Em Angola, o projecto foi recebido “de forma total”, com grande atenção da imprensa e do público: “O nosso trabalho foi super bem recebido.” Já no Brasil, admite, a recepção tem sido “mais difícil”, consequência de um desconhecimento generalizado sobre a música angolana contemporânea. A expectativa agora é apresentar o álbum em Portugal, onde Ricardo Vilas acredita que encontrará “uma boa receptividade”. A relação histórica entre o semba angolano e o samba brasileiro é um dos pontos que o músico estudou academicamente e que atravessa sub-conscientemente o álbum. “O samba foi assim baptizado em 1917. O semba surge nos anos 50. As temporalidades são muito diferentes”, sublinha, rejeitando a ideia de uma relação directa de filiação. “São irmãos, mas não há quem vem antes e quem vem depois. Há dois desenvolvimentos paralelos que se encontram e encontram-se neste disco.” Ainda assim, Vilas Maravilha acaba por ter, segundo o autor, “muito mais de música angolana do que de música brasileira”, uma vez que os arranjos são integralmente assinados pela Banda Maravilha. A dimensão linguística do projecto reforça esse encontro. Entre sambas, sembas e ritmos atlânticos, o álbum inclui também uma versão em umbundo, fruto de uma proposta da própria banda. “Fiquei muito feliz. Mostra essa vontade de encontro, sem imposição, uma verdadeira troca de experiências”, afirma. Para Ricardo Vilas, este gesto está longe de qualquer exotização: “Eles adoraram. E acho que evidencia a decisão de construir uma ponte verdadeira.” O músico brasileiro reconhece que, no espaço lusófono, Angola vive uma nova afirmação cultural. “Há uma desigualdade evidente: Angola importa muito do Brasil, e o Brasil pouco sabe de Angola”, aponta. “A visão brasileira da África é ancestral e mítica, não contemporânea. É a África do candomblé e da capoeira que é, aliás, uma invenção brasileira.” Com Vilas Maravilha, Ricardo Vilas quer contribuir para alterar essa percepção: “Uma das ambições do disco é mostrar que existe uma África contemporânea, criativa e extremamente interessante.” Aos ouvintes angolanos, deixa uma mensagem de proximidade: “Em Angola sinto-me em casa. Falamos a mesma linguagem, não só a língua. Somos super bem recebidos e a nossa música tem sido acolhida com muito carinho.” E termina, reafirmando o espírito que orienta todo o projecto: “Estamos juntos.”

A peça “The Brotherhood”, da encenadora brasileira Carolina Bianchi, foi apresentada em Paris, no final de Novembro, no âmbito do Festival de Outono. Este é o segundo capítulo de uma trilogia teatral em torno dos feminicídios e violências sexuais e mostra como uma inquebrantável força masculina tem dominado a história da arte e do teatro, engendrando simultaneamente violência e amor quase incondicional pelos “grandes génios”. “The Brotherhood” é o segundo capítulo de uma obra sísmica, uma trilogia teatral em torno da violência contra as mulheres em que Carolina Bianchi e a sua companhia Cara de Cavalo mostram como o misterioso poder das alianças masculinas tem dominado a história da arte, do teatro e das próprias mulheres. Em 2023, no Festival de Avignon, a encenadora, actriz e escritora brasileira quebrou fronteiras e despertou o teatro europeu para a sua obra com o primeiro capítulo da trilogia “Cadela Força”, intitulado “A Noiva e o Boa Noite Cinderela”. Nessa peça, arrastava o público para o inferno dos feminicídios e violações, a partir da sua própria história, e ingeria a droga da violação, ficando inconsciente durante grande parte do espectáculo. Agora, em “The Brotherhood”, Carolina Bianchi volta a trazer consigo as 500 páginas da sua tese e expõe incontáveis histórias de violência contra as mulheres, glorificadas por Shakespeare, Tchekhov e também tantos dramaturgos e encenadores contemporâneos. Ao mesmo tempo que questiona toda a complexidade que gera a deificação dos “génios” masculinos na história da arte e no teatro, Carolina Bianchi demonstra, com brilhantes laivos de ironia, que os deuses têm pés de barro e que as musas têm uma espada numa mão, mas também uma mão atrás das costas porque - como ela - têm um amor incondicional pelos “mestres”. Este segundo capítulo volta a abrir com uma citação de “A Divina Comédia” de Dante, situando-nos no purgatório e antecipando o inferno. Talvez por isso, uma das primeiras questões colocadas pela actriz-escritora-encenadora é “o que fazemos com esse corpo que sobrevive a um estupro?”, a essa “morte em vida que é um estupro”? O teatro de Carolina Bianchi ajuda a pensar o impensável ao nomear a violência e ao apontar todos os paradoxos intrínsecos ao teatro e à arte: afinal, não é o próprio teatro quem perpetua a “brotherhood”, esse tal sistema que se autoalimenta de impunidade e violência, mas que também se mantém porque “somos todos brotherhood”? Em “A Noiva e o Boa Noite Cinderela”, a principal inspiração de Carolina Bianchi era a artista italiana Pippa Bacca, violada e assassinada. Em “The Brotherhood”, é a poetisa Sarah Kane quem mais a inspira pelo seu amor à poesia e à própria violência. Quase como uma fatalidade, Carolina recorda que Sarah Kane dizia que “não há amor sem violência”. Uma violência que atravessa toda a peça, como um tornado, porque “a violência é uma questão infinita para mim” - explica a encenadora à RFI. Resta saber quanto tempo as placas tectónicas da “brotherhood” no teatro vão conseguir resistir ao tornado Carolina Bianchi. “The Brotherhood” foi apresentado no Festival de Outono de Paris, de 19 a 28 de Novembro, na Grande Halle de La Villette, onde conversámos com a artista. “O que significa situar-se no teatro depois de voltar do inferno?” RFI: O que é “The Brotherhood” e porque é que lhe consagrou a segunda parte da trilogia “Cadela Força”? Carolina Bianchi, Autora de “The Brotherhood”: “‘Brotherhood' vem de uma expressão da Rita Segato, que é uma antropóloga argentina, que quando eu estava estudando para o primeiro capítulo ‘A Noiva e o Boa Noite Cinderela', eu cheguei a essa nomenclatura. Ela diz ‘brotherhood' para essa essa fraternidade entre homens, em que o estupro é parte de uma linguagem, de uma língua falada entre esses pares. Então, ela coloca o estupro como algo que é uma questão da linguagem com que essa fraternidade conversa, é uma consequência dessa conversa e isso para mim foi muito interessante de pensar porque tem esses aspectos dessa protecção. Fazer parte dessa fraternidade tem coisas maravilhosas e tem coisas terríveis e também acho que o espectáculo revela isso. Essa fraternidade é extremamente nociva, extremamente daninha para os membros dessa fraternidade também, para aqueles que são excluídos da fraternidade, e para aqueles que também fazem parte ela pode ser muito cruel. Acho que a peça busca trazer essa complexidade, é uma situação complexa de como olhar para esse amor que nós temos por essas grandes figuras da arte que se manifestam nesses homens que foram importantes, que são influenciadores, por exemplo, do teatro e em toda parte. O que é que atribui essa fascinação, esse poder e a complexidade que isso tem, as coisas terríveis que isso traz. Acho que é um grande embate com todas as coisas e eu não estou excluída desse embate, dessa contradição. O amor que eu sinto por esses grandes génios também é colocado ali numa posição bastante complexa e vulnerável.” O que faz desse amor que tem pelos “grandes génios”? Como é que, enquanto artista mulher, o mostra e, ao mesmo tempo, o denuncia? Diz que a peça “não é uma denúncia”, mas o que é que se faz com todo esse amor? “Eu acho que essa é uma das grandes perguntas da peça. O que é que a gente faz com todo esse amor? Eu não sei porque continuo habitando esse ponto de sombra, de contradição que é um ponto que me interessa habitar dentro da arte, dentro do teatro. Para mim, é mais sobre essa grande pergunta. Eu não tenho essa resposta. Eu não sei o que a gente faz com esse amor, mas eu acho que poder nomear que esse amor existe e que ele é complexo e que é difícil e que tem consequências e coisas que são dolorosas a partir desse amor foi uma coisa importante para mim. Como eu digo em cena, não é uma peça de denúncia, não é esse o lugar da peça, mas levantar essas questões e olhar do que é feita também essa história da arte. A trilogia toda traz muito essa pergunta: como a arte tem representado ou tem sido um espelho de coisas que, de facto, acontecem na sociedade e mesmo a arte, com toda a sua história de vanguarda e com toda a sua liberdade de certos paradigmas, ela consegue também ainda se manter num lugar de prosseguir com certos tipos de violência.” Em 2023, quando falámos do primeiro capítulo, “A Noiva e o Boa Noite Cinderela”, disse que era “uma antecâmara do inferno, já com um pé no inferno”. Agora abre novamente com uma citação da Divina Comédia. Continuamos no inferno ou estamos antes no purgatório? “Sim. Nesta peça já estamos num purgatório, é acordar no purgatório. Tem uma frase da peça que é: “O que significa situar-se no teatro depois de voltar do inferno?”. Acho que essa frase resume um pouco essa busca de um posicionamento. Eu descreveria a peça como uma grande crise de identidade. Ela parte de uma crise de identidade, como uma jornada nesse purgatório, seguindo um mestre – como Dante segue Virgílio nesse purgatório. O mestre aqui seria um grande encenador de teatro, um grande artista, esses reconhecidos génios como a gente se refere. Acho que seria isso, seria uma jornada dessa tentativa de se situar num contexto do teatro. O teatro não é só um assunto da peça, o teatro é uma forma, é a linguagem como esta peça opera a sua discussão, a sua conversa.” Ao mesmo tempo que o teatro consegue pôr em palavras o que a Carolina descreve como a “fenda” que é a violação, o teatro também perpetua esse sistema de “brotherhood”, o qual alimenta a impunidade e a violência. Por que é que o teatro contribui para a continuação desse sistema e como é que se pode travá-lo? “Aí tem uma pergunta que eu não tenho resposta mesmo e que acho que nem existe: travar uma coisa dessas. Eu acho que sou pessimista demais para conseguir dizer que isso vai acabar. O facto de estar tão imersa nos estudos dessa trilogia vai mostrando que isso, para mim, está longe de terminar. Acho que a gente tem vivido transformações bastante importantes, contundentes, em termos de mudanças mesmo, mas acho que talvez a maior mudança que a gente tem aprendido, falando numa questão de corpos que não estão dentro dessa masculinidade que tem o poder, eu acho que é a questão da autodefesa que a escritora Elsa Dorlin aponta muito bem. Então, acho que uma das estratégias de autodefesa também é conseguir falar sobre certas coisas, é conseguir articular, talvez através da escrita, talvez através desta arte que é o teatro, nomear mesmo certas coisas, trazer esse problema para um lugar de debate. Para mim, a questão das respostas é impossível, é impossível, é impossível. Eu acho que o teatro tem essa história como parte de uma questão da própria sociedade. O teatro começa com esse actor que se destaca do coro, a gente tem a tragédia, a gente tem essa perpetuação dessa jornada heroica, os grandes encenadores, os grandes dramaturgos que eram parceiros dos grandes génios. A gente tem uma história que é feita muito por esses grandes mestres.” Mas, se calhar, as placas tectónicas do teatro podem começar a mudar, nomeadamente com o que a Carolina faz… Um dos intérpretes diz “Somos todos Brotherhood”. A peça e, por exemplo, a parte da entrevista que faz ao encenador “génio” não é a demonstração de que, afinal, não somos todos “brotherhood”? “Aí é que está. Eu acho que não. Eu acho que tem uma coisa que é menos purista nesse sentido do bem e do mal, do lado certo, do lado errado. Eu acho que é justamente isso. Tudo aqui neste trabalho está habitando esse lugar de complexidade, esse lugar de que as coisas são difíceis, é esse pathos que está manchado nesta peça. Então, a questão sobre o reconhecimento, sobre a empatia e também sobre a total distância de certas coisas, ela fica oscilando. Eu acho que a peça traz essa negociação para o público. A gente habita todos esses lugares de contradições. Eu acho que quando aparece esse texto, no final da peça, “tudo é brotherhood”, também se está dizendo muito de onde a sociedade tem as suas bases fincadas e como apenas o facto de ser mulher não me exclui de estar, às vezes, compactuando com esse sistema.” É por isso que se apropria dessa linguagem da “brotherhood”, por exemplo, na forma como conclui a entrevista do encenador “génio”? “Para mim, fazer uma peça sobre a ‘brotherhood', sobretudo usando o teatro como a linguagem principal, tinha a ver também com abrir um espaço para que essa ‘brotherhood' pudesse falar dentro da peça, pudesse se infiltrar dentro da peça e governar a peça. Por isso, essa coisa de uma outra voz que narra a história. Então, para mim, a peça precisava trazer essa ‘brotherhood' como guia, de facto, e não eu tentando lutar contra isso, porque senão acho que isso também revelaria pouco dessa complexidade, desse movimento que a ‘brotherhood' traz. É uma força e uma linguagem e eu precisava falar essa língua, ou melhor, tentar falar essa língua dentro da peça. Acho que isso também revela muito da complexidade minha que aparece ali, não como uma heroína que está lutando contra alguma coisa, mas alguém que está percebendo algumas coisas, mas também se está percebendo a si própria no meio dessa confusão.” Leva para palco essa complexidade, essa confusão. Admite ter sido vítima dessa violência, mas continua atraída por ela e dá a ideia que a violência engendra a violência. Porquê insistir nessa violência que alguém chama de “tornado” dentro da peça? “Porque não tenho outra opção neste momento. Acho que tem uma coisa de uma obsessão com o mal, que combina talvez uma questão para mim de temer muito esse mal, de já ter, em algumas vezes na minha vida, sentido essa força, essa presença, esse mal. Acho que esse mal é algo que temo e, por isso, também me obceca muito. É a linguagem com a qual agora eu consigo articular parte da minha expressão, parte da minha escrita, parte da minha presença. Acho que essa questão da violência é uma questão infinita para mim. Tem uma frase do ‘Boa Noite Cinderela' que é:‘Depois que você encontra a violência, que você sofre uma violência, enfim, você fica obcecada por isso”. Tem uma frase também na própria ‘Brotherhood', quando os meninos estão lendo uns trechos das 500 páginas que me acompanham ali em cena sobre a pesquisa da trilogia, e eles dizem: ‘Bom, então ela escreve: eu não superei o meu encontro com a violência. Eu sou a sua filha'. É impossível. Você fica obcecada.” A Carolina diz, em palco, que já não pode com a palavra violação, com a palavra estupro, que já não pode falar isso… Não pode, mas não consegue parar. É mais uma contradição? “Completamente. Mas isso é muito o jeito que eu opero, é nessa contradição e, ao mesmo tempo, dizendo que se a palavra agora não está carregando essa violência dessa forma, se eu não posso dizer a palavra estupro porque eu estou cansada de me ouvir dizer isso, vem a poesia com a sua forma. E aí a forma do poema é violenta e é isso que eu também estou debatendo ali. Então, é mudar uma forma de escrita e ir para um outro lugar onde essa violência apareça de outras maneiras.” Mas que apareça na mesma? “Não sei porque, para mim, por exemplo, a violência poética é uma outra forma de violência. Se a gente for pensar em termos de linguagem, a forma de um poema tem uma outra maneira de as coisas aparecerem, de a gente descrever as coisas, delas existirem, delas saírem, que é diferente de quando você está trazendo, por exemplo, um material documental para o seu trabalho. São maneiras diferentes de expressar certas coisas. Eu acho que é isso que eu estou debatendo ali no final da peça.” Aí diz que “o melhor caminho para a poesia é o teatro”, citando T.S. Eliot. Porém, também diz que o amor que você precisa não é o teatro que lho pode dar, nem a vida. Gostaria que me falasse sobre o terceiro capítulo da trilogia. Há esperança no terceiro capítulo? “O terceiro capítulo vai falar sobre poesia e escrita que, para mim, são coisas que estão muito perto do meu coração e isso já está apontado no final de ‘Brotherhood'. Sobre a esperança, eu não sei. Eu não sei porque o terceiro capítulo tão pouco vem para concluir qualquer coisa. Vem para ter a sua existência ali. Não sei se, na trilogia, se pode esperar um “grand final”, entende? Acho que a questão da esperança para mim, não sei nem se ela é uma questão aqui. Eu acho que é mais entender o que o teatro pode fazer? O que é que essas linguagens artísticas podem fazer? E, às vezes, elas não fazem muito e outras vezes elas fazem pequenas coisas que também já parecem grandes coisas.” Em si, o que fez? Há uma mudança? “Completamente, Completamente. Acho que a cada espectáculo dessa trilogia é uma mudança enorme porque você fica ali mergulhada em todas essas questões durante muito tempo e vendo a transformação dessas questões dentro da própria peça à medida que a vai repetindo. Porque demanda um tempo para você olhar para aquilo que você fez e ver o que essa coisa faz nas outras pessoas porque você, como directora, pode pensar ‘Ok, eu quero que a peça tenha essas estratégias de comunicação com o público, mas você não sabe, você não tem como saber o que aquilo vai fazer nas pessoas, que sinapses ou que desejos ou que repulsa ou que sensações aquilo vai trazer nas pessoas. Isso, para mim, é um momento interessante do teatro, bonito, essa espécie de ritual em que estamos todos ali, convivendo durante esse tempo, em muitos tempos diferentes - o teatro tem isso, o tempo da plateia, o tempo do palco, são tempos completamente diferentes - e vendo o que acontece.” Uma das questões principais da peça, que anuncia no início, é “o que é que fazemos com esse corpo que sobrevive a um estupro? Essa morte em vida que é um estupro?”. Até que ponto o teatro é, para si, a resposta? “Eu acho que o teatro é uma maneira de se formular a pergunta. Quando a gente vê na peça a pergunta colocada, transmitida por uma pessoa que sou eu, para eu chegar até essa pergunta é muito tempo e é muita elaboração a partir do pensamento do teatro. Então, acho que o teatro me ajuda a conseguir elaborar esses enunciados, essas perguntas, esses enigmas. Eu vejo o teatro como o lugar do enigma, onde o enigma pode existir, onde há coisas que não têm respostas, onde essa complexidade pode existir e pode existir na forma de enigma, de uma forma que não apresenta a solução. Então, acho que o teatro me ajuda a formular as perguntas e isso, para mim, é uma coisa que é muito bonita do teatro, é um lugar de uma honestidade muito profunda, como fazer para se chegar nas perguntas. O teatro é, para mim, o lugar dessa formulação, esse laboratório de formulação dessas perguntas, essas grandes perguntas.” Outra grande pergunta que se ouve na peça é: “Se a brotherhood no teatro desaparece, o teatro que amamos morre com ela? Estamos preparados para ficar sem esse teatro?” A Carolina não está a abrir uma porta para que esse teatro venha a existir? “Não sei se estou abrindo essa porta, mas ao formular essas perguntas, elas também ficam ali, nesse espaço, e agora elas habitam todas essas pessoas que estiveram aqui nestes dias assistindo a este espectáculo. Isso o teatro faz, esse compactuar, essas perguntas, tornar essas perguntas um processo colectivo. Agora essas perguntas deixam de ser perguntas que me assombram e passam a ser perguntas que talvez assombrem algumas pessoas que estiveram aqui. Isso é muito interessante. Mais do que acreditar que você está operando uma grande transformação, eu gosto de pensar num outro ponto, acho que só o facto de abrir essa pergunta, de fazê-la existir agora, colectivamente, isso é um trabalho, esse é o trabalho. Para onde ela vai a partir daqui, nem sei determinar, é um ponto bem nevrálgico do teatro, deixar as coisas ficarem com as pessoas. Eu busco muito esse lugar de não infantilizar o público, de deixar o público ficar com essas perguntas, de deixar o público ficar confuso, perdido. Acho que a gente às vezes ganha muito com isso, ganha muito com a confusão, quando ela é colocada. A gente pode permanecer com o trabalho mais tempo na gente quando ele consegue apontar esses enigmas, quando ele consegue manifestar as coisas de um jeito que a gente precisa pensar, que a gente precisa se debruçar. Nem tudo precisa de estar num tempo de uma velocidade lancinante, onde todas as questões são colocadas e imediatamente resolvidas, até porque essas resoluções, não sei se elas vão ser, de facto, resoluções.”

“Último Rapper” é o mais recente álbum de Phoenix RDC. O trabalho é um testemunho que é transmitido por quem tem o poder que faz da palavra e do microfone uma arma. Com as colaborações de Wet Bed Gang, Nenny, Regula, Valete, Carlão, Chullage, Sam The Kid, Sir Scratch, Stereossauro, Missy Bity e Tekilla, o álbum “Último Rapper” é o afirmar de um percurso de engajamento de mais de duas décadas no rap feito em Portugal que abraça a dura realidade com a paixão e olhar atento do cronista Phoenix RDC. Último Rapper é um disco de futuro, Phoenix RDC afirma que vai “continuar a politicar até não conseguir mais”. Phoenix RDC: Hoje em dia há mais trap, é tudo mais cantado, com notas, e como não havia muito disso, eu fui resgatar todos aqueles artistas que também me fizeram gostar de rap, visto que eu também tenho uma boa exposição, hoje sou ouvido mesmo até pelos mais jovens, para não deixar morrer o rap. Porque eu acredito que dentro do rap tem muitos subgéneros, só que o rap não pode morrer por existirem outros subgéneros, e o rap também tem que se manter, Este é um álbum de rap numa era trap. Eu vou continuar a politicar até não conseguir mais. RFI: Há temas, aqui, que fazem observação sobre as redes sociais, sobre o consumismo, sobre conflitos sociais. Como é que este tipo de tema é aceite pelos mais novos quando existem novas veias do rap que puxam para o outro lado, que não puxa tanto pela cabeça? Phoenix RDC: A mensagem é muito importante. Eu faço questão de trazer sempre uma boa mensagem, porque quem cala consente. Se nós ficarmos calados e não falarmos, não trazermos temas que falem que é importante a música ter mensagem, todos os ouvintes actuais vão achar que é uma coisa normal ter uma música mais oca, porque ninguém fala. Por isso, em muitos dos temas eu faço questão, mesmo, de apontar o dedo, mesmo em entrevistas; de não valorizar tanto esses artistas que às vezes estão à procura de uma música para ficarem famosos. Perdeu-se muito a vontade de querer ser um grande artista, a grande vontade hoje em dia é de ser famoso apenas. Eu acho que, olhando assim, não vamos progredir, não vamos evoluir em termos de arte. RFI: O Phoenix neste trabalho tem mais de metade do álbum com parcerias, com convidados. Estou-me a lembrar de Valete, Chullage, Carlão, entre outros nomes conceituados, tal como o Fenix, que fazem parte da guarda mais experiente do rap feito em Portugal, porquê ir buscar esses parceiros de aventura, de estrada? Phoenix RDC: É para a nova geração também beber de uma fonte boa, que ainda não secou. Se eles estão vivos, para quê esconder o produto? Eu até surpreendi-me, tenho estado a receber um feedback impressionante. Nas minhas plataformas tem o gráfico das idades, diz tudo, o género, e muita malta jovem está a consumir este meu álbum, falam do Chullage, falam do Carlão, falam do Valete. Os miúdos quando estão naquela transição dos 17 para os 18, mudam de escola, vão para a faculdade, eles também já são mais exigentes com o estilo de música que consomem. E também quero motivar outros artistas para que agarrem a caneta, percam mais um bocado de tempo para conseguissem fazer uma boa arte, e para quem não percebe tanto do rap, do hip-hop, para entender e não continuar a dizer que o rap é música para marginais, que está completamente errado. Eu aprendi muito com o rap, com o Chullage, com o Valete, e são artistas que têm álbuns que são enciclopédias. RFI: Há um ou dois temas, se não mais, que fazem referência ao papel da música, a importância da música. Dizem algo como: a música salvou-me, ou mostrou-me um caminho. Falando desse exemplo que o Phoenix gravou com o Wet Bed Gang, como é que surgiu esse tema, como é que foi trabalhado? Eu, o Wet Bed Gang, Nenny, nós somos todos daqui, de Vialonga, está ali o prédio do Gson, ali é o prédio da Nenny, e já estamos a trabalhar para que isso acontecesse há muito tempo. Phoenix RDC: Claro que na altura eles eram mais novos, tinham 13 anos, eu era o mais velho, eu já trabalhava, eu já conseguia comprar material, e eu trazia eles para a minha casa, gravávamos, incentivava. Por vezes, havia um concerto, onde iam pagar um sumo: Fenix, olha, vai haver ali um concerto, consegues nos levar? Eu pegava no meu carro, levava. Mas sempre a lapidarmos. Não achávamos que ia ser tão grande, este boom. Achávamos que íamos ser reconhecidos aqui dentro do Concelho de Vila Franca de Xira, fazer festas no centro comunitário e nada mais. Hoje em dia, aconteceu. E como estamos na correria, eles estão nos concertos deles, a Nenny nos dela, eu nos meus, e nunca tivemos esse tempo é para fazer música, ainda bem que fizemos agora, na altura certa, e veio para o meu álbum. Estamos a fazer o agradecimento, e eu, quando estou a ouvir a música, as letras deles, eu fico mesmo a ter um 'déjà vu', de tudo aquilo que nós vivemos e passámos. Porque, nós não tivemos aquela direcção, infelizmente, porque também somos filhos de famílias numerosas, e estávamos numa condição não privilegiada. Os nossos pais vieram numa altura que também ainda estavam à procura de um espaço, e, então, a música salvou-nos, porque se não fosse a música, hoje se calhar, não sei qual seria o caminho, mas não ia ser um caminho muito agradável. Mas, graças a Deus, estamos a viver da música, estamos a motivar. Antigamente, os miúdos, só queriam estar na rua a brincar com um pau a fingir de pistola, hoje eles agarram o mesmo pau e fingem de microfone. RFI: Chullage é outro dos nomes que aparece no álbum, como é que foi esse trabalho com o Chullage? Phoenix RDC: Numa das festas que nós fazíamos aqui dentro de Via Longa, antes da fama, o Chullage um dia foi um dos nossos convidados, cantor, e foi nessa altura que eu o conheci. Mas eu acho que a nossa união, o que fez mesmo estarmos mais próximos, foi “real recognize, real”. Eu gostei da arte dele, antes de ele conhecer a minha, e quando eu tive voz, ele também conheceu a minha arte. Foi recíproco em momentos diferentes. Quando eu dei o toque, ele disse, olha, é uma honra para mim, e fizemos acontecer. Convidámos a Missy Bity, que também é uma grande artista da Guiné-Bissau. Fizemos magia, a música está perfeita. RFI: Carlão é outro nome que aparece neste álbum. Como é que o Carlão surge? Phoenix RDC: Quando organizaram a festa com todos do hip-hop português, no Altice Arena, estava lá o Carlão, ele elogiou-me, deu-me um abraço, foi a partir daí. A música surgiu porque o Stereossauro é que fez a ponte. Ele tinha um instrumental e disse: olha, esse beat aqui é a vossa cara. Falou com o Carlão, o Carlão curtiu, eu já tinha feito também o refrão e uma parte do meu verso. O Carlão gravou e fizemos acontecer, está aí mais uma bomba. RFI: O trabalho de composição, de escrita, como é que acontece? Como é que vocês trabalham? Phoenix RDC: Quando estamos dentro de um projecto, estou a gravar um álbum, eu já tenho aquilo tudo delineado, já sei o que eu quero, os temas e tudo. Quando vão surgindo os instrumentais, eu vou vendo, porque o instrumental muda muito. Posso ter a letra em papel ou na mente, mas quando chega o beat, eu até às vezes tenho que alterar um bocado os temas. Os temas estão na minha mente, às vezes eu estou a pensar, olha, isso vai ser uma música triste, mas depois vem o instrumental, e dá uma outra cena. Automaticamente, também me traz o artista que eu posso convidar, e que possa encaixar nesse beat. É assim o processo. Todos os beats foram assim. Quando foi a cena com o Regula também, foi a mesma coisa. Liguei e disse, oh Regula, olha, ouve lá esse beat. Eu já sabia que ele ia gostar, porque é um beat tem a ver com a vibe dele. O do Chullage eu já sabia. Isso foram coisas que aconteceram sem planos, porque os produtores também não estavam a me enviar os instrumentais a pensar nisso. Mas tudo se encaixou de forma natural. Hoje eu vejo que os artistas que não responderam à minha mensagem, que deram nega, hoje eu, estando a ver o projecto, eu digo assim, fogo, ainda bem. Isto ficou tão bom, porque as únicas pessoas que responderam foram as pessoas com mais maturidade. É um álbum sem ego. Tenho uma obra que eu até podia dar o nome de um sonho, eu podia chamar este álbum de um sonho. Porque não são só as músicas, foi a energia que foi depositada nesse projecto. É um projecto que eu digo, desde as entradas até a sobremesa, está impecável. Isto aqui é uma partilha. É a Champions League, está uma selecção de Kings. Além de ser uma partilha, é uma seleção de Kings. É um álbum para todos, é uma cena muito completa. RFI: As raízes do Phoenix são Angola. Concertos em Angola, há perspectiva, há possibilidade? Phoenix RDC: Não, não há. Por acaso, ultimamente, os números (nas redes sociais de Phoenix) têm estado a aumentar, mesmo os comentários vindos de Angola. Tem sido muito Angola, Moçambique, mas não, não há muita procura. Há aqui tantos angolanos bons a fazer música, DJ Telly, Wet Bet Gang, aqui tantos angolanos, e a irem de cinco em cinco anos, ou nem isso, para Angola, mesmo para Moçambique, Cabo Verde. Eu gostaria que olhassem mais, valorizassem mais, porque música não é só Kizomba, não é só Kuduro, e eu gostaria muito que valorizassem mais. Phoenix RDC YouTube : https://www.youtube.com/channel/UCqyPFRUdo54aeASdY3Gr4QQ

Esta segunda-feira, começa a 11ª edição da Bienal de Dança Contemporânea - KINANI, que vai decorrer até 30 de Novembro, em Maputo. O festival arranca com a estreia do novo espectáculo de Ídio Chichava e vai mostrar que “a dança está a borbulhar em Moçambique”, conta à RFI Quito Tembe, o director artístico da KINANI. Aos palcos sobem, também, obras de Edna Jaime, Janeth Mulapha, Mai-Júli Machado, Pak Ndjamena, Osvaldo Passarivo, entre muitos outros. A 11ª edição da Bienal de Dança Contemporânea – KINANI, em Maputo, decorre de 24 a 30 de Novembro, numa altura em que “a dança está a borbulhar em Moçambique”, conta à RFI Quito Tembe, o seu director artístico. Nesta vitrina da dança moçambicana, em que também há criadores internacionais, “todas as obras estão no mesmo diapasão”, a de “abordar o corpo como uma ferramenta política de intervenção”, descreve o curador, com quem conversámos sobre a programação e o dinamismo da dança moçambicana. A bienal arranca esta segunda-feira com “Dzudza”, uma peça inspirada no bairro do Xiquelene que mistura tradição, migração e cidade e que é a mais recente criação de Ídio Chichava. O bailarino e coreógrafo moçambicano tem estado em destaque nos palcos internacionais, como, por exemplo, em Setembro, na Bienal de Dança de Lyon, em França. Chichava também venceu o Salavisa European Dance Award 2024 ao lado de Dorothée Munyaneza. Esta terça-feira, 25 de Novembro, está agendada a peça “In-Between” da moçambicana Mai-Júli Machado que continua a sua pesquisa em torno de temas relacionados com a mulher, a sua força e aos ritos a ela associados. Mai-Júli Machado passou pelo Festival de Avignon, em França, em 2023, como uma das intérpretes da peça “Black Lights”, de Mathilde Monnier e, desde então, tem dado os seus primeiros passos como coreógrafa. Também esta terça-feira estreia a peça “Why”, de Osvaldo Passarivo, um dos bailarinos que recentemente correu mundo com a companhia do espectáculo “Vagabundus” de Ídio Chichava. No mesmo dia, sobe ao palco “Homem Novo” do moçambicano Yuck Miranda. Ainda esta terça-feira, há o espectáculo “360º” da espanhola Raquel Gualtero e “Sutra” do mauriciano Stephen Bongarçon. Na quarta-feira, 26 de Novembro, os artistas brasileiros Davi Pontes & Wallace Ferreira apresentam “REPERTÓRIO N.3”, depois de terem participado na Bienal de Dança de Lyon, no âmbito do programa curatorial em que participou Quito Tembe. No mesmo dia, a francesa Gwen Rakotovao apresenta “Mitsangana”, a tanzaniana Dorine Mugishe apresenta “Akanana:Sweet Banana”, uma performance autobiográfica, e o sul-africano Vusi Mdoyi leva a palco “Izithuthuthuku”. Na quinta-feira, 27 de Novembro, a bailarina e coreógrafa moçambicana Janeth Mulapha estreia a sua criação “Nzula – Filhas do Índico”, em que imagina a dança tradicional do tufo numa linguagem mais contemporânea. Janeth Mulpapha também tem outra peça em cartaz, “(In) Visible”, agendada para 28 de Novembro. Ainda na quinta-feira, sobem a palco os espectáculos de duas outras moçambicanas: “As Substitutas” de Isabel Jorge e “Nzualo – A Maratona 7/7” de Edna Jaime.Também nesse dia, a brasileira Maria Emília Gomes apresenta “Eco, Oco Preso no Peito”. Por sua vez, a norueguesa Iselin Brogeland leva a Maputo “When Birds Sing of Loss”. Na sexta-feira, 28 de Novembro, além de “(In) Visible”, de Janeth Mulapha, há outro nome da dança moçambicana, Pak Ndjamena, que estreia “Rituais do Corpo”. Também a 28 de Novembro, a artista portuguesa Teresa Fabião apresenta “UNA”, a angolana Bibiana Figueiredo revela “Vidas de Pedra” e o iraniano-canadiano Mohammadreza Akrami apresenta “Tanha”. No domingo, 30 de Novembro, é a vez de “The Herd/Less Walking On Tin-Shells”, da sul-africana Mamela Nyamza, e de “Confluence” da checa Angela Nwagbo. Há ainda amostras de propostas experimentais de vários artistas, incluindo os moçambicanos Vasco Sitoe, Lulu Sala, Silke, Mário Forjaz Secca, Francisca Mirine e Diogo Amaral no chamado “4° Andar”. Quito Tembe: “A dança está a borbulhar em Moçambique” RFI: Qual é o tema que atravessa esta edição? Quito Tembe, Director artístico da KINANI - Plataforma Internacional de Dança Contemporânea de Maputo: “Para nós, é este lugar de abordarmos a questão do corpo político, o corpo de intervenção, este corpo de resistência. É esta questão do corpo como uma arma, como uma ferramenta politica de intervenção. É esta abordagem: corpo de resistência, corpo político.” Resistência a quê? Quais são as linhas contra as quais é preciso resistir? “Todas as obras, de uma ou de outra forma, estão no mesmo diapasão. Temos aqui, desde este corpo negro que resiste, que são as obras vindas do Brasil, este corpo negro interventivo politicamente, que é o “REPERTÓRIO N.3”. Tens também esta abordagem das obras como do Ídio Chichava que transcende o lugar do corpo poético, mas um corpo interventivo que desconstrói as linguagens prédefinidas da dança, sobretudo quando a gente diz dança clássica para este corpo que se assume, para este corpo que resiste e fala estando em cena, despido de qualquer tipo de padrões estéticos ou regras estéticas do corpo em cena. Toda esta é uma abordagem, uma curadoria que, de alguma forma, teve este cuidado de pôr no mesmo programa obras que trazem esta questão da intervenção, esta questão do uso do corpo não somente para a concepção ou para uma abordagem um bocado mais poética, mas para este corpo que resiste e que se manifesta por sua vez.” Quais são os nomes da dança moçambicana que vão estar presentes? “De Moçambique, nós temos praticamente toda a nata dos activos que estão na dança. Desde a Janeth Mulpha que vai estrear a peça do grupo; a Edna Jaime, que vai mostrar uma peça do seu repertório; o Pak Ndjamena que vai mostrar, também em estreia, o seu novo trabalho, que é uma peça do grupo; e temos o Ídio Chichava igualmente que vai mostrar a sua nova criação. Depois temos a Mai-Júli Machado, que também é uma jovem artista moçambicana que está-se a destacar muito na dança, estando em trabalhar a partir de França e mostrar este trabalho é de muita significância. Temos também pequenas formas, que é o que a gente chama do “4° Andar”, que é a ocupação de um prédio cuja construção está em suspenso desde a independência. Dentro deste prédio, a gente põe pequenos formatos, 15 minutos cada e o público vai deambulando. Teremos oito propostas, das quais seis são moçambicanas.” Há mais nomes moçambicanos. Por exemplo, Osvaldo Passarivo que é um dos bailarinos que recentemente correu o mundo com a trupe do espectáculo “Vagabundus” de Ídio Chichava... “Exactamente. São estreias, vamos assim dizer. O Osvaldo Passarivo mostra, pela primeira vez, o seu trabalho individual que para nós também é de muita significância, sendo que ele não só esteve em tournée com Ídio Chichava, mas esteve também a trabalhar na peça do Victor Hugo Pontes. Para nós, depois de toda esta experiência que ele teve com estes coreógrafos, mostrar o trabalho dele é também apresentar ao mundo este jovem coreógrafo.” O festival arranca a 24 de Novembro com a estreia de “Dzuza", que é a mais recente criação do moçambicano Ídio Chichava. Porquê abrir com Ídio Chichava? “Acho que é óbvio. O Ídio Chichava é para nós, actualmente, uma grande referência em Moçambique e no continente africano, sendo que ele veio romper com vários padrões de se estar no mundo da dança e na criação da dança contemporânea no continente africano. Ele emergiu há muitos anos, mas há três anos é que ele começa a fazer-se sentir no mundo e através da sua peça, ‘Vagabundus', que está ainda em digressão - vai fazer agora mais de dois anos em digressão. Ele sempre me disse que, durante as tournées, todos os momentos que se pensava que eram momentos mortos, eram momentos de criação. Então, é esse trabalho que ele nos vai mostrar pela primeira vez aqui em Moçambique.” Apesar de ser uma Bienal de dança moçambicana, vocês abrem a criadores estrangeiros. Quem são os nomes estrangeiros escolhidos e porquê? “Todos os artistas que aqui estão e que foram selecionados representam tudo o que é esta Bienal. Primeiro, queríamos fazer desta Bienal uma espécie de uma janela da região. Convidámos alguns artistas aqui da região, como é o caso do Stephen Bongarçon, que é uma das referências das Maurícias. Também temos uma artista espanhola, a Raquel Gualtero, que traz a peça “360°”, que é um espectáculo muito simples, mas muito impactante que vamos fazer num museu para abrir para outros públicos e porque queremos contribuir para a discussão de trabalhos fora da caixa negra, isto é, fora do teatro. Então, trazer um trabalho impactante como este é levantar esta discussão e estas conversas que precisamos ter aqui em Moçambique. Depois temos uma artista, Dorine Mugisha, da Tanzânia, e quando descobrimos este trabalho foi quase automático ter este solo da Dorine aqui em Moçambique. Vamos ter também um grande trabalho que é do Vusi Mdoyi, “Izithuthuthuku”, que é um trabalho que mistura muito o teatro e a dança, mas é sobretudo o lugar da performance, e narra este momento do Apartheid através das sonoridades feitas com as máquinas de escrever e o som das máquinas de coser. Temos, também, o “REPERTÓRIO N.3”, de que já falámos. Enfim, vamos abrindo e tocamos um bocadinho mais este lugar de não só tornar a Bienal focada em Moçambique ou focada somente para o continente africano. Convidámos a Maria Emília Gomes, brasileira, que é uma excelente performer, que reivindica o espaço do corpo negro nas artes no Brasil. Também temos a Iselin Brogeland, que nos traz um performance que vamos fazer pela primeira vez num cemitério e toda a gente pergunta-se ‘mas porquê?' É sairmos das caixas negras e irmos provocar outros lugares, outros espaços que normalmente não recebem a arte. Temos a Bibiana Figueiredo que estreia o trabalho que nos mostrou, em pequeno formato, na edição passada no 4° Andar. Também temos de Portugal a Teresa Fabião, que tem um espectáculo que temos vindo a discutir há três, quatro anos e estamos muito contentes de ter esta trabalho ‘UNA' entre nós.” Esta edição não é só dança. “Esta edição decidiu abrir-se um pouco mais também para o teatro e para a performance. Temos uma peça importante da Isabel Jorge que vai ser mostrada na Casa Velha. E também vamos ter o Yuck Miranda, que é uma performance, ele vem do teatro, mas começa a experimentar outras formas de estar na arte, sobretudo na dança. Achamos que é de extrema importância mostrar artistas que vão experimentando outras formas. Pusemos também, durante quatro dias, uma conferência “Cenas Abertas”, que é pôr artistas do teatro, artistas da dança, artistas das artes visuais juntos para discutir e reflectir sobre a arte contemporânea. Temos também intervenção da arte visual, uma instalação em fotografia que envolve este prédio do 4° Andar, que vai ser a primeira exposição que a gente vai inaugurar, mesmo antes de iniciar o Kinani, que é do Mário Forjaz, um fotógrafo que também vai tocando outras áreas. Para além desta instalação, vamos ter umas instalações na Casa Velha, uma delas que é em memória ao Domingos Bié, que foi um jovem bailarino que já não está entre nós, e também vamos ter uma instalação de Walter Verdin que vai contar nos através das suas lentes, através da sua câmara, o percurso do que foram os 20 anos da história da dança em Moçambique, sendo que ele andou a acompanhar, filmando, documentando.” Relativamente à dança moçambicana, esta Bienal de dança moçambicana acaba por ser a vitrina da criação que se faz em Moçambique e que está a dar cartas cá fora, nomeadamente com Ídio Chichava, como se viu na Bienal de Dança de Lyon deste ano. Como é que está a dança moçambicana? “Por conhecer um pouco o continente e por estar a trabalhar em vários festivais no nosso continente, isso permite-me, de alguma forma, olhar de uma forma holística o continente. Digo que Moçambique está muito para a frente, isto é, o sentido criativo e o sentido da dança em Moçambique é uma coisa impressionante. A dança está a borbulhar em Moçambique. A dança está viva e os artistas estão muito ávidos deste lugar criativo, deste lugar de trazer novas propostas para o mundo. Moçambique, sem sombra de dúvida, é incontornável para o que está se a fazer no continente hoje.” Há alguma ligação, nesta edição, com os 50 anos da independência de Moçambique? “O espectáculo do Yuck Miranda é sobre este corpo da independência porque ele aborda este lugar da história de Moçambique, mas leva por uma outra vertente que é este lugar desconhecido, a comunidade que sempre existiu, mas nunca se falou dela, LGBQTI+, antes da independência. Então, ele fez uma pesquisa sobre este lugar, este corpo que não podia se expressar porque não tinha espaço para se expressar como homossexual, etc. Para nós, a bandeira dos 50 anos da Independência está justamente neste performance.”

Pedro Santos, 23 anos, estreia-se em Paris com um concerto a solo que cruza fado, barroco e contemporaneidade, elevando a guitarra de instrumento acompanhante a presença solista. Entre risco e intimidade, afirma uma identidade própria. O concerto encerra o ciclo Terças em Música na Casa de Portugal André Gouveia, da Cidade Universitária de Paris. Para o seu primeiro concerto em Paris, Pedro Santos, vinte e três anos, apresenta-se com uma guitarra que parece transportar várias camadas de tempo. Diz querer "oferecer ao público o concerto que eu próprio gostaria de ouvir se nunca tivesse escutado guitarra clássica". É a partir desta ideia, quase um pacto, que constrói o programa que encerra, esta terça-feira, o ciclo Terças em Música, na Casa de Portugal, André Gouveia, na Cidade Universitária de Paris. O jovem músico confessa ter desejado "depôr a coroa e tentar ir ao encontro do público", consciente das limitações e da delicadeza particular do seu instrumento. A guitarra surge aqui a solo, despojada "a solo, exactamente", insiste, assumindo um papel que exige transcender a natureza tradicionalmente acompanhante do instrumento. "É um desafio imenso", reconhece. "Tentamos elevar um instrumento nascido para acompanhar a um papel inteiramente solista". Esta exposição produz uma relação mais íntima, quase confidencial: "O resultado é muito diferente daquele que se obtém com outros instrumentos. Muito mais íntimo, diria mesmo, profundamente íntimo." Nesta intimidade, nascem tensões. Para Pedro Santos, tocar a solo implica risco: "Tomo riscos na minha interpretação, por vezes talvez desnecessários, mas que contribuem verdadeiramente para o resultado final". Não se trata, porém, de ousadias gratuitas: "Não vejo isto como risco, mas como uma inevitabilidade". Elevar a guitarra, afirma, exige precisamente "esta paixão da interpretação". No centro, está o público, "gosto imenso de tocar em público justamente porque sinto esse risco", admite. A presença de quem escuta altera o próprio acto musical: "Sinto que não estou a tocar sozinho; estou a tocar com o público." E a diferença, diz, é profunda quando comparada com a experiência de concursos, salas de aula, apresentações institucionais. Nesses contextos, sente-se por vezes como quem "joga contra uma equipa". Em concerto, deseja o contrário: "Gostaria que o público estivesse a jogar na minha equipa." A formação de Pedro Santos atravessa várias geografias: Leiria, Vigo e Weimar. Leiria é o ponto de partida: "É a minha casa, onde criei relações musicais extraordinárias." Vigo foi apenas uma breve paragem no início do percurso académico. Weimar tornou-se espaço de criação, o lugar onde, pela primeira vez, pôde perguntar: "que é que eu quero criar?" É deste retorno às raízes que nasce a ideia de integrar o fado no seu próximo álbum, depois de reencontrar repertórios antigos e de reclamar uma identidade musical própria. Esse cruzamento revela-se também no diálogo entre épocas. Para o guitarrista português, a música contemporânea recorda que "o risco é necessário", mesmo quando se aborda repertório romântico ou barroco. Assume não ser um intérprete "historicamente correcto" e interroga o próprio conceito: "O que significa ser historicamente correcto? São sonhos que fazemos sobre o que se tocava na época. Não estivemos lá." É esta liberdade que orienta o primeiro disco Alma – Seele, onde procura aproximar Bach e o fado: "uma tarefa complicada, um cruzamento que não se vê todos os dias". Neste primeiro álbum a solo, procura pontos de contacto entre tradição e experimentação: "Admiro profundamente a música barroca e creio que ela respira admiravelmente na guitarra", afirma. Ao mesmo tempo, deseja "elevar o fado ao repertório de um concerto solista". A intenção artística é clara: conciliar admiração pela tradição e uma adaptabilidade viva, porosa. Pedro Santos deseja que o público leve consigo uma sensação de comunhão: "O público precisa de poder desfrutar da música", afirma. Cada espectador, diz, procura "um momento bem partilhado", e ele vê-se sobretudo como mediador dessa experiência: "No fundo, estou ali apenas para servir o público."

Angola assinalou esta terça-feira, 11 de Novembro, 50 anos da independência, o músico que deu voz à liberdade reflete sobre a esperança, a desilusão e o papel da música na construção de um país ainda por cumprir. Há meio século, a 11 de Novembro de 1975, Angola respirava o primeiro sopro de liberdade. Bonga, então exilado em Paris, recorda o dia com a nitidez de uma cicatriz. “Foi com a lágrima no canto do olho, muita emoção, abraços fraternos... e sobretudo o pensamento de qual seria o futuro da nossa terra, da nossa gente.” O futuro, diz agora, “foi aquilo que a gente menos esperou e menos queria. Uma turbulência tremenda, com a conivência de vários estrangeiros, que se imiscuíram nos assuntos internos de Angola. Sofremos bastante e continuamos a sofrer.” Aos 83 anos, Bonga mantém a voz firme, carregada de um lirismo rouco que continua a chamar o país à responsabilidade. “Tenho consciência de ser uma voz activa, hoje mais do que nunca, porque as coisas tendem a piorar em detrimento daquele grande povo.” Metade século depois, o músico que deu ritmo à luta pela independência e melodia à resistência não vê razões para festa. “Não temos motivo para comemorar”, afirma. A palavra “independência” soa-lhe agridoce, como um semba de compasso fragmentado. “Foi uma independência meio atribulada, mas foi um sinal de que tínhamos de tomar as rédeas da nossa própria terra.” Só que, logo depois, vieram “as ideologias importadas”, as divisões e a violência entre irmãos. “O 27 de maio de 77 é o inferno na terra. Nem sabemos quantas foram as vítimas. E isso continua a pesar nas famílias. Ficamos assim: enlutados e com medo. Esse ‘nós entre nós', como se diz em quimbundo, ficou cheio de dúvidas.” No exílio, Bonga cantou o país no qual não podia entrar. Angola 72, o seu primeiro disco, nasceu da urgência de respirar. “A primeira coisa que a gente faz quando sai do país de origem é respirar. Respirar democracia, liberdade, convivência salutar.” A música foi a sua forma de devolver o ar a um povo sufocado: “Foi um parente riquíssimo na participação, no chamamento à responsabilidade das massas populares. E continuo a fazer isso até hoje.” O semba, essa pulsação que liga o corpo ao chão, é para ele mais do que um género musical: é uma pátria possível. “É o nosso estilo de música. O brasileiro tem o samba, nós temos o semba. É a mais importante música da minha mente, da minha escritura. O povo entende, canta e dança comigo.” Entre o orgulho e o desencanto, Bonga fala com a ternura de quem não desistiu. Vê nos jovens “inovações boas”, desde que não se percam “em coisas supérfluas, só para satisfazer os chefes”. Ralha com eles: “ainda é possível ralhar”, e lamenta a perda dos encontros de outrora. “Antes havia convivência, irmandade. Hoje há divisão. É muito difícil. Eu faço parte de uma excepção: ainda recebo familiares e amigos em casa para grandes comidas, mas o mais importante é falarmos de nós, sabermos quem é quem, o que vamos fazer.” Mas há um fio de esperança que Bonga recusa cortar, o mesmo que atravessou as décadas de exílio e o manteve de pé entre a saudade e a revolta. “Todos os dias devíamos contribuir com alguma coisa: um telefonema, uma canção de intervenção, um aviso a quem procede mal. Qualquer contributo é fundamental.” É a ética do gesto, o compromisso do dia-a-dia, o humanismo simples de quem acredita que o país começa no cuidado com o outro. Cinquenta anos depois da bandeira ter subido no céu de Luanda, a liberdade continua um trabalho inacabado. “É triste saber que desconseguimos, por causa daqueles que se dizem nossos amigos e exploram Angola desencontrada. Mas ainda podemos desejar que bons ventos nos tragam um povo livre, com democracia, liberdade, amizade, amor, comida, escola e evolução. Fora disso, nada há a fazer.” A memória é o alicerce da sua lucidez. “É bom recordar os velhos que se foram, mesmo aqueles do tempo colonial, que eram dignos, zelavam pelos seus filhos e pelos seus entes queridos, progressistas sem ideologias nenhumas.” É essa Angola que Bonga canta; a das mulheres de lenço e dos homens de palavra, das casas abertas e das conversas longas à sombra da mangueira. Se tivesse de escolher uma para contar estes cinquenta anos, não hesita. “Mona Ki Ngi Xica”, diz, “a filha que eu deixo”. Um tema sobre a ausência, o amor e o destino, mas também sobre o país que ainda não regressou a si próprio. “É a minha filha, é Angola. Continua à espera, mas eu continuo a cantar-lhe.”

Angola celebra 50 anos de independência e a sua história pode ouvir-se no Semba, através do ritmo que denunciou o colonialismo, uniu o país e continua a pulsar nas novas gerações. Para o antropólogo André Castro Soares, o Semba é “um testemunho histórico e político”, uma expressão da dor, da festa e da esperança de um povo que, mesmo entre guerras e desafios, nunca deixou de dançar pela liberdade. Angola assinala na próxima semana 50 anos de independência, a 11 de Novembro, meio século de caminhos cruzados entre a esperança, a reconstrução e os desafios de um país que continua a reinventar-se. Desde 1975, a música tem sido uma das mais fiéis testemunhas da história angolana: um espaço onde se escutam as memórias da luta, as vozes da resistência e as novas sonoridades que dão forma à identidade contemporânea. O antropólogo português André Castro Soares, autor da tese “Semba enquanto património material, políticas e imagens e sonoridades da cultura em Angola”, tem dedicado a sua investigação a compreender esse percurso. Para ele, “o Semba não é apenas uma expressão artística, mas um testemunho histórico e político capaz de revelar as múltiplas camadas da vida angolana desde 1975 até hoje”. Ao olhar para os 50 anos de independência, André Castro Soares defende que a história de Angola pode ser lida através das suas canções. “É o Semba que vai, de alguma forma, denunciar a presença colonial e o jugo colonial, sobretudo a partir dos anos 60 e 61. 61 é um ano horríbilis do governo do Estado Novo de Salazar”, recorda. Foi nesse momento que começou a guerra colonial, e “esse movimento vai ser acompanhado pelos músicos, pelos que começam, de forma encapotada, a lançar as suas mensagens, aquilo que chamo na minha tese de recados, para que a população se juntasse à luta pela independência fora do jugo colonial português”. Entre esses músicos, destaca-se Liceu Vieira Dias, figura central na génese do nacionalismo musical. “O grande autor, o grande pensador e poeta dessas sonoridades foi, sem dúvida, Liceu Vieira Dias, que com a música Feiticeira, isso está bem descrito num filme de Jorge António, vai, de forma encapotada, anunciar a forma como o poder colonial podia ser combatido”, explica o antropólogo. “Essa música Muxima, coração, vai marcar sonoramente esse período”, acrescenta, sublinhando que outras canções, como Umbi Umbi, exprimem esse mesmo sentimento de resistência e de dor. “O Muxima é o mais emblemático”, afirma Castro Soares. “É um lamento. O Semba tem várias formas, há o Semba de carnaval, festivo, mas também há o Semba de lamento. E essas músicas de lamento são universais, acompanham as formas de vivência dos povos negros subjugados à escravatura e à violência. Quando falo de lamento, falo, por exemplo, da Soul music nos Estados Unidos, do Semba em Angola e do Samba no Brasil.” Essa dimensão espiritual e emocional faz do Semba, segundo o investigador, “um género que surge do sofrimento das pessoas negras e que é, por isso, fundamental para marcar a paisagem sonora da independência”. Com o fim do domínio colonial, o Semba tornou-se património simbólico e material da nova nação. “A angolanidade não é um conceito consensual”, reconhece Castro Soares, “mas através da música podemos pensar num aglutinador do que seria o mais próximo deste conceito, um espaço de consensualidade cultural, onde as pessoas daquele território se revissem de alguma forma”. Num país de enorme diversidade étnica e linguística, o Semba, explica, “é talvez o género musical que melhor se aproxima desse trabalho de consenso, dessa procura de unidade nacional”. “Luanda tem um poder magnético muito grande”, acrescenta o antropólogo. “Concentra grande parte de todas as populações do vastíssimo território das 18 províncias. Penso que o Semba poderá ser uma boa banda sonora da angolanidade, ou o mais próximo daquilo que é a angolanidade, apesar de algumas pessoas não gostarem de o pôr aí. Mas o Semba retrata, relata e ilustra de forma sonora a vivência dos angolanos.” Essa vivência é inseparável das chamadas festas de quintal, que, segundo o investigador, “são uma célula cultural onde se ouve todo o tipo de música, mas onde o Semba tem um papel fundamental de união e de construção de diálogo”. Essa dimensão comunitária da música estende-se, para Castro Soares, à vida familiar e quotidiana. “A sentada familiar é uma marca de angolanidade até mais importante que a própria música”, defende. “É o lugar onde se transmite conhecimento, aquilo que chamo transmissão de conhecimento aural — não apenas oral, porque envolve a escuta e o corpo todo. É uma incorporação de saberes ancestrais que vai muito para além da construção da nova nação.” Mas o percurso musical de Angola também foi marcado por silêncios e medos. “O espaço musical foi muito afectado por um acontecimento: a purga dentro do MPLA em 1977”, lembra André Castro Soares. “Esse episódio, que teve contornos de massacre, implicou uma imposição de medo geral em relação à contestação ao poder instituído, e esse medo vai acompanhar até aos dias de hoje.” Mesmo assim, a música nunca deixou de ser um território de resistência. “Os músicos conseguiram ler muito bem os limites impostos pela política. Hoje continuam a falar através de recados, como o Paulo Flores, que usa a canção para denunciar as injustiças do poder político.” Com o passar das décadas, novos estilos emergiram e redefiniram o espaço sonoro angolano. “Depois do Semba, vieram o Kuduro e a Kizomba, que tiveram grandes impactos na diáspora africana e angolana no exterior”, observa o antropólogo. “A Kizomba, que eu costumo chamar um abraço que os angolanos dão a todas as pessoas, até às pessoas racistas, é uma música que consegue juntar pessoas muito diferentes, dentro e fora do país. É um excelente antídoto contra o racismo. Essa é, para mim, a principal lição que os angolanos deram à contemporaneidade: é possível juntarmo-nos e abraçarmo-nos independentemente das nossas diferenças.” Sobre as novas gerações, André Castro Soares vê nelas um diálogo vivo com o passado. “Há todo um diálogo feito pelas novas gerações, ainda que algumas sem memória directa desse passado, mas transmitido pelos pais e pelos antepassados e também por via da educação.” O antropólogo insiste que “Angola não é um Estado falhado, é um Estado com dificuldades e idiossincrasias, que ainda não teve grande alternância política, nem uma democratização plena, mas o caminho está a ser construído e deve ser marcado pelos próprios angolanos. É uma população muito jovem e capaz de fazer releituras e visões para o seu futuro.” Quando se escuta a Angola de hoje, os sons são múltiplos, mas há sinais de regresso às origens. “Tem havido uma procura da essência do que é angolano”, afirma. “As pessoas perderam a utopia dos anos 80, tornaram-se mais realistas, e há uma vontade de voltar aos instrumentos acústicos e tradicionais, como a Dikanza, um instrumento de fricção feito a partir da natureza.” Essa recuperação, diz, “é uma forma de resgatar património, um passado que foi negado pela guerra civil e por um sistema educativo débil, mas que as pessoas estão a reconstruir de forma informal, fora da tutela do Estado.” Entre os artistas actuais, André Castro Soares destaca “Yúri da Cunha, que tem uma proposta musical muito interessante no sentido de procurar as raízes e a festa de quintal”, bem como “Paulo Flores, que continua a apresentar trabalhos com grande profundidade”, e ainda “Eduardo Paim, vindo da Kizomba, que tem feito remisturas com outros estilos como o Zouk”. Também as novas fusões mostram vitalidade: “Dentro do Afrobeat, há várias misturas entre o Kuduro e o Amapiano da África do Sul, o continente influencia-se mutuamente e vai marcando os gostos de uma juventude que tem outras preocupações do que a juventude que fez a independência.” Cinquenta anos depois da proclamação da independência, a música continua a ser, como conclui André Castro Soares, “um marcador cultural fundamental” e “o espaço onde os angolanos se escutam, se reencontram e se reinventam”. Entre o lamento e a festa, o Semba permanece a batida da liberdade, o som de um povo que aprendeu, mesmo em tempos de silêncio, a falar através da música.

Esteve patente ainda há dias na fortaleza de Maputo a exposição fotográfica "Os cinco Presidentes e os Seis Presidentes" em referência aos cinco chefes de Estado e os seis Presidentes que contabilizou a Assembleia da República nos cinquenta anos de História de Moçambique independente. Esta mostra inserida precisamente na comemoração do cinquentenário do país enquanto Nação livre, retrata também um aspecto do percurso do autor dessas imagens a preto e branco, o fotojornalista Naíta Ussene. Nascido em 1959 em Angoche na província de Nampula, no norte de Moçambique, Naíta Ussene lançou-se no fotojornalismo aos 17 anos, em meados dos anos 70, na revista 'Tempo', tendo tido como guias nada mais e nada menos do que os gigantes da fotografia Ricardo Rangel e Kok Nam. É sob a sua alçada que nos seus primeiros anos de aprendizagem, ele vai acompanhar os primeiros passos do seu país independente a partir de 1975, vai fixar o fervilhar da juventude, o quotidiano, a vida no campo, as dificuldades da população e vai também viajar para toda a parte com Samora Machel que acompanha quase até ao seu último dia. Volvidos cinquenta anos, aquele que entretanto se tornou um dos grandes nomes do fotojornalismo em Moçambique não quer que se perca o seu espólio que é também um testemunho directo da História recente do seu país. Daí que surgiu a ideia -ainda em fase embrionária- de criar um museu-escola para expor as suas fotografias mas também para formar novos fotojornalistas. Em conversa com a RFI, Naíta Ussene, lembrou um percurso com mais de meio-século. "Comecei a fotografar já com 17 anos. Na altura tive grandes mestres, trabalhei com eles, aprendi com eles. Já ouviu falar do Ricardo Rangel e do Kok Nam? Então, esses é que foram os meus grandes mestres. Foram eles que me ensinaram fazer a fotojornalismo. O Ricardo Rangel deu-me uma máquina que tinha lá porque ele trabalhava na revista 'Tempo' e era lá onde eu estava com eles", recorda o fotojornalista. "Quando comecei já a fotografar, eu comecei a andar com os outros jornalistas profissionais e ele próprio (Ricardo Rangel) dizia 'Epá, olha, essa foto tem que ser feita assim'", conta o fotógrafo. Ao relatar as suas primeiras reportagens, Naíta Ussene recorda em particular a cobertura das deslocações do primeiro Presidente de Moçambique, Samora Machel. "Eu era jovem, mas estava com o Presidente Samora Machel. Estava já com 18 ou 19 anos. Já estava a viajar fora. Jovem como era, estive com o Presidente Samora nos Estados Unidos, com presidente Samora quando foi para a União Soviética. Era boa pessoa e falava comigo, falava com outros colegas, conversava connosco. Dizia como é que nós podíamos fazer. Até a morte dele. Foi boa pessoa para mim. Viajei, aprendi muito", relembra. Questionado sobre o que o motiva agora, volvidos 50 anos, para lançar um museu-escola, o fotojornalista diz que tudo partiu dos seus próximos. "Foram amigos que foram ver que eu tenho no armazém. E o armazém estava cheio de material fotográfico. E eles, quando viram aquilo perguntaram 'o que vais fazer com isso?' Eu disse 'não sei'. Disseram 'está bom, ok'. Passadas duas semanas vieram ter comigo. Disseram 'vamos fazer uma escola'", conta o fotógrafo que diz contar com "o apoio daquelas pessoas que acham que podem ajudar". Desafiado a dar um conselho aos novos fotojornalistas, Ussene diz apenas que é preciso "continuar a aprender fotografia. A fotografia não termina. Temos que ter mais fotógrafos e mais fotojornalistas". Eis algumas fotografias recentes de Naíta Ussene, com as suas próprias palavras:

Em Barber Shop Chronicles, o dramaturgo nigeriano-britânico Inua Ellams transforma as barbearias africanas e afro-europeias em verdadeiros teatros do dia-a-dia. De Lagos a Londres, de Kinshasa a Acra, esses barbershops tornam-se bancos de escola onde se aprende a ser homem, confessionários onde se depositam raivas e ternuras, praças públicas onde a palavra circula como uma bola de futebol. A peça esteve em cena no MC93 – Maison de la Culture de Seine-Saint-Denis, em Bobigny, um dos centros teatrais mais importantes da região parisiense. Há lugares onde se corta o cabelo — e outros onde se refaz o mundo. Em Barber Shop Chronicles, o texto é ritmado, cheio de humor e de humanidade. Fala-se de identidade, de masculinidade, de diáspora — mas também de música, de cumplicidade e de alegria partilhada entre homens africanos. Na peça, a barbearia torna-se um espaço de palavra, quase um refúgio. Entre os 12 intérpretes, o actor José Mavà, franco-angolano, dá corpo a várias vozes. RFI: Para si, o que é que um barber shop revela do íntimo masculino, sobretudo em culturas africanas onde, tantas vezes, falar de si é um gesto contido? José Mavà: Vejo os barber shop como um sítio para refúgio, sim. Refúgio esse que muitas vezes não conseguimos encontrar em espaços convencionais e públicos. Existe este lugar e espaço para sermos completamente vulneráveis. O barber shop pode ser um confessionário, a nossa psiquiatria. Podemos aprender filosofia e até mesmo religião numa barber shop ! É interessante como tudo converge dentro deste espaço. Todas as conversas convergem e conseguimos, da mesma forma, ter uma certa dualidade entre o sério e o brincar. RFI: Sente-se esta dualidade ao longo das duas horas desta peça? José Mavà: Sim, certamente. É algo que tentamos sempre partilhar. Lá está, um barber shop é também um local de partilha. RFI: Houve partilha na escrita da dramaturgia, entre os 12 intérpretes em cena e com o dramaturgo? José Mavà: Sim. A versão francesa desta peça foi readaptada para uma realidade francófona e foi feita pelo Junior Mthombeni. Ele é residente na Bélgica e simplesmente pegou no texto original de Inua Ellams. Obviamente que houve adaptações porque deparámo-nos com outras brincadeiras pelo meio, outras nuances, outros ritmos e dinâmicas. Mas a dramaturgia não foi partilhado unicamente pelos directores. Encontrámos sempre uma forma de estarmos na horizontal. Foi uma porta aberta para partilharmos aquilo que sabemos fazer melhor e com isso criar esta adaptação em conjunto que é a Barber Shop Chronicles. RFI: Esta peça tem viajado desde o início de Outubro, como é que tem sido a recepção do público, entre diferentes espaços, na Bélgica, aqui em França? José Mavà: Conseguimos medir isso através do feedback que temos no final. Obviamente que o nosso trabalho enquanto actores é entregar a mensagem e contar a história. Não nos prendemos apenas às reações. Porque cada pessoa digere a informação à sua maneira, não é? Mas devo dizer que todos os sítios são diferentes. Até mesmo cada sessão é diferente, porque é um espectáculo vivo, orgânico, onde procuramos também novas formas de contar a história. Então cada representação é diferente devido ao público, mas nós também nos tornamos diferentes... Isso também dá uma certa magia ao espectáculo. RFI: O José é angolano e esta peça viaja por várias cidades europeias. Falamos de seis pontos geográficos diferentes. Como é que a sua própria história se inscreve nesta geografia da diáspora africana? É curioso que me faça esta pergunta porque é algo que me questiona desde o início. De que forma é que eu, enquanto descendente de pais angolanos e congoleses, tenho essa cultura em mim? Como é que me insiro nesta realidade? E como é que eu moldo esta masculinidade para poder interpretar as personagens que interpreto? E a verdade é que, tendo em conta que todos nós somos homens negros em palco e uma mulher negra, conseguimos então partilhar as mesmas histórias. Chegamos a um ponto no ensaio em realizamos: "o que tu sentes é o que eu sinto, eu também já tive essa experiência antes", então não senti uma alienação. Porque um homem negro é um homem negro e no final do dia é isso que acontece, não é? RFI: Somos o que somos. Este texto joga-se com línguas, com sotaques, com ritmos. Como é que trabalhou essa musicalidade? José Mavà: Trabalhei essa musicalidade com os meus colegas. O elenco é composto por várias nacionalidades: do Senegal, dos Camarões, da Costa do Marfim. Então, o apoio dos meus amigos, dos irmãos e das irmãs que tenho aqui, foi incrível. Houve investimento de todos para que existisse esse grau de rigor e de veracidade nas coisas de que falamos. Depois depende muito das abordagens, não é? Quando eu olho para uma personagem do Senegal, de que forma é que me consigo relacionar com o Senegal? O que torna esta peça rica é também a diferença que existe não só na identidade de cada pessoa, mas também na multiplicidade de culturas que existem no continente africano. E é basicamente nisso que nos fincamos muito. RFI: É isso que gostaria que o público levasse consigo, além, claro, do espetáculo e do que está em cena? José Mavà: Sim, eu gostaria muito que o público nos visse enquanto seres humanos. Somos seres humanos antes de sermos negros. RFI: Ainda há muito trabalho a fazer quanto a isso. José Mavà: Estamos a caminhar... E é essencial que este tipo de trabalho exista. Para que possamos devolver o orgulho e ressignificar a identidade africana, mas também para mostrar que somos humanos. Temos histórias que são universais e pelas quais toda a gente passou, num certo momento. RFI: Quanto à questão do olhar sobre a masculinidade... Pouco se fala de masculinidade e aqui vocês são 11 em palco, e com uma mulher. E a peça acaba precisamente com um diálogo entre um homem e uma mulher. Que mensagem pretendem passar? Que na masculinidade existem mais fragilidades do que se pensa? José Mavà: Quero deixar isso ao critério de quem vê a peça. Mas é algo que pensámos bastante, a forma como a masculinidade é vista... Como disse no início, existem poucos espaços para que o homem, ou a energia masculina possa ser vulnerável. Talvez porque a sociedade tem já definidas as formas como um homem deve ser. Um homem deve ser forte. O homem tem que ser trabalhador. O homem tem que ser o provedor. Mas no final do dia acho que a pergunta é: quem somos nós? RFI: Um homem também pode ser sensível? José Mavà: Claro... Aliás, acho que é a sensibilidade que move, que faz avançar as coisas e a forma como deixamos que estas questões ou dúvidas, medos ou angústias, nos toquem. Estas questões fazem-me sentir sensível. E como é que respondo a essa sensibilidade? E voltamos à mesma pergunta: quem sou eu, quando sinto esta sensibilidade?

Neste ano em que são assinalados os 50 anos das independências de Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e de Angola, debruçamo-nos sobre a reflexão que estas celebrações têm ocasionado ao longo das diversas iniciativas que têm sido organizadas nestes últimos meses em Portugal e nos países de África Lusófona. Estas comemorações coincidem, em Portugal, com um momento político de crescente crispação à direita, nomeadamente com a nova lei de nacionalidade que torna mais complexo o acesso à cidadania portuguesa, enquanto nos países de África Lusófona, o balanço dos últimos 50 anos é feito de contrastes, entre as narrativas dominantes e o surgimento de olhares críticos. Foi sobre este momento particular que conversamos com Sheila Khan, socióloga, investigadora e professora na Universidade Lusófona do Porto, especializada nas questões do pós-colonialismo e cidadania no espaço lusófono. Ao considerar que ainda permanece muito por fazer, a estudiosa coloca em destaque o dinamismo das novas gerações dos afro-descendentes em Portugal que têm impulsionado questionamentos e novos ângulos de análise do legado comum de Portugal e África. RFI: Neste ano em que se comemoram os 50 anos das independências de vários países de África Lusófona, em que estado está a reflexão sobre a história colonial em Portugal? Sheila Khan: O estado ainda está muito incompleto, embora já tenhamos muitos avanços. Existem muitos estudiosos que vieram das ex-colónias africanas portuguesas e que fizeram dos seus percursos, quer biográficos, quer académicos, compromissos de memória, de investigação e de uma cidadania maior, isto é, estiveram sempre ligados a partir do espaço português e também europeu. As suas vivências familiares e aos seus países originais, alguns de nascimento, mas outros também de originalidade em termos de família, trouxeram sempre esse pensamento para o seu percurso académico, para a sua investigação, para os seus desafios e também, acima de tudo, para esta interpelação perante vários pactos que são pactos que vão evoluindo ao longo do tempo na sociedade portuguesa. E eu refiro-me aos pactos de silêncio. E era importante aqui sermos muito cuidadosos, porque estes silêncios não foram os mesmos. A sua densidade e a sua especificidade não foi a mesma. Os anos 70 e os anos 80 não são os anos de hoje. Hoje há uma maior visibilidade, uma maior projecção e até um maior espaço de interacção com a esfera pública. Vemos efectivamente várias comemorações. Eu estive recentemente, a semana passada até, na Fundação Calouste Gulbenkian, onde foi organizada pela professora Ana Mafalda Leite e pelo professor Lucílio Manjate, uma iniciativa que foi dedicada aos 50 anos da literatura moçambicana. Isto significa que o espaço público de interacção, de pensamento e de produção do saber histórico entre Portugal e as suas ex-colónias e os legados coloniais tem sido maior e tem sido mais mediatizado e projectado também para fora das academias. E também é preciso não esquecer que nesta janela temporal, que é um caminho também temporal, temos aqui outros sujeitos sociológicos que eu chamaria de sujeitos afro-descendentes diaspórica que são pessoas que ou nasceram em África e vieram de lá muito pequeninos ou então já nasceram aqui, foram formados e educados no espaço português europeu, mas continuam pela partilha e pela relação que têm com os seus familiares, assumem-se como uma espécie de cumpridores e de curadores de uma determinada memória e de um compromisso de memória. E também eles têm feito um trabalho muito importante. Eu chamaria até de vibrante. Neste momento estamos a viver uma altura muito vibrante em termos desta interpelação e destes contributos, vários dos afro-descendentes, interpelando a historicidade portuguesa, interpelando os seus silêncios, interpelando acima de tudo, esta ideia de que a história da democracia portuguesa, tal como a história das independências africanas, tem de ser muito maior, tem que ser muito mais representativa e eles têm um papel a desempenhar na redefinição, na reinterpretação dessas várias histórias. E as manifestações artísticas têm sido infinitamente ricas e infinitamente partilhadas no espaço público. Eu vou citar aqui um exemplo actual, mas é um exemplo que já vem sido construído de uma forma lenta, mas de uma forma robusta e sólida. Começamos lá atrás com o Joaquim Arenas, escritor cabo-verdiano. Depois tivemos, obviamente, o grande "boom" da literatura dos retornados. Tivemos a Isabela Figueiredo e a Dulce Maria Cardoso. Mas, curiosamente, temos aqui um momento excepcional, com várias vozes, nomeadamente a Djamila Pereira de Almeida, a Luísa Semedo, a Gisela Casimiro e hoje temos uma figura que ninguém consegue escapar a ela, que é o Dino D'Santiago, que está a ser uma voz muito representativa dessas outras histórias silenciadas, desses outros pactos de silêncio, quer familiar, quer público, e que estão a vir à superfície da luz e que têm convidado diferentes experiências humanas, sociais e culturais, identitários e geracionais para pensar o estado da arte da maturidade portuguesa e também o estado da arte da maturidade dos países africanos, hoje independentes. Dino D'Santiago, como afro-descendente, tem feito do seu percurso musical também um aqueduto, uma ferramenta de inspiração e de outro tipo de pensamento. Criou uma ópera que é o "Adilson", em que vai efectivamente colocar o dedo em pontos cruciais e que ainda magoam esta ideia de cidadania portuguesa. Portanto, o "Adilson" é a história baseada numa pessoa real que, mesmo tendo crescido e vivido décadas em Portugal, continua sem lhe ser reconhecida a cidadania portuguesa. Mas também agora publicou um livro, "Cicatrizes", que tem percorrido e está a viajar pelo país e está inclusivamente a ser falado, discutido, debatido em pontos importantes e em pontos descentralizados do país. Isto é um caminho lento, mas está a ser um caminho, a meu ver, robusto, sólido e, acima de tudo, um caminho que se espelha nesta ideia de que é preciso que haja uma cidadania representativa, uma cidadania clarividente das muitas histórias dentro das histórias oficiais que estes muitos países ex-colonizados e colonizadores nos quiseram de alguma forma "vender" e de alguma forma manipular as nossas mentes. Acho que este é um momento extraordinário, embora citando Samora Machel, "a luta continua" e vai ter de continuar, porque há muitas questões, muitos assuntos e nós viemos agora com este debate sobre a lei da nacionalidade. Isto vai espicaçar, isto vai magoar, isto vai desafiar muitas sensibilidades, umas que vão no sentido da fraternidade e da hospitalidade e da solidariedade. Mas estamos num contexto que se vai defender essas outras sensibilidades que querem o fechamento, o controlo, a vigilância e, acima de tudo, o discurso da desconfiança, da suspeita e da instabilidade desse outro no tecido social português. RFI: Antes de abordarmos a questão política, queria ainda voltar um pouco atrás. Estava a falar da expressividade das vozes de afro-descendentes na sociedade portuguesa em termos culturais e nomeadamente, na literatura e na música. Qual é essa expressividade numa cultura, digamos assim, mais popular, como, por exemplo, o cinema, as ficções que nós vemos na televisão? Como é que é representado o afro-descendente ou simplesmente a África lusófona? Sheila Khan: Penso que ainda estamos muito aquém daquilo que se poderia falar, de uma representatividade. Nós temos uma representatividade, se me permite, a expressão, muito anoréctica. A RDP África e RDP África efectivamente fazem um trabalho excepcional, assim como a RFI. Em Portugal, os meios de comunicação ainda continuam muito esquecidos ou distraídos desta riqueza sociológica, cultural, identitária e, acima de tudo, geracional. Porque estamos a esquecer que muitos destes contributos que estão a emergir dos afro-descendentes e de gente jovem, embora uma juventude muitas vezes nela já madura, de 30, 40 ou 50 anos, mas a verdade é que os que aparecem é que são nivelados para um estatuto mais visível. São pessoas que já têm uma projecção muitas vezes internacional. Eu falo, por exemplo, dos Calema. Falo, por exemplo, Dino D'Santiago. Falo, por exemplo, da Selma Uamusse. Mas também há muitos outros aqui à volta que têm feito trabalhos muito importantes, mas que não conseguem entrar neste "mainstream". Mas também esse "mainstream" comunicacional ou dos meios de comunicação, também é verdade, não os convida a estar presentes em debates, em espaços de reflexão pública, no espaço da cidadania comunicativa. Portanto, continuamos ainda muito ancorados a meios de comunicação, cujo carácter e personalidade é muito virado para a relação das diásporas africanas e populações africanas. E volto a repetir a RTP África e RDP África. Mas os outros meios de comunicação ainda não têm a representatividade que nos pudesse animar e estimular. Porque, como diz bem o ditado popular "uma andorinha não faz a primavera". Como dizia recentemente numa entrevista o rapper General D, "não é por termos uma pessoa afro-descendente nos partidos políticos principais da sociedade portuguesa que devemos aplaudir e celebrar a representatividade". A representatividade requer uma metodologia da igualdade, de algum equilíbrio na presença daqueles que são convidados a estar para um determinado compromisso, para uma determinada função e papel e, portanto, nos meios de comunicação, neste momento, esse compromisso é ainda muito frágil, muito volátil e, acima de tudo, eu diria profundamente e lamentavelmente desequilibrado. RFI: O que é que diz o momento político que se vive em Portugal sobre o estado da reflexão da sociedade portuguesa relativamente à sua relação com África, com os afro-descendentes e com a sua história comum? Estou a pensar, designadamente naquilo que estava a referir, a lei da nacionalidade, mas também o grau de participação dos afro-descendentes, por exemplo, em termos de candidatos para eleições, etc. Sheila Khan: Este momento político, e ainda bem que faz essa pergunta, porque vivo e habito nesse momento político, como tantos outros de nós, é um momento político que demonstra alguma secura e alguma falta de imaginação sociológica e histórica perante um legado extenso, infinito, de várias narrativas e de várias histórias e, acima de tudo, dos contributos destas antigas colónias e dos contributos das suas populações para a maturidade, para o crescimento de Portugal. E, portanto, eu acho que este contexto político hoje é um contexto que eu não chamaria de "distraído", acho que é muito pouco. Eu chamaria de muito pouco formado eticamente, moral e historicamente mal formado perante estas populações. E esta lei da nacionalidade, que depois põe toda a gente no mesmo saco, demonstra exactamente essa falta de imaginação, de sensibilidade e acima de tudo, de reconhecimento destas populações, porque estamos também armadilhados ou caímos na armadilha de não perceber os muitos "outros" que vêm de diferentes contextos, contextos que nos aproximam, que nos tornam fraternais e contextos que nos distanciam e, portanto, pomos todos no mesmo saco. Nivelamos todas estas pessoas na mesma categoria de "estrangeiro" e "estranho", um "outro" que vem provocar turbulências, instabilidade e insegurança e perdemos um pouco o compromisso perante também aquilo que as instituições nos vêm devolver. É que, estatisticamente, estes "outros" que estão a ser aqui rotulados como agentes potenciais de instabilidade e insegurança têm contribuído para o tecido da Segurança Social. E a pergunta é: como é que um país que se fez a partir de outros países e da relação com outros países -e não foram apenas os países africanos- não consegue hoje compreender e reconhecer esta ideia de que verdadeiramente somos maiores e nobremente maiores, incluindo em nós outras vozes, outras narrativas e reconhecendo-as como nossas. E, portanto, este tipo de contexto político denota, acima de tudo, uma imaturidade. Uma infantilidade histórica. E, finalmente, uma certa arrogância, quase que muito pouco sólida. Porque às vezes há pessoas arrogantes que têm argumentos. Mas esta é uma arrogância pouco fundamentada, pouco estruturada em dados concretos. E depois temos efectivamente, por detrás dos políticos, também temos cidadãos cuja formação e percepção do mundo também não vêm de todo contribuir para esta ideia de uma cidadania maior, muito mais nobre e rica. Bem pelo contrário. É que esquecemo-nos que por detrás dos políticos e por detrás dos governantes, há cidadãos que se formaram, que estudaram, que pertencem a famílias, a grupos e comunidades. E eles trazem também para o espaço da política todas essas percepções, estereótipos, preconceitos que, de alguma forma e infelizmente, porque o contexto também europeu, é o contexto global, assim o favorece. E retomando um pouco a segunda pergunta que me fez, é inevitável a necessidade de uma acção e de um pensamento vibrante, activo, cívico e atento das comunidades afro-descendentes. RFI: Vamos agora fazer um pouco o caminho inverso. Nós falamos do contexto português. Como é que é na África lusófona? Em termos de narrativa, o que é que predomina? Há também essa vitalidade para contar outros lados da história que até agora não tinham sido explorados, pelo menos em Portugal? Sheila Khan: Essa é uma pergunta que se nos liga tanto uns e outros, porque assim como as comunidades diaspóricas e os afro-descendentes e outras populações estão a combater e a refutar e a incomodar a História, também em África o mesmo acontece, nomeadamente na África lusófona, porque nós vemos que, e é preciso não esquecer que o factor demográfico tem aqui uma influência profundíssima e importante, que é os jovens estão a reivindicar a responsabilidade dos seus governantes, porque é preciso não ignorar o seguinte: havia no tempo das independências, a promessa de uma melhoria de vida, de igualdade, de estabilidade, de fraternidade. O que nós vemos nos nossos países lusófonos é que isso não aconteceu e, portanto, tal como estes outros que são os nossos na diáspora, os africanos no continente africano também estão eles a incomodar uma determinada história que foi feita, que é a história de uma determinada hegemonia africana, em que os governantes mantêm-se quase que numa perpetuidade no poder. Basta olhar para Moçambique, para Angola, a Frelimo e o MPLA e, portanto, toda esta cidadania que tem por detrás esta vitalidade de uma demografia jovem está também a incomodar as histórias e as narrativas oficiais destas nações independentes. Basta olhar também para a instabilidade política e não só política que estamos a testemunhar na Guiné-Bissau e com a aproximação das eleições, acho que estamos todos muito preocupados com tudo o que está a acontecer e o que aconteceu recentemente com o ex-presidente da Liga dos Direitos Humanos, que foi espancado, que foi brutalmente violentado. Mas podemos também olhar para outra situação de São Tomé e Príncipe, Cabo Verde. E aqui é importante distinguir isto. Cabo Verde aparece sempre nos rankings internacionais, no que toca a direitos humanos, uma boa governação, é sempre o país da lusofonia que aparece bem melhor. Mas não quero distanciar-me e não quero esquecer a sua pergunta e dizer que, tal como nós, aqui no espaço português e europeu, estamos a querer incomodar a história que traz consigo silêncios, esquecimentos, também os nossos países independentes estão a ser incomodados por esta cidadania activa pró-activa, porque eles também se esqueceram de incluir na história pós-independência muitas outras histórias que foram necessárias, que contribuíram para as independências. Acima de tudo, esqueceram-se dos grandes projectos de igualdade social, igualdade económica e o que nós vemos hoje nos nossos países é o contrário, o oposto de tudo isto que foi prometido e, portanto, de alguma forma, embora com esta distância enormíssima em termos de quilómetros, há uma fraternidade e há uma solidariedade e há uma empatia e uma consciência de ambos os lados. Há a urgência e a premência de incomodar a história e incomodar a hegemonia de uma história que se quer fazer autoritária, que se quer fazer ignorante da diversidade, da riqueza e dos contributos maiores que vêm de uma cidadania representativa e representada no espaço da esfera pública e política destes vários países e diferentes continentes. RFI: Neste ano em que se comemoram os 50 anos das independências de vários países da África lusófona, sente que todas as reflexões que tem havido ao longo destes meses e que ainda vão acontecer até ao final do ano servem para fazer avançar o debate? Sente que há algum contributo maior que emergiu ao longo destes últimos meses? Sheila Khan: Eu penso que as pessoas estão sedentas de debate. As pessoas querem sair dos seus espaços domésticos e estão sedentas de debate. E isso vê-se não só ao nível das redes sociais, mas também se vê ao nível dos múltiplos eventos e actividades que foram feitos. A pergunta é: quantidade e qualidade? Aqui eu vou dizer que sim. Porquê? Porque a qualidade é diversa. Já não estamos fechados num discurso académico. Nestes vários eventos que eu tenho acompanhado, uns à distância e outros presencialmente, o que nós vemos é uma miríade muito rica de gentes de diferentes formações e diferentes enquadramentos. Escritores, investigadores, jornalistas, activistas, pessoas que trabalham para organizações não-governamentais e todos eles acham, e pelo menos é isto que eu tenho sentido e escutado, uma vontade de se ouvirem, de partilhar. Porque as pessoas começam a perceber que sozinhas não vão chegar a lado nenhum e que a solidão não traz contributos a ninguém e que é verdadeiramente importante, à luz daquilo que eu disse, esta ideia de incomodar a história, que é preciso conversar, debater e acima de tudo, trazer para o espaço, para a mesa do diálogo, a presença, muitas vezes ausente de muitas experiências, de muitas narrativas, emoções e memórias que são cruciais para se compreender porque é que as nossas sociedades não evoluem e percebemos isso quando estamos a debater os caminhos da literatura moçambicana. Nós temos ali como convidados não só escritores, mas temos antropólogos, sociólogos, politólogos, pessoas de vários enquadramentos da arte. E, portanto, isso tem um significado muito importante. A diversidade tem de estar presente para a construção de uma maturidade histórica política dos nossos países. E para terminar, dizer que há uma consciência clara, muito bem articulada, que as histórias dos nossos países não são totalmente cumpridas. Se não forem, e se não estiverem entrelaçadas, não há como compreender Portugal sem a sua experiência e todo o seu caminho imperial e colonial. Mas também não há como compreender e enquadrar um conhecimento mais cuidadoso e rigoroso das nossas ex-colónias, se não as relacionarmos com Portugal, porque, efectivamente há uma relação umbilical, histórica, geracional, que se transmite e que circula nos vários meridianos, que é a palavra "legado". Nós estamos constantemente a debater os "legados coloniais", as "heranças coloniais", porque nós ainda não fizemos o luto. E o luto requer conhecimento e requer o entendimento que nós somos múltiplos. Há uma pluralidade e não uma monocultura histórica que nos querem "vender". Nós estamos a incomodar a história refutando essa ideia.

Este fim-de-semana, o Museu de Arte Moderna de Paris abriu as portas ao mais recente trabalho da coreógrafa portuguesa Tânia Carvalho. "Nem tudo é visível, nem tudo é audível" é uma criação concebida em homenagem a Pierre Boulez, por ocasião do centenário do compositor francês. A performance envolve mais de trinta alunos dos Conservatórios Nacionais de Lyon e Paris e propõe uma deambulação coreográfica, musical e museológica. “Nem tudo é visível, nem tudo é audível” transforma o museu numa partitura em movimento, onde o público é convidado a traçar o seu próprio percurso sensorial, que acaba por ser fragmentado e único. A deambulação impossibilita uma visão total da obra e convida o espectador a perder-se entre o (in)visível e o (in)audível. “Não é preciso estar sempre presente em todo o lado nem saber sempre o que se passa em todo o lado. Às vezes é bom deixar escapar coisas, porque o que é para vir ter até nós, vem”, afirma Tânia Carvalho, que acrescenta que o titulo da performance surgiu da própria experiência de criação: “Quando comecei a fazer isto, percebi que não queria uma deambulação em que as pessoas vissem sempre a mesma coisa ao mesmo tempo. Num museu é impossível ver tudo.” A peça estreou no Museu de Belas-Artes de Lyon e foi adaptada ao espaço parisiense, respeitando a arquitectura e o ritmo das salas: “Há muitas salas e são mais pequenas. Quis que as pessoas se pudessem dispersar e procurar o seu lugar. Não fiz a pensar nas obras, fiz a pensar onde é que cada parte de dança ficava melhor, com que música.” Sobre a relação com Pierre Boulez, Tânia Carvalho admite que foi uma descoberta. “Até agora não tinha assim muita relação. Já conhecia, mas não muito bem. E agora já ouvi bastante. A relação mudou. Foi uma encomenda, porque é o centenário do seu nascimento, e decidiram festejar a sua existência, o seu trabalho, o seu percurso. Eu aceitei.”

O coreógrafo e bailarino moçambicano Ídio Chichava apresenta dois projectos na Bienal de Dança de Lyon, considerada como o principal evento de dança contemporânea do mundo. “Vagabundus” é apresentado em Lyon esta quarta, quinta e sexta-feira, depois de ter estado em vários palcos internacionais, incluindo em Paris. Ídio Chichava também criou uma peça participativa durante a bienal, “M'POLO”, em que transformou os espectadores em intérpretes de rituais e danças moçambicanas. Ídio Chichava acredita profundamente no que chama de “poder da dança”, um lugar onde “o corpo tem capacidade para mudar o mundo”. É na “força do colectivo” que reside essa magia, alimentada por tradições ancestrais, mas também por saberes e vivências impressas nos próprios corpos. Ídio Chichava descreve Vagabundus como “uma experiência humana, uma experiência de vida sobre fronteiras e sobre raízes”. A força da peça reside nesse poder do colectivo, na exigência técnica dos bailarinos e da escrita coreográfica, não havendo decoração ou cenários. Uma simplicidade aparente que diz muito sobre a falta de financiamento para a cultura em Moçambique, mas que, com o tempo, se transformou “numa riqueza”, conta Ídio Chichava. Vagabundus tem corrido mundo e revelado o coreógrafo nos circuitos internacionais da dança contemporânea. Pelo caminho, Chichava venceu o Salavisa European Dance Award da Fundação Calouste Gulbenkian e com o prémio espera abrir uma escola de dança em Maputo. Agora, apresenta, pela primeira vez, Vagabundus na Bienal de Dança de Lyon, o ponto de encontro de programadores, directores de festivais e artistas, que decorre durante o mês de Setembro. O caminho para Lyon foi feito com o convite de Quito Tembe, director artístico da KINANI, Plataforma de Dança Contemporânea, em Maputo, e que é um dos cinco curadores internacionais nesta 21ª edição da bienal francesa. Cada curador podia escolher um artista dos seus países e Quito Tembe foi buscar Ídio Chichava e os seus bailarinos para representarem Moçambique. Além das conferências em que falou sobre a potência e as dificuldades da dança em Moçambique, Ídio Chichava criou, ‘in loco', um “espectáculo participativo”, segundo as palavras da bienal, “um ritual de encontro”, de acordo com o artista. Em três dias, transformou dezenas de espectadores em intérpretes e quis “desconstruir essa compreensão sobre o que é o espectáculo e a dança contemporânea”. O resultado tem como título M'POLO, Rituais do corpo vivo e insuflou uma rajada de liberdade, alegria, cânticos e dança para todos. Nas palavras de Ídio Chichava, o tal “ritual de encontro” pretendeu “reconectar o ser humano com ele próprio” e foi “um lugar onde todos podem estar juntos”. Ídio Chichava: “Sou alguém que acredita muito no poder da dança” RFI: Como é que descreve “Vagabundus”, essa força da natureza que vos tem levado mundo fora? Ídio Chichava, coreógrafo e bailarino: “Eu descrevo como uma espécie de movimento que pensa muito colectivo e tenta encontrar sempre a força do colectivo a partir do olhar que eu tenho sobre cada indivíduo e a forma como nós vemos a relação inter-humana. ‘Vagabundus' é mais uma experiência humana, mais uma experiência de vida sobre fronteiras e sobre o sobre lugar, sobre raízes mesmo.” “Vagabundus” é profundamente ancorado em Moçambique, na sua ancestralidade. Quer falar-nos sobre isso? “Sim, está muito fixo nisso, muito apegado a isso. Primeiro, há um lugar que nós não podemos fugir. Eu não posso fugir, nem os intérpretes, nem qualquer pessoa que faça parte deste projecto ‘Vagabundus' pode fugir pelo facto de sermos todos formados em danças tradicionais. Somos pessoas que têm uma formação, que têm fundamentos sobre danças tradicionais e desenvolvemos o nosso trabalho sempre com essa consciência de quem somos e que queremos partilhar com os outros. Depois, é pelo facto de Moçambique também ter uma história de migração muito forte, principalmente com a África do Sul. A outra coisa é pelo facto de eu próprio ter escolhido ‘Vagabundus' não só como uma peça, mas também como um projecto que vai, de certa forma, afirmar aquilo que são as nossas vontades, a minha vontade, de criar uma instituição de dança, criar uma estrutura de dança, como eu sempre venho dizendo. ‘Vagabundus' foi a porta para isso. Sinto realmente essa ancoragem com Moçambique, essa base forte.” Como está o projecto dessa instituição? Já está criada? “Quer dizer, primeiro na ideia e no funcionamento já está criada. Quando criei a companhia, ainda não tinha bases, uma administração, então, sim, ela está criada. Existe uma espécie de estrutura e uma espécie de agenda. O que nós estamos a discutir ainda, mesmo com relação ao prémio da Gulbenkian que é um reforço maior para essa agenda, é um lugar. Então, ela existe pelo seu funcionamento, mas não existe ainda o físico. Nós estamos ainda a trabalhar no físico e principalmente agora, com a ajuda da Gulbenkian, que nos faz, pelo menos, ao meio do caminho. Só para contextualizar, recordo que é o prémio Salavisa European Dance Award da Fundação Calouste Gulbenkian. Eu gostava também que falássemos sobre as escolhas do espectáculo. São mesmo escolhas ou é porque tinha mesmo que ser assim? Não tem luzes, não tem cenários, é uma coisa muito natural e muito despojada… “Primeiro de tudo, eu faço confiança ao corpo. Eu penso que o corpo, ele é inteligente, ele próprio. Segundo, são as vivências do próprio corpo, não o corpo como lugar de memória, mas o corpo como um espaço tecnológico.” Como assim? “O corpo tem saberes a partir das experiências que passou, vai acumulando saberes. Então, eu acredito que o corpo, ele próprio, pode comunicar com qualquer outro corpo. Penso sempre o corpo como um lugar tecnológico que tem capacidade de desenvolver e de nos fazer aceder a outros lugares de forma emocional, de forma espiritual e também de uma forma física. Então, acredito o corpo como esse espaço com capacidade para mudar o mundo também.” No momento em que vivemos toda a aceleração tecnológica, em que passamos para a inteligência artificial, em que qualquer espectáculo tem tanta coisa, até ruído visual, vocês vão ao essencial. É político? “É político porque nós viemos de um lugar e temos opinião só por isso, mas sem uma intenção clara de reivindicação. A intenção clara é demonstrar justamente com o que nós fazemos, com o que nós desenvolvemos e do lugar que eu venho e de onde os Vagabundus vêm não há condições de criação técnica. A peça é forte justamente porque essa simplicidade, essa falta, é uma riqueza para nós. Usamos isso como riqueza, de certa forma. Por isso é que os ‘Vagabundus' têm essa exigência tão técnica, sem muita decoração e sem cenários. Essa simplicidade, nós usamos como riqueza porque é o que nós temos.” Mas isso não corre o risco de ser visto como uma ode à precariedade? Vocês não deveriam sempre pedir mais? “Pois, poderíamos sempre pedir mais. Só que aí é que está. Temos vindo a discutir muito sobre a falta, sobre co-produções, sobre quem nos ajuda. É sempre o meu pensamento, principalmente com relação aos nossos produtores e às pessoas que produzem a Vagabundus ,que produzem o nosso trabalho, nós estamos sempre a discutir isso. Apesar de eu estar sempre a precisar de dinheiro - mesmo para esta última peça que eu estou a desenvolver, preciso de dinheiro para desenvolver figurinos e tudo - preciso procurar dinheiro em algum lugar. Mas também me trava um bocadinho e sempre fico a pensar nesse lugar de dependências e interdependências.” Não quer perder a autonomia, a liberdade? “De que forma continuamos a guardar a nossa autonomia, de que forma continuamos a desenvolver, como queremos fazer apesar do dinheiro não ser nosso, mas justamente por esse lugar inter-humano.” É um espectáculo novo? “Sim, eu estou a preparar um espectáculo que eu chamo de ‘Dzudza', uma palavra em changana para dizer vasculhar. ‘Dzudza-se' muito nos mercados, nas ruas caóticas de Maputo, cada um à procura de uma peça melhor para si, é dizer mais ou menos isso. Eu vejo o ‘Dzudza' como o oposto do ‘Vagabundus'. ‘Vagabundus' é mais energético, mais interno e é completamente alegre. É uma acção de graças. Na verdade, toda a peça é uma acção de graças. Canta-se todo o tempo, a expressão é a mesma, a estética é a mesma, mas com perspectivas totalmente diferentes de levar à sala e ao público. Há momentos mais alegres. Há momentos mais ecléticos da vida.” Numa das conferências no Fórum da Bienal de Dança de Lyon disse que não via o “Vagabundus' como uma peça, como uma obra, mas como “uma lógica moçambicana de fazer as coisas”. O que quer isso dizer? “Quer dizer que a forma como ‘Vagabundus' foi constituído, as coisas acontecem porque o colectivo tem vontade de fazer. E ‘Vagabundus' foi feita por essa força do colectivo e por essa força individual. Cada um sempre contribuía com o seu transporte até ao lugar, justamente porque acreditava nisso. Uma das características de Moçambique é realmente confiar no colectivo. Para te dar um exemplo muito claro, económico, social e político disso, tem um termo e tem uma acção de empréstimos e de crédito que se chama xitique. Isso só existe em Moçambique. Eu vou explicar. É um grupo de pessoas que se juntam, vão guardar dinheiro para ajudar-se uns aos outros. Eles vão dizer que têm um xitique mensal ou semanal e cada um tem que tirar um valor por semana que vai ajudar um do grupo. Existe essa lógica de confiança que tu tiras o teu dinheiro, dás a alguém e ficas à espera da tua vez chegar. E sempre chega. Mas eu não consigo encontrar nenhuma lógica para isso, senão uma lógica moçambicana de confiança mesmo.” Falemos agora do outro projecto, o espectáculo participativo que fez na Bienal de Dança de Lyon. Como foi a criação? “O ponto de partida é esse mesmo, a palavra espectáculo, performance. Quando o Quito [Tembe, co-curador do Forum] me escolheu, a ideia era desconstruir essa compreensão que temos sobre o espectáculo e sobre a dança contemporânea. Para mim, espectáculo é convidar alguém para assistir. Na minha ideia, nestes ‘Rituais do Corpo Vivo', eu não tenho público, tenho participantes. Pensar o público como participante da acção que partilhamos e que, se ele participa, também chega a ser um membro que tem algo a partilhar e que dessa partilha se cria uma energia. Então ‘M'Polo' é inspirado de um de um termo maconde de rito de iniciação, que é o espaço onde os iniciados se vão concentrar durante essa formação para passarem para a vida adulta. Vão-se iniciar, vão-se conhecer. Então, esse espectáculo é muito ligado a isso e muito ligado a se reconectar o ser humano com ele próprio. É um lugar onde todos possam respirar juntos, um lugar onde todos possam estar juntos. É um lugar aonde cada um é importante. Então, é isso que nós partilhamos aqui, nessa ideia de desconstruir essa ideia de espetáculo.” E é uma festa também. “Tentamos celebrar o momento, tentamos celebrar esse encontro. Na verdade, eu não sei se podemos chamar isso de uma performance, um espectáculo, mas é mais um ritual de encontro mesmo em que o público não sabe o que é que vai ser. O público não sabe que ele também é participante deste espaço.” E o público como aderiu? Pode ser intimidante… “Sim. Pode ser intimidante, mas por causa do preconceito do que é que é um espectáculo, na verdade, porque eles vão para assistir alguma coisa e isso também cria uma resistência interna, uma luta interna. Eu não sei se eles têm consciência até agora, não sei se eles têm a resposta se eles viram um espectáculo ou se eles participaram do espectáculo.” Neste contexto do ritual colectivo, como é que a dança pode fazer corpo colectivo e ser ferramenta de resistência neste mundo cada vez mais polarizado e individualista? “Eu acho que a dança tem que ser isso, tem que ser um espaço ou tem que ser uma expressão ou um motor que convida as pessoas a dançarem. Também tem que ser um espaço onde as pessoas se sintam no lugar de doadores também, doadores da sua presença. Um espaço que qualquer pessoa pode, de certa forma, mudar uma situação. Eu vejo a dança como isso. Para mim, a dança tem que ser esse espaço que acolhe pessoas. Um espaço acolhedor.” Para terminarmos, para quem ainda não o conhece – e depois de ter ouvido aqui na Bienal que o Ídio Chichava é a moda do momento – quer falar-nos um pouco sobre si? “Sou formado em danças tradicionais. Sou alguém que viveu parte da sua formação como artista e bailarino na França, alguém que viajou muito pelo mundo sempre através da dança. E alguém que acredita muito no poder da dança.”

O artista Gonçalo Mabunda está a levar as suas esculturas, fabricadas com antigas armas de guerra, a Tete, Chimoio e Beira, no centro de Moçambique. A exposição chama-se “Os Adivinhos dos Fabricantes da Paz” e é composta por máscaras, tronos e totems que mostram que a arte pode ser uma arma contra a guerra. O artista Gonçalo Mabunda está a levar as suas esculturas, fabricadas com antigas armas de guerra, ao centro de Moçambique. A exposição chama-se “Os Adivinhos dos Fabricantes da Paz” e já esteve em Tete de 1 a 6 de Setembro, em Chimoio, de 10 a 16 de Setembro, e vai para a Beira de 22 a 26 de Setembro. Gonçalo Mabunda tem as suas obras expostas em vários museus e centros de arte internacionais, mas, dentro do seu país, esta é a primeira vez que expõe fora de Maputo. As esculturas de Gonçalo Mabunda são feitas com armas desactivadas da guerra civil. Este trabalho começou em 1997 quando ele foi convidado a transformar armas em arte. A sua obra carrega, assim, a memória do passado e alerta para a permanente fragilidade da paz. Os tronos, por exemplo, inspirados na arte africana tradicional e fabricados com despojos de guerra, são uma crítica aos governos africanos que frequentemente usam a violência armada para reforçar o poder. O convite a Gonçalo Mabunda para fazer esta exposição itinerante veio de Ivan Laranjeira, que assume a curadoria da mostra, no âmbito do projecto PRO-PAZ, um consórcio constituído pela Associação IVERCA, o Instituto para a Democracia Multipartidária, a associação LeMuSiCa e a ONG italiana Comitato Internazionale per lo Sviluppo dei Popoli. “É um projecto que retrata e exalta a paz e a reconciliação nacional. Este projecto acontece no âmbito dos acordos de DDR – Desmilitarização, Desmobilização e Reintegração - e como uma componente da Reintegração, nós temos desenvolvido acções de socialização e de sensibilização das comunidades, a partir da arte e da cultura, como um veículo para passar estas mensagens pacíficas, de pacificação e de coesão social para que as comunidades possam voltar ao seu convívio normal, independentemente das cores e daquilo que são as suas crenças. Ao longo destes três anos, temos trabalhado em três províncias de Moçambique: Tete, Manica e Sofala, que foram as províncias mais assoladas deste conflito que deu lugar ao DDR”, conta Ivan Laranjeira. O projecto PRO-PAZ tem desenvolvido, por exemplo, trabalhos com as escolas, criação de clubes de leitura, formação de grupos culturais, concertos e a gravação de um álbum com artistas destas províncias. Agora, o também director do Museu Mafalala Ivan Laranjeira, decidiu convidar para o projecto Gonçalo Mabunda que descreve como “activista da paz por excelência” e “o bispo das artes”. “Em primeiro, o Gonçalo Mabunda é, sem dúvida, um artista de uma dimensão estratosférica. Onde ele vai, arrasta atenções e arrasta multidões. É um mecanismo importante de sensibilização para as autoridades e para as pessoas que normalmente fazem essa guerra despertarem, através dos artefactos que ele usa e também pela mensagem que está patente nesses mesmos artefactos. Em segundo, ele é um activista da paz por excelência, o bispo das artes, é uma pessoa que tem feito um trabalho extraordinário na questão da paz. Em terceiro, este mesmo artista, com todo este percurso e com esta visibilidade internacional, em Moçambique nunca tinha exposto fora da capital Maputo. Quem, de facto, viveu o conflito e quem sofreu com a guerra, nunca tinha tido a oportunidade de ver e testemunhar aquilo que é a obra que ele produz e como ele transforma materiais associados à violência a elementos pacíficos e esteticamente bonitos e que possam trazer um quê de esperança para esta mesma comunidade." Pensar a guerra e o passado através da arte é o convite de “Os Adivinhos dos Fabricantes da Paz”. Para ver em Chimoio e na Beira nos próximos dias.

Quando o teatro é usado para curar feridas internas, restaurar a confiança e fortalecer comunidades que lutam contas as diversas formas de opressão, ele revela um poder transformador. É exactamente esse trabalho que o Centro de Teatro do Oprimido, em Maputo, tem realizado. Recentemente, entre 1 e 5 de Setembro, o centro concluiu uma formação voltada para as comunidades deslocadas e vítimas do terrorismo na província de Cabo Delgado, com o apoio da Organização Internacional para as Migrações. Em entrevista à RFI, Alvim Cossa, actor e coordenador-geral do Centro de Teatro do Oprimido, destaca como o teatro pode ser uma ferramenta poderosa contra diferentes formas de opressão. Como surgiu a ideia de criar esta formação para as comunidades deslocadas e vítimas do terrorismo na província de Cabo Delgado?O Centro de Teatro do Oprimido de Maputo está a trabalhar com a Organização Internacional para as Migrações desde 2018, quando, em 2017, começaram os ataques de homens armados na província de Cabo Delgado. Desde essa altura, começamos a usar as técnicas do Teatro do Oprimido num projecto que nós denominamos: Cura através da arte. O projecto abrange os distritos severamente afectados pelo conflito e que acolhem muitas das pessoas deslocadas. Esta formação destina-se apenas aos deslocados pelo conflito em Cabo Delgado?Sim, trabalhamos com pessoas deslocadas. Mas também trabalhamos com comunidades de acolhimento, porque, em alguns dos locais onde os deslocados chegam, há pequenos conflitos de tribo, raça, língua. E usamos o Teatro do Oprimido para trazer um ambiente de tolerância, um ambiente de socialização, de tranquilidade entre os deslocados e as comunidades de acolhimento. Trabalhamos com os dois grupos, mas também incluímos na nossa formação membros das Forças de Defesa e Segurança, como a polícia e o exército. Como é que organizam esta formação?No Teatro do Oprimido temos a formação de Coringa, de facilitadores do debate, do diálogo comunitário. Quanto à selecção das pessoas, vamos aos campos de acolhimento, às comunidades, e, com a ajuda das autoridades locais, identificamos as pessoas que têm alguma vontade de trabalhar nas artes - especialmente no teatro, dança, música, poesia. São essas pessoas que passam pela formação do Teatro do Oprimido. A escolha é baseada na vontade e entrega das pessoas para o trabalho com as artes como ferramenta. De que forma pode a arte ser utilizada como ferramenta social e permitir o fortalecimento comunitário?O Teatro do Oprimido é extremamente poderoso por ser uma ferramenta que nos convoca a uma reflexão introspectiva sobre o nosso percurso de vida, sobre o que estamos a fazer e os vários tipos de opressões que nos assolam no dia-a-dia, permitindo um espaço de interacção com o outro. O teatro abre a possibilidade do outro olhar a nossa história e poder contribuir para ela. Permitimos que as pessoas olhem umas para as outras, olhem às práticas e partilhem as boas práticas, mas também partilhem como se devem corrigir as más práticas. Tem sido bastante útil na pacificação e no diálogo. Tem sido bastante útil na construção da autoconfiança, na devolução da esperança das pessoas que viveram situações de horror ou de terror e que perderam a esperança. Muitas vezes, essas pessoas apresentam-se com problemas psiquiátricos e o teatro também ajuda a identificar essas pessoas, encaminhando-as para uma assistência especializada dos médicos, dos psicólogos e dos psiquiatras. O diálogo que promovemos possibilita às pessoas abrirem-se e contarem as coisas que as corroem por dentro. Desta formação que terminou no dia 5 de Setembro, tem alguma história que possa partilhar?Temos a história de uma menina de 16 anos que viu os pais serem degolados e que foi vítima de abusos durante a fuga da zona de ataque para uma zona segura. Segundo as explicações que tivemos, essa menina vivia isolada, não falava com as pessoas, nem se abria com ninguém. Ao participar na formação do Teatro do Oprimido, com um conjunto de jogos e exercícios teatrais, ela começou a soltar-se mais e, no último dia, começou a conversar - até mesmo a rir - e contou a sua história. Inclusive, a história dessa menina foi usada numa das peças criadas durante a formação. Não vou dizer "final feliz", mas conseguimos resgatar uma criança de 16 anos, que parece que está a voltar à vida, está a voltar a sonhar e a ter esperança. A arte permite esse regresso à vida?Acredito que não temos melhor ferramenta do que a arte para curar feridas interiores, para trazer um bálsamo do espírito, fazendo com que as pessoas efectivamente se reencontrem. O que temos estado a dizer - juntamente com os nossos parceiros - é que alguém que passou por situações de trauma físico ou psicológico, que assistiu a momentos de horror, pode receber comida, pode receber roupa, pode receber uma tenda para habitar. A pessoa vai comer, vai vestir-se e vai sentar-se em frente da tenda… e chorar. Porque há coisas que os bens materiais não curam, mas a arte consegue preencher a alma das pessoas e trazer esse sentimento de paz, de alegria, mas, sobretudo, devolver o lado humano do ser. Devolve a dignidade?Exactamente. Então, a arte faz coisas que outras áreas tentam fazer — e não conseguem. Para além da participação das comunidades, esta formação contou ainda com outros intervenientes: a Polícia da República, técnicos dos Serviços Distritais de Educação e Saúde, Mulher, Género e Criança. Qual é o objectivo de envolver outros participantes nesta formação?O principal objectivo é termos a coerência da abordagem e da linguagem, porque criamos peças que falam, por exemplo, da exploração infantil, da violência baseada no género, que falam da protecção e que abordam a área da saúde mental. E nós, como grupo de teatro, reconhecemos que não somos completos em termos de conhecimento. As pessoas de outras instituições ajudam-nos a ter coerência na abordagem, na linguagem, mas também nos ajudam a não retrair as pessoas.Às vezes, como artistas, somos tentados a ver a parte do espectáculo da criação, mas eles ajudam-nos a olhar para a sensibilidade do ser humano e a saber como tratar, mesmo sendo artisticamente, de forma correcta, os assuntos que são profundos e mexem com a vida das pessoas. Então, essas pessoas servem muito para isso. Todavia, em relação à polícia, por exemplo, há um receio das comunidades - sobretudo deslocadas - de verem pessoas com fardamento da polícia e das Forças Armadas. Cria situações de trauma, de susto, e, quando eles são parte do processo de formação, fazemos exercícios em conjunto, abraçamo-nos, corremos juntos, interagimos, actuamos - e essa performance devolve um pouco o sentido de: "embora armado, é um ser humano, pensa e sente como eu". Devolve a confiança?Sim, devolve a confiança! Que balanço faz desta formação? Pensa que se deve repetir esta iniciativa numa sociedade que está tão polarizada? Falou aqui do conflito em Cabo Delgado, mas também tivemos episódios de violência no país, depois do resultado das eleições… Acredito que sim, porque o Teatro do Oprimido abre espaços para o diálogo, abre espaços para a interacção, abre espaços para reflectirmos e buscarmos respostas de forma conjunta e não separada. Infelizmente, o mundo está-se a encher de monólogos. O Teatro do Oprimido busca trazer o diálogo. O que falta na nossa sociedade actual é o diálogo. O que falta é reorganizarmos a nossa sociedade, repensarmos as coisas na perspectiva da paz e da alegria do outro também. Então, nós estamos a trabalhar, sem contrato, em várias províncias do país - não só para as situações do conflito armado, como em Cabo Delgado, Niassa e Nampula - mas também com grupos de mulheres vítimas de violência doméstica. Trabalhamos com grupos de pessoas vivendo com HIV/SIDA, que são discriminadas, que são maltratadas, que são levadas a níveis de vulnerabilidade inaceitáveis. Trabalhamos com todos os grupos de oprimidos para buscar a sua dignidade. Trabalhamos ainda com grupos em zonas que estão a viver o conflito de terras. Em Moçambique temos um grande problema ligado à indústria extractiva, mas também o da agricultura industrializada, como a ameaça da produção de eucaliptos, que está a movimentar comunidades inteiras para abrir machambas de monocultura, que vão criar problemas de alimentação nos próximos anos às comunidades. E usamos o teatro como uma ferramenta de luta dessas comunidades - pela sua dignidade, pelos seus direitos, mas, sobretudo, pelo respeito à vida. E também para criar pontes?Criar pontes, criar espaços de diálogo. É treinar comunidades em estratégias de diálogo e de enfrentamento dos vários tipos de opressores que temos no nosso dia-a-dia.

Milhares de pessoas encheram diariamente a cidade francesa de Aurillac durante o Festival Internacional de Teatro de Rua, que terminou este sábado. À margem do programa oficial com 19 companhias convidadas, foram 640 as “companhias de passagem” que apresentaram os seus espectáculos gratuitamente, o que constituiu um desafio financeiro para a maior parte delas. Nesta entrevista, vamos conhecer a experiência da companhia portuguesa A Nariguda, que actuou pela primeira vez em Aurillac. RFI: Como é que nos descrevem a peça que trouxeram ao Festival de Aurillac? Eva Ribeiro: “A Aparição é um espectáculo que pretende provocar o riso, mas também provocar emoções e provocar uma relação de grande cumplicidade com o público. É um espectáculo que aborda o tema da fé, das religiões, mas de uma forma muito absurda, e utiliza as linguagens do clown. Tem esta relação de grande cumplicidade com o público, mas também da comédia física e do humor absurdo. É um trabalho que foi dirigido pelo belga Tom Roos há seis anos e, desde então, já temos circulado por várias salas e festivais.” Incluindo no estrangeiro? Rafa Santos: “Sim, incluindo no estrangeiro. Aqui em França também.” Eva Ribeiro: “Estivemos em Grenoble em Maio, e o espectáculo já foi apresentado várias vezes em Espanha, em vários festivais, e também no Brasil, em festivais e mostras internacionais.” Como é que o público deste festival vos tratou? Como é que reagiu ao espectáculo? Eva Ribeiro: “Tivemos experiências diferentes. Nos três dias em que apresentámos, no primeiro dia, tivemos um público muito participativo, muito numeroso também, e nos outros dois dias foi um público mais tímido, talvez devido ao local que era um local um bocadinho ingrato. Nós trabalhamos com o silêncio e gostamos de trabalhar o incómodo que nasce desse silêncio. Talvez o espaço não tenha sido o mais feliz, mas tivemos muito bons retornos das pessoas que assistiram e isso foi muito positivo. Foi muito bom. Realmente é um espetáculo que quer abordar a fé e o amor, mas também o humor universal.” As pessoas riem imenso, muito mesmo com a personagem da Rafa… Rafa Santos: “As pessoas recebem das duas. Eu tenho um apontamento aqui, ela tem um apontamento ali e isso é que é uma dinâmica.” Eva Ribeiro: “Uma dinâmica clássica, é o que chamamos “o branco e o Augusto”, a autoridade e aquela que quebra a norma. Então, nesta dupla, nós decidimos explorar essas relações clássicas de palhaçaria, que vêm até do circo tradicional, mas trazendo primeiro para o universo feminino, o que é uma apropriação de gags clássicas e sketches clássicas do circo, e depois também para uma linguagem contemporânea. Mas baseia-se muito nessa relação de autoridade que eu represento, a seriedade, a norma, o social. E a personagem da Rafa representa o quebrar da norma, o extravasar, o ir mais longe. E, claro, o público adora isso e libertar-se com isso. Nós adoramos realmente esta dinâmica por causa desse efeito que produz, essa liberação também, porque nós precisamos de rir destas normas sociais em que vivemos.” Como é que correu? Financeiramente valeu a pena? Eva Ribeiro: “É muito complicado avaliar porque realmente é um festival que não oferece as condições a que nós estamos habituadas. Nós somos uma companhia profissional e, realmente, para nós é uma aposta. É vir aqui, mostrar o trabalho, e também na esperança de que esse retorno venha posteriormente, não é? Já nos aconteceu em outras ocasiões, mas realmente é uma pena que não sejam dadas um pouco melhores condições às companhias.” Que tipo de condições? Eva Ribeiro: “Condições básicas, alojamento, alimentação, pagamento de deslocações. Normalmente esse é o básico que a gente pede é não ter que pagar para trabalhar. E neste festival nós tivemos que pagar para trabalhar. E isso é um pouco um sinónimo de precariedade quando nós nos queremos afastar dessa condição. Mas infelizmente o festival não suporta esses custos nem tão pouco de cachê. Normalmente, estes festivais, pelo menos, conseguem assegurar estas condições básicas que é a alimentação, estadia e deslocação, e aqui não acontece isso. Dependemos muito do ‘chapéu'. O nosso espectáculo não é pensado para massas, não gere uma grande massa de pessoas e as pessoas também estão um pouco sobrecarregadas porque há muitas coisas para ver.” Rafa Santos: “A toda a hora, em todos os sítios, em todas as ruas, cantos e esquinas há coisas a acontecer, mesmo quando sobrepõem os espectáculos na mesma rua.” Eva Ribeiro: “Por isso é que a remuneração não é muito alta. Nós também programamos um festival em Lisboa, então eu vinha com esse espírito duplo, que é de ver coisas para também possivelmente programar e quero desfrutar do festival e queremos também apresentar o nosso trabalho.” Qual é o festival que programa em Lisboa? Conseguiu fazer contactos aqui? “O festival chama-se Mostra Gargalhadas na Lua, é organizado com A Nariguda e a Lua Cheia - Teatro para todos. É um festival que conta com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, Junta de Freguesia de Carnide e também da Direcção Geral das Artes. Portanto, é um festival onde nós conseguimos, de forma profissional, trazer as companhias. Organizamos workshops, conversas e várias actividades ligadas ao universo do clown e da comicidade, e também das artes de rua. Este festival foi muito bom para vermos algumas coisas, ficámos com alguns contactos e penso que algumas das companhias, um ou dois espectáculos que assistimos vamos poder vê-los em Lisboa. Não, até porque esse não é o objectivo. O objectivo é realmente criar uma mostra internacional para o público de Lisboa, para o público de Portugal e temos pessoas a vir de todos os lados do país para a mostra e até de outros países. Mas acolher bem as companhias, temos uma vintena de companhias todos os anos e tratamos aquelas companhias como família durante aquela semana em que acontece o festival.”

Esta quarta-feira, arranca a 38ª edição do Festival Internacional de Teatro de Rua de Aurillac, em França. Até sábado, a pequena cidade vai ser animada por cerca de 3.000 artistas e são esperados por volta de 140 mil espectadores. O programa oficial apresenta 19 companhias, mas também há imensas "companhias de passagem", incluindo duas portuguesas que participam nesta "grande festa das artes de rua". O programa oficial apresenta 19 companhias e, no âmbito da temporada cultural Brasil-França, um terço dos criadores são nomes brasileiros. Através da dança, Alice Ripoll, Clarice Lima, Marina Guzzo, Fábio Osório Monteiro, Renato Linhares, Vania Vaneau e a companhia ColetivA Ocupação vão contar histórias de resistências, lutas, insubmissão e irreverência. À semelhança do Festival de Avignon, as ruas do Festival de Aurillac também fervilham com as companhias à margem do programa oficial, as chamadas “Companhias de Passagem”. São 640 e são oriundas de todos os cantos de França, mas também do estrangeiro, incluindo de Portugal. É o caso da Seistopeia e A Nariguda que aqui vão apresentar o seu trabalho pela primeira vez. A Seistopeia leva dois espectáculos, “Irmãos Fumière” e “Soul Trio”, explica Vítor Rodrigues, um dos fundadores e actor da companhia. “É um festival grande. Nós temos muita vontade de internacionalizar mais a nossa companhia e então vamos mostrar um pouco do nosso trabalho. A ideia é também distribuir alguns panfletos, na esperança de conseguirmos outros contactos”, contou à RFI, dias antes do arranque do festival, o actor Vitor Rodrigues. “Irmãos Fumière” tem estreia mundial em Aurillac e é “um espectáculo inspirado no cinema mudo, nos filmes de Charles Chaplin e de Buster Keaton”. Desta vez, ao contrário do trabalho habitualmente mais centrado no “palhaço poético”, os actores desafiaram-se e escolheram um caminho diferente: o do teatro físico e cómico. “Soul Trio” é uma “performance itinerante” com “três personagens vindos dos anos 70 e música dessa época” e “o objectivo é pôr o público a dançar”, acrescenta Vítor Rodrigues. Outra companhia portuguesa a participar pela primeira vez no festival é A Nariguda para quem estar no evento é também um trampolim para a internacionalização, conta Eva Ribeiro, actriz e também fundadora da companhia de clown e artes de rua. “Para nós, representa realmente uma confirmação da nossa capacidade de internacionalizar as nossas peças. Levamos o espectáculo “As Testemunhas duo”, que já tem agora seis anos e já fez tournée em Espanha, Brasil e começamos agora, aos poucos, a chegar a França. Estivemos há pouco tempo em Grenoble, em Maio. Participar no Festival de Aurillac é uma grande celebração e uma grande festa das artes de rua e ficamos muito contentes de fazer parte desta celebração”, conta. “As Testemunhas duo - A Aparição” é uma peça de “comédia gestual e humor físico” que “trabalha o tema das religiões de um ponto de vista também da comicidade feminina” e de “humor absurdo e picante”. Ironicamente, o espectáculo sobe a palco dentro de uma igreja. “É um espectáculo de comédia gestual e humor físico. Nós tentamos trabalhar um humor universal que seja para todo o público. Neste caso, este espectáculo em específico trabalha o tema das religiões de um ponto de vista também da comicidade feminina: duas mulheres que, através dos seus corpos e do jogo de um humor absurdo, tentam trazer um bocadinho de humor picante que também faça de alguma maneira reflectir sobre os vários temas que a religião nos pode trazer”, explicou à RFI a actriz Eva Ribeiro, também dias antes do festival. O investimento é total já que são as “companhias de passagem” a autofinanciarem-se para se apresentarem no festival. Mas as duas companhias portuguesas admitem que vale a pena porque acreditam na possibilidade de criar contactos para chegarem a outros palcos internacionais. É este ambiente que vamos tentar acompanhar por estes dias nesta cidade francesa de 26 mil habitantes que todos os verões se torna num imenso anfiteatro.

A escritora cabo-verdiana Maria José Veiga lançou no mês de Julho, na cidade de Assomada, interior da ilha de Santiago, a sua mais recente obra literária, intitulada “Fidju de Rezistênsia”. O livro é uma ode à força feminina, à resistência quotidiana e presta homenagem à mãe da autora, símbolo maior de luta e resiliência. Em entrevista à RFI, a escritora cabo-verdiana Maria José Veiga explicou que título “Fidju de Rezistênsia” tem um significado profundamente pessoal: “simboliza a resistência da minha mãe, que criou cinco filhos sozinha, cinco filhos órfãos. Eu fiquei órfã [de pai] aos cinco anos de idade e o meu irmão tinha três meses quando o nosso pai faleceu.” A autora acrescenta ainda que esta “rezistênsia” também se reflecte nos seus percursos de vida que, apesar da pobreza extrema, alcançaram uma vida digna, com formação e trabalho. “Nós, como os cinco filhos, como filhos da resistência”. Grande parte do livro, cerca de 80%, está escrita em crioulo cabo-verdiano, recorrendo ao Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano, o ALUPEC. Trata-se de uma escolha profundamente simbólica. “O crioulo é o símbolo da minha própria resistência. É o símbolo da força”, sublinha Maria José Veiga. Com esta opção, a escritora procura também resgatar palavras em desuso, provérbios e expressões tradicionais, especialmente do crioulo de Santiago, actualmente muito influenciado pela língua portuguesa. O livro aborda uma multiplicidade de temáticas, que vão desde a figura materna, a mulher, as raízes, a emigração, a toxicodependência ao desamor entre os jovens. “Todas estas temáticas fazem parte da história de Cabo Verde”, refere a autora, que acrescenta que através dos poemas e das crónicas, muitas narradas na primeira pessoa, dá voz aos problemas sociais como o alcoolismo, assédio sexual no trabalho, secas e fomes. “Consegui transformar isto em poemas e crónicas que dão uma memória colectiva do próprio país”, remata. Lançado num ano em que se assinalam os 50 anos da independência de Cabo Verde, “Fidju de Rezistênsia” reflecte também sobre o papel da mulher na sociedade cabo-verdiana, sobre os avanços e os desafios que persistem na luta pela igualdade de género. Maria José Veiga reconhece os progressos feitos, mas alerta que “há muito para fazer”, sobretudo no que diz respeito ao acesso das mulheres a espaços de liderança e à concretização efectiva da equidade.

A peça "Reparations Baby!", escrita e encenada por Marco Mendonça, toca no tema das reparações históricas de Portugal aos países de língua portuguesa, passando pelo racismo e a discriminação dos afro-descendentes utilizando o humor, a frontalidade e a compaixão para fazer reflectir os espectadores. Em 2023, aquando a visita de Lula da Silva a Portugal que marcava então presença na cerimónia de celebração dos 49 anos do 25 de Abril, Marcelo Rebelo de Sousa falou pela primeira vez em reparações históricas e essas palavras despertaram no actor, dramaturgo e encenador moçambicano Marco Mendonça o interesse pelo tema em Portugal. Já na esfera política, nomeadamente após o Presidente português ter dito um ano mais tarde que Portugal devia pagar o que deve aos países africanos de língua portuguesa após séculos de escravidão e exploração, Marcelo Rebelo de Sousa foi apelidado de traidor da pátria. Estas considerações políticas aliadas a vários movimentos por antigas potências coloniais como a França ou a Alemanha de reparações culturais, nomeadamente através da devolução de obras de arte, levaram Marco Mendonça a escrever e encenar a peça “Reparations Baby!” para o Teatro Nacional D.Maria II, onde esta temática é transformada num jogo televisivo ao estilo de “Quem quer ser milionário” com um painel de concorrentes exclusivamente afro-descendentes "A ideia de ser um game show pareceu-me fazer bastante sentido, porque é um contexto em que tanto temos uma componente de entretenimento muito forte música, luzes, todo o aparato televisivo, mas ao mesmo tempo também temos uma componente muito forte que é informativa e das curiosidades dos factos, da pesquisa, da partilha de informação. Quis aliar essas duas coisas ao tema da reparação histórica, que era um tema que eu já queria trabalhar há muito tempo", afirmou o encenador. No palco três concorrentes afro-descendentes respondem a perguntas que vão desde a história da colonização, a figuras da escravidão a polémicas actuais como apropriação cultural nas redes sociais. Nos intervalos deste concurso, uma equipa de figuras brancas encoraja o desempenho dos concorrentes, monstrando como as boas intenções estão muitas vezes ligadas ao ganho pessoal. Ao longo do jogo, as personagens vão mostrando as suas convicções, mas também as suas experiências face ao racismo e ao preconceito. "Era muito importante para mim focar-me nas personagens e não torná-las bidimensionais no sentido de pôr as pessoas brancas a pensarem sobre este tema desta maneira e as pessoas negras pensam desta maneira sobre este tema? Não, isso seria pouco verosímil, porque efectivamente as pessoas têm relações muito diferentes com este tema e com tudo o que sejam discriminações nas vivências em Portugal", indicou Marco Mendonça. As reparações históricas das potências colonizadoras aos países africanos foi o mote este ano da reunião da União Africana em Fevereiro, na Etiópia, e tal como os chefes de Estado africanos, Marco Mendonça considera que o reconhecimento público dos séculos de exploração e ocupação é o primeiro passo para o restabelecimento da História dos dois lados do Equador. "Eu acho que a primeira reparação e mais importante reparação neste momento é interna. Eu acho que Portugal, enquanto país, enquanto povo, enquanto cultura, deve olhar para si próprio, ver-se ao espelho e perceber o quão absurdas são todas as desigualdades que se vivem no país e o quanto é preciso assumir uma responsabilidade de forma formal", concluiu Marco Mendonça. Esta peça esteve em cartaz no Teatro Variedades, em Lisboa, durante o mês de Julho tendo tipo apresentações noutras cidades portuguesas. Deverá agora continuar a ser apresentada em diferentes teatros, não havendo para já mais representações previstas.

O artista angolano, Binelde Hyrcan, nome incontornável da arte contemporânea angolana, regressa ao centro das atenções com um feito simbólico: a sua video-instalação Cambeck passou a integrar a coleção permanente do Brooklyn Museum, em Nova Iorque. A obra, criada em 2010, quando ainda era estudante, ganha agora nova vida e significado num dos maiores museus do mundo. Em entrevista, o artista revela-nos as raízes, os contextos e as metáforas por trás desta peça feita de areia, palavras e sonhos infantis. “Queria contar um pouco da minha história”, começa por explicar Binelde. “Na altura eram temas não muito positivos, porque muita gente onde eu vivia estava a ser enviada para uma outra zona que é o actual Zango.” Foi neste ambiente de deslocação e incerteza que surgiu Cambeck, uma instalação onde quatro crianças brincam na areia, desenhando com palavras e gestos os contornos de um futuro idealizado. “Peguei nessas crianças, porque são as mais reais. Acho que elas transmitem mesmo a realidade, também a pureza do contexto que estavam a viver”, descreve. O vídeo, apesar de ter mais de uma década, permanece de uma actualidade inquietante. “O tema abordado é a imigração. Muitos de nós africanos temos o sonho de atravessar o Mediterrâneo ou o Atlântico para ir para a América”, conta. “E hoje estamos a viver um parêntese muito triste, ao meu ver, com os imigrantes nos Estados Unidos que são reenviados para os seus países de origem, onde não têm quase nenhuma raiz”. Cambeck surge, assim, como uma denúncia subtil e poética, mas também como um espelho da realidade global. “Os miúdos sonham naquela América… E nós todos já conhecemos como é que está a ser a realidade para essas pessoas que têm sonho”. Ao filmar crianças a conduzirem sonhos numa viatura imaginária desenhada no chão, com areia, Binelde Hyrcan criou uma metáfora sobre desigualdade social. Questionado se a arte pode ser um veículo real de mobilidade ou apenas um espaço de evasão, responde: “A arte é como um colete à prova de bala. Hoje estamos a ver a guerra na Palestina, e pouca gente reage sobre essa situação, também por causa da falta de disseminação cultural. [...] Se amanhã alguém tentar bombardear o Rio de Janeiro, todo o mundo dirá: ‘Não, meu Deus, é o país do Neymar, do samba'. Mas se falarmos da Palestina… é só mais um morto”. Binelde Hyrcan defende a cultura como “colector verbal”, um escudo contra a indiferença e a violência. “Hoje, sei que há um ponto dentro daquele museu onde se diz Angola, onde se vão ver aqueles miúdos a brincarem com um potencial incrível. E vamos talvez descobrir que também nesse país há vida simplesmente”, sublinha. O artista, conhecido por obras provocadoras como As Galinhas Imperiais ou os célebres “tronos de excremento”, mistura o absurdo, a crítica e o humor como estratégias de resistência e esperança. “A ironia é a última coisa a morrer”, acrescentando que acredito "no povo africano, acredito na juventude africana. Lanço o apelo para que nos mantenhamos juntos e solidários, porque é a única forma que temos de fazer algo”. Fazer arte em Angola, admite, é um desafio: “Se não fosse difícil, não teria mesmo poesia. Nasci em tempo de guerra e hoje tenho um olhar diferente perante a sociedade, perante a vida. Vamos tentar tirar aquele lado positivo das derrotas que às vezes temos enquanto crianças.” Além do sucesso internacional com Cambeck , Binelde Hyrcan acaba de inaugurar em Luanda a sua escultura Yellow Dream, uma composição de bidões e balões amarelos que simboliza o sonho e a resistência. “Quando vemos balões no chão é porque a festa acabou. Mas os balões deveriam estar no ar. É como se dissesse: ainda há um problema a resolver. E o sonho continua”. Actualmente a preparar uma grande exposição no Palais des Papes, em Avingnon, para 2026, onde voltará a apresentar Cambeck , o artista angolano antecipa também o lançamento do seu livro sobre a caminhada épica que fez, a pé, entre Lisboa e Paris. “A cultura é uma plataforma onde as pessoas esquecem o mal”, acredita com convicção.

No Festival de Avignon, 32 artistas emergentes, entre eles, Alice Azevedo, Mai-Júli Machado e Romain Beltrão, reúnem-se sob direcção da coreógrafa francesa Mathilde Monnier para experimentar a arte de transmitir. A residência Transmission Impossible junta ao festival um laboratório de pensamento em movimento, onde os gestos, os silêncios e os corpos se tornam linguagem partilhada. Na 79ª do Festival de Avignon, há uma vivenda criativa onde, durante dez dias, 32 jovens artistas franceses e internacionais partilham uma pergunta: Como se transmite o efémero dos espectáculos vivos? A residência artística Transmission Impossible, dirigida por Mathilde Monnier, transforma-se num lugar de escuta e reflexão, onde os gestos, os idiomas e até o silêncio ganham outra forma. “É uma oportunidade muito grande para mim estar aqui, num espaço onde os projectos ainda procuram forma”, começa por dizer a coreógrafa e investigadora moçambicana Mai-Júli Machado, que vive em Paris. “Aqui é ainda mais interessante porque não são só bailarinos. Há actores, escritores… É muito rico. Muito interessante”, descreve. Esta residência, mais do que um espaço de produção, é um espaço de permissão: “Eu não vim com um plano ou um desejo. Só me permito viver e sentir. O que for para ser levado, será levado. O que não for, vai ficar”. Do outro lado, a actriz e encenadora portuguesa Alice Azevedo, partilha o mesmo entusiasmo: “Está a ser extraordinário. É a minha primeira vez em Avignon. Nunca tinha vindo nem à cidade nem ao festival. E estou surpreendida, há tanta dança! Sempre pensei nisto como um festival de teatro. Mas é muito mais do que isso”. Para Alice Azevedo, a residência é “caótica, mas num bom sentido. Muita partilha, muitos cruzamentos disciplinares, investigações… e uma pequena Lisboa também, porque há imensos portugueses do teatro". As rotinas da residência oscilam entre assistir a espectáculos, conversar com os artistas convidados e partilhar reflexões entre si. “É muito intenso,” diz Romain Beltrão, franco-brasileiro a viver em Lisboa e que trabalha em coreografia. “A gente partilha o tempo entre visionar espectáculos, conversar sobre eles, imaginar o que vamos apresentar. Mas para mim, o mais importante tem sido o encontro com outros artistas. Percebe-se logo que temos maneiras muito diferentes de trabalhar conforme o lugar de onde vimos”. Essa diferença geográfica e cultural atravessa as práticas. Romain Beltrão trabalha com o que chama de “coreografia expandida”. “Uso texto, multimédia… Para mim, a coreografia é um modo de pensar. Organizo o pensamento no espaço e no tempo”. Em Avignon, foi no teatro que encontrou os dispositivos que mais o entusiasmaram: “La Distance" de Tiago Rodrigues, com o palco giratório onde os actores não se vêem, mas o público sim, foi muito justo para falar de distância. E Affaires familiales de Emilie Rousset, com actores a recriar conversas com advogados sobre temas como violência doméstica, foi um dos melhores momentos do festival”, descreve. A residência propôs uma apresentação pública nos dias 13 e 14 de Julho. O que se mostra, no entanto, não é um espectáculo finalizado, mas o reflexo da experiência vivida. “A ideia é transformar aquilo que vimos ou sentimos numa proposta performativa,” explica Alice Azevedo. “Quero reflectir sobre mecanismos invisíveis de exclusão. Porque este festival é, por vezes, muito excludente. Há espectáculos sem legendas, falta de sinalização… É como se o público tivesse de saber já tudo”, sublinha. A atenção aos corpos invisíveis, aos gestos omitidos, às presenças silenciadas, atravessa também o trabalho de Mai-Júli Machado. “Eu vi um espectáculo chamado Laaroussa Quartet, sobre um hospital de mulheres. Foi muito forte para mim. Eu tenho um solo que fala sobre mulheres e o novo trabalho vai nessa linha. Aqueles movimentos do quotidiano transformaram-se em algo muito bonito. Quero trabalhar a partir disso”. Quando lhe perguntam se a transmissão é mesmo impossível, responde: “Para mim, foi logo. Captei e já me senti inspirada. Então é possível, pode levar tempo, como também não”, afirma. No centro deste laboratório está o corpo. Mas não apenas o corpo técnico, treinado, performativo: “Temos mulheres, homens, pessoas trans, homossexuais… e é interessante ver como tudo se transforma,” diz Mai-Júli Machado. “Criou-se em mim uma curiosidade nova de trabalhar com outros tipos de corpo, outras vivências”, completa. Romain Beltrão reforça essa ideia de transformação no encontro: “As temáticas que encontro em Lisboa são diferentes das que encontro aqui em França ou deferente das de outros participantes. Mas é esse contraste que alimenta”. O mesmo diz Alice Azevedo: “Trouxe sobretudo vontade de conhecer. E uma enorme curiosidade pela programação do Tiago Rodrigues. Ele conseguiu tirar o Teatro Nacional de Portugal do museu”. Ao longo dos dias, o que se partilha já não são apenas referências ou gostos artísticos, mas uma forma de estar. “Estamos a ver, a conversar e, a partir daí, criamos. Mas o importante são as relações,” diz Mai-Júli Machado. “As relações com as pessoas têm sido incríveis”, acrescenta. E talvez seja mesmo essa a única transmissão possível, a que se faz quando se escuta o outro, antes de querer ensinar. Depois da apresentação dos projectos, não é um fim. É um ponto de passagem: “Não é uma performance acabada,” diz Romain Beltrão. “É uma experiência. O que trazemos são práticas que nascem do que vimos, do que nos tocou. Experimentações”, conclui.

No Festival de Avignon, Jonas & Lander apresentam Coin Operated, uma performance-instalação onde o público acciona o espetáculo com uma moeda. Entre o absurdo e a crítica feroz, o duo explora a coisificação do corpo e a exploração animal, fundindo o gesto com a obediência paga. Um espectáculo que reflecte sobre poder, responsabilidade e a mecânica do entretenimento moderno. Jonas Lopes e Lander Patrick aparecem montados em dois cavalos: imóveis, cómicos e perturbadores. Jonas e Lander, dupla portuguesa de performance contemporânea, apresentam Coin Operated no Festival de Avignon, sob indicação da artista cúmplice deste ano, a coreógrafa Marlène Monteiro Freitas. O palco é instalação e o público é operador. Com um gesto, uma moeda e um clique, tudo começa. “Esta ideia nasceu de um convite da BoCA Bienal, pelo John Romão, para o Museu dos Coches”, conta Jonas Lopes. “Estávamos a ver um episódio de Family Guy e o bebé compra uma série de cavalinhos operados a moeda. Aquilo ficou connosco”. E o cavalo, ausente do museu onde deveria reinar, impôs-se. O espectáculo articula-se a partir de um dispositivo simples: dois cavalos mecânicos, como os que povoam esplanadas e centros comerciais. Só funcionam com moedas. Só funcionam quando o público decide pagar, mas o que parece um jogo inocente revela-se uma crítica à exploração, não só do animal, mas também da acção performativa, do corpo em cena, da própria lógica do entretenimento. “O animal aqui é coisificado. Vira objecto. Está ao serviço do homem que está em cima dele”, observa Lander Patrick. “É uma imagem de submissão que se vai revelando ao longo do espectáculo”, acrescenta. A mecânica da performance é tão infantil quanto brutal: o público é confrontado com o seu papel de orquestrador. “Decidimos criar esta relação directa. O público tem que pôr uma moeda para que algo aconteça. Só quando os dois cavalos estão a funcionar é que o quadro se completa”, explicam. A instalação, que poderia ser apenas nostálgica, torna-se uma alegoria da domesticação, não só do animal, mas da própria arte. Nem tudo se compra e, no entanto, tudo ali parece comprado: o gesto, a música, o movimento. A moeda não compra só o espectáculo, compra também o desconforto. Ontem, “uma senhora com mobilidade reduzida levantava-se para ir pôr a moeda e dois espectadores correram antes dela. Há sempre esta disputa”, comenta Lander. Há também o silêncio: quando ninguém se levanta, nada acontece. E nesse nada, revela-se tudo. Jonas e Lander trabalham juntos desde 2013. A cumplicidade é coreográfica, estética, musical, quase telepática. “É um pingue-pongue intenso. As ideias são costuradas pelos dois. Um foca-se mais na música, outro na estética e tudo se mistura”. A música, aliás, é uma assinatura: “Sou cantor de fado, o Lander é pianista e DJ. A música é sempre uma presença fortíssima nas nossas peças”, explica Jonas. Em Coin Operated, há percussão corporal, sapateado, ecos de fado e samba, sons de pertença e de resistência. A encenação é crua, quase absurda, mas não gratuita. “Há uma reflexão inesperada sobre a relação entre o homem e o animal, entre o espectador e o espectáculo, entre o gesto e a moeda”, sublinham. E também sobre o tempo. Cada moeda acciona dois minutos de movimento. Se forem inseridas em descompasso, a cena fragmenta-se. Se forem simultâneas, surge uma harmonia quase mágica: “Estamos sempre a jogar nessa corda bamba de imprevisibilidade". Montados sobre cavalos de plástico, imóveis até à primeira moeda, Jonas e Lander não nos oferecem respostas, fazem-nos a pergunta essencial: e se o que nos move fosse, afinal, apenas uma ficha de metal?

A bailarina moçambicana, Mariana Tembe sobe ao palco no Pátio de Honra do Palácio dos Papas, no Festival de Avignon, no espectáculo NÔT, de Marlène Monteiro Freitas. Um corpo em libertação, que dança a coragem, a sobrevivência e a luta de muitas mulheres. Uma presença forte num espetáculo onde o gesto fala mais alto que as palavras. Na sua 78.ª edição, o Festival de Avignon, abriu com um espetáculo sem palavras, mas com todos os sentidos expostos. NÔT é a mais recente criação da coreógrafa cabo-verdiana Marlène Monteiro Freitas, foi apresentado no Palácio dos Papas, cenário privilegiado onde a dança se transforma em ritual. Em palco, oito intérpretes contam, com o corpo, uma versão desordenada e hipnótica das Mil e Uma Noites. Entre eles, destaca-se uma figura pela força e contenção do seu gesto: a bailarina moçambicana Mariana Tembe. Com um solo que ocupa o espaço como um murmúrio que cresce até se tornar clamor, a bailarina oferece ao público francês, e ao olhar atento da crítica internacional, uma performance de grande densidade física e emocional. “O palco é o lugar onde ninguém me controla. Onde me liberto, onde me permito”, diz a intérprete. Durante 1h45 de espetáculo, o seu corpo é instrumento, voz, resistência. Nascida e formada em Moçambique, Mariana Tembe é intérprete de dança contemporânea, com um percurso construído entre África e Europa. O seu encontro com Marlène Monteiro Freitas deu-se em 2019, quando foi convidada a integrar o universo da coreógrafa. Mas a adaptação não foi imediata. “Foi muito estranho para mim... Eu venho de uma dança mais centrada no movimento técnico. Entrar no universo da Marlène foi um choque. Não percebia como me encaixar naquele mundo”, recorda. Durante meses, o corpo resistiu, “levou algum tempo para o meu corpo se alinhar ao tipo de movimento que ela exige”. Esse processo de incorporação tornou-se, com o tempo, uma fusão. “Hoje, percebo que essa linguagem faz mais sentido do que a anterior. Quando estou sozinha no estúdio, o meu corpo reage naturalmente de forma diferente. Encarnei essa linguagem”, conta. A construção desse vocabulário físico não se faz de fórmulas. Exige disponibilidade total. “É uma presença física, psicológica e emocional. Junta-se tudo e acaba por blindar o corpo. O que se vê em palco é resultado desse processo”, explica a bailarina. Um solo de libertação e sobrevivência O solo de Mariana Tembe em NÔT surge no momento central do espetáculo. Perante uma plateia de mais de 2.000 espectadores, a bailarina, amputada de ambas as pernas, ocupa o centro do espaço do Palácio dos Papas num crescendo de energia e vulnerabilidade. Com mobilidade reduzida, o seu corpo reinventa a dança e na plateia, o público assiste, em silêncio, a um corpo que parece não ter limites. “Sinto-me fora de controlo, sim. Mas de uma forma boa. Eu começo a dar desde o início e vou até ao fim. Não penso, deixo-me ir. E partilho o que tenho para partilhar com o público”, descreve. Essa partilha é tudo menos abstrata: “O solo trata de uma história muito marcante, uma história de sobrevivência e de luta. Uma jovem que arrisca a vida para salvar outras. Depois dessa sua acção, muitas mulheres sentiram-se livres”. Mariana Tembe reconhece o eco desta narrativa na sua própria trajectória e na de muitas outras mulheres. “Nós, mulheres, lutamos de formas diferentes. Mesmo quando o pior está diante de nós, seguimos, furamos paredes, quebramos barreiras sem pensar duas vezes”, sublinha. Depois da estreia, o público partilhou ecos da sua presença. “As pessoas reconhecem-me na rua. Dizem: ‘Ah, tu estiveste em NÔT! Aquele solo foi incrível!' Falam do momento em que levanto os braços, do momento em que canto”, conta feliz. Apesar da humildade, Mariana Tembe reconhece a força do que fez: "É muito forte para mim também. Porque esse solo, além de tudo, é libertação. É coragem. É entrega”. O peso de estar em Avignon Para qualquer intérprete, pisar o Palácio dos Papas é uma experiência de consagração. “Sinto que faço parte de um movimento de revolução. Esta já é a terceira edição consecutiva em que o festival é aberto por uma mulher. E não é qualquer festival. É o Festival de Avignon”, recorda. O festival de Avignon, fundado em 1947, é um dos maiores e mais respeitados festivais de teatro e artes performativas do mundo. Nos últimos anos, tem dado sinais de abertura a novas geografias e linguagens, mas a presença de artistas africanos, sobretudo mulheres, continua a ser excepção. A abertura com NÔT representa, nesse contexto, uma afirmação estética e política. A presença de Mariana Tembe em palco é arrebatadora não só pelo rigor físico, mas pelo que carrega de simbólico. Num espaço historicamente ocupado pelo poder eclesiástico e patriarcal, o corpo de uma mulher, africana, é agora centro e voz. Um gesto que Mariana Tembe não impõe, mas que ocupa. Quando lhe pedimos que resuma esta experiência numa palavra, responde sem rodeios: "Uau" e, depois de uma curta pausa, como quem precisa de mais palavras, diz: “É desafiador. Revolucionário.”

Na Galeria de Botânica do Jardim das Plantas, em Paris, a artista francesa Christine Enrègle presta homenagem a três árvores notáveis com desenhos a carvão que captam o tempo vegetal. Numa residência de dez meses, entre contemplação e criação, a artista revela a memória e a transformação das árvores centenárias. Uma viagem entre arte, ciência e ecologia, onde o gesto artístico dialoga com o ritmo lento da natureza. Na Galeria de Botânica do Jardim das Plantas, em Paris, um espaço fechado ao público desde 2020 e reservado ao trabalho silencioso de investigadores, habita, há quase um ano, uma artista de escuta atenta e traço paciente. Christine Enrègle instalou-se neste espaço para acompanhar, observar e, sobretudo, desenhar três árvores centenárias que testemunharam mais de dois séculos da história humana: um cedro do Líbano, um plátano oriental e um pistácio verdadeiro. Plantadas entre os séculos XVII e XVIII, estas árvores não são apenas testemunhas botânicas: são presença, são monumento, são tempo em forma vegetal. “Cada uma destas árvores tem uma arquitectura singular. Escolhi-as pelas suas diferenças formais, mas também pela vontade de aprofundar a relação com cada uma ao longo de várias estações. Gosto de trabalhar demoradamente sobre cada uma delas”, explica a artista, rodeada de desenhos de grandes dimensões, todos executados a carvão sobre tela de algodão. Iniciada em Setembro de 2024, a residência de Christine Enrègle prolongou-se até Junho de 2025. “O tempo da árvore não é o nosso”, explica. “Ela cresce, muda, mas tão lentamente que os nossos olhos não conseguem perceber. É por isso que as trabalho em séries: para dar conta desse movimento perpétuo e quase invisível", acrescenta. Cada série corresponde a uma estação do ano. No outono, o cedro do Líbano impôs-se com a sua verticalidade imponente. “É o mais antigo da sua espécie em França, trazido de Londres por Bernard de Jussieu em 1734. Impressiona pela altura e pela força silenciosa. Trabalhar com ele foi como estudar uma coluna viva do tempo”, explica. No inverno, Christine Enrègle voltou-se para as raízes do plátano de Buffon. “A luz era fraca, os dias curtos, o frio constante… tudo isso fazia eco com o subterrâneo, com a escuridão onde vivem as raízes. Foi uma fase de recolhimento, de escavação interior também”, detalha. Finalmente, na primavera, o pistácio verdadeiro permitiu-lhe fazer uma síntese visual das duas árvores anteriores: “Os seus ramos lembram raízes, mas têm também uma direcção ascendente. Há nele algo de reconciliação entre o que cresce para cima e o que se estende para baixo”. O suporte técnico das obras é tão essencial como o tema. Christine Enrègle desenha com carvão, matéria de madeira calcinada, sobre telas de algodão tradicionalmente usadas em pintura. “O carvão é madeira que morreu. Usá-lo para representar uma árvore viva é, para mim, um gesto simbólico de regeneração”, conta. Antes de aplicar o carvão, Christine Enrègle humedece a tela com pincéis: “A água é fundamental. Ela permite que o carvão se fixe melhor. Trabalho por camadas, e há momentos em que termino o desenho a seco. As sombras surgem pouco a pouco, como a própria árvore. É um trabalho de longa duração, que imita o ritmo da vida vegetal”. Na fase preparatória, a artista passa horas ao lado das árvores, observando, fotografando, escutando. “Tiro centenas de fotografias, mas mais do que isso: contemplo. Cada desenho nasce de um encontro. Primeiro sinto a presença da árvore. Depois, observo a sua estrutura, tento compreender as articulações do tronco, dos ramos… há uma relação quase anatómica com o corpo humano”, conta. Além do impacto visual e da coerência plástica, há uma dimensão histórica que atravessa toda a residência. O cedro do Líbano, plantado em 1734, carrega consigo uma lenda: durante o transporte desde Londres, o vaso onde era cultivado partiu-se, e Bernard de Jussieu foi forçado a carregá-lo no chapéu até Paris. O plátano oriental foi plantado em 1785 por Buffon, então intendente do Jardim do Rei. Já o pistácio provém de sementes trazidas do Levante por Joseph Pitton de Tournefort em 1702, e foi a partir do seu estudo que se descobriu, pela primeira vez, a função do pólen na reprodução das plantas, um escândalo científico à época. “Estas árvores são extraordinárias, não apenas pela idade ou pela forma, mas por tudo o que representam”, sublinha Christine Enrègle acrescentando que “são testemunhas de séculos de história. E, ao lado delas, sentimos a nossa pequenez: física, temporal, talvez até existencial”. O trabalho de Christiane Enrègle não se esgota na contemplação estética. Há nele uma preocupação evidente com a ecologia e com o destino do planeta. “Hoje, as árvores enfrentam ameaças novas. Há menos água, o clima mudou. Muitas morrem mais cedo do que deveriam. A arte pode alertar, sim, mas sobretudo pode propor outra maneira de olhar: mais atenta, mais respeitosa”, acredita. A artista evoca Franz Krajcberg, com quem trabalhou no Brasil em 2002, como uma influência determinante: “Ele fazia arte com madeira queimada da Amazónia. Denunciava, com grande força poética, a destruição da floresta. Partilho da sua urgência: a vida deve continuar, qualquer que seja a sua forma”. Os desenhos de Christine Enrègle ainda não têm casa definitiva. A galeria de Botânica, onde nasceram, está fechada ao público. Mas no âmbito da Fête de la Science, a realizar-se nos dias 11 e 12 de Outubro de 2025, o espaço vai excepcionalmente estar aberto para mostrar uma selecção de obras e dar a conhecer o trabalho da artista.“É um privilégio trabalhar aqui. Estamos rodeados de cientistas, cada um concentrado na sua pesquisa. Há um silêncio produtivo, uma energia de concentração que muito me ajudou. Trabalhei sozinha, sim, mas nunca em solidão”, descreve. Christine Enrègle espera apresentar os seus desenhos noutras instituições fora do museu, dado o volume da produção, mais de sessenta obras, e o desejo de partilhar com um público mais vasto esta experiência de comunhão entre arte, ciência e natureza.

O escritor guineense radicado em Paris, João Into Cabi, retrata no seu último livro "Minino de Criasson" a sua infância difícil na Guiné-Bissau e o papel fundamental das mães na educação. Com uma escrita marcada pela memória, o autor defende que a literatura e a educação são caminhos para o desenvolvimento da Guiné-Bissau. Da infância na aldeia de Gam-Jandim, no norte da Guiné-Bissau, ao autor, João Into Cabi partilha no seu mais recente livro,"Minino de Criasson", também publicado em francês sob o título "Garçon Poli", um testemunho de resiliência, identidade e memória cultural. A obra é uma homenagem ao povo guineense, às suas mães, e à infância marcada por escassez, mas também por dignidade. “Escrevi o livro para partilhar bons exemplos, aquela educação que a mulher guineense dá ao seu filho, mesmo com fome, sem nunca deixar de dar uma boa educação”, descreve o autor. O universo narrativo de João Cabi é moldado pelas suas vivências. Nasceu numa aldeia sem electricidade, onde a lua era a única claridade e os brinquedos eram construídos a partir de nada. “As tampas de garrafas de cerveja serviam de rodas, e uma lata de sardinha com uma corda era o meu carro de brincar”, lembra. Esta infância, sem conforto material mas com ensinamentos éticos, serve de pano de fundo ao livro ,"Minino de Criasson": “A minha mãe fazia-me compreender que com o pouco que tínhamos era possível viver. Isso é que me formou como homem. Isso é que me formou como escritor”. A par da literatura, João Cabi construiu uma carreira como professor e formador de professores. Para ele, a educação é uma responsabilidade cívica e conta-nos que "ser professor foi um sonho desde cedo. Sempre quis contribuir para o meu país, como fizeram aqueles que nos deram a liberdade para sorrir e brincar livres”. A escrita de João Cabi está enraizada na tradição oral guineense, mas também aponta a necessidade de repensar o presente. O autor não hesita em comentar a situação política da Guiné-Bissau: “É triste. Nem parece o país de Amílcar Cabral. Se os guineenses não trabalham para afirmar o suor de Cabral e seus camaradas, então Cabral morreu”, defende. O escritor acredita que a literatura pode ser um instrumento de desenvolvimento. “A nossa cultura é composta por vários grupos étnicos e é uma riqueza. Se soubermos adaptá-la à linguagem do homem letrado, pode contribuir para transformar a Guiné-Bissau", concluiu.

O CRAC Occitanie, em Sète, França, acolhe até ao dia 31 de Agosto, a exposição les inégalités constantes des jours de Leonor*, da artista portuguesa Leonor Antunes. Trata-se de uma exposição desenvolvida a partir da mostra da desigualdade constante dos dias de Leonor*, apresentada no Centro de Arte Moderna Gulbenkian (CAM), em Lisboa, entre Setembro de 2024 e Fevereiro de 2025. Concebida e produzida pelo CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, a mostra conta com curadoria de Leonor Antunes, Marie Cozette (directora do CRAC Occitanie - Centro Regional de Arte Contemporânea) e Rita Fabiana, esta última responsável pela curadoria da versão portuguesa. Distribuída por seis salas no rés-do-chão do CRAC, a exposição reafirma o percurso de mais de 25 anos da artista lisboeta, conhecida pelas esculturas suspensas que dialogam com a arquitectura e a história dos espaços onde se inserem. No CRAC, o público é convidado a circular livremente entre os trabalhos de Leonor Antunes, pisando um chão que é ele mesmo também obra da artista. As peças tomam forma no espaço. E aqui tudo foi adaptado às características do edifício: a ausência de janelas, as divisões, o chão, que reaproveitei da exposição de Lisboa. Este chão – feito de cortiça, latão e linóleo – é um dos elementos que liga as diferentes salas da exposição. Outro elemento é a corda de cânhamo que percorre todos os espaços, presa no tecto e suportando as peças: “Cada sala tem o seu novelo, reciclado de outras exposições. Esta linha vai-se desenrolando e cria uma malha onde tudo se liga.” O título da exposição parte de um desenho de Ana Hatherly, artista, escritora e cineasta portuguesa, realizado em 1972 — ano de nascimento de Leonor Antunes — e onde surge o nome “Leonor”. Os títulos das obras de Leonor Antunes são quase sempre citações ou nomes que carregam ecos de histórias esquecidas. A artista interessa-se pela forma como a história da arte, do design e da arquitectura tem deixado figuras femininas na sombra. Um desses casos é o de Sadie Speight, arquitecta e designer modernista britânica, que colaborou com o arquitecto Leslie Martin na concepção do edifício do CAM, mas cujo nome raramente é mencionado: “Ela teve um papel fundamental no projecto, mas nunca teve o reconhecimento que merecia.” Essa aproximação entre obras e nomes pouco conhecidos é parte de um trabalho de investigação contínua da artista, que dedica “metade do tempo passado nessa pesquisa, nessa busca incessante” por figuras femininas que ficaram à margem da história da arte. Leonor Antunes não procura vitimizar essas mulheres, mas “situar o trabalho destas pessoas”. Não é uma obsessão, mas um trabalho de situar estas figuras no tempo. Nomeá-las é uma forma de não deixar que desapareçam. A história da arte que nos ensinaram é patriarcal, masculina. Mas há muitas outras histórias por contar. A exposição les inégalités constantes des jours de Leonor*, de Leonor Antunes, pode ser vista no CRAC Occitanie, em Sète, França, até ao dia 31 de Agosto. A mostra conta com curadoria de Leonor Antunes, Marie Cozette e Rita Fabiana.

"Nuvem Negra - O drama do 27 de Maio de 1977" é o livro onde o advogado e professor universitário Miguel Francisco, mais conhecido como “Michel”, relata, na primeira pessoa, os três anos de pesadelo em que esteve preso. Michel testemunha as torturas, fuzilamentos, trabalhos forçados, as condições mais desumanas a que foram sujeitos aqueles que em Angola foram acusados de colaborarem com os “fraccionistas” (Nito Alves e José Van-Dúnem). "Nuvem Negra - O drama do 27 de Maio de 1977" é o livro onde o advogado e professor universitário Miguel Francisco, mais conhecido como “Michel”, relata, na primeira pessoa, os três anos de pesadelo em que esteve preso e viveu as condições mais desumanas a que foram sujeitos aqueles que em Angola foram acusados de colaborarem com os “fraccionistas” (Nito Alves e José Van-Dúnem). Michel, que em 1977 era militar do MPLA, fez parte dos milhares de prisioneiros, condenados sem julgamento, que foram enviados para o “campo de concentração”, “campo da morte”, o campo de Calunda. O livro "Nuvem Negra - O drama do 27 de Maio de 1977" foi recentemente reeditado em Portugal pela Perfil Criativo. Em entrevista à RFI, Michel, que considera que a reconciliação entre angolanos ainda está por fazer, começa por lembrar o choque que teve ao chegar ao campo. Os amigos de Luanda, que pensava que estariam mortos, estavam ali, vivos, mas o aspecto de farrapos humanos, doentes, cadavéricos, com lêndeas e cabelo a cair, eram marcas das condições desumanas do campo da morte. Michel: Quando eu vi, o Manél está vivo! Eu pensava que o gajo estava já morto, afinal ele está vivo. Mas ele estava em mau estado, com lêndeas, anémico, muito magro. Ele disse-me: "Vocês estão aqui e recebemos ordens. Nós não podemos comunicar com vocês." A segurança lá, o DISA. Então, o campo é novo, não tem condições nenhumas, meteram-nos aqui como se fossemos farrapos. Então, começámos mesmo a dormir ao relento. Isto estou a resumir, no livro está tudo. Veio esse primeiro grupo no dia 26 de agosto. Depois veio o segundo no dia 30 ou 31. E depois veio... depois veio o último grupo no dia 3. Este último grupo, dia 3, é que fez o número para eles realizarem o comício satânico para fazerem um fuzilamento em hasta pública, com a população lá, assistindo. Terrível, nunca vi uma coisa assim. Nós fomos obrigados a assistir ao fuzilamento de dois rapazes. Um deles até chamava-se António Ambrige. Jovem, só 18 anos. Estou a ver como se fosse agora. E depois tiraram mais um miúdo. No dia antes nós fomos à Tonga, inculparam-lhe que ele ia fugir. Mas aquilo era uma farsa. Inventaram aquilo. Eles já tinham planificado o fuzilamento para incutir o medo no grosso de toda a malta que estava ali no campo. É uma estratégia que eles tinam montado. De tal forma que nós assistimos, horrorizados. Para nós pensarmos que não vamos sair daqui vivos. No comício, esteve presente o administrador comunal daquela região. Um gajo muito tribalista, o gajo que mais incitava ao ódio ali, naquele comício. E as populações (vieram), pediram a toda a população dos bairros (para vir ver). Estavam ali, concentrados. Todo o mundo assistiu. Tanto mais que naquele fuzilamento, a população também não embalou. Era visível no rosto dos populares a revolta e a reprovação do que eles estavam a assistir. Muitos até não quiseram assistir. Uns até choravam. Por toda essa peripécia que a gente viveu, é que me levou a escrever o livro. Eu disse logo. Por todo este clima de terror que nós estamos aqui a viver. Nunca me passou pela cabeça que o MPLA fosse capaz de criar um campo desta dimensão, nem a PIDE na época colonial. Aquilo era terror autêntico. Nós chegámos lá no dia 26 e tiveram que nos evacuar no dia 17 de outubro. Se continuasse mais tempo não sobraria ninguém. Porque depois surgiram muitas doenças. Por quê? Porque chovia muito. Não havia casas suficientes. Alimentação não havia. Trabalhos forçados, torturas, pancadarias, fuzilamentos. Olha, eu vou só lhe dizer um caso que aconteceu. No dia em que eu fiz 22 anos, no dia 26 de setembro, eu não fui à Tonga. Tonga é lá a roça onde se ia para fazer trabalhos forçados. Eu não fui. Simulei qualquer coisa e fiquei mesmo lá, no campo. Até havia mais benefício em ir à Tonga, porque lá tem água. No campo, nem água tinha. A água era de um tanque. Você nem água tinha para beber. A situação era tão grave no campo que você nem água tinha. Portanto, era melhor ir para a tonga,porque lá tem os rios. Tomas um banho, bebes água à vontade. E quando chegas (ao campo) tens o papo cheio, já não tem necessidade de beber água. Então, eu não fui mesmo, disse não vou. Então, fui à caserna de um indivíduo chamado Jerónimo. Ainda está vivo. E eu disse: "Oh, Jerônimo, eu, hoje, fiz 22 anos. Aí o gajo disse assim: "Epá, você fez 22 anos! Hoje tens que te aventurar e ir lá na bicha, para ver se comes qualquer coisa." Pronto, a bicha (a fila que se formava para receber uma ração) era terrível. Não se conseguia receber comida, porque a cozinha era única e o número de prisioneiros era muito. Aquilo era uma luta tão grande para conseguir uma migalha de comida que nem todos recebiam. Só os mais fortes é que conseguiam. Eu não conseguia mesmo, não conseguia. Por isso eu vim de lá (do campo) com mazelas. Cheguei a ficar quatro dias sem comer mesmo nada. Então, o que é que eu fazia? Recolhia as escamas de peixe que estavam no chão junto da cozinha. Depois acendia um fogareiro numa lata e tomava aquele molho com sal para mitigar a fome. Mas nesse dia, esse meu amigo Jerónimo disse, "Epá, tens que ir à bicha. Vai! faz alguma coisa! Já não vais fazer mais outro aniversário aqui. Porque aqui nós estamos todos condenados à morte. Então, nesse dia eu tentei ir à bicha. Não é que, por meu azar, e isso está tudo em livro, não é que, por meu azar, nesse dia, também o próprio chefe do campo decidiu ir à bicha para acompanhar o comportamento (dos prisoneiros) e ver como estava a ser distribuída a refeição. Eu estava naquela confusão, para ver se conseguia festejar o aniversário pelo menos comendo alguma coisa. E aquele gajo, de um momento para o outro, disse: "mas que brincadeira é essa? Vocês estão-me enervando. Eu mato já um gajo!" Eu até pensei que ele estivesse a intimidar para que a gente se organizasse melhor. O gajo saca da pistola... Epá, eu nunca tinha visto uma coisa assim. Saca da pistola... Epá, prime o gatilho (com a arma) na testa de um gajo... Epá! De um gajo aleatoriamente. Pumm! Epá, antes dele fazer esse disparo, eu vi o gajo. Eu fiquei com medo. Eu vi o gajo e saí da bicha. Logo que o gajo faz o tiro, Epá, eu... O sangue a jorrar, a bicha se desfez toda, … todo o mundo disperso. Fui para a caserna. Então, disse logo: Epá, isto aqui é mau sinal. Então hoje mesmo que eu faço o aniversário e me acontece uma coisa dessa. Então, é porque já não vou sobreviver. Mas jurei comigo mesmo, se algum dia eu sobreviver, eu vou escrever um livro para relatar todas essas situações que eu estou a viver. É essa a razão que me levou a escrever o livro. RFI: Sobre este drama do 27 de maio de 1977, o Michel já escreveu outros livros, estou-me a lembrar do livro O Racismo como Cerne da Tragédia de 27 de Maio de 1977. Este é um relato de todos os factos que eu vivi, senti na carne e na alma, o que me levou a escrever o livro. Mas, como cidadão que eu sou, com alguma formação que eu tenho, quis ir ao fundo do que realmente esteve na base deste processo. Contrariamente ao que muita gente pensa, é um livro polémico, porque são ideias minhas. Eu fiz uma incursão, fiz uma investigação e fiz uma reflexão. Porquê aquela sangria toda? Tem matérias muito complexas, que tem a ver com a realidade própria do meu país, cujo cerne cai exactamente no racismo. Por isso eu escrevi O Racismo como Cerne da Tragédia de 27 de Maio. Agora, as pessoas lêem. Podem concordar com o que está lá ou não concordar. É o que eu fiz. Esta é uma reflexão pessoal, a minha análise, a minha opinião sobre o que esteve na base do 27,com a qual as pessoas não são obrigadas a concordar. É uma questão de liberdade. Eu penso que o que esteve na base daquela tragédia é aquilo que está no livro que eu escrevi. Agora as pessoas podem concordar. O que o faz ter a opinião de que terá sido o racismo? Ah! aí está o problema! Porque é muito difícil dizê-lo, mas é o que aconteceu. Porque os factos são factos. Quem dirigiu a repressão em Angola foram mestiços. Foram maioritariamente mestiços. São mestiços que planificaram isso. Para mim, são mestiços. E quem viveu em Angola sabe a realidade, sabe que é isso que se passou. Agora, usaram o Presidente Neto, como escudo. Instrumentalizaram o Presidente Neto. Agora, se ele se deu conta, isso é um problema dele. Mas penso que ele deu-se conta. Por quê? Porque eu tive um encontro com a dona Maria Eugénia, viúva do Presidente Neto. Tive uma reunião com ela em 2011, a pedido dela. Esta reunião foi intermediada pelo antigo primeiro-ministro Marcolino Mouco. Um encontro muito frutífero. Ela foi com o meu livro, a primeira versão. Foi com o meu livro para me fazer perguntas. Fez uma série de perguntas e eu respondi. E ela, no fim, diz assim, "coitadinho, o homenzinho, fizeram tudo sem ele saber e o homem sofreu até morrer". No encontro que ela teve comigo, estava ela, esteve um indivíduo chamado Amarildo Vieira Dias e estava a filha, a doutora Irene Neto. Se elas ouvirem, podem confirmar, em 2011. Eu tenho uma grande admiração pelo Presidente Neto, mas não posso perdoar o que ele fez. Então, aquela ideia de uma divisão entre nitistas e netistas faz sentido ou não? Não faz sentido. Isso está no livro que eu escrevi. Na minha perspectiva, aquilo é um falso problema. Eles manipularam de tal forma o Presidente Neto para influenciar a opinião pública nacional e internacional de que a luta do Nito (Alves) era contra o (Agostinho) Neto. Mas não, não é verdade. É falso dizer que havia netismo e nitismo, como se o Nito fosse adversário do Neto. Não, é mentira! Isto não é verdade. A verdade é que o Neto, naquela altura, naquela conjuntura,era uma peça fundamental e qualquer uma das alas queria tê-lo do seu lado. E venceu a área que tinha o Neto do seu lado. Porque o Neto, na altura decisiva da contenda, bandeou-se para o lado da ala que reprimiu. É por isso que eu disse que o problema resvala no racismo. Não vale a pena escondermos. Quem são os gajos que dirigiram a repressão? Lúcio Lara, Igo Carreira, Onambwé, Costa Andrade "Ndunduma", Hermínio Escórcio, todos eram mestiços!. Para quê esconder? É verdade que tinha lá uns pretinhos, mas não tinham aquilo que se chama o domínio do facto. Quem dirigiu a repressão são essas gentes. Isto eu não escondo. É uma realidade. Os factos são factos. E todo mundo sabe disso. Agora, as pessoas podem não concordar comigo. Eu sempre disse, e neste meu livro está lá, o problema do 27 de maio não é ideológico, na minha perspectiva. O problema do 27 de maio é político, é profundo. Já vem da essência do próprio MPLA. Quem fundou o MPLA? Isto não vale a pena esconder. É a minha perspectiva. Eu sou um homem livre. Exprimo aquilo que penso. Agora, posso estar errado, mas têm que me provar o contrário. No campo onde esteve preso, havia pessoas que morriam por causa dos maus-tratos, mas uma grande parte dos mortos era por causa da doença. Sim, a maior parte que morreu no campo, está no livro, era por doenças. Havia um ou outro... Tortura havia ali. (Mesmo sobre) Aqueles gajos, indivíduos que iam roubar mandioca. Chegou uma altura em que a situação estava de tal forma insustentável... O ser humano tem instinto de sobrevivência... Começaram a ir para as lavras roubar as mandiocas. Quando voltavam, aquilo era uma tortura que não era brincadeira. Eram postos nus, e o chefe do campo, com a mulher a assistir, pegava num cacete e batia no pénis. O pénis ali a inchar e a sangrar. Todo mundo a ver, ele nu. Aquilo não era coisa de brincadeira. É o que me levou a escrever o livro. Eu dizia assim: Epá, eu nunca vi uma coisa dessa. Epá, mas é mesmo o MPLA que está a fazer isso? O MPLA vai criar um campo destes? O MPLA que diz que é o povo, e o povo é o MPLA, vai-lhe dar na cabeça para criar um campo desta magnitude? Por isso é que esse tipo de coisas que estão aí a fazer, isso não é reconciliação. Isso não é reconciliação, não é nada. Pela gravidade do assunto, é um assunto que tem que ser bem... Não é só vir com um papelzinho, olha, peço desculpa. Não, aquilo é formal. É um bom passo. Mas agora tem que ir ao fundo do problema. Tem de haver responsabilização política. Pode não ser criminal, ninguém precisa disso. Mas responsabilização política tem de haver. Só assim poderá haver reconciliação. Caso contrário, não há. É assim no Chile, é assim no Brasil. É assim aqui. Aqui, os da PIDE têm mais espaço aqui? Os gajos que fizeram a PIDE aqui têm espaço? Não pode. São cidadãos, vivem ali, mas não tem possibilidade nenhuma de aparecer. Nós em Angola, não. Estão a condecorar até verdugos. Os próprios gajos que mataram, os algozes, estão a ser condecorados. Isto é sério? É assim que se faz? É um prémio pelas matanças que levaram a cabo? Em vez de se criar uma comissão da verdade para se explorar bem, se determinar bem as responsabilidades, e para que uma situação do género não se volte a repetir, estão a ser condecorados. Isto é sério? Por amor de Deus, pá! Só no meu país. Mas eu, como sobrevivente, como angolano que dei o meu melhor nesse país, vou lutar até as últimas consequências. Ainda que me matem. Se quisermos uma verdadeira reconciliação nacional, teremos que ir buscar as causas profundas que estiveram na base disso. O que é que sugeria para que, realmente, essa reconciliação nacional acontecesse? O que eu proponho é a criação de uma comissão da verdade, até podem chamar outro nome qualquer, para primeiro descobrir quem foram os indivíduos que assassinaram aqueles comandantes que apareceram no dia 21 nas Barrocas do Sabizanga. Esse é o ponto de partida. Porque é a partir dali, deste facto bárbaro, que o Presidente Neto veio a público dizer que não perdia tempo com os julgamentos. Não haverá perdão nem... Isso vem em letras grossas. Aliás, escritas pomposamente pelo Costa Andrade "Ndunduma". Que depois inventou mais uma outra célebre frase, "É preciso bater no ferro quente", numa alusão para instigar a matança que já estava a ser levada a cabo. Em função desta frase do Presidente Neto, "Não vamos perder tempo com os julgamentos". Por quê? Por causa daqueles comandantes. Então é preciso saber quem foram as pessoas que assassinaram aqueles comandantes. Foram os fraccionistas? Duvido muito. Até por uma questão de lógica. Se o golpe falhou às 11 horas, mais ou menos às 11 horas, 11 e meia, já as tropas cubanas tomaram a cidade toda. E os próprios fraccionistas já estavam em demandada. Como é que tiveram tempo, durante a noite, para assassinar, meter num carro, numa Kombi, e ir meter (os corpos) alí nas barrocas? Por amor de Deus, pá! Isso é uma questão de lógica. Tem de haver alguma estratégia. Agora, temos que saber quem foram. A gente sabe quem são. A gente sabe! Mas a minha opinião vale o que vale. Por isso é que tem, mesmo, que haver uma comissão da verdade. Olha, se lerem o livro do Nito Alves, nesse livro, tem lá muita carga ideológica. Purga e aquela carga ideológica está lá. E vão às informações que o livro tem. Há uma página 172 ou 173, está lá tudo. Aquelas reuniões que eram levadas a cabo na casa do Júlio de Almeida, era reunião de quê? Era para fazer o quê? Está lá tudo. Matrículas todas, as pessoas que iam lá frequentar. Vamos lá, só ver. Ali temos um bom ponto de partida. Agora, se querem que as pessoas todas que estavam envolvidas nesse processo trágico, morram todas para depois não serem responsabilizadas, isto não é reconciliação. Com toda sinceridade, não é! Qual é o impacto que o drama do 27 de Maio de 1977 ainda tem, nos dias de hoje, na sociedade angolana? Basta ver o país como está. Tão simples quanto isso. Isso não é uma questão de romantismo, é uma questão de realismo. O MPLA inflectiu para um rumo depois do 27 de Maio. O MPLA não é mais o mesmo. E a prova está ali, hoje, no que temos. Que MPLA temos hoje? Que MPLA temos hoje? Os melhores patriotas que o MPLA teve na sua vida são aqueles que foram trucidados no 27 de Maio. Não me venham lá com outras teorias. São esses que foram mortos no 27 de Maio. Hoje só temos aí os escroques! Indivíduos mais ligados para a riqueza. Não é?! Todos eles são ricos. São milionários. Têm casa aqui, dupla nacionalidade. Todos eles. Que patriotismo é esse? Eles é que andaram a instigar esses miúdos todos a virem para aqui. Porque copiam. Um verdadeiro patriota pensa no seu país! Investe lá! Mas eles todos vêm aqui e morrem aqui. Depois é que vão lá ser enterrados. Ou não é? Esse é patriotismo de quê? Podem ser tudo menos patriotas. Se é que têm noção do que significa patriotismo? Portanto, este é o impacto do 27 de Maio. O MPLA está completamente descaracterizado porque os melhores quadros que eles tiveram, os melhores patriotas, são esses que foram mortos no 27 de maio. Nisso não tenho dúvidas. Mesmo as pessoas que participaram nesta repressão têm noção disso, reconhecem. Hoje O MPLA está descaracterizado. Isto não é romantismo do Michel, não, é um facto. Está aí, palpável. Olha como é que o MPLA está hoje, completamente desacreditado. Acha que ainda é possível com o MPLA no poder alcançar essa verdade que o Michel defende, que o Michel procura? Eu acredito no ser humano. É uma questão de vontade política. Ainda é possível, vão a tempo. Mas se não for possível, vão ser forçados a fazê-lo. A reconciliação só pode passar por este caminho. Olha, é uma questão de filosofia de vida, Luís Guita. A filosofia de vida nos ensina que não se constrói um edifício a partir do tecto. Os edifícios se constroem a partir da base. O que é que se faz primeiro? Criam-se os alicerces. Depois, criam-se os pilares para sustentar o edifício. Olha, a CIVICOP está a fazer exactamente o contrário. Está a começar por cima para depois terminar em baixo. Não se dá certidão. Certidões, ossadas, é um processo que vai culminar lá. Depois até se pode erigir um monumento. Mas primeiro temos que ir às raízes, àquilo que esteve na base do 27. O que é que deu para matarem tanta gente? Isso é que é fundamental. Se a gente discutir isso, chamar as pessoas à razão, confessarem ali na comissão o que é que fizeram, porquê que fizeram, o caso morre aí. Nós estamos todos disponíveis para perdoar. Sem isso, nada feito. Está a acontecer a reedição do livro "Nuvem Negra", que o Michel escreveu sobre o drama do 27 de Maio de 1977. No poder, em Angola, já está a chegar uma nova geração, pessoas que, algumas, ainda nem sequer tinham nascido quando isto aconteceu. Qual a importância que este tema seja também dado a conhecer com profundidade a essa nova geração? Por isso é que se escreveu o livro. É para que eles leiam. Vão ler o que eu escrevi, vão ler a opinião das outras pessoas que também escreveram, porque não serei o único que escreveu sobre esta matéria, e eles próprios, depois, vão chegar a uma conclusão. Eu estou a deixar aqui um registo, é um legado. No fim do texto está lá escrito: "Para que as gerações vindouras saibam o que é que se passou. Para que não se silencie e casos do género não se repitam". Agora, eu não estou a dizer à juventude que eles têm que abraçar aquilo que está lá escrito. Não, isso é uma ferramenta de apoio para que eles reflitam sobre o que é que se passou neste país. Para que coisas do género não voltem a acontecer. O que eu quero é que se faça a justiça e que o governo angolano pense, repense, que leia o sinal do tempo. Vai a tempo de inflectir o rumo que ele está a seguir com este processo de 27? Porque o processo de 27 não morre assim. É a verdade. De resto, eu sinto-me bem e sou agradecido, mais uma vez, à RFI por me entrevistar, porque eu nunca tive espaço lá em Angola, é um pouco difícil, senão nas rádios privadas. Nas rádios públicas nem é pensado passar isto, porque eles não fazem, por razões óbvias. O livro termina mesmo com uma frase que é "Que se faça justiça". Quem julga? Essa justiça não é a justiça formal dos tribunais, é a justiça do povo, da juventude, da geração que está para vir. Aliás, uma das passagens deste livro do Michel faz referência ao povo e à maneira como o povo olhou para vós, prisioneiros, no momento em que estavam no Luau... Sim!! ... e escreveu, "até ao anoitecer, as velhas, e mesmo os jovens camponeses, traziam produtos das suas lavras como mandioca, tomate, cebola, batata e ervas. Foi um gesto de profunda sensibilidade e solidariedade que me marcou profundamente e que jamais esquecerei. Este comportamento, por parte do povo, desde o campo, até nesse dia, no Luau, ajudou-me a consolidar o princípio segundo o qual Os povos nunca são maus". Sim! Os povos nunca são maus! Maus são os políticos. Os povos nunca são maus, ó Luís. Os povos nunca são maus. É exactamente pela vivência que eu tive. Esta vivência dramática que me marcou para toda a vida. Eu estou a fazer 70 anos. Mais um ano ou dois anos, você vai ouvir dizer ... e pensar ... entrevistei aquele jovem, já foi. Mas eu deixo esse registo para a eternidade. Morro eu, mas o meu livro não. As minhas ideias vão ficar sempre. Por causa disso, os povos nunca são maus. Eu nunca digo que o povo português é mau. Nem digo que o povo russo é mau. Não! Maus são os políticos que se servem dos povos para gizar um projecto que não é aquele que o povo quer. Isto é que é verdade!

Com 78 anos de existência, a Rádio Asas do Atlântico continua a ser uma voz essencial na ilha de Santa Maria, Açores. Em entrevista, Helena Barros, directora da rádio local, revela os desafios e as motivações de manter uma estação de rádio comunitária num território com pouco mais de 5 000 habitantes, destacando a ligação única entre a rádio, a história do aeroporto e a identidade da ilha. A rádio Asas do Atlãntico não é apenas uma estação de transmissão "é uma associação sem fins lucrativos que tem um papel vital na ligação entre as pessoas da ilha”, explica Helena Barros.Fundada numa época em que Santa Maria tinha uma dinâmica muito diferente, a rádio cresceu intimamente ligada à história do aeroporto local, que nos anos 40 passou de uma base militar para uma infraestrutura civil com importância geopolítica regional."Quando os americanos cá chegaram, no início dos anos 40, e depois com a saída em 1944, deu-se esta passagem de uma infraestrutura militar para civil. O aeroporto era a grande entrada e saída, em termos de emigração, tudo passava por Santa Maria, e por isso falávamos mesmo no aeroporto internacional", refere.A directora recorda que o Clube Asas do Atlântico, ao qual a rádio está associada, nasceu sobretudo para os funcionários do aeroporto e da comunidade adjacente, com várias estruturas de lazer e habitação organizadas conforme as classes sociais da época.“A história da minha família, de alguma forma, também está ligada à infraestrutura do aeroporto. A minha avó contava que vivia num hotel onde tinha piscina, aulas de natação e o resto da ilha não tinha água. Havia uma grande disparidade social e económica, que hoje felizmente já não existe”, sublinha.Actualmente, a rádio mantém uma estrutura modesta, com dois estúdios e uma equipa reduzida - uma jornalista e uma radialista - dedicadas à produção e locução, apoiadas por colaboradores administrativos e voluntários que contribuem para a programação. Apesar das limitações, a modernização da rádio tem sido possível graças a apoios do Governo Regional dos Açores e da Câmara Municipal de Vila do Porto, que permitiram investir em novos sistemas informáticos e na digitalização da emissão.A programação da Rádio Asas do Atlântico procura reflectir a diversidade e os interesses da comunidade local. “Temos o programa 'Bom Dia Açores' que este ano celebra 50 anos, com grande tradição e audiência, especialmente na costa sul da ilha de São Miguel”, diz Helena Barros.A rádio aposta ainda numa forte componente informativa, com notícias locais apresentadas diariamente pela jornalista Ana Paula Braga, que trabalha na rádio há mais de três décadas. A proximidade com os ouvintes é uma das maiores forças da estação.“O que faz as pessoas ligarem o rádio é a informação local e os amigos que fazem os programas”, destaca a directora que reconhece o papel da rádio em aproximar a comunidade e dar voz à ilha.No entanto, manter a rádio viva não está isento de dificuldades. A publicidade local é reduzida devido à dimensão da economia da ilha. Ainda assim, os empresários locais continuam a apostar nos spots e a rádio conta também com publicidade institucional, essencial para garantir a sua sustentabilidade.Helena Barros evidência igualmente o papel insubstituível da Rádio Asas do Atlântico para Santa Maria, concluindo que "todas as entidades da ilha têm um carinho especial por esta rádio, porque sabem que, no dia em que ficarmos sem ela, ficaremos sem voz".

Até ao dia 02 de Novembro, está aberto ao público a exposição Engagées (Comprometidas) na Fundação Villa Datris, em L'isle-sur-la-Sorgue, perto de Avignon. A visita aos jardins começa com o encontro de Betty Boop, escultura monumental de Joana Vasconcelos, representando um sapato de salto alto sobredimensionado, feito a partir de 350 panelas e tampas. A artista portuguesa conta com várias peças em exposição, todas relacionadas com a temática da água. Até ao dia 02 de Novembro, está aberto ao público a exposição Engagées (Comprometidas) na Fundação Villa Datris, em L'isle-sur-la-Sorgue, perto de Avignon. Feministas, ecofeministas, defensoras dos direitos humanos, militantes contra o racismo e pela liberdade sobre o corpo... as lutas essenciais das artistas seleccionadas. A mostra evidencia a invisibilidade das mulheres e a persistência dos seus combates, relembrando ao mesmo tempo a importância de defender e preservar os direitos conquistados.A curadoria ficou a cargo de Danièle Marcovici, fundadora e presidente da Fundação Villa Datris, e de Stéphane Baumet, director da Villa Datris L'Isle-sur-la-Sorgue.O percurso de visita da exposição Engagées desenvolve-se em torno de dez temáticas. Cada artista exposta é associada a uma ideia, um facto ou uma reivindicação, que se materializa num folheto disponibilizado em cada sala.Em declarações aos jornalistas, na apresentação da exposição, Danièle Marcovici, fundadora e presidente da Fundação Villa Datris, lembrou a necessidade de continuar a dar visibilidade à luta feminina e sublinhou que a cor escolhida para o evento é o roxo, em solidariedade com as mulher norte-americanas, “que bem precisam de ajuda neste momento”:Temos regredido nos direitos das mulheres… nos direitos ambientais… em todos os direitos humanos. E isso é terrível.Foi por isso que decidimos realizar esta exposição no dia seguinte à primeira volta das eleições legislativas do ano passado. Dissemos: temos de fazer alguma coisa, temos que assumir um compromisso.Portanto, em 2025, mostramos mulheres comprometidas, artistas, todas elas muito bonitas, talentosas, todas elas formidáveis, que se expressam por meio de sua arte e que admiramos. Por isso as escolhemos.E vamos oferecer essa exposição ao público. Porque nossas exposições são feitas para o público, para o público em geral, para ajudá-los a descobrir a arte contemporânea que seja significativa, emocional e envolvente.A cor da exposição deste ano é o roxo. Porque como sabem, é a cor das feministas americanas. E elas precisam de ajuda neste momento. Mas não estamos a fazer esta exposição só por elas, na verdade fazemo-lo por nós, por todas as mulheres.”A visita aos jardins começa com o encontro de Betty Boop, escultura monumental de Joana Vasconcelos, representando um sapato de salto alto sobredimensionado, feito a partir de 350 panelas e tampas. A artista portuguesa conta com várias peças em exposição, todas relacionadas com a temática da água.Na minha obra tenho vindo a trabalhar, já há alguns anos, a questão da água. A água é um bem essencial à vida e nós, de uma certa no mundo ocidental, temos o privilégio de ter água em múltiplas divisórias das nossas casas e usamos a água de uma forma indiscriminada, enquanto, em muitos países, há muita gente que não tem sequer água para beber. Faço uma série de obras em que a água é um luxo e trato a água como se fosse um luxo. Daí a banheira, o chuveiro, os lavatórios, a água para cozinhar, a água para tomar banho. Portanto, nós usamos a água de uma forma muito variada nas nossas casas e muitas vezes não damos o devido valor à sorte que é poder ter água de uma forma tão livre e tão displicente. A exposição Engagées é de entrada livre e gratuita e pode ser vista na Fundação Villa Datris, em L'isle-sur-la-Sorgue, até ao dia 02 de Novembro de 2025.Todos os anos, a Fundação Villa Datris dá destaque à arte contemporânea através de uma exposição temática. Desde a abertura do espaço que mais de 950 artistas, franceses ou estrangeiros, foram expostos, e a fundação acolheu cerca de 550 000 visitantes.

A luso cabo-verdiana Cleo Diára reagiu à reportagem da RFI em Cannes ao seu prémio de melhor actriz na mostra oficial Un certain regard. Ela que desempenha o papel de uma jovem guineense, em O riso e a faca, longa metragem do português Pedro Pinho admite que o seu sonho de menina da ilha de Santiago passava muito pela representação, "por dar voz a certas realidades". O cineasta português Pedro Pinho e a actriz Cleo Diára reagiram em Cannes ao prémio obtido na mostra Un certain regard.A actriz alega ainda estar com dificuldade em assimilar a notícia deste importante galardão da sétima arte internacional e precisar de algum tempo para ter noção do que isto significa.Cleo Diará, de 37 anos, está também em cartaz, em Cannes, na mostra ACID de Pedro Cabeleira com o qual ela tinha colaborado também em Verão danado, a sua primeira longa metragem de 2017.No ano seguinte ela tinha também participado em Diamantino, longa metragem de Gabriel Abrantes, premiada em 2018 na Semaine de la critique.Oriunda da ilha cabo-verdiana de Santigado Cleo Diára frequentou a Escola superior de teatro e cinema em Portugal.Por seu lado o realizador luso Pedro Pinho afirmou estar muito satisfeito com a forma como o filme foi acolhido "uma recepção que superou todas as expectativas" e lembrou que a estreia em França está prevista para o mês de Julho. Uma secção oficial que recompensou também Once upon a time in Gaza dos irmãos Arab Nasser e Tarzan Nasser, com o prémio da melhor realização, longa metragem que conta com co-produção da portuguesa Ukbar Filmes.

A exposição Sebastião Salgado: Obras da Coleção da MEP está exposta no Centro Cultural Les Franciscaines, em Deauville, e apresenta um retrato das últimas décadas da história humana. Sebastião Salgado documenta o sofrimento, mas também a dignidade do ser humano em tempos de cataclismos sociais e naturais. Na exposição vemos algumas das obras mais emblemáticas, nomeadamente em África durante os anos 70 e 80, quando a guerra, a fome e a seca dominavam o continente, deixando marcas nas populações. Em entrevista à RFI, no espaço da exposição, Sebastião Salgado fala com a mesma intensidade com que fotografa. Em cada palavra, transparece a visão crítica, mas também a sua compreensão da história social e política. Para ele, a fotografia, é mais do que uma arte; é um registo da realidade que não se pode desvirtuar. Através do olhar atento e sensível, Sebastião Salgado afirma que, por mais que a inteligência artificial consiga criar imagens, a fotografia continua a ser um reflexo do presente, um “corte representativo do planeta naquele momento”. Não há espaço para substituições: "A fotografia é outra coisa", diz Sebastião Salgado, defendendo que a essência da fotografia está na sua ligação com o mundo real.Hoje, quando o digital parece diluir as fronteiras entre o real e o imaginário, Sebastião Salgado reafirma a importância da memória que a fotografia preserva. Com uma certa nostalgia, lamenta a efemeridade das imagens captadas nos telefones, aquelas que se perdem no limbo digital. O fotógrafo brasileiro sente que, na era digital, a fotografia deixou de ser um testemunho sólido, uma marca que sobrevive ao tempo.A formação e a experiência de Sebastião Salgado são elementos fundamentais no seu trabalho. Economista, sociólogo e antropólogo, o fotógrafo tem uma visão das dinâmicas sociais que orientam o mundo. Essa visão ajudou-o a capturar a transição dos tempos, seja no fim da revolução industrial ou nas grandes migrações que documentou na série fotografica Êxodos. Quando Sebastião Salgado viu a indústria pesada desaparecer nos países desenvolvidos, percebeu que algo maior estava a acontecer: o mundo estava a reorganizar-se. As fábricas estavam a ser transferidas para países com mão-de-obra mais barata; a China, o Brasil ou o México. Mais do que um fenómeno económico, era uma revolução humana.Mas se há algo que continua a dominar a sua reflexão, é a questão do futuro da humanidade. "Estamos a viver num mundo desorganizado", diz. A desordem política e social que caracteriza o nosso tempo é, para Sebastião Salgado, uma consequência do fim de um equilíbrio que parecia mais estável no passado. E o futuro? “Ninguém sabe o que vai acontecer”, diz, visivelmente preocupado pela destruição acelerada do planeta. O olhar do fotógrafo brasileiro está cheio de apreensão, mas também da aceitação quanto à fragilidade humana.Sebastião Salgado recorda, ainda, com uma clareza dolorosa a experiência que viveu em Angola, nos anos 90, e Moçambique, em 1974, onde viveu momento do processo de independência. A violência, a brutalidade, e as tensões que marcaram esse momento da história, de guerra e resistência, são memórias que o fotógrafo carrega. “Fui ferido tanto em Angola como em Moçambique”, lembra. A reflexão sobre a evolução política em África é crítica. Para ele, a corrupção, que muitos tentam mascarar, não é um fenómeno restrito ao continente africano: é um mal comum, uma praga que afecta toda a humanidade. O que acontece em Angola, no Congo, no Uganda, não é um problema isolado – é uma questão de governança , de ética e de valores.A colonização europeia, que deixou a África fragmentada e empobrecida, é uma das grandes responsáveis pela incapacidade de muitos países africanos de se consolidarem como nações. "Apenas 50 anos passaram desde a independência", recorda, com a tranquilidade de quem sabe que o processo de recuperação vai ser longo. Sebastião Salgado não esconde a frustração com o legado da exploração europeia, mas, ao mesmo tempo, acredita que o futuro pode ser mais promissor. "É preciso tempo", afirma, e é este tempo que, talvez, seja o maior luxo que os países africanos podem almejar.A exposição de Sebastião Salgado em Deauville, até 1 de junho de 2025, não é apenas uma exibição de arte, masum convite à reflexão. O fotógrafo brasileiro ensina-nos que, mais do que retratar a miséria, é preciso olhara para os pequenos gestos de humanidade que resistem ao caos. A fotografia de Sebastião Salgado tornou-se num testamento. E, num momento em que o mundo vive muitas vezes à beira do precipício, talvez seja isso que mais precisamos: "testemunhos de uma realidade que não podemos esquecer".

A longa metragem Once upon a time in Gaza de dois irmãos Arab e Tarzan Nasser estreou esta segunda-feira na competição, na mostra oficial Un certain regard, do Festival de cinema de Cannes. Trata-se da historia de dois pequenos delinquentes e a sede de vingança após a morte de um dentre eles.O filme tem co-produção da portuguesa Ukbar Filmes.Pandora da Cunha Telles contou à RFI como foi implementado o projecto.

Os Capitão Fausto tocaram em Paris, a 8 de Maio, num “Point Ephémère” onde o público entoou, em coro e em português, várias canções da banda pop portuguesa. Antes da estreia em França, no âmbito de uma digressão europeia, a RFI falou com Tomás Wallenstein e Domingos Coimbra que nos contaram a história de um grupo de amigos que nos últimos 15 anos tem também feito história na cena musical independente portuguesa. RFI: Apresentam-se em Paris a um público essencialmente francês. Para quem não vos conhece, como é que descreveriam a banda, o som e a vossa filosofia? Tomás Wallenstein: “Já era um desejo antigo nosso virmos aqui e, portanto, estarmos a concretizar é uma grande alegria. Acho que, em poucas palavras, somos um grupo de amigos muito antigo, que tem sobrevivido ao teste do tempo e que se continua a gramar, a querer estar juntos e a fazer coisas juntas e que gostamos de ouvir música juntos e acho que isso define-nos. Concordas?”Domingos Coimbra: “Concordo, concordo e acho que, com os anos, temos tido a felicidade das coisas e das decisões que tomámos nos terem corrido progressivamente bem e também com esse crescimento que tivemos. Somos amigos desde os 13, 14 anos e amigos de liceu e desde essa altura também foram mudando as nossas ambições e o nosso empenho, o nosso trabalho, e passámos, de certa forma, de amadores a profissionais, um grupo de amigos que viveu tudo isso de forma muito intensa, ao ponto até de, às vezes, num determinado momento, viverem todos na mesma casa. Portanto, é todo o imaginário que isso acarreta.”E como é que escolheram a playlist para Paris? Domingos Coimbra: “Eu acho que, em primeiro lugar, a 'Subida Infinita', o último álbum que lançámos, tem sido uma constante nos últimos dois anos. É o foco. Temos noção que também é não só tocar para franceses, mas também para um público português que está fora de Portugal. Também tínhamos a noção que tínhamos de fazer um concerto que passasse um bocado pela discografia da banda. Então, de certa forma, o concerto acaba por fazer um apanhado destes anos.”Há músicas assim, mais emblemáticas e mais acarinhadas pelo público, em geral, e pelo público internacional, em particular, que vocês agora têm vindo a conhecer?Tomás Wallenstein: “É difícil dizer porque os vários concertos que já aconteceram tiveram reações muito específicas de cada sítio e nós fomos descobrindo também as salas e as pessoas e conversávamos um bocadinho no final. Mas acho que, como o Domingos estava a dizer, este apanhado geral foi também uma espécie de uma filtragem que nós fizemos para esta digressão e talvez se possa definir como um bom cartão de visita: o que é que foram estes últimos anos. Deixámos, na verdade, um disco de fora que é ‘Pesar o Sol'."Porquê? Tomás Wallenstein: “Por questões de escolha. Por não querermos deixar outras de fora. Acabámos por deixar estas neste espectáculo. Eu acho que todas as músicas têm lugar em cada espectáculo específico. Este que é em clubes e para pessoas em pé, acho que nos levou a escolher este conjunto de canções.”Também tem a ver com a transformação da banda de quinteto para quatro pessoas?Domingos Coimbra: “Isso também e também pela própria natureza dos álbuns e do som dos álbuns. E o 'Pesar o Sol', se calhar, é um bocado mais distante do que muita da música que estamos a fazer agora, embora seja interessante em termos de alinhamento e nós fazemos isso muitas vezes que é passar um bocado por todos os álbuns, é um desafio interessante para o concerto ficar a fazer parte de uma mesma narrativa. Mas por acaso, o ‘Pesar o sol' não entrou. Algumas canções do nosso primeiro álbum, o ‘Gazela', nesta coisa de como preparar o alinhamento e as canções e quais escolher, algumas destas, com os anos, tornaram-se muito queridas das pessoas que nos seguem e, portanto, elas têm figurado nos concertos. 'Santana', que é uma música que eu acho que no disco não tem propriamente muita graça nem muita cor, é uma canção que com os anos vai crescendo cada vez mais e hoje em dia fecha o concerto. Portanto, esse lado é engraçado.”Em relação à própria transformação em palco por causa da saída de um elemento do grupo, como é que tem sido? Domingos Coimbra: “Foi um processo. Nós, com a saída do Francisco [Ferreira] na 'Subida Infinita', todo o álbum foi composto também por ele e foi um álbum pensado para ser tocado por cinco. Na altura, tínhamos acabado a 'Subida Infinita' e tínhamos duas semanas para acabar o álbum e duas semanas depois começava a digressão e nós ainda não sabíamos muito bem - no ano passado - como é que íamos montar o espectáculo. Então, a decisão que tomámos, foi convidar dois amigos, músicos da nossa editora Cuca Monga, o Fernão Biu, dos Zarco, e o Miguel Marôco para se juntarem a nós. Cinco passaram a seis e dividíamos as vozes. Depois, tivemos sempre um bocado esta ideia de irmos falando, eventualmente, temos de tentar perceber como é que passamos o formato para quatro e a responsabilidade da passagem do formato a quatro acabou por estar muito centrada no Tomás e no Manuel, que são autênticos polvos e agora tocam teclados e guitarras e mudam de microfones.”Tomás Wallenstein: “E foi um exercício interessante também porque voltámos a ouvir as músicas todas para perceber quais é que são as partes essenciais, porque menos mãos conseguem fazer menos coisas. E, de certa forma, foi surpreendente como às vezes elementos que nos discos são essenciais e são ornamentos ou são camadas que tornam a escuta mais interessante, ao vivo, nem sempre são, até podem ser contraproducentes e, portanto, começarmos a despir um bocadinho as camadas todas e a perceber do que é que a canção é feita, a sua essência mesmo. Foi muito interessante e deu resultados muito engraçados. Isso também é evidente que contribuiu para a escolha das músicas que trazemos para os concertos e até porque isto agora vai ser um processo que vamos continuar a fazê-lo devagarinho e nem conseguimos passar por todo o nosso repertório, mas vamos fazê-lo.”Domingos Coimbra: “E conseguimos aprender 15, 16 músicas no espaço de duas, três semanas muito intensas.”Tocam em Paris depois de Amesterdão, Madrid, Barcelona. Como é que tem sido esta descoberta do público europeu e não apenas lusófono? Tomás Wallenstein: “Tivemos a sorte de ter muitos portugueses, em todas as datas, que levam os amigos, que mostram a música e, portanto, acho que essa parte também nos beneficia. As pessoas que vão ao concerto também são nossas embaixadoras e também estão a ajudar a nossa música a ser ouvida. Portanto, as reacções são curiosas de muita gente que tinha vindo ao concerto para descobrir a banda também, que não conhecia a música e que, se calhar, vai passar a ouvir. Acho que tem corrido muito bem.”Domingos Coimbra: “Em Barcelona, sentimos um público maioritariamente português, mas em Madrid havia muito público espanhol e, como o Tomás estava a dizer, curiosos. Algumas pessoas que tinham, por exemplo, estudado em Portugal, que tinham cruzado de uma maneira ou de outra com Capitão Fausto e que com os anos a passarem, fomos levando os vários álbuns a centenas de sítios e depois esse alcance foi aumentando. Também no Melkweg, em que também tocámos, sentimos o público português, mas também curiosos holandeses.”O que representa Paris para vocês? Tomás Wallenstein: “É uma cidade mítica, não é? Eu, pessoalmente, também tenho uma ligação muito forte à cultura francesa, porque estudei no Liceu Francês, tenho muitos amigos de infância franceses e eu acho que é um sítio que nós vamos querer voltar muitas vezes e que é uma cidade muito vibrante. Também já tive a oportunidade de vir aqui ver concertos e acho que tem muita coisa a acontecer e, portanto, nós conseguirmos ser inseridos nesta variedade é muito desafiante. Vamos ver o que é que vai acontecer nos próximos anos.”O disco Subida Infinita fala muito em despedidas, em desconsolo, em “nuvens negras”, “festas que são fachadas desta nossa tristeza”. Também já tinham morrido na praia, prometido que “amanhã estou melhor”, avisado que os Capitão Fausto têm os dias contados. As melodias são solares, mas as letras parecem ter algum desconsolo. Como é que vocês estão e o que é que contam todas estas músicas, sobretudo do último disco, que é o que mais levam agora a palco? Tomás Wallenstein: “Eu acho que o último disco tem umas características que os outros acabam sempre por ter, que eu acho que agora vou começando a reparar, que são as músicas que acabam por ser um bocadinho catárcticas sempre e nós talvez através das músicas consigamos encontrar emoções ou raciocínios que estavam mais escondidos dentro do nosso grupo. Nós como amigos, nós individualmente, eu como escritor e como voz também, às vezes, esses sentimentos, esses raciocínios são descobertos quando as músicas também acontecem, quando de repente elas começam a ter a sua própria vida. E nós vamos começar a pensar ‘ok, o que é que de facto quer dizer esta música?' Porque os significados também nem sequer sempre estão no momento da composição. Nós não estamos a querer almejar um certo ambiente, ou uma tristeza, ou uma melancolia, ou um entusiasmo. Estamos entusiasmados com a música e com o quadro que aquilo está a pintar e com as letras a mesma coisa. Estamos um bocadinho à procura do som e estamos a ir pelo ouvido. Quando as coisas estão acabadas, então aí nós damos dois passos atrás e começamos a descobrir um bocadinho do que é que elas são feitas. Eu acho que são figuras das nossas vidas, momentos, paisagens e fotografias que vão aparecendo e que brotam da nossa memória.”Ao fim de 15 anos neste retrato de grupo, qual é o balanço que fazem? Domingos Coimbra: “Como começou a entrevista e começámos a falar sobre como é que nós nos definimos, eu acho que o facto de nós, passados estes anos todos, ainda estarmos centrados na nossa amizade - se calhar até acima das nossas ambições profissionais - e como o facto de centrarmos a amizade no centro tem resultados profissionais bons, embora seja sempre um equilíbrio muito difícil quando se dorme em carrinhas e em viagem e fora de casa, essa é uma verdade que eu acho que nos define. E outra também, acho que temos tido a felicidade e a alegria, desde o princípio, obviamente com muita sorte envolvida, de estar nos sítios certos, na hora certa.Os concertos correram bem, mas a nossa carreira tem sido uma escada constante e parece que a cada álbum e a cada concerto que damos e a cada novo objectivo, felizmente tem sido uma subida, não querendo parecer “cheesy”, nós temos noção que aquilo que nós temos e aquilo que temos vindo a fazer, até pessoalmente, em termos de amizade, é uma coisa rara e, portanto, estamos a fazer todos os esforços para preservar isso e através disso também escrever canções que retratam os períodos pelos quais vamos passando.”Estão a preparar novo álbum, novas canções? Vi que têm também um grande projecto para 2026, em Lisboa, numa grande sala, talvez a maior de Portugal...Tomás Wallenstein: “É verdade. Isso é assim a próxima grande coisa que nos vai acontecer. Vamos ter uma grande celebração também de carreira em Lisboa, na maior maior sala que nós já alguma vez ambicionámos encher. Para esse espectáculo vamos querer trabalhar com muita antecedência e com muita preparação. Vai-nos ocupar muito tempo do próximo ano. Temos em vista começar a fazer música nova, canções em breve. Não sabemos para sair quando, mas sabemos que o início, pelo menos, está próximo. Estamos também a trabalhar noutras coisas, noutros projectos sobre os quais ainda não podemos desvendar muito, mas que poderão interessar-vos e isso também são novidades para o ano de 2026.”

A exposição “Este quarto parece uma República!”, da artista angolana Sandra Poulson, está patente no museu MoMA PS1, em Nova Iorque, desde 24 de Abril até 6 de Outubro. A mostra reúne várias esculturas que remetem para o imaginário do dia-a-dia angolano e para a forma como o universo doméstico é contaminado por símbolos do exterior, sejam de Angola ou frutos da globalização. As obras compõem uma instalação polissémica e foram construídas essencialmente a partir de peças de mobiliário encontrado nas ruas de Amesterdão. “Este quarto parece uma República!” é o título inspirado das memórias familiares e do quarto da artista onde começou uma certa "criação da consciência política no espaço doméstico e também no seio familiar". A "politização do espaço doméstico" e a forma como os símbolos do exterior entram, "como cavalos de Tróia", dentro de casa é a principal linha de força desta primeira exposição de Sandra Poulson no MoMA PS1, em Nova Iorque. Sandra Poulson nasceu em 1995, em Angola, é formada em moda pelo Royal College of Art e pela Central Saint Martins, em Londres, e actualmente é artista residente na prestigiada Rijksakademie van beeldende kunsten, na Holanda. Participou na 60.ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di Venezia (2024), no Biennale College Art, na Trienal de Arquitectura de Sharjah, na Bold Tendencies (Londres) e no Pavilhão Britânico na Bienal de Arquitectura de Veneza (2023). Esta é a primeira vez que expõe no museu MoMA PS1, em Nova Iorque, e falou com a RFI sobre as obras que apresenta.RFI: O que conta a exposição “Este quarto parece uma República?”Sandra Poulson, Artista: “A exposição chama-se ‘Este quarto parece uma República!' e vai buscar uma frase que o meu pai costumava dizer quando entrava no nosso quarto em Luanda, que eu partilhava com os meus irmãos. Era, no fundo, uma repreensão sobre o quarto estar muito desarrumado e é uma frase que eu ouvi desde muito nova e que realmente eu não percebia até perceber que o denominador comum de todas as vezes que o meu pai dizia essa frase, era que realmente o quarto estava desarrumado. Eventualmente, eu começo a pensar nisso em relação a esta ideia de criação da consciência política no espaço doméstico e também no seio familiar. Na altura, Angola ainda estava em guerra civil. Esta criação de consciência começa muito cedo e começa nesse espaço muito íntimo. Ao mesmo tempo, também nesse espaço íntimo há uma série de objectos que são indicadores semióticos, que também alteram o ‘status quo' do corpo e que orientam, de certa forma, a consciência social. Então, eu começo a olhar particularmente para t-shirts e objectos de propaganda que são distribuídos gratuitamente, mas como se fossem quase cavalos de Tróia.” Fale-nos desses cavalos de Tróia. Que elementos estão representados na instalação? “A maior parte dos elementos são objectos de mobiliário encontrados todos em Amsterdão, que é onde eu vivo neste momento, onde estou a fazer uma residência na Rijksakademie. Alguns deles são mobiliário encontrado na rua, outros são coisas que comprei a pessoas individuais, mas quase tudo são objectos de mobiliário encontrados e intervencionados por mim e também há algumas peças completamente novas, feitas com madeira já existente.Todas as obras são feitas em madeira, alguma dela data do século XVIII, XIX e até, na verdade, dos anos 2000. Quase tudo é feito com espécies de madeira tropical que entra na Holanda através da exploração económica e de recursos. Essa madeira entra na Holanda e depois essas peças de mobiliário são feitas e são consideradas mobiliário holandês, mas são feitas com madeira tropical. A obra tem interesse na reclamação desse material como um caso de estudo e também não se saber exactamente em que momento é que aquela espécie entra no país.”A madeira tem também um significado político de expropriação? “Sim, sem dúvida. A madeira foi um dos grandes materiais exportados a partir de Angola, como o café, como o algodão e foi um material muito importante, ainda é um material importante, mesmo localmente. Na verdade, o meu interesse em madeira começa visitando um mercado em Luanda que é o mercado do Kikolo e trabalhando com um atelier a céu aberto de carpintaria, em que o mobiliário é feito por jovens e por tamanho. Na verdade, é mais barato comprar uma cama feita em Luanda por tamanho do que uma cama importada, se calhar, de muito menos qualidade por causa dos custos dessa relação com o exterior.” Na exposição, também tem uma t-shirt onde o perfil de um homem está recortado e lê-se “candidato a Presidente da República de Angola”. O negativo desse retrato está junto a um móvel às avessas. Há um significado particular? “Sim, essa escultura tem referência àquilo que é uma das t-shirts de propaganda mais disseminadas nos últimos anos no país e que é uma t-shirt que muitos angolanos têm em casa e que foi distribuída nas duas últimas eleições. É uma referência directa à disseminação da imagem do Presidente e também da possibilidade dessa imagem existir outra vez nesse espaço de intimidade. Muitas vezes estas t-shirts são feitas com algodão de muito boa qualidade e têm um tamanho largo e são t-shirts utilizadas para dormir. São t-shirts não só com a imagem relativamente a partidos políticos, mas a bancos, a organizações como a União Europeia, a petrolíferas e outras organizações normalmente do exterior que se tentam impor semioticamente no país. Esse é um dos exemplos de um objecto altamente disseminado e, naturalmente, com muito valor corrente.” Outra peça curiosa é “O Clube de Agricultores Familiares de Cabinda”, um pedaço de madeira suspenso com as estrelas da bandeira da União Europeia gravadas e com tudo a fazer sombra no chão. Mais uma vez temos aqui um significado político?“Sim, claro. ‘O Clube de Agricultores Familiares de Cabinda' foi uma iniciativa que, a certa altura, em 2013, recebeu algum dinheiro da União Europeia e essa obra tem um outline de um pólo. É também directamente uma referência a uma t-shirt utilizada pelo Clube de Agricultores em Cabinda. Cabinda é outra vez uma espécie de Cavalo de Tróia que foi dado a Portugal quando Portugal e a Bélgica negociavam quem dominaria a entrada do rio Congo que era muito importante para o transporte forçado de pessoas africanas escravizadas. Leopoldville ganhou essa disputa e, em compensação, foi decidido que Portugal receberia este território de Cabinda que está fisicamente separado de Angola. O que na Conferência do Congo não se sabia é que quase 100 anos mais tarde, em 1956, é descoberta em Cabinda uma das maiores reservas de petróleo do continente. Então, essa obra interessa-se nessa presença da União Europeia altamente semiótica, através de uma campanha de marketing que se esconde por trás dessa ajuda aos agricultores e dessa presença muito física.”Qual é o fio condutor que une as obras da exposição? “Eu penso que o fio condutor será esse estudo quase histórico ou arqueológico de diferentes casos de estudo que se vão repetindo e de uma proposta para nós percebermos como é que nós estamos a lidar com estes símbolos que nos rodeiam, como é que nós somos influenciados por estas coisas materiais que parecem não activas, mas que, na verdade, são muito activas. O fio condutor não deve ser uma narrativa fechada, mas é uma tentativa de colocar algumas perspectivas possivelmente factuais, perto umas das outras, para suscitar pensamento.” Mais uma vez, a sua arte é política também... “Além de muitas coisas, eu acho que é inevitável, com a História e as histórias que são transportadas através do tempo, através dos nossos corpos, através das nossas experiências e, particularmente, com as minhas - tanto a minha relação com Angola, com o meu país, com Luanda, a cidade em que eu cresci, mas também as minhas relações macro igualmente históricas e profundas, por exemplo, a relação com Portugal. É inevitável o corpo despolitizar-se. Não tenho muito interesse em etiquetas, mas a obra é, sim, política.”O que representa para si ter uma exposição individual no MoMA PS1?“É a minha primeira individual no MoMA PS1, mas também é o meu primeiro show num museu. É um marco importante, é um momento importante. A conversa com uma instituição é diferente de expor num contexto de uma galeria comercial ou de uma feira. A abrangência da exposição é completamente diferente, o PS1 é visitado por volta de 200.000 pessoas por ano e a exposição fica entre Abril e Outubro. O acesso que a obra tem é completamente diferente e eu já consigo sentir isso no feedback, nas pessoas que têm acedido e que têm entrado em contacto, mas também a nível do acesso de imprensa que tem a exposição. No fundo, tem a ver muito com números, mas também com a audiência que tem acesso, que é uma mistura de profissionais, mas também do público em geral.”Quer falar-nos um pouco do seu percurso?“Cresci em Luanda e saí com 18 anos. Fui para Lisboa, estudei Moda na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa. Daí vou para Londres, em que estudei também moda - bacharelato e mestrado - em Central Saint Martins e depois no Royal College of Arts. Agora vivo em Amsterdão e estou a fazer uma residência artística de dois anos. O percurso foi muito marcado por ter estudado moda, mas também por ter percebido que aquele espaço académico não deveria delimitar a forma com que eu queria trabalhar e o que eu me interessava fazer. Ainda assim, a minha obra começou muito com essa relação com o corpo - inicialmente eram peças de roupa, mas depois começo a interessar-me mais e a pensar que as coisas que alteram o ‘status quo' do corpo poderiam ser outras coisas: a cidade, o pó, a história, a politização do espaço doméstico.”

Hergo Muhondo, ou simplesmente Hergo para usar o seu nome artístico, é o convidado hoje do magazine artes. Nascido em 1998, no Rangel, distrito de Luanda, em Angola, este jovem pintor, que tem como mestre Guizef Guilherme, acaba de ganhar o primeiro prémio de artes plásticas atribuído pela Embaixada de Espanha em Angola. Hergo participa em concursos desde a escola primária, tendo obtido reconhecimento nacional em 2015. O misticismo, o invisível e a religião são os vectores da arte de Hergo.Perceptível no resultado final das suas obras, este mistério também faz parte do processo criativo do artista desde o atelier. Num século cada vez mais desumanizado, em que a inteligência artificial ganha terreno e substitui as emoções por dados digitais, ganhar a vida como artista está a tornar-se mais difícil, mas para Hergo “a mão humana não pode ser substituída”, seja por dados ou por máquinas.Acho que uma obra-prima, uma coisa feita com as mãos e a mente é sempre diferente de uma coisa feita digitalmente. Isso vê-se, se tiveres uma fotografia feita por um fotógrafo famoso e fizeres uma pintura com a mesma referência, há muita diferença. Acho que o valor está mais na pintura, porque o artista não usa materiais, ele usa a alma dele, o interior dele. Coloca tudo na obra. E isso é notável pelo trabalho. O mundo, está cada vez mais moderno. As coisas estão a mudar. Mas a pintura não morre, independentemente do que aconteça, das mudanças da era digital. Acho que a pintura nunca morre. Depois de inúmeras exposições colectivas, Hergo concentra-se agora na sua primeira exposição individual, que terá lugar em Setembro, na ilha de Luanda. Chamada “Olhares que falam” mais uma vez, Hergo colocará o invisível e a emoção no centro do seu trabalho.

O projecto "Documentos sobre a Escravatura nos Arquivos da Secretaria-Geral do Governo de Cabo Verde - 1842-1869" foi reconhecido na edição de 2025 do programa da UNESCO, que visa preservar o património documental da humanidade. Em entrevista à RFI, o teólogo e historiador cabo-verdiano Jairzinho Lopes Pereira afirma que esta distinção é o reconhecimento do trabalho realizado pelo Ministério da Cultura e pelo Instituto do Arquivo Nacional de Cabo Verde, sublinhando ainda que estes documentos desempenham um papel fundamental na preservação da memória da escravatura. O que representa este reconhecimento da UNESCO para Cabo Verde?Trata-se do reconhecimento da UNESCO pelo trabalho que tem sido feito pelo Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas, em Cabo Verde, através do Instituto do Arquivo Nacional de Cabo Verde, no sentido de promover a preservação do espólio documental, que é de grande importância.Um segundo aspecto diz respeito ao reconhecimento do valor — não só científico, académico, cultural, mas também patrimonial — que a UNESCO atribui a este Fundo da Secretaria-Geral do Governo, relativo à escravatura.Há um terceiro elemento que gostaria de realçar, que tem a ver com o estímulo, pois tenho a certeza de que, após este reconhecimento, os documentos do Fundo passarão a ser mais conhecidos.Este arquivo é constituído por quantos documentos e em que estado se encontram?Não posso dar detalhes precisos dos números. Sei que são quatro caixas, com muitos livros, manuscritos e também documentos avulsos.Trabalhei pessoalmente neste Fundo e o que posso dizer é que são registos de grande importância para o estudo da escravatura na zona do Atlântico, sobretudo no caso de Cabo Verde.Como sabe, existiu na Cidade Velha, [na ilha de Santiago] um entreposto de grande importância no que toca ao tráfico transatlântico. Portanto, acho que o reconhecimento vem mesmo a calhar e é totalmente merecido.Qe importância têm estes documentos para a preservação da memória, nomeadamente da memória da escravatura em Cabo Verde?Têm uma importância enorme. A diversidade dos documentos remete para a quantidade e variedade de informações ali presentes. Depois, há um outro aspecto, uma vez que temos, nestes documentos, um conjunto de realidades díspares e até divergentes que são importantes para perceber a questão da memória e da preservação. Primeiro, estamos a falar de duas fases distintas — no século XVII até ao século XVIII, temos um período em que a escravatura está em vigor, em que os movimentos abolicionistas ainda são tímidos. Mas depois, no século XIX, sobretudo após a abolição da escravatura na Grã-Bretanha, ou na Inglaterra, surge a questão da pressão inglesa sobre as outras colónias, no sentido de também avançarem com a abolição da escravatura.É aí que entra o caso português e a Comissão Mista instalada na Boavista, que surge na sequência de um tratado assinado entre Portugal e Inglaterra, em 1842, com vista à abolição progressiva da escravatura nas colónias portuguesas.O que traz de novo essa informação?Permite-nos, por exemplo, perceber como é que a Inglaterra, através da Marinha, desenvolvia todo um conjunto de acções não só para pressionar, mas também para vigiar. Dispomos das correspondências dos cônsules, dos representantes da Foreign Office na Boavista, informações sobre como os portugueses violavam constantemente o Tratado de 1842.Dispomos, igualmente, de um conjunto de casos de violência contra escravos libertos que são relatados à Foreign Office em Londres e também nos permite comparar as informações desta parte da Comissão Mista, com uma outra comissão que se instalou em Cabo Verde: a Junta Protectora de Escravos e Libertos de Cabo Verde.Para além de permitir a preservação da memória, estes novos dados vão permitir aos investigadores actualizarem a história?Actualizar a historiografia, sim. Mas também temos de nos lembrar que este Fundo já existia há algum tempo. Porém, isto vai permitir um tratamento mais adequado, actualizar a produção historiográfica nesta matéria e também possibilitar novas análises, tendo em conta um conjunto de informações que muitos investigadores poderão não ter tido o cuidado de explorar devidamente.Quando fala desse conjunto de informações, refere-se, por exemplo, aos nomes, ao sexo e ao local de nascimento dos escravos?Refiro-me, sobretudo, a dados que têm a ver com o tratamento dos escravos, com questões de masculinidades, com a violência praticada sobre os escravizados.Falo sobre a rotina diária dos escravos, sobre os registos de baptismo, e sobre as informações que constam nas cartas de missão ou nas chamadas cartas de alforria.Refiro-me ainda, por exemplo, à informação sobre a religiosidade e a espiritualidade dos escravos.Portanto, um conjunto de elementos que nos permitem reconstruir a realidade da escravatura em Cabo Verde.Dados importantes para o estudo da escravatura no país…Evidentemente. Até porque, em Cabo Verde, não temos propriamente nenhum estudo actualizado e sistemático sobre a escravatura. Parece difícil de acreditar, mas o último grande estudo sistemático e detalhado que temos sobre a escravatura é da autoria do historiador António Carreira.Urge actualizar o estudo da escravatura e com toda a importância que este tema assume na História, Cabo Verde não tem tido a atenção que merece por parte dos académicos.Este reconhecimento da UNESCO poderá ser um novo incentivo?Acredito que sim. Eu já estudei a questão da escravatura em Cabo Verde, mas sobretudo através de artigos especializados sobre temas específicos — mais relacionados com a missionação, com a história eclesiástica, com o baptismo dos escravos, com a violência colonial. Mas há muitos outros aspectos que podem ser estudados e que ainda não o foram.Esta distinção pode contribuir para que se avance nos movimentos de reparação?Evidentemente. Hoje há já um renovado interesse em torno da questão da violência colonial, sobretudo em relação aos movimentos de reparação pelas barbaridades cometidas durante o período colonial. Ainda há dias houve uma reunião. em Nova Iorque, nas Nações Unidas, promovida por um grupo de descendentes de africanos que estão a explorar esta questão das reparações.Há todo um movimento internacional e acho que estes Fundos devem servir de base de estudo e preparação para fazermos um trabalho mais sério e mais objectivo nesta luta pelas reparações.A Unesco reconheceu ainda a candidatura conjunta dos livros e registos de escravos entre Angola, Moçambique e Cabo Verde. "Recenseamento de escravos em Angola, Cabo Verde e Moçambique determinado por decreto português de 14/12/1854". Trata.se de um projecto com 79 livros de registo de escravos nestes trés países, criados principalmente entre 1856 e 1875. A Unesco afirma que estes registos são sobre "uma época em que a escravidão tinha oponentes em todo o mundo" e que esses livros "forneciam registos detalhados, incluindo nomes, sexo, local de nascimento, idade, características físicas, ocupações e informações sobre proprietários de escravos".

O documentário “As Fado Bicha”, realizado por Justine Lemahieu, chega às salas de cinema em Portugal a 17 de Abril. O filme acompanha Lila Tiago e João Caçador, a dupla do projecto musical e activista que revolucionou o fado nos últimos anos e o devolveu às suas próprias raízes dissidentes. A RFI falou com Justine Lemahieu, Lila Tiago e João Caçador sobre o documentário descrito como “um suspiro de utopia” e “uma possibilidade de estender pontes”. O projecto Fado Bicha inscreveu no património da canção portuguesa as vivências de uma comunidade LGBTQIA+ invisibilizada, quebrando e questionando barreiras e normas musicais, de género, de sexualidade e de linguagem. Ao filmar os bastidores, os ensaios, as sessões de maquilhagem, as performances e os momentos de reflexão de Lila Tiago e João Caçador, Justine Lemahieu retrata também o impacto estético, social e político das Fado Bicha. Tudo começou quando a realizadora franco-portuguesa, a viver em Lisboa há vinte anos e que trabalha sobre lutas e formas de resistência, assistiu a um concerto de Fado Bicha, no seu bairro, e soube que queria fazer um filme sobre o que estava a ver e a sentir.“Tudo isto começou porque assisti a um concerto das Fado Bicha no meu bairro, num pequeno bar. Foi assim que eu conheci a banda. Fiquei muito cativada pelo trabalho delas. Fiquei bastante emocionada pela música, pela performance. Senti uma beleza e senti vontade de partilhar essa emoção e a beleza que encontrei. Também senti que essas artistas estavam a fazer um trabalho importante relativamente à reflexão, ao questionamento sobre as normas de género. Também gosto muito de fado e senti que elas estavam a mexer num lugar muito complexo da cultura portuguesa, que estavam a quebrar barreiras e a fazer um trabalho bastante subversivo, politicamente muito forte”, explica a realizadora.Justine Lemahieu ficou particularmente sensibilizada com a canção “Crónica do Maxo Discreto”, na qual encontrou, pela primeira vez, “pessoas que quebravam o tabu das sexualidades escondidas”. Admirativa dessa “coragem de quebrar tabus” e de trazer para cima do palco tantos temas silenciados, não faltaram à cineasta mais razões para querer conhecer e filmar o projecto. Outro motivo com o qual se identificou foi o facto de as artistas cruzarem questões políticas de género com discriminações ligadas à classe social. Depois, a realizadora deixou-se levar pela própria ligação com a cultura portuguesa e quis reflectir sobre o espaço que o fado aí ocupa.“Ocupação” foi justamente o título do disco de estreia, editado em 2022, no qual as Fado Bicha resgataram um espaço queer no Fado. Essa ocupação chega agora ao cinema e quando questionadas sobre o que isso representa, Lila responde que é “estender pontes de identificação”, enquanto João fala em “suspiro de utopia”.“Representa um suspiro de utopia. Nos dias que correm - e no tempo todo que já vivemos, não só nós enquanto pessoas, mas a nossa ancestralidade - poder ver, numa sala de cinema, alguma representação mais pessoal, um olhar mais íntimo sobre a nossa existência, eu acho que traz um rasgo de utopia e também de olhar para o futuro. É, finalmente, também estarmos nesses lugares e sermos representados. A mim deixa-me muito comovido”, conta João Caçador.“É também uma possibilidade de estender pontes. Não é só estender pontes para outras pessoas queer como nós, é estender pontes de identificação, estender pontes de comunidade, de entendimento, a pessoas que não têm qualquer relação connosco, que não tem qualquer relação com a arte queer, com o pensamento queer, que não vêem isso à sua volta, que acham que é uma ficção do estrangeiro. A Justine tem esse lado muito conciliador, muito intimista, muito de nos entender a nós, enquanto pessoas, as nossas inquietações, aquilo que nos move. Então, também permite a pessoas que não têm, se calhar, sensibilidade, porque nunca conheceram ou acham que nunca conheceram ninguém queer. É também estender uma ponte, dizer: ‘Consegues encontrar-te na nossa humanidade também? Se calhar também consegues.' E isso é muito potente”, diz Lila Tiago.O documentário começa com a realizadora a perguntar: “Dizemos as Fado Bicha e não os Fado Bicha. Porquê?” Lila responde: “Dizemos o Fado Bicha ou as Fado Bicha. Usamos o plural feminino como forma alternativa, reparação histórica.” Esta é a chave com a qual entramos no filme, o que nos leva ao peso simbólico da “reparação histórica” através da arte, da música e da língua.“É entender como a linguagem e a língua portuguesa - e qualquer outra - encerra uma série de enigmas que nem sequer estão visíveis a uma pessoa que não queira procurar por eles. Um deles, por exemplo, é a forma como o género está inscrito na língua, temos coisas como o masculino universal, tanto no plural como no singular. Então começámos a usar o plural feminino. Eu utilizo pronomes femininos também e o João utiliza pronomes neutros ou masculinos. Essa noção de reparação histórica é um bocadinho isso, tem um lado recreativo, tem um lado provocador, mas também tem um lado intelectual muito particular, que é de olharmos para a língua e percebermos que, durante séculos, para estes dois corpos - o meu e do João ou quaisquer outras combinações de corpos em que houvesse pelo menos um homem - seria utilizado o plural masculino, por mais que fossem mil mulheres e um homem apenas. Então, nós utilizamos o plural feminino como uma provocação para fazer as pessoas pensar e criar uma disrupção”, explica.A disrupção passa também pela transformação da palavra “bicha”, carregada durante décadas de conotações pejorativas e discriminatórias. No filme, a dada altura, vemos a mão tatuada de Lila e lemos a palavra “bicha”. Ela diz: “A palavra bicha é super importante para mim. É tatuar no corpo de uma forma visível a minha identidade e que ela faça parte da forma como sou vista e lida”. João também tem a palavra tatuada no corpo e explica-nos como é que se trata de mais um gesto artivista.“A palavra bicha passou muito tempo nas nossas vidas como uma identidade que nós tentámos esconder durante muito tempo e, de muitas formas, tivemos vergonha dela e foi usada contra nós de muitas formas. Ao escrevê-la no nosso corpo, é uma espécie de fim de uma negação e de um compromisso social e pessoal porque mesmo que nós queiramos esconder, ela está visível. A Lila tem-na inscrita na sua mão, a minha está inscrita num braço e eu senti que era importante não haver espaço para dúvidas da minha identidade e deixá-la inscrita e visível”, resume.O projecto “Fado Bicha” tatuou também a história recente do Fado, um espaço onde sempre existiram pessoas queer - artistas, fadistas, letristas, poetas - mas sem que isso se reflectisse, por exemplo, nas letras das canções. Com Fado Bicha, isso mudou.“O fado carrega, ainda hoje em dia, 51 anos depois do 25 de Abril, o peso e o impacto que o Estado Novo teve no género do fado. O fado tem uma tradição antes do Estado Novo, até antes mesmo da ditadura militar e até antes mesmo da implantação da República em Portugal, que foi em 1910. Tem uma tradição de dissidência e de intervenção social muito forte, que é uma coisa que a maioria das pessoas não sabe, mesmo na viragem do século XIX para o século XX. Há uma tradição muito forte de fado republicano, de fado anarquista, mesmo durante o século XIX. Tendemos a pensar que o fado sempre foi sobre saudade e marinheiros, mas no século XIX era um fado contra a miséria, contra a Igreja, contra o abuso laboral. Portanto, quando nos acusam que estamos a corromper as bases fundamentais do fado, na verdade, nós estamos a honrá-las porque estamos a ir buscar outra vez esse lado de denúncia e de intervenção social”, sublinha Lila Tiago.Porém, “Fado Bicha” causa ainda “muito desconforto a uma série de pessoas”, acrescenta a artista. A ilustrar isso mesmo foi o facto de Justine Lemahieu ter sido obrigada a retirar uma sequência do filme relativa ao videoclip “Lila Fadista”, uma adaptação do fado “Júlia Florista”. Os herdeiros de um dos autores deste fado recusaram ver o documentário e não licenciaram os direitos da canção. Lila e João são várias vezes confrontadas com este tipo de situações, ainda que faça parte da própria tradição do fado a interpretação de canções que já existem.O documentário “As Fado Bicha” chega aos cinemas portugueses a 17 de Abril, depois de ter passado nos festivais IndieLisboa e no Queer Porto em 2024 e no Thessaloniki Documentary Festival este ano.[Além da entrevista a propósito do filme, pode ouvir, abaixo, outra das entrevistas que as Fado Bicha deram à RFI, em Maio de 2022, na qual tocaram, por exemplo, “Crónica do Maxo Discreto”.]

A escritora e socióloga cabo-verdiana Miriam Medina apresentou no fim-de-semana, 29 e 30 de Março seu livro Filhas da Violência em Paris. A obra trata da violência entre familiares, revela os impactos profundos nas vítimas e defende a necessidade de ações concretas contra a violência baseada no género. A autora iniciou o trabalho sobre o tema em 2017, dando palestras em escolas e ouvindo relatos de meninas e adolescentes vítimas de agressão e de violência dentro de casa. RFI: O seu livro não só denuncia a realidade dessas jovens, mas também dá voz e tenta sensibilizar a sociedade sobre o problema?Miriam Medina: Sim. Desde 2017, tenho vindo a trabalhar a questão da violência contra meninas e mulheres. Já escrevi três livros. O meu primeiro livro foi sobre a violência no namoro, que se chama Se causa dor não é amor, e relata a violência nos relacionamentos de meninas na faixa dos 14, 15 anos. Depois, escrevi o segundo livro, Uma dor além do parto, que aborda a violência obstétrica em Cabo Verde. E este terceiro, cuja apresentação pública fiz no mês de Novembro de 2024, primeiramente em Cabo Verde, e em Março comecei a apresentação em alguns países da Europa, como Luxemburgo e Paris. Agora estou em Lisboa para a apresentação na sexta-feira, e no dia 12 de Abril será em Madrid.O que a levou a transformar os relatos das vítimas num livro?O primeiro livro que escrevi foi motivado pelo facto de uma amiga minha ter sofrido violência no namoro em Portugal. Eu estava em Cabo Verde quando ela entrou em contacto comigo. Quando fui fazer a minha licenciatura no Brasil, fiz um estágio numa favela e trabalhei exactamente essa questão da violência nos relacionamentos. Muitas meninas estavam em relacionamentos abusivos. Em Cabo Verde, falamos muito sobre a violência baseada no género, que normalmente ocorre quando a mulher já mora com um homem, tem filhos, etc. Mas no namoro, que muitas vezes é onde essa violência começa, eu não ouvia nada. No dia seguinte, entrei em contacto com as câmaras municipais do país e solicitei uma parceria para ir às escolas secundárias e ministrar palestras, a fim de entender melhor a realidade do amor na vida dos nossos jovens.Já na primeira palestra que realizei, na Escola Secundária Pedro Gomes, em Achada Santo António, falei para 25 meninas de 14 e 15 anos e fiquei estupefacta ao perceber que todas já tinham sofrido algum tipo de violência no relacionamento, seja ela física, psicológica ou sexual. À medida que fazia as palestras, sentia a necessidade de dar a conhecer essa realidade à sociedade, não só através das minhas entrevistas, mas também colocando tudo por escrito para dar uma ideia real do que estava acontecendo diante dos olhos de todos. Mas parecia que ninguém queria ver. E foi assim que comecei a escrever. É uma leitura indigesta, mas necessária. Quando escrevi o primeiro livro, jurei que nunca mais escreveria sobre violência. Mas acho que é uma missão que tenho, porque já estou a escrever o quarto. E é sobre violência também. Acho que isso se deve, em grande parte, ao impacto que o meu trabalho tem tido, não só para essas meninas, mas na sociedade como um todo.Como é que a sociedade pode criar um ambiente mais seguro para que as vítimas de violência familiar consigam falar?A violência acontece dentro da própria casa. Acho que é necessário promover uma mentalidade de sensibilização por parte dos pais e encarregados de educação. No contexto intrafamiliar, há meninas são abusadas sexualmente pelo pai, padrasto, irmão, tio, primo. Ficam em silêncio porque essa violência acontece dentro do próprio lar, e a família muitas vezes inibe as vítimas de denunciarem. Elas são ameaçadas e enfrentam a vergonha de expor o que aconteceu. Se o abuso for cometido por um pai ou padrasto, por exemplo, há um receio enorme do julgamento da sociedade. Isso faz com que essas meninas acabem por se sentir culpadas. Portanto, é fundamental trabalhar também com as famílias.De que forma o seu livro Filhas da Violência tem sido recebido pelo público em Cabo Verde?Não só em Cabo Verde, mas também aqui na Europa, senti um grande impacto. Mesmo antes de apresentar o livro em certos países, ele já chegou a esses lugares. Por exemplo, na Suíça, no último fim de semana, houve um evento sobre o Dia da Mulher Cabo-Verdiana, e o livro já está a causar impacto sem que eu tenha estado presente. Isso deixa-me muito feliz, porque significa que a mensagem está a sensibilizar homens e mulheres. Em Paris, fiz duas apresentações que foram das mais impactantes que já realizei. Senti que as mulheres, as vítimas, precisavam de um espaço para falar. Foi muito poderoso. Muitas mulheres partilharam as suas histórias, algumas com 50 anos, relatando abusos sofridos quando tinham 11, 14 anos. E claro, esse trauma ainda persiste nas suas vidas.Porque ao ouvir falar deste tipo de violência, há uma identificação que cria uma abertura para falar?Sim, está a acontecer isso. Como disseram em Paris, foi uma revolução. Pedi ao público presente que eles mesmos, enquanto comunidade cabo-verdiana, criassem esses espaços de fala e partilha. O abuso também acontece dentro dessa comunidade, porque são questões transversais. Não sou eu que preciso estar lá para falar desses temas, mas a própria comunidade pode criar esses espaços.E por que foi uma revolução?Porque eu não esperava tantos testemunhos. O ambiente ficou tenso e muito emocionante. Acho que as mulheres se inspiraram nas que começaram a partilhar no início do evento. Foi um efeito dominó. Uma começou a falar, depois outra e outra, e assim sucessivamente. Tivemos vários depoimentos naquele dia. Para teres uma noção, o evento deveria terminar às 15h00, mas saímos de lá às 18h00.Nunca se falou tanto sobre a luta contra a violência sexual como hoje. Enquanto escritora e socióloga que acompanha essa temática há anos, sente que houve uma transformação? Sim, eu sinto isso. Quando faço palestras, percebo que os jovens são grandes agentes de transformação e mudança. Sempre os desafio a criar espaços de interajuda e partilha nas escolas, e isso já está a acontecer, inclusive no Brasil. Em Niterói, por exemplo, criaram uma sala específica para esses diálogos, porque há muitos problemas que os jovens trazem de casa para a escola. Acredito que essa transformação está a acontecer. É preciso incentivar e sensibilizar não só a comunidade educativa, mas a sociedade como um todo. Cada um deve fazer a sua parte e ser um agente de mudança. Se não tivermos um pulso firme nessa problemática da violência, daqui a pouco não teremos sociedade, porque a situação está gravíssima.As escolas podem e devem desempenhar um papel activo na prevenção e no apoio às vítimas de violência?As escolas, as igrejas... Todos nós somos chamados a essa causa. Homens e mulheres, todos devemos actuar nesse sentido.Há muitos casos de violência contra mulheres em Cabo Verde? Existem registos do número de casos de violência?Sim, há registos. De vez em quando, os números parecem baixar, mas surgem logo novos casos de feminicídio. Fico, por vezes, frustrada, porque tenho feito muitas palestras, não só nas escolas, mas também nas comunidades e em empresas. Dou entrevistas e informação não falta.Mas o silêncio continua...Sim, ainda há um silêncio ensurdecedor. Precisamos ser incansáveis, insistir nesta questão. Se cada um fizer a sua parte, poderemos mudar essa realidade. Mas essa mudança deve começar dentro das nossas próprias casas.

O filme Les Habitants estreou esta segunda-feira, 24 de Março, no festival documentário Cinéma du Réel, em Paris. A realizadora Maureen Fazendeiro filma a cidade onde cresceu, Périgny, na região parisiense, onde a instalação de um acampamento de ciganos gera xenofobia e divisões. Através das cartas que recebe da sua mãe, a realizadora retrata o dia-a-dia desta cidade e a solidariedade de alguns habitantes. Maureen Fazendeiro faz um filme sobre "a negação do mal-estar, da pobreza — tudo aquilo que a sociedade não consegue integrar, acolher e acaba por marginalizar". RFI: O filme Les Habitants estreou no Festival de Documentário Cinema du Réel, em Paris. O que a motivou a fazer um filme sobre Périgny-sur-Yerres e sobre a comunidade cigana?Maureen Fazendeiro: Eu vivo em Portugal há dez anos e vejo França ao longe. A minha mãe nunca me escreve cartas, mas quando apareceu uma comunidade de pessoas ciganas na cidade onde ela vive, sentiu a necessidade de me contar o que se estava a passar. A primeira carta foi enviada de maneira completamente espontânea, pedi-lhe para continuar a escrever sempre que fosse visitar o acampamento, porque senti que havia algo a acontecer naquela cidade que, ao mesmo tempo, era muito específico. Era a história da minha mãe, mas também uma história muito comum em França, nos arredores das grandes cidades: famílias que se instalam, constroem bairros de lata e, poucos meses depois, são expulsas, vivendo neste ciclo desde a entrada da Roménia na União Europeia, sem que haja nenhuma transformação, nenhuma reacção ao nível da sociedade, como se fosse algo aceite — que as coisas acontecem assim.Como se fosse normal.Sim, como se fosse normal. E foi isso que quis retratar no filme. Ou seja, a minha mãe conta, nas cartas, o que aconteceu durante os meses em que essas pessoas estavam a viver naquela cidade. Nós vemos o dia-a-dia, a banalidade do quotidiano, tal e qual como é. E a verdade é que o que aconteceu nessa cidade acontece em todas as outras. São 3.000 habitantes e há apenas dez pessoas que vão ver se precisam de mantas, de comida, de alguma coisa. Eu quis retratar esses gestos. Não gosto de falar de doença, mas, para mim, havia um sintoma da sociedade francesa. Ou seja, o filme não é só sobre a comunidade cigana que não é bem recebida, é sobre a maneira como olhamos para os outros, como recebemos aqueles que têm um modo de vida diferente. Acho que o racismo está muito presente na sociedade francesa, e foi isso que quis retratar no filme.É também um filme sobre não olhar para o outro?Sim, é um filme sobre não querer ver os outros. A minha mãe explica, nas cartas, que quase toda a gente naquela cidade queria que eles fossem expulsos, usando palavras muito duras para com essas comunidades. Mas ninguém foi lá ver. Eles estavam escondidos atrás de uma zona de bosque, e ninguém se preocupou em perceber realmente quem eram. Porque acho que, a partir do momento em que fossem ver, perceberiam que são pessoas que vivem numa situação difícil. Eu quis fazer um filme sobre a negação do mal-estar, da pobreza — tudo aquilo que a nossa sociedade não consegue integrar, acolher e acaba por marginalizar.O seu filme Les Habitants procura retratar o dia-a-dia desta comunidade sem a mostrar. Essa comunidade é invisível. O que vemos, durante pouco mais de 40 minutos, é o dia-a-dia da sua mãe, Valérie, que tem um olhar curioso e se aproxima dessa comunidade. Em que momento, na troca de correspondências com a sua mãe, percebeu que havia um filme para fazer?Acho que logo na primeira carta percebi que não sabia se havia um filme, mas havia algo a explorar. Quando lhe pedi para continuar a escrever, ainda não sabia se conseguiria fazer um filme ou que tipo de filme seria, mas queria perceber melhor. As cartas que ela me escreveu tinham descrições muito concretas dos lugares e de tudo o que ela estava a viver. Ela ia buscar roupa suja ao acampamento para lavar em casa e devolvê-la depois. Ia todas as semanas tratar da roupa das pessoas. Achei que as descrições eram tão detalhadas que, através delas, eu já conseguia visualizar tudo. Por isso, percebi que não precisava de filmar o acampamento, mas sim outra coisa: o resto da cidade que decidiu não ver essa comunidade e a forma como essas pessoas vivem. A estrutura do filme só começou a ganhar forma para mim depois de tudo ter terminado — depois de parar de receber cartas, depois da expulsão. Foi então que comecei a filmar e a procurar uma outra maneira de olhar para aquela paisagem.As imagens do filme são muito bonitas. São imagens da natureza, do renascer, da construção. Como é que as escolheu?Procurei explorar a cidade como se fosse um lugar que não conhecia. Aprendi coisas que nem sequer sabia. Por exemplo, que, nos anos 70, a cidade teve uma produção de flores muito importante, exportando rosas para Paris. Isso explica por que havia tantas estufas abandonadas onde as pessoas ciganas montaram o acampamento. Também descobri que as ruas daquela cidade têm nomes de flores. Compreendi melhor a história: campos transformados em estufas para produzir flores lindas, depois abandonadas durante uma crise económica, quando a produção foi deslocada para a Índia e para outros países. O único espaço abandonado que ainda estava de pé foi precisamente onde os ciganos tentaram instalar-se. Há algo de irónico nisso. A rua que ladeava o acampamento chamava-se "Allee de l'Europe" (Rua da Europa), e era exactamente ali que os romenos, não aceites, tentaram viver.Esse acampamento acabou por ser desmantelado em 2018. Acompanhou a história da chegada desta comunidade cigana ao acampamento e ao seu desmantelamento. Chegou a filmar o acampamento, mas não o mostra no filme. Porquê?Sim, fui ao acampamento, conversei com eles, ajudei a minha mãe a ajudar. Mas não achei que mostrar a história de uma relação individual tornaria o filme mais impactante. Eu não acho que o cinema mude a realidade, por isso quis fazer um filme mais seco e talvez mais duro. O final do filme é muito duro, porque percebemos que este é um ciclo sem fim. As cartas terminam porque as pessoas se vão embora, e o filme quase tenta procurá-las, mas elas já não estão lá. Esse fim deixa-me sempre zangada, porque reflecte o ciclo infernal que estas pessoas vivem.O seu filme propõe uma reflexão ao público. Como espera que ele reaja?Espero que o filme seja um espaço para o espectador pensar sobre o seu papel na sociedade. Não quero impor uma opinião, mas sim proporcionar um espaço de reflexão.De que forma é que a sua história pessoal, o facto de ter crescido nesta cidade, influenciou a forma como aborda o tema da habitação e da integração?Bom, eu tenho uma relação complexa com essa cidade porque não foi o melhor lugar para ser adolescente. É muito estranho como essas cidades são construídas sem nenhum lugar para as pessoas estarem juntas. Acho que isso também tem a ver com esse afastamento e essa impossibilidade de se relacionar com os outros. O individualismo é um modelo que domina essa cidade, até na sua construção e na maneira como as pessoas não estão juntas, porque nem sequer há um lugar para estarem juntas.Apesar de tudo, tentei filmar todos os lugares onde as pessoas estavam, mas são muito poucos – uma cascata, uma ponte. Mas não existem cafés, não existem padarias, não há uma vida social local ou, se há, é muito fraca. Nunca pensei que ia filmar esta cidade antes de isso acontecer e, quando aconteceu, achei que tinha que o fazer.Porque é uma cidade também de imigração, não é?É uma cidade de imigração. Todos os arredores de Paris são, não é? Espanhóis, portugueses, italianos que chegaram nos anos 60 e 70 ficaram mais perto de Paris. Depois, com o tempo, segunda e terceira gerações foram-se afastando de Paris e ocupando estas zonas mais suburbanas com casas.Eu questionei um bocadinho o lugar da minha família nesta cidade e o lugar das famílias romenas. A minha mãe escrevia-me: "Eles são como nós". Ela estava a perceber que eles poderiam ser como o meu avô, que chegou ao final dos anos 60 a França. Ou seja, havia um paralelo entre a minha história familiar e o que estava a acontecer agora. Só que, entretanto, os portugueses já se integraram na sociedade e agora estava a ver outra comunidade que ainda não tinha lugar na sociedade francesa.Acha que o facto de termos uma família imigrante nos leva a ter um olhar mais atento em relação às novas comunidades imigrantes?Infelizmente, acho que não. É uma coisa muito triste, mas vejo esse medo. Acho que o filme também fala disso, não é? Do medo do outro. Parece quase que há um receio de que esses recém-chegados ocupem o lugar que nós conquistámos.Essa cidade tem resultados eleitorais em que a extrema-direita é sempre muito forte. Apesar de serem cidades com franceses – são franceses –, quase toda a gente vem de outras origens, tem uma história de imigração. Para mim, é espantoso como esquecemos o nosso percurso, o percurso da nossa família, e como, para defender aquilo que conquistámos, fazemos quase o contrário do que deveríamos fazer ao pensar na nossa história.Les Habitants estreou na segunda-feira aqui no Festival do Réel. O seu filme está em competição. Como é que foi apresentá-lo pela primeira vez ao público? Sim, foi uma noite bonita. Foi importante porque a minha mãe estava na sala. Ela escreveu-me cartas, assim como outras mulheres que foram visitar o acampamento, e elas também estavam presentes. A equipa também estava lá. Foi uma noite bonita. Acho que o filme foi bem recebido.De que forma acompanha e assiste, mesmo à distância, uma vez que vive em Portugal, aos sucessivos cortes orçamentais deste governo? O Orçamento do Estado para a Cultura deste ano teve um corte de 50 milhões de euros. Isto é grave?É grave. Muito grave, e é sempre uma grande preocupação. Vivo há dez anos em Portugal e nós olhamos sempre para França quase como um modelo.É grave porque não é um bom augúrio para os outros países. Ou seja, quando começa assim em França, o risco é que o resto também siga esse caminho. Acho que nem é só sobre França – podemos falar da Europa.Muitos festivais de cinema, por exemplo, são um espaço muito importante para apresentar filmes fora do circuito comercial. Há muitas regiões que têm cortado orçamento e, no próximo ano, muitos festivais não sabem se vão conseguir continuar a funcionar e a existir. Isso é muito grave porque um festival de cinema ou todas as outras formas de arte são maneiras de nos juntarmos, de trocarmos ideias e de estarmos juntos numa sala de cinema.E isso é muito importante. Quanto mais deixamos de estar juntos e de pensar juntos, mais ficamos isolados – e quanto mais ficamos isolados, mais a extrema-direita cresce.

Durante a segunda metade do século XX, Paris serviu primeiro de escola de arte e depois como cidade agregadora do pensamento africano, com os maiores vultos culturais senegaleses, americanos, cubanos ou angolanos a passarem pela Cidade da Luz. A exposição "Paris Noir", no Centro Pompidou, conta este período e quer projectar estes artistas pioneiros no futuro. No pós-Segunda Guerra Mundial, numa altura os movimentos das independências estavam em pleno andamento em África, muitos pintores, escultores, mas também filósofos, escritores, poetas e pedagogos africanos ou vindos das Américas instalam-se a Paris, participando nas grandes correntes artísticas como o surrealismo ou o abstracionismo a partir dos anos 40. No entanto, esta passagem não tinha qualquer reflexo nas retrospectivas organizadas até hoje no Centro Pompidou, um museu parisiense dedicado à arte contemporânea.Esta reflexão, levou os curadores do museu a idealizarem a exposição "Paris Noir", aproveitando a ocasião para mostrar 40 obras adquiridas nos últimos anos pelo fundo dedicado ao continente africano no seio desta instituição francesa. Em entrevista à RFI, Eva Barois de Caevel, comissária associada desta exposição, explicou que a palavra noir, ou preto, vai muito para além da definição de uma raça ou de uma geografia, mas que a exposição agrega diferentes artistas que devido às suas origens foram vítimas de racismo ou subvalorizados no mundo da arte."Nesta exposição temos também, por exemplos afro-colombianos e afro-brasileiros, assim como cubanos ou dominicanos. É muito importante porque esta não é uma exposição sobre geografia ou raça. É uma exposição que trata de uma experiência comum compartilhada e estes artistas fazem parte da História. Para encontrarmos estes artistas, muitas vezes é levada a cabo uma investigação aprofundada sobre cada um e, a partir de um, descobrimos um outro e um militante pela resistência, muitas vezes leva-nos a outro militante. E descobrir estes artistas e fazê-los descobrir ao público foi o nosso mote e posso mesmo dizer que descobrimos muitos mais, mas não conseguimos mostrar todos. Às vezes o público até pode achar estranho já que a nível geográfica não ficamos só em África, mas não tem só a ver com ser negro e africano. Por exemplo, estamos a expor aqui um artista indiano, Krishna Reddy, que viveu em Paris vários anos e estava na cidade durante o Maio de 68 e foi vítima de racismo porque era constantemente confundido com um argelino. E as suas obras reflectem isso. E, assim, claro que nesta exposição não nos cingimos só a artistas de países francófonos, mas temos também lusófonos e artista vindos de outras regiões", explicouA história desta exposição começa a ser contada em 1947 quando é fundada a editora Presença Africana, pelo senegalês Alioune Diop, com a consciência negra a sedimentar-se à volta de pensadores como Leópold Sédar Senghor com a participação de Aimé Césaire, político, poeta e escritor da Martinica, e da sua mulher, Suzanne, a participarem na revista Tropiques. Juntam-se a esta efervescência artistas afro-americanos como o escritor James Baldwin ou o pintor Beauford Delaney.É neste clima que se realiza o primeiro congresso de artistas e escritores negros na Sorbonne em 1956. Ao mesmo tempo, Sarah Maldoror, uma jovem francesa com origens na Guadalupe, cria em Paris a primeira companhia de teatro para negros depois de constatar, ainda como actriz, que só lhe davam papéis de empregada de quarto tanto no teatro como no cinema. Foi exactamente no círculo da editora Presença Africana que Sarah Maldoror conheceu Mario de Andrade, escritor e fundador do Movimento Popular de Libertação de Angola, que viria a ser seu marido.Este encontro levou-a a interessar-se pelos diferentes movimentos de libertação nos países lusófonos em África, com Maldoror a realizar algumas das obras cinematográficas mais emblemáticas destes movimentos como Armas para Banta, rodado em 1970 na Guiné-Bissau, ou SAMBIZANGA, rodado em Angola em 1973."A escolha de Sarah Maldoror era óbvia para nós desde o início para figurar nesta exposição. Por um lado, porque Maldoror é uma artista fascinante, mas também por causa de um aspecto realmente importante que é o facto de a história de muitos dos artistas nesta exposição nunca ter sido registada ou cuidada pelas instituições francesas. Foi sim, cuidada pelos próprios artistas ou por pensadores contemporâneos. Sarah Maldoror é uma figura extremamente importante nesse aspecto. Trabalhámos com a sua filha, Anouchka de Andrade e foi a Anouchka quem nos emprestou algumas das obras da exposição. Teremos uma mostra de cinema com os filmes de Sarah Maldoror em Abril e ao longo da exposição vamos mostrando aqui trechos dos seus filmes . Ela tem não só esta faceta de coleccionadora, mas de documentarista e queremos homenageá-la. Conseguimos restaurar os seus filmes e estamos muito interessados em continuar a estudar os seus interesses e como eles entraram no seu cinema. E, claro, o seu compromisso militante , que acho que também será celebrado durante a retrospectiva, com muitos testemunhos, muitos convidados, entre eles artistas. Será um grande evento dentro desta exposição", disse Eva Barois de Caevel.Entre algumas das obras dos fundos de Sarah Maldoror apresentadas nesta exposição, estão dois quadros do pintor angolano Vítor Manuel Teixeira, conhecido como Viteix, que se instalou em Paris em 1973. Viteix vai voltar a Angola em 1976 tentando através da sua arte criar uma união nacional e concluindo alguns anos mais tarde uma tese de doutoramento na Sorbonne sobre este tema.A exposição estende-se até aos anos 2000, com muitos artistas e combates a passarem por Paris como testemunham as obras de Victor Anicet, Basquiat ou o dominicano José Castillo. Mas esta é, sobretudo, uma exposição virada para o futuro, sendo a última a ser apresentada neste museu parisiense antes de grandes obras de reabilitação que deverão durar até 2030. Nesse momento, o desejo de Eva Barois de Caevel é que o Centro Pompidou reabra as suas portas com uma nova visão da cultura e intervenção social."Esta é realmente uma exposição que para nós é um ponto de partida, como uma grande cartografia que serve de primeiro marco e que a partir de 2030 se vai desdobrar em propostas temáticas para o museu. Há muitos assuntos que podemos retirar daqui desde o militantismo, à questão da Argélia ou à questão da tricontinentalidade, todos esses são assuntos que precisam ser abordados em sua totalidade", concluiu a comissária associada.

A exposição Sebastião Salgado: Obras da Coleção da MEP está exposta no Centro Cultural Les Franciscaines, em Deauville, e apresenta um retrato das últimas décadas da história humana. Sebastião Salgado documenta o sofrimento, mas também a dignidade do ser humano em tempos de cataclismos sociais e naturais. Na exposição vemos algumas das obras mais emblemáticas, nomeadamente em África durante os anos 70 e 80, quando a guerra, a fome e a seca dominavam o continente, deixando marcas nas populações. Em entrevista à RFI, no espaço da exposição, Sebastião Salgado fala com a mesma intensidade com que fotografa. Em cada palavra, transparece a visão crítica, mas também a sua compreensão da história social e política. Para ele, a fotografia, é mais do que uma arte; é um registo da realidade que não se pode desvirtuar. Através do olhar atento e sensível, Sebastião Salgado afirma que, por mais que a inteligência artificial consiga criar imagens, a fotografia continua a ser um reflexo do presente, um “corte representativo do planeta naquele momento”. Não há espaço para substituições: "A fotografia é outra coisa", diz Sebastião Salgado, defendendo que a essência da fotografia está na sua ligação com o mundo real.Hoje, quando o digital parece diluir as fronteiras entre o real e o imaginário, Sebastião Salgado reafirma a importância da memória que a fotografia preserva. Com uma certa nostalgia, lamenta a efemeridade das imagens captadas nos telefones, aquelas que se perdem no limbo digital. O fotógrafo brasileiro sente que, na era digital, a fotografia deixou de ser um testemunho sólido, uma marca que sobrevive ao tempo.A formação e a experiência de Sebastião Salgado são elementos fundamentais no seu trabalho. Economista, sociólogo e antropólogo, o fotógrafo tem uma visão das dinâmicas sociais que orientam o mundo. Essa visão ajudou-o a capturar a transição dos tempos, seja no fim da revolução industrial ou nas grandes migrações que documentou na série fotografica Êxodos. Quando Sebastião Salgado viu a indústria pesada desaparecer nos países desenvolvidos, percebeu que algo maior estava a acontecer: o mundo estava a reorganizar-se. As fábricas estavam a ser transferidas para países com mão-de-obra mais barata; a China, o Brasil ou o México. Mais do que um fenómeno económico, era uma revolução humana.Mas se há algo que continua a dominar a sua reflexão, é a questão do futuro da humanidade. "Estamos a viver num mundo desorganizado", diz. A desordem política e social que caracteriza o nosso tempo é, para Sebastião Salgado, uma consequência do fim de um equilíbrio que parecia mais estável no passado. E o futuro? “Ninguém sabe o que vai acontecer”, diz, visivelmente preocupado pela destruição acelerada do planeta. O olhar do fotógrafo brasileiro está cheio de apreensão, mas também da aceitação quanto à fragilidade humana.Sebastião Salgado recorda, ainda, com uma clareza dolorosa a experiência que viveu em Angola, nos anos 90, e Moçambique, em 1974, onde viveu momento do processo de independência. A violência, a brutalidade, e as tensões que marcaram esse momento da história, de guerra e resistência, são memórias que o fotógrafo carrega. “Fui ferido tanto em Angola como em Moçambique”, lembra. A reflexão sobre a evolução política em África é crítica. Para ele, a corrupção, que muitos tentam mascarar, não é um fenómeno restrito ao continente africano: é um mal comum, uma praga que afecta toda a humanidade. O que acontece em Angola, no Congo, no Uganda, não é um problema isolado – é uma questão de governança , de ética e de valores.A colonização europeia, que deixou a África fragmentada e empobrecida, é uma das grandes responsáveis pela incapacidade de muitos países africanos de se consolidarem como nações. "Apenas 50 anos passaram desde a independência", recorda, com a tranquilidade de quem sabe que o processo de recuperação vai ser longo. Sebastião Salgado não esconde a frustração com o legado da exploração europeia, mas, ao mesmo tempo, acredita que o futuro pode ser mais promissor. "É preciso tempo", afirma, e é este tempo que, talvez, seja o maior luxo que os países africanos podem almejar.A exposição de Sebastião Salgado em Deauville, até 1 de junho de 2025, não é apenas uma exibição de arte, masum convite à reflexão. O fotógrafo brasileiro ensina-nos que, mais do que retratar a miséria, é preciso olhara para os pequenos gestos de humanidade que resistem ao caos. A fotografia de Sebastião Salgado tornou-se num testamento. E, num momento em que o mundo vive muitas vezes à beira do precipício, talvez seja isso que mais precisamos: "testemunhos de uma realidade que não podemos esquecer".

A delegação em França da Fundação Calouste Gulbenkian faz 60 anos e o programa de aniversário apoia vários eventos com artistas lusófonos. Há parcerias com o Festival de Avignon, o Festival de Outono, o Théâtre de la Ville de Paris e a Bienal de Dança de Lyon, mas há, também, dois novos festivais: um de músicas da diáspora ("Lisboa nu bai Paris") e outro de dança, filme e artes visuais ("Les Jardins de l'Avenir"). Na prática, a agenda cultural francesa vai contar, ao longo do ano, com nomes como Marlene Monteiro Freitas, Tânia Carvalho, Vera Mantero, Joana Craveiro, Dino D'Santiago, Branko, Maro, Camané, Mário Laginha, B Fachada e muitos mais. O programa foi apresentado esta segunda-feira, no Théâtre de la Ville, em Paris, por Miguel Magalhães, director da delegação em França da Fundação Gulbenkian. Há teatro e dança, com Marlene Monteiro Freitas, Tânia Carvalho, Vera Mantero e Joana Craveiro, música com Dino D'Santiago, Branko, Maro, Camané, Mário Laginha e B Fachada. Há, ainda, cinema, conferências, residências e exposições, entre muitos eventos.Um dos momentos centrais é o apoio ao espectáculo de Marlene Monteiro Freitas que vai abrir a edição deste ano do Festival de Avignon, dirigido pelo português Tiago Rodrigues. A peça vai estar, mais tarde, no Festival de Outono, em Paris, com o qual a delegação francesa da Gulbenkian volta a colaborar. Além da programação de Marlene Monteiro Freitas nesse festival, há, ainda, um espectáculo de dança de Tânia Carvalho e Israel Galvan e outra performance encenada por Tânia Carvalho com alunos dos conservatórios de Paris e Lyon em torno do centenário de Pierre Boulez.No Théâtre de la Ville - Sarah Bernhardt, a Gulbenkian vai apoiar o festival de artes do palco Chantiers d'Europe, que nesta edição reúne artistas de sete países, incluindo de Portugal. A 9 de Junho, o Théâtre de la Ville –Sarah Bernhardt, é palco de um encontro entre música clássica e fado tradicional, com a Orquestra Filarmónica Portuguesa, Camané e Mário Laginha. O autor e compositor B Fachada sobe a palco a 5 de Junho no Théâtre de la Ville-Les Abbesses. De 10 a 15 de Junho, Joana Craveiro apresenta-se, pela segunda vez, neste festival, agora com a peça de teatro “Intimidades com a Terra”. Na dança, Tânia Carvalho e um bailarino do Ballet National de Marselha / (La) Horde sobem ao palco a 28 e 29 de Junho.Ainda no Théâtre de la Ville - Sarah Bernhardt, em Maio e Setembro, estão previstas leituras, encontros e criações em torno da obra que, em 1972, abalou e foi proibida pela ditadura - “Novas Cartas Portuguesas” - de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. A delegação em França da Gulbenkian também apoiou uma nova tradução para francês da obra, por Ilda Mendes dos Santos e Agnès Levecot, a qual chega às livrarias a 18 de Abril.A 7 e 8 de Junho, no Parque Enclos Calouste Gulbenkian, em Deauville, acontece a primeira edição de “Les Jardins d'Avenir”, um festival entre dança, filme e artes visuais. Nestes jardins, vão ser apresentadas, por exemplo, a peça “L'oracle végétal” das coreógrafas Ola Maciejewska e Vera Mantero e a performance participativa de Ana Rita Teodoro e Alina Folini. Há, ainda, uma projeção de filmes de Jorge Jácome e Ana Vaz e obras plásticas de Christodoulos Panayotou e Elsa Sahal.A encerrar o programa de aniversário, está o festival de músicas urbanas de inspiração africana “Lisboa nu bai Paris”, comissariado por Dino D'Santiago e que vai decorrer na Gaité Lyrique, em Paris, no final do ano.Nas artes visuais, a delegação promove várias residências artísticas e curatoriais em França para artistas e comissários lusófonos. Este ano, por exemplo, a artista moçambicana Lizette Chirrime vai estar três meses em Paris no âmbito do programa Gulbenkian -Thanks for Nothing.Para reforçar a divulgação da criação portuguesa em França, a delegação continua o programa “Expositions Gulbenkian”, um apoio que se destina às instituições culturais que pretendam mostrar artistas portugueses.A Biblioteca Gulbenkian de Paris vai organizar, ainda, conferências e jornadas de estudo em torno dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões. Por outro lado, a realizadora francesa Claire Denis está a preparar um filme sobre a “Ode Marítima” de Fernando Pessoa.A agenda dos 60 anos conta, também, com o lançamento do podcast “Parcours d'artistes”, uma série sobre histórias de artistas portugueses que viveram ou vivem entre Paris e Lisboa.

O Museu Mafalala, em Maputo, tem patente, desde 20 de Fevereiro e até 16 de Março, e exposição "As Paredes Também Falam", uma mostra individual do artista Vasco Manhiça, com curadoria de Ivan Laranjeira. O artista inspira-se na cidade, nos bairros e nas “histórias” contadas pelas paredes que são, para ele, testemunhas das lutas e das aspirações dos moradores. Vasco Manhiça pinta a cidade, os seus bairros e as suas gentes, através de formas abstractas e densas, cores fortes, palavras e símbolos que vão atravessando as suas telas. Ao longo dos becos ou das avenidas, ele deixa-se levar pelas histórias que contam as paredes, que encara como camadas de memória traçadas pelo tempo e que são testemunhas de lutas e aspirações dos seus habitantes.Agora, é nas paredes do Museu Mafalala que as pinturas de Vasco Manhiça falam e nos convidam a olhar atentamente para as histórias que contam. Vasco Manhiça falou-nos um pouco sobre essas histórias e as inspirações. Tudo começa com a cidade de Maputo e a sua periferia, repletas de “paredes de edifícios antigos” que o foram inspirando por serem os depositários de “camadas da história”.As paredes é que contam as histórias. As camadas contam as histórias através das vozes das pessoas que viveram essas fases históricas. Por exemplo, um cartaz colado em 1994, nas primeiras eleições, esse cartaz conta uma história e apresenta-se desgastado. É como a pele. Tenho uma obra, por exemplo, que se chama “Tatuagem sobre Rugas”. Normalmente, a tatuagem é feita numa pele jovem e lisa, mas com o tempo vai envelhecendo, vivenciando histórias e contando histórias. As paredes também têm essa capacidade. É só nós olharmos atentamente.A partir dessas paredes curtidas pelo tempo, Vasco Manhiça pinta “camadas de tinta que, metaforicamente, são as camadas da história e da identidade”. Estes são temas que têm percorrido a sua obra, que é um espaço onde também se questionam as desigualdades sociais, os apagamentos históricos, as buscas de identidade e memória. Vasco Manhiça reconhece que o seu trabalho “sempre teve essa vertente de activismo social e mais politizada porque não há como fugir disso” quando o dia a dia é feito de resiliência. "As Paredes Também Falam" é a exposição que reabre o Museu Mafalala, depois de vários meses fechado durante os protestos pós-eleitorais, em que mais de 300 pessoas morreram em manifestações reprimidas pelas autoridades. Nascido em Nampula, no norte de Moçambique, em 1978, e criado no Bairro do Aeroporto, nos subúrbios de Maputo, Vasco Manhiça formou-se em Design Gráfico pela Escola Nacional de Artes Visuais, em Maputo, onde também deu aulas, e também concluiu o curso de Design de Comunicação no ca.Medien College, em Essen, na Alemanha. A sua formação foi sendo complementada com viagens pela África, com destaque para o Senegal, Nigéria, RDC e África do Sul, mas também pela Europa, como Portugal, Alemanha, França, Espanha, Holanda e Suíça. As suas influências vão dos moçambicanos Bento Mukeswane, Malangatana, Alberto Chissano, Gemuce, Tomo, Miro, ao angolano Yonamine Miguel e ao sul-africano Ayanda Mabulu, entre muitos outros.Vasco Manhiça obteve o primeiro prémio na Expo-MUSART (2016) e na Biennale TDM (1999). O seu trabalho está representado na colecção do Museu Nacional de Arte em Moçambique, do Museu das Telecomunicações de Moçambique (TDM) e em várias colecções privadas e públicas em Moçambique e vários outros países.No catálogo de "As Paredes Também Falam" pode ler-se: “Com uma abordagem que combina rigor técnico e engajamento social, Manhiça permanece como uma das vozes centrais na redefinição da arte moçambicana contemporânea.”"As Paredes Também Falam", a exposição individual de Vasco Manhiça no Museu Mafalala, em Maputo, está patente até 16 de Março.

A artista Mónica de Miranda apresenta o projecto "Como se no mundo não houvesse Oeste" na 16.ª Bienal de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos. A obra explora a queda do império português e as ruínas coloniais, inspirada no caderno de campo do antropólogo angolano Augusto Visita. Inclui um filme sobre o deserto do Namibe e um sistema cosmológico centrado na natureza e luz, abordando a planta welwitschia, símbolo de resistência. "Como resistir em espaços de opressão, no passado e no presente?", questiona a artista. RFI: Na sua obra "Como se no mundo não houvesse Oeste", estabelece uma relação entre o passado colonial e o presente cultural?Mónica de Miranda: Sim, o próprio trabalho reflecte como é que seria se nós pensássemos num espaço diferente. Ou seja, como poderíamos repensar o nosso lugar no mundo se não tivéssemos o Ocidente. Como esse tempo colonial ele repete-se ainda porque o tempo é cíclico. A partir das reflexões do próprio antropólogo Augusto Zita, tenta pensar como o passado ainda nos afecta hoje. O tempo não é linear e como esse passado colonial e a relação com as hegemonias ocidentais marcaram as nossas paisagens, o nosso tempo, o nosso corpo e de como Augusto Zita, enquanto antropólogo, estudava outras formas de conhecimento para entender o seu lugar no mundo.. Formas de cosmologia indígena angolana, e ele consultava para compreender a história, utilizando as plantas como arquivos vivos, como a welwitschia.Há um caderno de campo que foi partilhado comigo pelo músico angolano Victor Gama, mas nunca foi publicado. Nesse caderno, Augusto Zita faz uma análise da ocupação colonial no território da costa sudoeste de Angola, executando um projecto de investigação que utiliza métodos científicos não ocidentais. Então, como é que nos podemos orientamos no mundo se não tivessemos o Ocidente e este projecto questiona toda a construção do espaço, do tempo histórico e das hegemonias culturais.Como é que esta descoberta e este estudo deste material influenciam e inspiram a sua criação artística?Eu tento sempre contactar com escritores e outros pensadores de outros tempos, e têm sido grandes referências na minha obra. Desde escritores angolanos como Rui Duarte de Carvalho, que também é uma referência fundamental deste trabalho e toda a relação de reflexão antropológica que teve nas práticas indígenas nesta região também.Tal como Augusto Zita são sempre sempre o pensamento e a reflexão de outros artistas, escritores, pensadores, sociólogos do passado que sempre serviram de reflexão para a criação da minha obra. O Augusto Zita, o que me fascinou foi a sua ligação a conhecimentos ancestrais, cosmológicos e como é que ele consultava as antigas plantas: as welwitschias, as mirabilis, onde elas localmente são consideradas entidades sagradas que ligam o terrestre ao divino, um submundo ao mundo terreste e ao mundo mais celestial, e guardam em si - o próprio Augusto Sita usava a planta de uma forma divinatória, que são originárias também da relação de sistemas angolanos - partir também da relação com esta planta. Na verdade esta planta é como se fosse um arquivo vivo da história angolana. E no caderno do Augusto Zito ele vai conversando com a planta. No filme a história da viagem do Augusto visita ao longo de vários cais no Namibe, no sudoeste de Angola, onde ele vai vendo várias ruínas de ocupações portuguesas na Baía dos Tigres, que foi uma antiga aldeia piscatória fundada por portugueses do Algarve que está completamente abandonada. Começa a ser comida pela areia. Ou seja, toda essa memória colonial que vai desaparecendo e o próprio Augusto visita teve um olhar oposto ao olhar do antropólogo sobre culturas indígenas. Ele estudava a ocupação colonial e a partir também do conhecimento das espécies que o rodeavam, dos seres não humanos, as plantas. A partir desta planta, que são plantas que em si elas são símbolos da resistência, num lugar onde nada se mantém vivo, porque é um lugar de seca extrema, em raízes de 30 metros de profundidade e conseguem ir buscar água e demoram dois milímetros a crescer anualmente. Ou seja, algumas das plantas que nós encontramos tinham 3000 anos. Por isso são são consideradas sagradas.Foi, na verdade a planta a grande protagonista no no livro do Augusto Zita e também no filme que está agora patente na Bienal de Sharjah. De certa forma, olha-se também no filme para esse tempo não linear: Como é que a história se vai repetindo, mas também trazendo uma reflexão do tempo ,da cosmologia angolana Bakongo, ou seja, a noção cíclica, onde o tempo não tem começo nem fim, segue os movimentos do Sol, da Terra e da Luz -Onde a visão do mundo é baseada em ciclos de luz e escuridão entre o amanhecer, a morte e a vida. O próprio Augusto tinha uma teoria que era a teoria do tempo escuro, onde ele considerava a luz como uma nova dimensão. Isto leva-nos a uma reflexão e a viagem no meu filme, é feita a partir de uma personagem que ela faz a reconfiguração do diário do Augusto Zita. Mas ela é uma jovem mulher antropóloga, que vai fazendo a viagem que Augusto Zita fez ao longo do deserto. E vai encontrando minas coloniais e vai tendo várias conversas com o mundo que a rodeia. Ela em si também nos chama a um outro tempo; que é o tempo feminino e estes tempos que são cíclicos do passado com as memórias de vários arquivos que se vão ver nos filmes que ela vai tendo várias conversas para além da planta com o fogo, onde vai atirando ao fogo vários documentos da PIDE, que se transformam em assombrações e que nos revelam esse tempo colonial e as suas feridas. Mas também vai tendo conversas com a terra, onde nos vai revelando um tempo mais profundo.Depois, o próprio filme vai viajando a partir de um tempo presente, no sentido em que se vai questionando como é que estas ruínas coloniais fazem parte da paisagem contemporânea do deserto e como a natureza tem um poder de regeneração e de apagar o que já não é necessário e está em desuso. E vai nos também indicando um tempo futuro dos seus sonhos e da sua imaginação. Acaba por ser uma história que se vai contando a partir de uma fabulação crítica, de se conseguir contar a história a partir de um outro lugar que não um lugar do conhecimento dominante hegemónico ocidental.A relação de Augusto Zita com a welwitschia. O significado que essa planta tem no contexto do colonialismo é o da resistência cultural das populações locais. Como encontra o meio termo para trabalhar a história colonial de forma sensível e ao mesmo tempo crítica?O Augusto Visita faz uma reflexão histórica a partir da welwitschia, como um símbolo de resistência às várias ocupações coloniais no território e propõe um espaço de reflexão a partir de uma reflexão poética feminina de também dos actuais sistemas extrativistas de poder, tanto actuais como passados, como se insere o regime colonial e estabelece como é que a natureza, o corpo e a terra e os corpos humanos foram recursos a ser explorados e propõem uma nova epistemologia baseada em conhecimentos indígenas da região. A própria pesquisa do Augusto Zita também tem um paralelo com a ideias do Amilcar Cabral à volta do solo propõe este solo na sua materialidade, que é uma entidade que está sempre em constante transformação e ajuda-nos a partir do seu diário e da sua teoria, à volta do tempo e da luz e do espaço que compõe o seu universo social e cultural. A ligação entre o corpo humano e o corpo natureza e traz para uma reflexão. O Amilcar Cabral já tinha escrito no seu livro de Defesa da Natureza, a integração da terra, que é um elemento fundamental para os processos de libertação. E aqui também na história do Augusto, visito a terra como um espaço de autodescoberta.Depois, no filme onde a jovem antropóloga vai numa viagem para se encontrar a si própria, há uma construção também das suas próprias ecologias de cuidado. E como é que o solo, a terra e as fronteiras se conectam com a política do corpo. E o corpo, aqui entende se como um ser que está em constante movimento e transição e que se relaciona com todos os elementos da natureza; como a terra, a água e o fogo. Arquivos vivos que nos vão contando a nossa história.A escolha do deserto do Namibe como cenário central para o seu trabalho parece estar ligada ao tema da resistência. O que o deserto representa para si, tanto em termos de estética quanto de simbolismo cultural?Principalmente nesta abordagem, a partir da reflexão de Auguso Zita e da sua relação com a planta, acho que o elemento fundamental de reflexão aqui é como a welwitschia consegue sobreviver num espaço de extrema escassez. E isso, em si é uma metáfora para como é que podemos resistir em espaços de extrema opressão, tanto no passado, a partir da opressão colonial, mas também no presente, a partir da opressão extractivista e capitalista e todas as desigualdades ainda presentes. É um reflexo de todo um legado colonial. E a welwitschia em si é esse símbolo de resistência e é a protagonista da história. E aí o interesse de reflectir esse meio ambiente e de como é possível haver um espaço de auto-determinação e de conexão a vários corpos. Esse corpo que penetra a terra e que entra num tempo mais profundo, num submundo e que nos faz pensar também nessas várias camadas do tempo. Depois esse tempo que é necessário para nos fazermos um corpo resistente como a welwitschia, que demora tanto tempo a crescer, mas que vai permanecendo uma vigilante e uma testemunha da própria história, com muitos tempos e muitas transformações. Ou seja, ela acaba por ser mais antiga do que a própria história porque ela ou questiona quem é que escreve a história ou a história que nós conhecemos nos livros. Ela tem uma outra história que não foi escrita.No seu projecto, "Como se no mundo não houvesse Oeste", há uma profunda conexão entre história, cultura e geografia. Parece um processo complexo e muito reflectido. Quanto tempo demora para se construir um projecto como este? Imagino que seja um processo ideológico de muitos anos...Eu costumo dizer que eu gosto de ouvir histórias e gosto de as contar. Mas antes de as contar, eu costumo tentar ouvir as histórias que os espaços têm para me contar. E então esse tempo não se contabiliza porque tem a ver com referências biográficas e e lugares que ocupo social e culturalmente. Os espaços vão me dando as histórias que vou contando. Depois, o processo de produção e de realização de filmes e de exposições, geralmente são processos de investigação que demoram algum tempo. Todos os meus projectos demoram por volta de um a dois anos porque tenho muitas referências literárias, históricas e trabalho geralmente com uma equipa alargada de pessoas, principalmente na construção do filme. Em específico, este filme na sua execução, o filme em si, com uma equipa de produção de cinema -filmámos em 15 dias, mas todo o processo de elaboração de guião ou várias etapas na escrita. Contei também com a colaboração do Ondjaki.Nos textos vamos encontrando à volta de imagens que eu vou fazendo, dos lugares que vou encontrando e que têm estas histórias e vou indicando essas histórias. Ou seja, houve um processo de estar nos locais, fotografar esse espaço e depois, a partir das imagens desses lugares, vou construindo o próprio argumento. Ou seja, o argumento não começa num espaço imaginário, mas começa num espaço real e o próprio espaço real me vai dando uma história que depois vou imaginando em colaboração com outros artistas, com escritores. Tem bastantes camadas e não é uma coisa instantânea. É uma coisa que é um processo que vou encontrando a própria linguagem do trabalho, a própria história. Ela vai- se construindo em colectivo e de uma forma que eu vou encontrando a história. Mais do que ir escrevendo a história, vou encontrando a história e há vários pontos que me vão situando nessa história. E na verdade, acabo por ser um canal para contar a história.Vivemo num tempo acelerado como o de hoje, é preciso tempo para a reflexão, tanto para quem cria quanto para quem vê?Sim, cada vez mais o tempo encurtou o espaço em que nós vivemos, mas também acabamos por não estar por inteiro num espaço. Temos a percepção que podemos estar em muitos lugares ao mesmo tempo e isso acaba por nos criar uma nova dimensão que nos tira, de certa forma, o silêncio de conseguir escutar. Estes espaços que têm estas múltiplas histórias. E é preciso às vezes parar o tempo, esse tempo acelerado contemporâneo em que vivemos na era digital e começar a entender um tempo mais profundo a partir de um espaço de silêncio. Desta forma, o meu trabalho tenta encontrar esse tempo de silêncio e esse tempo mais de um lugar mais feminino que se contrapõe. Esse tempo mais extractivista, acelerado, dominante, fálico. Temos que encontrar esse tempo mais cíclico do nosso próprio corpo como mulher; que tem um tempo para parar, tem um tempo de dor, tem um tempo de regeneração e tem um ciclo. Um ciclo ligado tambem a ciclos da própria noite e do dia, ciclos anuais, ciclos mensais que o nosso corpo tem e a terra está ligado esse próprio ciclo.

A 1ª edição da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau - Bienal MoAC Biss - vai decorrer de 1 a 31 de Maio, em vários espaços da capital guineense, e pretende colocar o país e os seus artistas no panorama mundial da arte contemporânea. Neste programa, falámos com o secretário da Bienal, Mamadu Alimo Djaló, e dois dos curadores do evento, Welket Bungué e António Spencer Embaló. Maio vai ser o mês da cultura em Bissau. A 1ª edição da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau - Bienal MoAC Biss - decorre de 1 a 31 de Maio, em vários espaços da capital guineense. Mamadu Alimo Djaló, secretário da Bienal, promete que “será um evento nunca visto na Guiné-Bissau” para que “a partir da cultura se dê vida à arte que se faz” no país.Esta bienal é um evento que vai acontecer em Bissau, em vários cantos da cidade – centros culturais, jardins públicos e também espaços abertos. Nesses espaços vão acontecer actividades ligadas à arte e à cultura na Guiné-Bissau e também demonstradas a partir dos guineenses na diáspoora, mas também vai acontecer com artistas internacionais que virão à Guiné-Bissau fazer intercâmbio com artistas nacionais. É um evento que durará um mês inteiro, de 1 a 31 de Maio, será um evento nunca antes visto na Guiné e que vai catapultar aquilo que se vive em termos artísticos e culturais na Guiné-Bissau.O tema deste ano é “Mandjuandadi: Identidades em Liberdade”, a partir do conceito de “mandjuandadi”, uma tradição guineense, liderada por mulheres, de rodas comunitárias com cantos e partilha de histórias. No fundo, uma das formas mais populares de afirmação identitária guineense.Na agenda da Bienal MoAC Biss, há concertos, espectáculos de teatro, mostra de cinema, exposições de artes plásticas e visuais, workshops e palestras.A programação está dividida em cinco curadorias: artes plásticas e visuais, literatura, música, conferências e políticas públicas, assim como artes performativas e imagens em movimento. O actor e realizador Welket Bungué, curador para as artes performativas e imagens em movimento, falou-nos sobre a programação no cinema e no teatro, articulada em torno do tema da bienal.O nosso tema é a Mandjuandadi. Estamos a trazer espectáculos de teatro e performances que visam revisitar e celebrar, empoderando, a importância das histórias que têm o continente africano e especificamente a Guiné-Bissau e a sua multiculturalidade como ponto focal, como algo que precisa ser revisitado, reestruturado e celebrado nas suas múltiplas dimensões (…) No cinema, temos 10 filmes seleccionados, algumas produções inéditas e outras premiadas. Vamos dar foco a filmes que tragam visões mais arrojadas, optimistas e reinventivas quanto às visões e possibilidades de convivência e de projeção do futuro do continente africano, sejam elas produzidas por artistas residentes no continente africano ou que venham da diáspora.Além de ser uma mostra do que fazem os artistas guineenses, a Bienal quer promover a produção e criação artística, gerar intercâmbios, iniciar o processo para que a língua guineense, o Kriol, aceda ao estatuto de património cultural nacional e lançar as sementes para um museu de arte moderna e contemporânea na Guiné-Bissau. Por isso, o evento vai ter conferências sobre temas definidos como “estruturantes” para o sector, detalhou-nos António Spencer Embaló, curador para as conferências e políticas públicas. Oiça o programa e as entrevistas nesta edição.

Os universos de três coreógrafos que trabalham em Moçambique, França e Estados Unidos juntaram-se em “Plenum / Anima”, uma composição coreográfica apresentada na Philarmonie de Paris, este fim-de-semana. Este é um espectáculo feito “em contra-mão do que se passa no mundo”, descreve Ídio Chichava, o coreógrafo moçambicano que revisitou a “Sagração da Primavera” de Igor Stravinsky e que mostrou que a "escola moçambicana de dança" deve reivindicar o seu lugar nos palcos internacionais. Este sábado e domingo, na Philarmonie de Paris, o coreógrafo moçambicano Ídio Chichava revisitou a “Sagração da Primavera” de Igor Stravinsky num espectáculo em que foram apresentadas mais duas obras dos coreógrafos Benjamin Millepied e Jobel Medina. Foi uma composição de três peças coreográficas de três criadores que têm escrito a sua história no mundo da dança graças às suas experiências migratórias: Chichava vive entre Moçambique e a França, Millepied entre a França e os Estados Unidos e Medina nasceu nas Filipinas e vive e trabalha em Los Angeles.Numa altura em que se erguem muros e fronteiras, os universos dos três criadores juntaram-se na composição “Plenum / Anima”, um espectáculo feito “em contra-mão do que se passa no mundo”, nas palavras de Ídio Chichava, que falou com a RFI no dia da estreia.O espectáculo tem um sentido muito forte que vai em contra-mão do que está a acontecer hoje no mundo. Na verdade, há estes três universos que se vão cruzar e que vão estar abertos à exposição e à compreensão e ao olhar mais outras pessoas. Para mim, este lugar que é muito mais humano, mas, por detrás disso, a interligação e o espaço em que todos nós podemos coexistir, com pensamentos totalmente diferentes, com ideias totalmente diferentes, com apreciações totalmente diferentes, com aquilo que é a dança e ainda mais pela forma como cada um vê a dança e onde a dança é criada. Estamos a falar de um olhar que é muito mais cultivado pela França, um lugar que é muito cultivado pelos Estados Unidos e outro que é muito mais cultivado por Moçambique. Então, esta noite, para mim, é uma sagração desse encontro de pensamentos totalmente diferentes, mas que, de certa forma, fluem e mostram um lugar de harmonia.A composição “Plenum / Anima” começou com a obra coreográfica do francês Benjamin Millepied e da sua companhia baseada em Los Angeles, L.A. Dance Project, que dançou ao som de uma composição de Johann Sebastian Bach, “Passacaille et Fugue en ut mineur", composta entre 1706 e 1713. Seguiu-se a criação de Jobel Medina, a partir das “Danças Polovtsianas”, compostas em 1869 por Alexander Borodin. A fechar, Ídio Chichava apresentou a sua versão de “A Sagração da Primavera”, composta entre 1910 e 1913 por Igor Stravinsky, com bailarinos da companhia moçambicana Converge + (Osvaldo Passirivo, Paulo Inácio e Cristina Matola) e da companhia americana L.A. Dance Project.As músicas intemporais dos séculos XVIII, XIX e XX foram interpretadas pelos organistas francês Olivier Latry e sul-coreana Shin-Young Lee, que criaram um novo olhar sobre as obras de Borodin e Stravinsky, já que apenas a partitura de Bach foi pensada originalmente para ser tocada num órgão de tubos.Foi a partir deste lugar musical, descrito por Ídio Chichava como “mais orgânico e visceral”, que o coreógrafo desafiou um século de interpretações de “A Sagração da Primavera”. A sua proposta junta movimentos coreográficos de entrega, de luta e de resistência, a sons de cânticos de trabalho e de guerra, mas também afirma a escola moçambicana da dança como um lugar feito não apenas para se encaixar, mas também para se impor.A primeira vez que escutei ‘A Sagração da Primavera' de Stravinsky, sinceramente, fiquei completamente na selva porque a composição é muito eclética e, sinceramente não via a minha experiência como bailarino tradicional dentro daquela composição. Mas, mesmo assim, entrámos no desafio de desafiar o próprio tempo da música, o próprio ritmo da música e isso é que foi o primeiro chamativo para mim. Com a forma como nós aprendemos a dança em Moçambique podemos criar um contraponto, enriquecer mais a composição, trazer um outro olhar, uma outra apreciação diferente das que já têm sido apresentadas."A Sagração da Primavera” foi criada para um bailado apresentado pela primeira vez, em Paris, em 1913, no Teatro dos Campos Elísios, pela companhia Ballets Russes de Serge Diaghilev e coreografada por Nijinski, tendo, então, sido apontada como um escândalo. Porém, foi-se tornando uma referência e, ao longo do século XX, foi trabalhada por diferentes coreógrafos, como Maurice Béjart (1959), Pina Bausch (1975), Martha Graham (1984), Angelin Preljocaj (2001), Xavier Le Roy (2007), Heddy Maalem (2004), entre muitos outros. A assinatura de Ídio Chichava foi defender "a escola moçambicana de dança" e “desafiar as leituras pré-concebidas para esta obra”.Eu venho sempre defendendo o lugar da nossa escola moçambicana de dança e de que forma ela se pode afirmar. Este foi o desafio, foi uma porta claríssima para desafiar, por um lado, as leituras que já são pré-concebidas para esta obra, e, de certa forma, foi também encaixar e partilhar com os outros bailarinos, que são americanos, a forma como nós aprendemos a música e a dança.Sobre o que é essa “escola moçambicana de dança”, Chichava explica que é “marcar o tempo e, de certa forma, fazer contratempos no contratempo da música.” Para isso, também contribuiu o facto de a música ser tocada, pela primeira vez num espectáculo de dança, em órgãos de tubos.O órgão já tem esse lugar que é muito orgânico. Ele dilui completamente aquele lugar mecânico da execução técnica da própria música. Depois, a forma como os dois músicos tocam, a sensibilidade, a escuta, isso cria uma segurança para nós em palco porque cria realmente esse lugar mais orgânico, mais de convivência. Tanto que não resisti, no final, em acabar a peça próximo dos músicos.Os bailarinos dançam, batem com os pés de forma sonante, marcham, levantam-se, entoam cânticos e deixam sair sons gerados pelos movimentos. Os corpos prendem-se e desprendem-se em busca de liberdade, mas também se deixam levar, por uma qualquer força telúrica, que os empurra para a terra-mãe ou para a força matricial do palco. Os figurinos são aparentemente simples, com cores associadas à natureza e à “adoração da Terra”, em referência à própria história da “Sagração da Primavera”, na qual uma jovem seria sacrificada como oferenda a uma entidade divina, conforme um ritual de Primavera. Um mote violento que - admite Ídio Chichava - o fez pensar na história contemporânea de Moçambique e que também fez da peça um “espelho e um reflexo da situação” no seu país.

O Presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou um plano de renovação do Louvre, o museu mais visitado do mundo. A instituição deverá ter uma nova entrada e a obra mais procurada, a Mona Lisa, com 20.000 visitantes diários, deverá passar a ter “um espaço particular”, provavelmente com um bilhete à parte. Neste programa ARTES, falámos com a historiadora de arte Andréa Rodrigues sobre os planos para o Louvre. RFI: O que representa o Museu do Louvre para França?Andréa Rodrigues, Historiadora de Arte: O Louvre tem uma importância muito grande porque o Louvre é "o museu da França". Antes de ser museu, foi uma fortaleza construída por Philippe Auguste na época medieval, no século XII. Foi transformado em residência de reis, no século XIV, por Carlos V, e, durante muitos séculos, esse lugar foi realmente marcado pela monarquia francesa e por esses grandes reis coleccionadores.O Louvre quando foi transformado em museu, foi crescendo, a colecção foi aumentando e hoje é um centro internacional mundial de arte. O objectivo do Louvre não é só mostrar as obras que estão ali, é também ensinar porque é um local de ensino, as pessoas vêm com esse objectivo de aprender, de ganhar conhecimento sobre história da arte. Eu considero que é um local de importância realmente mundial ao nível de arte, por toda a história que tem e toda a colecção que ele conserva.É também o museu mais visitado do mundo. Economicamente tem um peso muito grande para França?Com certeza. Economicamente tem um peso muito grande. O Louvre é frequentado por pouco mais de oito milhões de visitantes por ano. O público estrangeiro é o número maior, se não me engano, mais ou menos 60 a 70% é público estrangeiro de fora da União Europeia, são os americanos - antes eram os chineses, mas agora são os americanos que estão em número mais importante. Depois, há uma percentagem de público francês. Então, a nível financeiro tem muitos ganhos ligados a este museu.Nos anúncios de renovação do Louvre, que foram feitos pelo Presidente francês, ele falou na possibilidade de aumentar o número de visitantes para 12 milhões por ano. O que acha deste aumento? É exequível?Este anúncio do Presidente, essa “Nouvelle Renaissance du Louvre”, com uma nova entrada, vai trazer realmente um fluxo maior. Porém, sim, hoje o Louvre, o percurso clássico com as obras-primas clássicas que todo o mundo quer ver, é um percurso bem difícil, que tem muita gente. Com este novo projecto e esta nova entrada que será feita, o objectivo é aumentar o fluxo, mas facilitar também a circulação desse fluxo no interior do museu. Então, com certeza vai aumentar, mas eu acredito que terá um fluxo muito melhor distribuído dentro do museu.O que pensa da hipótese de colocar a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, que é a obra mais procurada do museu, numa “sala particular”?Eu concordo e gosto porque infelizmente tem muita gente que vem só para ver a Mona Lisa. Eu já tive grupos, na alta estação turística que tem muita gente mesmo, que me pediram para os levar à Mona Lisa. Muita gente vem com esse objectivo de ver essa obra-prima, que é a mais famosa do mundo e a mais famosa do museu. Então, uma sala específica para ela, com todo um recurso pedagógico para facilitar a compreensão também dessa obra, eu acredito que é uma ideia boa. Estou já aguardando e ansiosa para poder fazer essa nova visita do Louvre e poder entrar na “Sala dos Estados” e conseguir mostrar um Ticiano que também está ali, ou um Paolo Veronese que está ali diante da Mona Lisa e que a gente, às vezes, nem consegue explicar por causa de tanta gente que tem. Eu acho que é uma boa opção.Essas obras maiores são esquecidas perante a Mona Lisa?Sim, sim. A “Sala dos Estados” tem uma riqueza enorme de obras do Renascimento, pintores venezianos que, muitas vezes, as pessoas nem olham. Elas vão ali e é só um mar de telefones, tirando fotos da Mona Lisa. Às vezes nem a Mona Lisa elas olham direito, porque é tanta gente que não tem como passar tempo admirando essa obra. E há obras que, infelizmente, passam…Outrora, o Louvre foi considerado como um “templo da arte”. Quando se vai, por exemplo, à sala onde está a Mona Lisa, o Veronese e o Ticiano, ainda podemos olhar para essa parte sacralizada da arte ou é mais uma experiência de turismo de massa?Infelizmente, às vezes, naquela sala, a gente tem um pouco essa impressão de turismo de massa. Mas a nossa responsabilidade enquanto conferencistas, enquanto guias que trabalham com esse público ali, é tentar mostrar para essas pessoas que não há só essa obra, que elas têm que tentar separar um tempo para ver as outras, para tentar tirar esse lado de turismo de massa naquela sala. Nós temos esse papel, eu tenho esse papel.Para toda esta renovação do Louvre, vai ser preciso financiamento. Uma das formas para esse financiamento é a hipótese de bilhetes mais caros para os visitantes que vêm de fora da União Europeia. O que pensa desta medida?É um pouco complicado, realmente. O facto de pagar um bilhete à parte para a Mona Lisa, eu até concordo. Agora, aumentar o custo para os estrangeiros eu acho meio complicado, eu não concordo muito. Claro que vai ser preciso dinheiro para as obras, mas tem muitos mecenas também envolvidos, tem o Louvre Abu Dhabi. Eu acho meio delicado aumentar só para os estrangeiros.A directora do Louvre tinha alertado a ministra da Cultura para problemas no museu. Sente que há problemas de congestionamento, de salas desadequadas, em termos de temperatura, para a conservação das obras, por exemplo?Na verdade, sente-se um pouco. Dentro do próprio museu, como tem um fluxo que está muito dirigido no percurso das obras mais clássicas, a gente vê que tem muitas partes do Louvre que quase não têm fluxo de pessoas e durante a semana há muitas salas que ficam fechadas. Segundo eles, é porque não tem a quantidade correcta de pessoas para trabalhar e para cuidar dessas salas. Então, é meio complicado, sente-se um pouco alguns problemas, até um pouco de stress entre os funcionários.Eu queria agora que falássemos de uma exposição que termina esta semana, "Figures de Fou – Du Moyen Âge aux Romantiques". Houve uma grande evolução na história da arte relativamente a esta "figura"...Sim. Esta exposição, "Figures du Fou" ["As figuras do louco da Idade Média até ao Romantismo"], tem como objectivo mostrar como essa personagem de “o louco” foi representada no decorrer desses diferentes momentos da história da arte. As pessoas não podem imaginar vir visitar essa exposição pensando que vão encontrar uma história da loucura enquanto doença psicológica ou psiquiátrica. Não, não é isso. Na verdade, “o louco” teve vários significados ao longo da história. Havia, por exemplo, “o louco” que era aquele que não acreditava em Deus. Na época da Idade Média, essa pessoa era colocada de lado, à margem da sociedade, era aquele que não tem o senso do mundo e da verdade de Deus, porque a Idade Média é Deus, no período medieval tudo é Igreja e Deus. Depois, houve “o louco” no sentido daquele que deixa tudo na vida para seguir Deus, abandona a riqueza, tudo, como São Francisco de Assis. Há, ainda, o bobo da corte, aquele que vai divertir a corte, o rei, a família real e assim por diante. Depois, há o carnaval, por exemplo, onde as pessoas se fantasiam e esse também era um tipo de louco, de bobo também... A exposição também denuncia "o louco de amor"...O “louco de amor” porque o amor, em si, já era considerado desde a Idade Média como uma loucura porque a pessoa faz loucuras quando está apaixonada. A exposição termina com a questão da loucura enquanto doença que os artistas vão representar, incluindo artistas com problemas psiquiátricos. Então, é uma exposição que traz várias leituras do louco, do bobo. É uma exposição que vale a pena visitar realmente.Qual é a obra-chave para a leitura desta exposição? Há mais de 300 obras expostas, mas há alguma que, para si, melhor represente a exposição?Bom, a exposição abre com uma escultura que vem de uma igreja de Bois-le-Duc e essa escultura é interessante porque desde a Idade Média essa personagem de “o louco” é colocada à margem porque essa escultura está representada na parte externa de uma igreja, no arcobotante da igreja, representando esse louco. Gostei bastante da parte de "o louco de amor" que tem, por exemplo, uma caixinha de marfim, decorada de todos os lados com cenas ligadas a essa questão. Temos aquela história de Aristóteles que se apaixona por Phyllis, amante de Alexandre, o Grande, e faz de tudo para ela deixar Alexandre e ficar com ele. Até esse filósofo, esse homem com o pensamento bem no lugar, pode sucumbir ao amor. Como é que esta figura de “o louco” acabou por ser instrumentalizada e usada como propaganda quer pela Igreja, quer pela monarquia?Sim, é verdade. A gente vê logo ali, na primeira sala, onde tem vários manuscritos religiosos. Esses manuscritos, essas Bíblias, esses livros da época, esses livros de oração vão ser realizados com a figura dessa pessoa que recusa Deus, alguém que é marginalizado, que é representado nu, como um mendigo, como aquele que é jogado de escanteio nos vilarejos e nas cidades da época. São figuras marginalizadas, xingadas, discriminadas e isso é realmente divulgado e os manuscritos são enriquecidos com essas figuras. Mesmo na questão do bobo da corte, essas figuras estão ali só para divertir…Isso também incita a população a seguir sempre o caminho ditado pela sociedade e a não ir para as margens. Não é uma forma de controlar as pessoas?É isso mesmo, é uma forma de controlar, porque tem que se seguir o que é posto como regra, porque senão você está à margem. Então, realmente o controlo existe e vai continuar no decorrer dos séculos, mesmo depois da Idade Média.Também há uns símbolos muito curiosos, grotescos, que surgem nas obras de Bosch, que são os ovos e a galinha. Qual é a simbologia destes elementos?Nós temos várias etapas da figura do louco, da Idade Média até ao Renascimento e ao Romantismo, e chega um momento em que a figura do louco, do bobo, está tão difundida, tão espalhada, que se vê em todo o lugar. Os artistas começam a representar como se o louco aparecesse nas árvores, em vez de frutos e de folhas; as galinhas vão botar ovos e vai sair louco daquele ovo. Vai-se espalhar tanto esse personagem no espaço urbano que ele vai brotar de todo o lugar. Ele vai nascer de todo o lugar, inclusive do ovo da galinha e assim por diante.

As obras do artista-plástico Mambo'o D27, originário de Angola e República Democrática do Congo, têm como ponto comum um objecto: um cabaz de plástico colorido, muito comum em Africa. Por detrás deste objecto estão as histórias de migrantes que, como ele, atravessaram continentes para chegar à Europa. Uma viagem cujo destino final raras vezes se confirma ser o tão esperado eldorado. Mambo'o D27: nome artístico; Neves Zola Sebastião: identidade civil. Nasceu em Luanda e estudou nas Belas Artes de Kinshasa. Chegou a França em 2018 e não tem sido sempre fácil. Paris, a França e a Europa não são o tipo de eldorado que imaginou ser. A imagem "vendida" pelos outros, pelas redes sociais, pela televisão, não é real. Depois de cinco anos a trabalhar com o Atelier dos Artistas no Exílio, um episódio conturbado, encontra-se actualmente em residência artística no Shakirail, um espaço cultural e associativo situado no norte de Paris. Foi aí que a RFI o conheceu e é lá, com vista para os caminhos de ferro que partem para norte e sul do país, que Mambo'o D27 cria as suas obras, preocupado em incentivar a reflexão sobre as representações mentais que temos das migrações.

A Casa da Cultura da Guiné-Bissau organizou um tributo à figura de Titina Silá, heroína nacional e companheira de luta de Amílcar Cabral, através de uma exposição patente em Lisboa até 2 de Fevereiro, na Casa do Comum. Intitulada "Titinas em artes", a exposição procura debater o papel social e histórico da produção artística das mulheres guineenses. Os tons oscilam entre o amarelo e o prateado. A tela é de pintura abstrata. Ao lado, a artista plástica Edna Évora, com o curador Nú Barreto. Juntos, vão acolhendo os primeiros convidados. O evento, organizado pela Casa da Cultura da Guiné-Bissau, reuniu uma centena de pessoas com a presença metafórica de uma personalidade, a heroína nacional e combatente pela independência Titina Silá, e uma questão subjacente: o que é a identidade guineense?Uma pergunta à qual a artista Edna Evora responde com a noção de diversidade e do legado dos antepassados."A identidade guineense somos todos nós. Temos que saber viver juntos na nossa diversidade. Quando eu me exprimo através da minha pintura, que é abstracta... Escrevo de uma certa forma. Pode ser de uma maneira diferente, mas talvez esteja a dizer a mesma coisa que outro artista, que um outro pintor que faz hiper-realismo, ou outra artista que faz escultura.A ideia é ousar a liberdade, porque alguém, atrás de nós, lutou por essa liberdade. É o legado de toda uma geração... Graças a quem temos, hoje, a liberdade de poder exprimir a nossa cultura. Então, de uma certa forma, Titina Silá e todas as outras estão de uma certa forma inseridas no nosso trabalho. Elas é que nos ajudam a pegar no pincel e a ir à frente."Afinal, quem era Titina Silá? Nascida em 1943 em Cadique, na região de Tombali, na Guiné-Bissau, Titina Silá assistiu ao massacre dos estivadores do porto de Pidjiguiti que exigiam melhores condições de trabalho e foram assassinados pela repressão do exército colonial. Titina Silá formou-se na União Soviética, onde realizou um estágio político e uma formação em socorrismo. De regresso à Guiné-Bissau, tornou-se líder na luta contra as forças coloniais, sendo que dirigiu, de acordo com fontes diversas, um comando de mais de mil homens, lutadores pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Titina Silá acabou por ser assassinada em 1973 numa emboscada do exército colonial português, quando atravessava o Rio Farim para se dirigir ao funeral do amigo e companheiro Amílcar Cabral, morto dez dias antes. Desde 2003, a data da morte de Titina Silá (30 de Janeiro) é celebrada na Guiné-Bissau como o Dia Nacional das Mulheres guineenses. O tributo prestado a Titina Silá através desta exposição insere-se no âmbito das celebrações do centenário do seu camarada de luta, Amílcar Cabral. O curador da exposição e também artista-plástico Nú Barreto debruça-se sobre o trabalho das outras duas artistas da exposição, Cunca na escultura e Thayra Correia no design. Ambas convidadas tanto pelo seu talento, como pela coragem de estarem na vanguarda da arte que realizam. "Enquanto curador da exposição, tive a ousadia de juntar as gerações mais novas com trabalhos completamente opostos. Uma faz pintura, outra é designer, outra faz esculturas", começa Nú Barreto."São profissões que, na Guiné-Bissau, não se vêem muito. Pegando no trabalho da Edna, por exemplo, é um trabalho completamente oposto daquilo que se faz, com um pendor muito virado para o simbolismo, no oposto do nosso hiper-realismo.Gosto muito dessa questão da ambivalência na oposição. Porque abre a liberdade expressiva, abre um outro caminho, mostrando que é possível ser diferente de si mesmo. Estamos a construir algo juntos, mas podemos ter liberdades diferentes. Isso é o que eu gosto no trabalho dessas três artistas." Combatentes nas artes como Titina Sila na luta pela independência, estas três artistas guineenses, cada uma à sua maneira também, cada uma com a sua arte, produzem significados e passam mensagens.Para Edna Evora, o importante é que a arta consiga "apaziguar", criar pontes, construir casas comuns mesmo que com linguagens diferentes. "Quaisquer que sejam as divergências, temos que ter a inteligência de funcionar juntos. Se têm apetência para a arte: usem, façam, mostrem. Não fiquem escondidos. Podemos dizer muita coisa com a arte, temos que ousar."E, como diz Nú Barreto, "a arte é política... e a política é arte". Por falar em política, foi possível cruzar-se com o presidente do Parlamento guineense Domingos Simões Pereira, entre um quadro de pintura abstrata e uma escultura hiper-realista. O líder político tece pontes entre política e arte, sendo esta última parte integrante, a seu ver, do processo de independência."Como [Amílcar] Cabral dizia, a própria luta de libertação nacional é um acto de cultura. Porque só um povo cioso da sua identidade, cioso do seu desenvolvimento, assume o propósito da sua libertação. Tendo um líder com esta visão da importância da cultura, e tendo Lisboa como uma capital que abriga um número bastante importante da diáspora guineense, eu penso que conjugam muito bem para que a Guiné-Bissau não continue a fazer títulos só pelos piores motivos, mas que seja capaz de exibir obras de gente da cultura, de gente que pensa a nossa identidade e nos projecta de forma positiva. Enche-nos de orgulho."A exposição Titinas em Artes, patente até dia 2 de fevereiro, enquadra-se nas celebrações do primeiro aniversário da Casa da Cultura da Guiné-Bissau, em Lisboa.

A banda desenhada “Uma História Popular do Futebol”, de Mickaël Correia, Jean-Christophe Deveney e Lelio Bonaccorso, retrata as lutas operárias, anticoloniais, feministas e revolucionárias que também marcaram o desporto-rei. Afinal, “a história do passe é também uma história política”, o “drible” nasceu para fintar a violência racista e o Campeonato Africano das Nações foi “um laboratório do pan-africanismo”, contou-nos Mickaël Correia. A BD, que mostra o futebol como “uma arma de emancipação”, é lançada a 22 de Janeiro, em França. Eis uma história diferente do desporto-rei, da Idade Média até aos dias de hoje, uma narrativa mais subversiva, em que a bola se se joga no campo social e político. Aqui, o futebol vive ao ritmo de lutas contestatárias, é terreno de resistências e de emancipação, dá voz a operários de bairros pobres, a movimentos anticoloniais, feministas e revolucionários. Esta é uma outra história do futebol, distante dos brilhos das bolas de ouro, das transferências milionárias e dos contratos chorudos de publicidade. Afinal, o futebol foi e pode ser “uma arma de emancipação”, conta-nos Mickaël Correia a propósito da banda desenhada "Une Histoire Populaire du Football", que é publicada a 22 de Janeiro, em França, a partir do livro com o mesmo título que ele publicou em 2018, em França, e que foi editado em Portugal em 2020. RFI: Como é que esta banda desenhada apresenta o futebol?Mickaël Correia, autor de “Uma História Popular do Futebol”: “O tema desta banda desenhada é que o futebol não é só uma indústria capitalista, não é só o Mundial, não é só o Cristiano Ronaldo. É igualmente uma arma de emancipação para os povos colonizados, para os operários, para as mulheres igualmente. Há também uma história social do futebol que é igualmente uma cultura popular.”Como é que o futebol foi - e aparentemente é - essa tal ferramenta de contestação e de emancipação? “Há muitas coisas a dizer sobre isso, mas talvez a primeira coisa que possamos dizer é que o início da história do futebol é uma história operária. O futebol nasceu nas comunidades operárias de Inglaterra. Quando havia muitos operários, era uma maneira para eles de fazerem comunidade porque eram pessoas que fugiram das pequenas aldeias da Inglaterra para trabalhar nas grandes fábricas das grandes cidades operárias e industriais de Inglaterra e necessitavam de fazer comunidade. Haver um clube de futebol de bairro e apoiar os jogadores das suas fábricas era uma maneira de fazer essa comunidade. Podemos dizer igualmente que a história do passe tem uma história mesmo política. São os operários que começaram a passar a bola entre eles e era sinónimo de cooperação nas fábricas e solidariedade operária. Passar a bola era sinónimo desta solidariedade."No século XIX?"No século XIX, sim. Como desporto moderno, o futebol foi criado em 1873, no final do século XIX.”Confere ao futebol essa capacidade de emancipar determinados grupos, nomeadamente as mulheres. Fala no caso das “munitionettes”, as mulheres chamadas para trabalhar nas fábricas de armamento durante a Primeira Guerra Mundial, quando os homens estavam na frente de batalha. Como é que elas foram pioneiras no futebol feminino e como é que depois acabaram por ser banidas pelos homens? “É uma história mesmo incrível e foi a história mais difícil de investigar porque não havia muita documentação. Durante a Primeira Guerra Mundial, todos os homens foram para a guerra e nas fábricas havia mulheres que estavam a trabalhar. O patronato foi dizer às mulheres:‘O que é que vocês querem fazer depois do trabalho?' E elas disseram: ‘Os nossos pais, os nossos primos, os nossos irmãos já estão a jogar futebol e nós queremos igualmente fazer partidas de futebol'. A partir de 1917, houve um campeonato destas ‘munitionettes' que foi mesmo muito popular na Inglaterra e houve mesmo 50.000 pessoas num estádio em Liverpool para apoiar estas mulheres. O problema foi quando os homens voltaram para as fábricas depois do fim da guerra. Eles disseram: ‘Bom, isto foi uma brincadeira e agora vocês têm que ir para casa fazer bebés' porque houve grande problemas de natalidade depois da guerra. Consideraram que o papel da mulher não era trabalhar nas fábricas, era fazer bebés para repovoar o país. Estas mulheres disseram: ‘Não, não é possível, queremos continuar a praticar o futebol' e até mais ou menos 1920, 1921, elas continuaram o futebol, mas depois a Federação de Futebol Inglesa fez uma proibição porque estava com medo. Eles estavam mesmo com medo.”Medo de quê?“Medo porque ver uma mulher de calções era tabu, ver as pernas de uma rapariga. Para eles, era inadmissível ver estas raparigas a jogarem assim. Foi mesmo um grande pânico moral. Então, eles proibiram o futebol feminino em 1921. As mulheres tiveram que esperar 50 anos para poder outra vez jogar futebol em Inglaterra e até no resto da Europa.” A BD apresenta as lutas das jogadoras no campo da guerra contra o sexismo e também contra a homofobia. Como é que o futebol feminino sobrevive ainda hoje? Como é que se bate contra o patriarcado desportivo? Quando é que as mulheres mostraram, ou será que ainda não mostraram, um cartão vermelho ao patriarcado no sector? “Claro que hoje ainda há muitas lutas no futebol feminino porque ainda há grandes diferenças de salário, por exemplo, com uma grande estrela do futebol, como a Megan Rapinoe, que é campeã do mundo de futebol nos Estados Unidos. A equipa dos Estados Unidos até fez uma greve no fim dos anos 2020 para reclamar os mesmos salários que os homens. Para trabalho igual, salário igual. Vimos igualmente esta história de sexismo e de agressão sexual com a equipa feminina de Espanha, em que o presidente da Federação deu um beijo a uma das jogadoras de Espanha. Isto foi igualmente uma grande luta para elas. Neste campo do salário, neste campo da luta contra o sexismo e contra as violências sexuais, podemos ver que o futebol feminino é igualmente uma arma contra o sexismo e contra estas violências.”O livro também confere ao futebol a capacidade de engendrar revoluções. Eu queria saber qual foi o papel dos Ashlawys, os adeptos do clube egípcio Al Ahly, na ocupação da Praça Tahrir e na Primavera Árabe? “Houve um papel muito importante dos adeptos de futebol na Primavera Árabe. Na banda desenhada, falo do que se passou no Egipto, mas houve igualmente o mesmo na Tunísia e na Turquia. Houve - ainda há agora - muitas organizações de adeptos que têm uma cultura do anonimato e da autogestão, que faz com que a polícia política das ditaduras não se possa infiltrar porque são grupos auto-geridos. Eles podiam organizar-se e fazer canções ou manifestações contra o governo logo nos anos 2010, 2011. Quando houve a revolução no Egipto, já há alguns anos que os grupos de adeptos estavam a manifestar, no estádio, contra o governo, a cantar canções mesmo poderosas de crítica à ditadura. E já tínhamos igualmente algumas práticas de luta contra a repressão da polícia. Na Praça Tahrir, no Egipto, eles ajudaram o movimento revolucionário a incutir estas práticas de luta contra a polícia e de luta no anonimato.”Mas foram reprimidos…“Claro, houve uma repressão mesmo terrível no Egipto e muitas pessoas destes grupos despareciam, foram para a prisão e alguns foram mortos.”Vocês contam mesmo um episódio, falam do massacre de Port Saïd…“O massacre de Port Saïd foi em 2012. Foi uma vingança de uma batalha que houve em 2011, um ano antes, em que os adeptos de futebol ganharam uma batalha na Praça Tahrir contra a repressão da polícia. Um ano depois, a polícia organizou este massacre. Na partida entre o Cairo e Port Saïd, a polícia autorizou os adeptos do Port Saïd a entrarem com facas e, no final da partida, a polícia fechou o estádio e houve um massacre. Os adeptos do Port Saïd sacaram as facas e as armas e mataram dezenas de adeptos deste grupo que são os adeptos da equipa do Cairo. Isto foi mesmo uma vingança da vitória dos adeptos sobre a polícia em 2011.”Falam também da lição "decolonial" e de “drible social” que os brasileiros Pelé e Garrincha deram ao mundo. Quer contar-nos? “O futebol é uma religião no Brasil. Tem igualmente uma dimensão decolonial para mim. A própria história do drible é, para mim, uma história decolonial. O drible nasceu no Brasil nos anos 1920, mais ou menos, e foi um jogador negro que era sempre atacado pelos jogadores brasileiros brancos - porque neste período era proibido aos jogadores negros jogarem futebol. Arthur Friedenreich, de pai alemão e mãe brasileira, começou a meter pó de arroz sobre a sua pele para parecer mais branco. Mas no campo de futebol tinha sempre muitos ataques dos jogadores brancos porque era um período mesmo muito racista. Uma vez, Arthur Friedenreich, quando ia atravessar a rua, um carro ia atropelá-lo, ele desviou-se e fez um movimento de anca. Foi assim que o drible nasceu. Ele mesmo disse: ‘Como não posso lutar contra a violência dos brancos no campo, a melhor maneira de lutar contra a violência é desviar a violência. Então isto é mesmo uma coisa de uma luta decolonial. Quer dizer, não posso fazer nada contra as pessoas que têm este monopólio desta violência do Estado, então a melhor maneira é desviá-la. O Pelé e o Garrincha fizeram-no de uma maneira artística. Foi mesmo arte.”Na BD, chamam-lhe “o jogo bonito”. “Sim, jogo bonito ou “Futebol Arte” é outro termo que se usa no Brasil que é fazer desta arte uma identidade afro-brasileira, com este desvio da anca que tem esta história de como lutar contra esta violência do colonizador.” Outra noção na BD é justamente o futebol como um campo de resistências. Como é que o futebolista austríaco Matthias Sindelar, conhecido como “o Mozart do futebol”, se tornou num símbolo de resistência face ao regime nazi? “O Matthias Sindelar, em 1938, era mais ou menos o Cristiano Ronaldo deste período. Em 1938, a Alemanha invadiu a Áustria e quis fazer uma grande cena de propaganda nazi com um jogo entre a Áustria e a Alemanha nazi. A propaganda era dizer que o povo da Áustria e o povo alemão eram o mesmo povo e que apoiavam o III Reich e o seu líder Adolf Hitler. Antes da partida, os diferentes chefes nazis foram ver o Matthias Sindelar para lhe dizer ‘vamos fazer um jogo de propaganda e tem que acabar com um zero zero'. O problema é que quando a partida começou, a equipa da Alemanha jogava mesmo muito mal e a Áustria, que era uma das melhores equipas da Europa, teve que fingir não jogar bem. O problema é que no final da partida, Sindelar já não podia fingir jogar mal e marcou um golo. No final da partida, toda a gente estava a dizer que o Sindelar ia ser morto, enviado para um campo de concentração ou algo assim. Como Sindelar era tão famoso, era uma celebridade desta época, os nazis não o quiseram matar. Durante mais ou menos um ano ou dois, ele entrou na clandestinidade porque era contra o regime nazi e a mulher dele era judia. Foram encontrados mortos no seu apartamento, em 1939, e ninguém sabe o que se passou. Ninguém sabe se foi a Gestapo que assassinou o Matthias Sindelar. O que sabemos é que quando ele morreu, houve nas ruas de Viena mais ou menos 15.000 pessoas e, neste período, todas as manifestações públicas eram interditas pelo regime nazi, o que foi visto, na época, como a primeira resistência civil da Áustria contra o regime de Adolf Hitler.” Outra história muito comovente, ainda na parte das resistências, é a dos irmãos Starostine. Quer resumir-nos a história destes irmãos e como é que, graças ao futebol, eles sobreviveram ao Gulag? “Há uma equipa muito famosa que se chama o Spartak Moscovo, que é a grande equipa popular da capital da Rússia. Nos anos 30, 40, quando o regime de Estaline era muito poderoso e muito repressivo sobre a população, a maneira de dizer não do povo de Moscovo era não apoiar a equipa do partido que era o Dínamo de Moscovo, a equipa oficial da polícia política, mas antes apoiar o Spartak Moscovo, que era a equipa do povo e pertencia a dois irmãos que se chamavam os irmãos Starostine. Estes irmãos eram mesmo muito populares junto da população operária da Rússia. O problema é que a polícia política não gostava que estes irmãos fossem muito populares e que uma grande parte da população russa não apoiasse a equipa da polícia política. Então, em 1940, enviou os dois irmãos para o campo de trabalho, o Gulag. Quando os irmãos chegaram ao Gulag, todos os presos tiveram uma grande solidariedade com os irmãos Starostine, o que fez com que eles sobrevivessem durante quase cinco anos.”A BD aponta ainda o futebol como um terreno de contestação anticolonialista. Contam que na colonização em África, por exemplo, o futebol começou por ser visto como uma forma de dominar o corpo da pessoa colonizada. Quando é que isso muda? “Isso muda depois da Segunda Guerra Mundial. Antes foi a Igreja e os diferentes E stados colonizadores que usaram o futebol para dominar o corpo do colonizado, era mesmo para prender, para domesticar o corpo da pessoa colonizada. Durante a guerra, nas tropas de libertação da França, igualmente por toda a Europa, havia muitas pessoas da Guiné, dos Camarões ou do Senegal e a França para lhes agradecer deu-lhes liberdade de associação. A partir de 1946, 47, 48, houve uma explosão dos clubes de futebol organizados por estes povos colonizados. Estes clubes autogeridos pelos colonizados foram lugares para falar de política e se se podia gerir clubes de futebol e campeonatos de futebol, podia-se igualmente gerir o país. Então, os clubes de futebol, autogeridos pela colonizados, foram um laboratório político, um laboratório de auto-gestão e político. Houve muitos líderes da independência na Argélia, no Senegal ou na Nigéria que foram presidentes de clubes de futebol nesses países.”O próprio nascimento do Campeonato Africano das Nações acaba por ser um instrumento do pan-africanismo, não é?“Sim, claro. A primeira Taça de África das Nações foi igualmente um laboratório do pan-africanismo. Foi uma maneira de dizer à Federação Internacional de Futebol: ‘Podemos organizar a nossa própria taça de futebol no nosso continente'. E foi uma forma igualmente de propaganda para dizer que o continente africano tem de ficar unido na política e o futebol era mesmo uma boa maneira de mostrar esta unidade no mundo inteiro.”Nesta “História Popular do Futebol”, não fala directamente de uma das maiores estrelas de futebol contemporâneas, o Cristiano Ronaldo, a não ser em alguns desenhos e algumas falas indirectas. Porquê?“O Cristiano Ronaldo é desenhado no princípio da banda desenhada, mas é mais para mostrar que esse jogador é um grande símbolo da indústria capitalista que é hoje o futebol. É uma pessoa muito conhecida,é uma pessoa que representa Portugal, mas é igualmente uma pessoa que representa o melhor da indústria do capitalismo futebolístico hoje.”Que é o contrário da mensagem que transmite o livro…“Sim, é o contrário da mensagem. A mensagem do livro é dizer que, claro, o futebol é uma indústria, mas dentro desta indústria podemos ver algumas práticas de resistentes. Como estamos em França, para muitos lusodescendentes, para muitas pessoas que vêm da emigração portuguesa, o Cristiano Ronaldo é uma maneira de dizer ao povo francês e aos outros povos europeus que somos um povo de emigração, somos um povo trabalhador que não se ouve muito em França, mas podemos ter este orgulho de ter um jogador como o Cristiano Ronaldo. O Cristiano Ronaldo é a oposição do estereótipo do português em França porque é um jogador que se vê muito, é um jogador que tem muito orgulho. Isso vem contra este estereotipo do português que é muito invisível, que não diz nada, que só está aqui [França] para trabalhar.”Então, também o Cristiano Ronaldo se emancipou?“Isso é a contradição do futebol: pode ser uma mensagem muito capitalista, é um mercado, mas pode ter igualmente uma mensagem muito política. É isto mesmo que gosto nesta história do futebol: é uma coisa que está sempre em contradição entre um espectáculo muito capitalista, onde há muito dinheiro, mas é igualmente um desporto muito popular e onde há muitas resistências.” Em contrapartida, vocês dedicam um capítulo a Diego Maradona, que era visto como um deus. Como é que se explica a divinização deste jogador com aspectos tão controversos, nomeadamente as drogas, os excessos? “Na Argentina, este jogador é um deus porque ele vem de um bairro muito popular e aprendeu a jogar na rua. Isto é uma coisa muito importante para o povo da Argentina que se pode identificar com ele. Houve uma partida muito conhecida em 1986 contra a Inglaterra. Ele pôs a…”A “mão de Deus”…“A mão de Deus, ele marcou um golo com a sua mão. Para o povo argentino, era uma coisa tipicamente do povo argentino. Quer dizer, não podemos lutar contra os ingleses, que eram igualmente um povo colonizador, mas vamos fazer esta coisa que é mais do âmbito da cultura do malandro, da cultura de rua, em que para sobreviver tens de roubar, para ganhar contra o dominante tens de fazer batota. O que se passou quando Maradona foi para Nápoles foi a mesma coisa. O povo de Nápoles é um povo que vive muito na rua e gostou muito deste jogador. A divinização é igualmente muito importante porque na maneira de falar dos napolitanos, ‘Maronna' quer dizer a Virgem Maria. Então Marona é muito próximo do Maradona. Há igualmente um aspecto muito crístico porque Diego Maradona tomou muita droga, o corpo dele estava, no fim da sua vida, muito gordo. Houve mesmo uma exposição do corpo dele, um pouco como o Cristo que mostrou as suas feridas e o corpo martirizado. Então, o povo argentino dizia que este jogador era mesmo uma pessoa do povo, que estava a mostrar um corpo martirizado e houve uma aproximação entre o Maradona e a sua parte mais crística.”Acaba o livro com uma personagem, mulher, no café com os amigos, a dizer que “nos relvados, nas tribunas e nas ruas, uma outra história do futebol continua a ser escrita”. Os campos de futebol ainda são um terreno de luta?“Podemos vê-lo diariamente. Nos campos de futebol, nas tribunas, vimos apoio à Palestina, por exemplo, na Escócia, e até aqui em Paris. Em Paris, houve uma grande manifestação dos adeptos a favor da Palestina. Há igualmente muitas lutas antirracistas. Estamos a ver muitos jogadores que estão a dizer que eles não são racistas. E estamos a ver igualmente alguns jogadores na luta contra a LGTBfobia. O futebol é um espelho do que se está a passar na sociedade e isso pode ver-se no campo de futebol todos os dias.”Em 2018, em França, publicou esta “História Popular do Futebol” sob a forma de um ensaio. Em 2020, editou-a em Portugal. Por que é que decidiu adaptar a obra ao formato BD? “Era para ser mais popular. O livro tem mais de 500 páginas e pode ser um bocadinho difícil para algumas pessoas que não têm o hábito de ler muito. Fazer esta adaptação para banda desenhada é uma maneira de os jovens também conhecerem esta história de resistência.”